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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.35 Rio de Janeiro jul./dez. 2017
ARTIGO BILÍNGUE
Gênero e identificação
Gender and identification
Género e identificación
Pedro Ambra; Tradução de Pedro Ambra
RESUMO
Tendo em vista o lugar central da tensão na produção de saber no campo psicanalítico, este ensaio visa a dar algumas pistas para uma aproximação entre a questão das chamadas identidades de gênero e uma das teorias lacanianas sobre a identificação, a saber, aquela apresentada no seminário de 1961-1962. Após recuperar alguns desenvolvimentos de Lacan sobre a constituição do sujeito no contexto do traço unário e da crítica ao princípio de identidade - presente igualmente em Butler -, propomos que o processo de identificação sexuada pode ser repensado como uma resposta performada ao desejo do Outro.
Palavras-chave: Gênero; Identificação; Sexuação; Lacan; Butler.
ABSTRACT
Considering the main role of the tension in the knowledge production in psychoanalysis, this essay aims to give some hints for a possible convergence between the question of the so-called gender identities and one of Lacan's identification theories, specifically the one presented in the seminar of 1961-1962. After revisiting some developments on the subjects' constitution, the trait unaire context, as well as the identity principle critique - also present in Butler -, we propose that que gendered identification process can be reconsidered as a performed response to the desire of the Other.
Keywords: Gender; Identification; Sexuação; Lacan; Butler.
RESUMEN
En vista del lugar central de la tensión en la producción de saber en el campo psicoanalítico, este ensayo pretende dar algunas indicaciones para una aproximación entre la cuestión de las llamadas identidades de género y una de las teorías lacanianas de la identificación, a saber, aquella presentada en el seminario de 1961-1962. Después de recuperar algunos avances de Lacan sobre la constitución del sujeto en el contexto del trazo unario y de la crítica al principio de identidad - presente igualmente en Butler - proponemos que el proceso de identificación sexuada puede repensarse como una respuesta performada al deseo del Otro.
Palabras clave: Género; Identificación; Sexuación; Lacan; Butler.
Diferentemente daqueles que sustentam ter havido uma era de ouro da psicanálise, parece que a história nos mostra que ela está sempre em crise. De certa maneira - seja na clínica, seja em sua forma de produção de saber -, a psicanálise precisa da tensão, da incerteza, das confrontações. No discurso de certos psicanalistas, contudo, as teorias de gênero representariam uma das ameaças à "peste psicanalítica". Acusadas de negar a diferença sexual, elas ignorariam igualmente a dimensão lacaniana do real, além de promoverem uma chamada "sociologização da psicanálise". Mais ainda, tais teorias teriam cometido o pecado de tocar o sacrossanto tema da sexualidade, que, durante quase um século, esteve sob a tutela da psicanálise. Na condição de psicanalistas, nossa resposta parece ser aquilo que Laufer (2015) denomina uma "melancolização do saber psicanalítico". Em face de uma impossibilidade de luto pelo deslocamento de uma posição de poder, as teorias psicanalíticas recairiam sobre si mesmas, ignorando, assim, toda possibilidade de diálogo com outros campos do conhecimento, exceto quando tais campos confirmam o que já se sabia de partida. Visando a escapar de tal armadilha melancólica, este breve ensaio objetiva apresentar algumas questões a outro saber não para negar nem para apaziguar essa tensão, mas para poder repensá-la em outros termos.
Ainda que existam diferenças importantes e significativas entre as teorias de gênero e a psicanálise, parece-me que há ao menos uma questão que as aproxima: como nos sexuamos? Qual é o processo pelo qual um ser bissexual, com tendências perverso-polimorfas, aliena-se em dada identidade sexual? Do lado da psicanálise, as duas teorias mais frequentemente evocadas entre os lacanianos em face do mistério do ser sexual parecem referir-se a outros problemas conceituais. Por um lado, o Édipo estrutural é uma descrição geral da entrada do sujeito na linguagem, e não um processo de sexuação. A rigor, o Édipo não produz homens e mulheres, mas neuróticos, psicóticos e perversos. Por outro lado, as fórmulas da sexuação apresentam duas modalidades diferentes de gozo, de posicionamento em face da linguagem e de impasses da submissão à lei fálica. Contudo, não se trata de uma descrição de um processo, nem propriamente de identidades sexuais. Lacan localiza São João da Cruz como do lado não-todo das fórmulas - em outras palavras, feminino - sem que isso implique concebê-lo como um transexual, por exemplo.
