As moradias estudantis são percebidas por muitos jovens brasileiros como a melhor solução para o problema de não ter renda suficiente para arcar com as despesas de uma residência na cidade em que cursarão a graduação. Essa alternativa é oferecida pelo governo, por meio do Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES, a Instituições Federais de Ensino Superior – IFES, que são públicas e gratuitas. Entretanto, mesmo sendo clara a importância desta ação social para promover a igualdade de oportunidades e melhorar o desempenho acadêmico, as moradias estudantis não são suficientes para alojar todos os estudantes que necessitam dessa assistência, e muitas não têm estrutura e apoio social adequados para uma boa qualidade de vida (Delabrida, 2014; Garrido, 2015).
Além da escassez de vagas e da falta de estrutura, os estudantes residentes, população formada primordialmente por jovens, enfrentam uma difícil missão neste novo contexto social: dividir o mesmo ambiente com outros estudantes com culturas, valores e hábitos divergentes, gerando conflitos nesse novo lar. Pode-se compreender os conflitos, de um modo geral, como uma situação de atrito e de diferenças entre forças aparentemente opostas (Nery, 2010). O conflito é importante para o desenvolvimento do indivíduo, possibilitando-lhe a compreensão de si mesmo e fornecendo-lhe informações salutares sobre fronteiras sociais. No entanto, quando ele ocorre de maneira recorrente e/ou com intensidade, e sem uma resolução assertiva, pode trazer implicações negativas para a formação do indivíduo.
Alguns estudos internacionais apontam para os tipos de conflito gerados nas moradias, que podem ser intrapessoais, interpessoais e intergrupais (Al Kandari, 2007; Wanie et al., 2017); para os motivos dos conflitos, que podem ser referentes à discriminação racial (Johnson et al., 2011), a discordâncias entre os coordenadores da moradia com os demais residentes e aos conflitos de papéis existentes (Everett & Lottus, 2011; Porter & Newman, 2016); e, finalmente, para consequências geradas por esses conflitos, como o uso excessivo de álcool e de outras drogas (Thombs et al., 2015), o isolamento, (Shekhawat et al., 2016) e o suicídio (Taub et al., 2013).
No Brasil também foram encontrados estudos que abordam os conflitos existentes nas moradias (Berlatto & Sallas, 2008; Delabrida, 2014; Garrido, 2015; Laranjo & Soares, 2006; Sousa & Sousa, 2009) e as consequências negativas geradas pelo fato de o estudante ser residente, tais como: uso problemático de álcool e outras drogas (Zalaf & Fonseca, 2009); sentimento de ansiedade superior ao da população geral, síntomas de depressão e indicadores negativos em relação a pedir ou aceitar ajuda (Osse & Costa, 2011); sofrimento, exclusão e humilhação (Sousa & Sousa, 2009) e mudanças negativas nos domínios pessoal e social (Garrido, 2015).
A maneira como os conflitos são resolvidos pode determinar se eles são funcionais ou disfuncionais. Na literatura são encontradas algumas tipologias, para a resolução de conflitos, propostas por diversos autores, bem como instrumentos para a identificação e mensuração dessas tipologias para diferentes contextos e grupos sociais, que serão apresentados nos parágrafos seguintes.
Vuchinich (1990) especificou cinco formas distintas de resolução de conflitos: 1. Submissão: ocorre quando uma das partes cede às exigências do outro envolvido no conflito; 2. Intervenção de terceiros: descreve a participação de terceiros para buscar a solução do conflito; 3. Impasse: envolve uma mudança no tema ou no foco de atividade de modo que a tentativa de resolução seja abandonada; 4. Retirada: ocorre quando uma das partes recusa-se a continuar, abandonando a situação conflituosa. Laursen e Collins (1994) esclarecem que alguns autores associam Impasse e Retirada em uma única estratégia denominada como Desligamento; 5. Compromisso: reflete concessões de ambas as partes, geralmente alcançado por negociação. É considerado o mais adequado, proporcionando um desenvolvimento equilibrado e saudável no indivíduo e nas relações sociais.
Kurdek (1994) distingue quatro estilos de resolução de conflitos: 1. Envolvimento em conflitos: referente a comportamentos abusivos, irritadiços, defensivos e perda de autocontrole; 2. Retirada: refere-se a comportamentos de evitação do conflito pelo fato de ele atingir um nível de incômodo elevado; 3. Conformidade: envolve aceitar a resolução do outro sem considerar e defender a própria posição; 4. Resolução Positiva de Problemas: busca entender a perspectiva do outro e utilizar táticas de raciocínio para resolver a situação. Neste último tipo, há a inclusão de habilidades de negociação e compromisso pessoal.