Haveria na psicanálise, então, uma teoria da identidade sexual? Pode-se argumentar que seu operador teórico privilegiado para pensar esse problema seria aquele da identificação. Conceito que, ao longo da obra de Freud, tem essencialmente três incidências: uma é a da formação sintomática (Melancolia, tosse de Dora); a outra é a da constituição subjetiva (identificação primária e secundária ao pai, conduzindo à formação do supereu); e a terceira é a do laço com o outro (a chamada identificação do pensionato ou do líder na psicologia das massas) (Freud, 1921/2012). Nenhuma delas, contudo, diz respeito especificamente ao processo de sexuação. O próprio Freud nunca utilizou a expressão "identificação sexual".
Mesmo em Lacan, a ideia de uma "identificação sexual" é tardia, apresentada como tal apenas no seminário dedicado ao semblante (Lacan, 1971/2009) e rapidamente substituída pela noção de identificação sexuada no seminário Les non-dupes errent (1973-1974). Tal modificação parece sublinhar que, já nos anos 1970, Lacan previa que um dos grandes desafios teóricos com os quais a psicanálise seria confrontada não se ligaria apenas a uma gestão de gozo entre as diferentes escolhas objetais, mas, sim, à identidade sexuada. Não obstante, Lacan nunca explorou propriamente essa ideia e nos legou a tarefa da reflexão sobre o estatuto de tal processo de identificação sexuada. Em sua teoria, a identificação tem incidências bastante distintas: de partida, a identificação imaginária no estádio do espelho, depois a identificação simbólica junto ao significante fálico, em seguida a identificação com o objeto a na passagem ao ato e, por fim, uma identificação com o sintoma como paradigma do final de análise.
Mas lembremo-nos, contudo, que, em 1961, Lacan anuncia que seu seminário se dedicará, naquele ano, inteiramente à discussão da noção de identificação (Lacan, 1961-1962/2003). A premissa de Lacan nesse ano de seu seminário é a de que a estrutura básica da identificação - e, mais radicalmente, do significante - é o traço unário [einziger Zug]. Tal expressão é retomada do capítulo 7, "A identificação", do célebre Psicologia das massas e análise do eu, de Freud (1921/2012). O que era, em Freud, uma modalidade de formação sintomática se tornará, em Lacan, a forma mais elementar de identificação. Mais ainda, o traço unário seria, a partir desse momento, uma base do significante como tal, em uma discussão que terminará por mudar o estatuto lacaniano da noção de "letra". De toda forma, é importante lembrar que aquilo que dá a possibilidade da extensão de uma tal discussão a partir do traço unário nesse seminário é precisamente a crítica do princípio de identidade. Se a teoria da linguagem que embasa a psicanálise é estruturalista, por princípio, não há identidade entre os significantes. Quando dizemos "guerra é guerra" (Lacan, 1961-1962/2003, p. 55), não estamos, em absoluto, no domínio de uma tautologia, pois há um sentido que emana simplesmente do fato de que as duas palavras "guerra" não sejam o mesmo significante, pois justamente o que define um significante é sua posição como sujeito para outro significante, que, retroativamente, nos faz supor um sentido no primeiro e, por consequência, outro no segundo. O traço unário pode então ser concebido como essa unidade mínima de diferença na repetição, por um lado, e da igualdade na diferença, por outro. Essa ideia conduzirá Lacan à apresentação de uma de suas primeiras incursões mais detidamente topológicas; a saber, que a estrutura do sujeito é a estrutura do toro. (Figuras 1 e 2).
As pequenas voltas no interior do toro podem sem caracterizadas pelo que Lacan denomina o "unário da repetição", no contexto da demanda. Por exemplo, em dado estágio do desenvolvimento, as crianças entram na chamada "fase dos porquês". Tal repetição incessante - que é, ao mesmo tempo, diferente em seus objetos e igual em sua performance - tem uma estrutura unária. Nenhuma resposta satisfará a criança, posto que sua demanda se constitui ao redor de um desejo - esse furo central - como instância radicalmente negativa e exterior, mas que, ao mesmo tempo, constitui o sujeito. O mantra lacaniano segundo o qual o analista não deve responder à demanda versa justamente sobre o fato de que o analista se orienta pelo desejo, e não pela demanda, e, portanto, a abstinência analítica visa a sublinhar o que há de real nas repetições sintomáticas do sujeito. Mas o que tudo isso tem a ver com identidade sexuada?
Butler tornou-se uma referência essencial para os estudos de gênero precisamente após a publicação de Problemas de gênero (1990/2002). Seu subtítulo, por vezes esquecido, é "feminismo e subversão da identidade". Butler descreve os impasses das subjetividades e políticas que se baseiam na identidade, entendida como uma essência que unificaria todas as mulheres sob a bandeira do feminismo, por exemplo. De maneira diferente daquela de Lacan, ela parece aproximar-se, em alguma medida, da mesma conclusão: a de que "a mulher", como tal, não existe. Contudo, de um ponto de vista político, parece ser mais radical, na medida em que, no limite, nenhuma identidade sexuada existiria como substância (ou mo dalidade de gozo) fixa e idêntica a si, donde sua crítica ao uso da noção de "identidade de gênero" como ontologisante.1 Para a autora, o gênero não teria o estatuto de uma essência masculina ou feminina (ainda que socialmente construída), mas, sobretudo, o de uma ilusão criada a partir de reiterações performativas.
Se tal ideia parece muito abstrata, tomemos um exemplo similar no interior da psicanálise, a teoria do ato analítico. O/A analista não é uma identidade fechada, idêntica a ela mesma, mas precisamente uma função. O efeito de um ato analítico vai além do eu do analista e, como toda intervenção, não é antecipado ou controlado, mas constitui uma operação por meio da qual uma contingência torna-se necessária e faz daquela pessoa um(a) analista no après-coup. Logicamente, portanto, o ato precede o analista, que é muito mais um efeito do que a causa. Nessa mesma lógica, Butler compreende o gênero como o resultado de uma série de atos performativos que criam, em dado momento, uma aparência de estabilidade e se cristalizam em uma identidade.
Convém sublinhar aqui uma crítica que a psicanálise poderia endereçar a Butler, que, em sua reflexão, parece ignorar o alcance do grande Outro em relação à performatividade. Em outras palavras, mesmo se tomarmos a ideia butleriana seguindo a qual os sujeitos cotidianamente performam seu gênero, seria necessário igualmente refletir que toda performance se faz visando a uma alteridade radical, posto que não há teatro sem público. Por outro lado, conviria fazer uma crítica a Lacan no contexto da identificação unária, uma vez que seus desenvolvimentos parecem ignorar o estatuto da sexuação. De maneira surpreendente, no seminário consagrado à identificação, não há nenhuma referência que trate da sexuação à luz do traço unário, do toro etc.
Assim, para concluir, gostaria de lançar algumas pistas para a construção de uma hipótese referente ao estatuto psicanalítico do processo por meio do qual o ser falante pode vir a se identificar como sexuado. Sublinho que essa não é uma tese no sentido forte do termo, nem mesmo uma conclusão, sendo apenas um conjunto de ideias frágeis que gostaria de apresentar aqui. Supondo que esses dois modelos - o sujeito como toro e o gênero como ato performativo - não são incompatíveis, mas complementares, tentarei estabelecer sinteticamente uma hipótese sobre o processo de identificação sexuada a partir desses dois polos.
De partida, a identidade de gênero não seria a simples correspondência psíquica da diferença anatômica, nem uma essência ou uma construção social, mas tampouco o resultado do complexo do Édipo, na medida em que "de modo algum precisamos esperar pela fase fálica para distinguir uma menina de um menino; já muito antes eles não são iguais, em absoluto" (Lacan, 1971/2009, p. 28). Assim, a partir de Butler e Lacan, pode-se definir o gênero como uma resposta ao desejo do Outro. No contexto de entrada na linguagem, é imperativo lembrarmo-nos que nos constituímos sexuadamente sempre para alguém e, mais precisamente, para preencher o que se supõe ser o desejo (inconsciente) desse Outro. A identidade de gênero que reconhecemos no menino, por exemplo, pode ser repensada como uma resposta de um sujeito falante ao desejo parental, e não como um dado "natural". O gênero tem, assim, uma estrutura moebiana: trata-se de uma resposta endógena a um desejo exógeno, mas que, nesse movimento, borra tal fronteira.