Deluty (1979/1981) e Van Doorn et al. (2008), de forma mais concisa, consideram a existência de três formas de resolução de conflitos, denominadas por estes últimos como Dominância, Negociação e Retirada e, anteriormente por Robert Deluty (1979), como Agressiva, Assertiva e Submissa. Percebe-se que as tipologias, de forma geral, foram norteadas com base nas três estratégias propostas por Deluty, podendo ser: (a) Agressiva: caracteriza-se pelo enfrentamento da situação de conflito apelando para formas de coerção, como violência ou desrespeito ao direito, à opinião e ao sentimento alheios; (b) Submissa: envolve a consideração dos direitos e sentimentos dos outros, porém os próprios direitos e sentimentos são desconsiderados. Caracteriza-se pelo não enfrentamento de uma situação, por meio de fuga ou esquiva; (c) Assertiva: há o enfrentamento da situação de conflito e defesa dos próprios direitos e opiniões, sem, porém, apelar para qualquer forma de coerção, como violência ou desrespeito ao direito e opinião alheios. Além disso, o comportamento assertivo envolve expressão de pensamentos e sentimentos positivos. É importante frisar que o termo estratégia de resolução de conflito é utilizado para indicar a reação comportamental predominante de uma pessoa diante de desacordos/conflitos, o que não significa que outras estratégias não possam ser por ela utilizadas.
Na literatura internacional são encontrados instrumentos construídos para medir as estratégias de resolução de conflitos em crianças (Deluty, 1979/1981), os estilos de resolução de conflitos em relacionamentos românticos/conjugais (Kurdek, 1994; Kerig, 1996) e as respostas individuais a situações conflituosas envolvendo a família (Straus, 1979). Além desses, há também o inventário que classifica os estilos de resolução de conflitos interculturais (Hammer, 2005), o instrumento que mede os estilos de mensagens de gestão de conflitos entre jovens e adolescentes (Kimsey & Fuller, 2003) e o que avalia os comportamentos de resolução de conflitos interpessoais na população adulta (Taylor et al., 2019).
Algumas escalas mencionadas acima foram traduzidas e adaptadas para uso no Brasil, como a de Deluty (1979/1981), que foi cedida por ele e adaptada por Leme (2004); a de Kurdek (1994), que foi adaptada por Zanella et al. (2017); a de Straus (1979), que foi adaptada transculturalmente por equivalência semântica e mensuração, por Moraes et al., (2002). Entretanto, as escalas que medem as estratégias de resolução de conflitos entre jovens e adolescentes (Kimsey & Fuller, 2003) e da população adulta não foram adaptadas para o contexto nacional (Taylor et al., 2019).
Com exceção das escalas que medem as estratégias de resolução de conflitos em crianças e em relacionamentos conjugais, percebe-se uma carência de trabalhos publicados no sentido de medir as estratégias de resolução de conflitos no Brasil, principalmente com grupos de jovens e, mais especificamente, no contexto da moradia estudantil.
Estimar as estratégias de resolução de conflitos utilizadas por estudantes residentes em moradias universitárias parece-nos um passo útil, pois, assim, pesquisadores ou profissionais que prestam assistência visando ao bem-estar desta população poderão planejar ações que auxiliem os estudantes a utilizar a assertividade em relações conflituosas vivenciadas por eles, tanto no nível interindividual como intergrupal, seja no âmbito da pesquisa ou no contexto de atendimento clínico. Foi neste sentido que propusemos a elaboração da escala Estratégias de Resolução de Conflitos em Moradias Estudantis (ERCME), realizada por meio de dois estudos descritos a seguir.
Estudo 1 – Construção e análise da estrutura fatorial da escala Estratégias de Resolução de Conflitos em Moradias Estudantis
O presente estudo teve como foco elaborar e verificar as propriedades psicométricas da ERCME no contexto de uma moradia universitária. Especificamente, avaliaram-se a sua estrutura fatorial e a sua consistência interna. A expectativa foi que a ERCME discriminasse níveis nas estratégias utilizadas por estudantes para a resolução de conflitos em moradias universitárias.
Método
Construção dos Itens da ERCME
Participantes
O instrumento foi elaborado com base em entrevistas realizadas com 60 estudantes residentes, que visavam compreender as queixas e conflitos vivenciados por eles em uma moradia estudantil de uma universidade pública paraibana (Assis et al., 2023), e em estudos realizados por Deluty (1979/1981) acerca de estratégias de resolução de conflitos.
Procedimentos
A partir do estudo de Assis et al. (2023), foi possível selecionar 12 situações conflituosas que os estudantes afirmaram vivenciar nas moradias estudantis. São elas: barulho, falta de higiene/limpeza, desentendimento, fofoca, falta de segurança/medo, estrutura precária, drogas lícitas, vandalismo, drogas ilícitas, roubo/furto, negligência e diversidade de ideias/valores. Ao considerar as estratégias de resolução de conflito (assertiva, agressiva e submissa), foi possível construir 36 itens onde cada situação é apresentada três vezes, sendo seguida de uma forma de resolução de conflito.
Em cada item foi pedido ao participante para julgar o quanto adotaria a estratégia apresentada para resolver situações conflituosas dentro da moradia estudantil, sendo oferecidas cinco opções de respostas – que variavam de 1 (Nada) a 5 (Muitíssimo) – para que ele assinalasse apenas uma (e.g., Item 1. Se eu acordasse de madrugada, com o som alto do quarto vizinho, tentaria conversar, compreender o porquê e negociar; Item 2. Se o meu vizinho colocasse lixo na frente da porta do meu quarto, eu não discutiria e tentaria aceitar a situação). Esta escala tipo Likert foi disponibilizada para os participantes em versão ‘lápis e papel’, cuja cópia poderá ser obtida escrevendo-se a um de seus autores. As sentenças foram redigidas segundo as definições operacionais citadas, sendo adotados os critérios de simplicidade, clareza, variedade e credibilidade (Pasquali, 2010).
Avaliação dos Juízes
Os 36 itens redigidos foram submetidos à avaliação de pesquisadores integrantes do Núcleo de Pesquisa em Desenvolvimento Sociomoral (NPDSM), vinculados ao programa de pós-graduação em Psicologia Social da UFPB. Os avaliadores (cinco mestres e cinco doutores) analisaram todos os itens do instrumento para verificar se eles apresentavam adequadamente o construto Estratégias de Resolução de Conflitos (adequação, relevância e clareza). Após a discussão, foram propostas e feitas algumas alterações.
Avaliação Semântica dos Itens
Com vistas à realização da análise semântica dos itens, os pesquisadores entraram em contato com a Coordenação de Assistência Estudantil da Instituição Federal de Ensino Superior (IFES) para explicar o objetivo da pesquisa, apresentar o instrumento a ser utilizado para a validação semântica e pedir a autorização para ter acesso aos estudantes residentes de duas moradias estudantis localizadas na capital paraibana.
Segundo Pasquali (2010), a análise semântica tem como objetivo verificar se os itens são compreensíveis para todos os membros da população à qual o instrumento se destina.
Participantes
Nesse sentido, para a análise semântica da escala, contou-se com a colaboração de 12 estudantes residentes em duas moradias universitárias, sendo seis do primeiro período e seis concluintes do curso de graduação, distribuídos igualmente entre homens e mulheres.
Procedimentos
Os residentes foram entrevistados, individualmente, na própria moradia estudantil. Nesse momento, buscou-se verificar se os itens eram inteligíveis para o estrato mais baixo da amostra, conforme proposto por Pasquali (2010).
As entrevistas duraram cerca de 50 minutos, e, considerando que não houve nenhum questionamento por parte dos participantes, manteve-se a versão proposta.
Delineamento
Trata-se de um estudo correlacional, com ênfase psicométrica. Tendo em conta a inexistência de medidas voltadas para avaliação das estratégias de resolução de conflitos em moradias estudantis, este estudo tem o objetivo de conhecer as propriedades psicométricas da escala ERCME.
Participantes
Contou-se com uma amostra não probabilística (intencional) formada por 200 estudantes de graduação que residiam em moradias estudantis localizadas em João Pessoa, Bananeiras, Areia e Rio Tinto, vinculadas a uma Instituição Federal de Ensino Superior da Paraíba. Para tentar garantir uma melhor identificação do estudante residente com o instrumento em elaboração, foi colocada como critério para a participação da pesquisa uma experiência mínima de seis meses na moradia. Os estudantes tinham idades que variavam entre 18 e 35 anos (M=23,39; DP = 4,20), sendo a maioria do sexo masculino (54%), e cursavam as três áreas de ensino: saúde (45,7%), humanas (36,7%) e exatas (17,6%). A participação no estudo foi voluntária.
Instrumentos
Os participantes responderam à Escala Estratégias de Resolução de Conflitos em Moradias Estudantis (ERCME) e um questionário contendo perguntas de natureza demográfica (idade, sexo, religião, área do curso, tempo na residência, campus).
Procedimento e aspectos éticos
Primeiramente, foi pedida a anuência da Coordenação de Assistência e Promoção e Estudantil (COAPE), setor responsável pelas moradias estudantis da Instituição. A coordenadora do setor foi informada sobre os objetivos do estudo e, após sua autorização, o projeto foi enviado ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, conforme recomendação da Resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde – CNS.
Após aprovação do Comitê (Parecer nº 86944418.2.0000.5188), os participantes foram informados, por meio de Assembleias Estudantis, do estudo que seria realizado em suas moradias e solicitados a colaborar com a pesquisa. A coleta de dados foi efetuada após consentimento e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, sendo a participação individual. Todos foram informados acerca do caráter voluntário de sua participação, garantindo-se o anonimato e o sigilo. Em média, 20 minutos foram suficientes para concluir a participação.