Por outro lado, é a partir da demanda (descrita pelo traço unário em sua repetição) que o sujeito busca responder ao desejo do Outro. Ora, se definíssemos a identidade de gênero como uma resposta ao desejo do Outro, haveria aí uma dimensão da demanda própria ao gênero, ligada ao que Lacan denominava "repetição unária". Essa repetição da unidade mínima do significante pode ser descrita com precisão a partir da reiteração performativa de Butler, na qual todos os atos cotidianos - ligados ao corpo, à fala e ao desejo - portam em si a dimensão do gênero. E seria precisamente essa repetição que constituiria o sujeito sexuado, e não uma identidade a priori. Assim, a identidade de gênero seria constituída como uma demanda de reconhecimento performada e alienada no desejo do Outro e que precipita sua aparente fixidez no après-coup. E é aqui que o lugar do corpo deve ser situado. A anatomia - pensada como o imaginário do corpo - não é uma verdade em si, mas tem sua importância medida pelo lugar que ocupa no desejo e no discurso do Outro. A história mostra que a dita "diferença sexual", que nasce apenas no século XVI, começa a considerar que os seres falantes sejam divididos em dois sexos a partir do momento em que o saber médico assume um lugar de verdade no discurso social (Laqueur, 1998/2001).
Assim, no contexto da sexuação, a questão-chave na estruturação do sujeito não é apenas che vuoi, o que desejas, como atesta o grafo do desejo, mas igualmente chi sei, quem és tu. Essa possibilidade de compreender o gênero nos afasta de um olhar redutor, que localizaria em certos fenômenos contemporâneos, tais como a transexualidade, uma espécie de apocalipse do simbólico, no qual o Nome-do-Pai não teria mais força, ou na qual a sociedade estaria condenada a uma perversão ou a uma psicose generalizadas. Mas, se compreendermos o Outro a partir da ideia lacaniana de "tesouro dos significantes", as mudanças sociais passarão a ter uma incidência sobre o valor que damos a cada um desses tesouros. Dito de outra forma, se novos significantes se apresentam no discurso social ou se certos significantes mudam de valor em certas circunstâncias, o que pode ser compreendido como o impacto social sobre o desejo do Outro também tende a se alterar. Assim, se compreendemos a identidade de gênero como uma resposta ao Outro, é claro que aquilo que é considerado como socialmente valorizado tende a transformar concretamente as diferentes experiências sexuadas dos seres falantes. Isso não significa em absoluto que estamos diante de um "novo sujeito", mas que nossas identificações têm, simplesmente, novas formas de alienação, como sempre submetidas ao desejo do Outro. As identidades sexuais são, por fim, o que os sujeitos oferecem ao Outro na esperança de preencher uma falta que os constitui.
Referências bibliográficas
Butler, J. (1990/2002). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge. [ Links ]
Freud, S. (1921/2012). Psicologia das massas e análise do eu. (José Luis Etcheverry, Trad.). In J. Strachey (Ed.). Obras completas (Vol. 18, 2a. ed., pp. 63-136). Buenos Aires: Amorrortu. [ Links ]
Lacan, J. (1961-1962/2003). O seminário, livro 9: a identificação. (I. C. Magno, Trad.). Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife. [ Links ]
Lacan, J. (1971/2009). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. (Vera Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
Lacan, J. (1973-1974). Les non-dupes errent. (AFI, Ed.). Paris. Obtido em 19 de junho de 2017. Recuperado de http://www.valas.fr/Jacques-Lacan-les-non-dupes-errent-1973-1974 [ Links ]
Laqueur, T. (1998/2001). Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará [ Links ].
Laufer, L. (2015). Séminaires. Séminaires de Laurie Laufer. Paris: Université Paris 7. [ Links ]
Recebido: 28/09/2017
Aprovado: 08/01/2018
1 E lembremo-nos de que o conceito de identidade de gênero não nasce na sociologia ou no feminismo, mas em uma psiquiatria de inspiração psicanalítica, com Robert Stoller, nos anos 1960.