Análise dos dados
Os dados obtidos foram registrados em um banco de dados, por meio do software PASW (versão 25.0) e analisados a partir do software R 3.6.3 (R Core Team, 2020), utilizando os pacotes Corpcor (Schafer et al., 2017) para calcular os parâmetros de fatorabilidade da amostra (KMO e Teste de Esfericidade de Bartlett) e nFactors (Raiche & Magis, 2020) e para executar a Análise Fatorial Exploratória (AFE). O método utilizado para a extração de fatores foi a fatoração pelos eixos principais. Por fim, foram utilizados os coeficientes Omega de McDonald e Alfa de Cronbach para avaliar a consistência interna do instrumento, adotando o ponto de corte de > 0,70 (Ventura-León & Caycho-Rodríguez, 2017)
Resultados
Previamente aos procedimentos exploratórios de avaliação da estrutura interna do instrumento, foi verificado se os itens eram passíveis de fatoração, o que foi comprovado pelo KMO (Kaiser-Meyer-Olkin)=0,75 e o Teste Esfericidade Bartlett χ2(35)=50,842, p<0,001. Para realizar a AFE, primeiramente foi averiguada a estrutura fatorial da escala sem estabelecer o número de fatores e o tipo de rotação, optando por empregar critérios clássicos de Kaiser e de Cattell, o critério de Horn e o critério do pesquisador, considerando a base teórica proposta no presente estudo (Deluty, 1981).
De acordo com o critério de Kaiser, foram identificados dez fatores com valores próprios iguais ou superiores a 1 (5,48, 4,20, 3,53, 2,04, 1,73, 1,52, 1,33, 1,21, 1,18, 1,01), indicando dez dimensões, que explicaram 64,98% da variância total. Em contrapartida, quando efetuada a análise paralela, considerando 1.000 simulações da estrutura do banco de dados (200 participantes e 36 itens), foi obtida uma solução fatorial com seis dimensões. Na distribuição gráfica dos valores próprios – critério de Cattell – foi possível detectar quatro fatores ao observar o ponto em que a inclinação do gráfico mudava mais abruptamente. Ao considerar o método Acceleration Factor (Ruscio & Roche, 2012), foram identificados três fatores. A distribuição gráfica (scree plot) desses valores é apresentada na Figura 1.
Com a finalidade de testar uma estrutura mais parcimoniosa e que corroborasse a literatura utilizada para a construção da escala, optou-se por extrair três componentes, considerando-se, assim, o método Acceleration Factor e o critério do pesquisador. Ao realizar a nova análise com a extração de três fatores e a rotação varimax, definiu-se que, para o item pertencer ao componente, ele deveria apresentar carga fatorial mínima de 0,40, considerando o ponto de corte sugerido pela literatura (Hair et al., 2012). Partindo do princípio da parcimônia (Pasquali, 2012), objetivou-se contar com um instrumento conciso, fácil e rápido de aplicar, para fins de pesquisa. Assim, optou-se por incluir em cada fator os seis itens que apresentaram maiores cargas fatoriais, e se obteve um total de dezoito itens. A Tabela 1 sumariza as cargas fatoriais dos itens obtidas para cada fator.
Itens | I Estratégia Agressiva | II Estratégia Assertiva | III Estratégia Submissa |
---|---|---|---|
12 - Se o meu vizinho colocasse lixo na frente da porta do meu quarto, eu me posicionaria, ficaria irritad@ e poderia perder o autocontrole. | 0,76 | −0,05 | −0,11 |
14 - Se um morador quebrasse o bebedouro, eu me posicionaria, ficaria irritad@ e poderia perder o autocontrole. | 0,68 | 0,04 | 0,03 |
36 - Se eu percebesse que não estão dando as condições necessárias para me sentir segur@ dentro da moradia, eu me posicionaria, ficaria irritad@ e poderia perder o autocontrole. | 0,66 | −0,01 | 0,19 |
10 - Se a coordenação da moradia ou o setor responsável pelo apoio institucional não desse a atenção devida aos problemas da Moradia, eu me posicionaria, ficaria irritad@ e poderia perder o autocontrole. | 0,65 | −0,12 | 0,06 |
19 - Se eu acordasse de madrugada, com o som alto do quarto vizinho, eu me posicionaria, ficaria irritad@ e poderia perder o autocontrole | 0,62 | −0,08 | −0,09 |
17 - Se eu ficasse sem água no meu quarto por dois dias seguidos, eu me posicionaria, ficaria irritad@ e poderia perder o autocontrole. | 0,59 | 0,16 | 0,08 |
30 - Se um morador quebrasse o bebedouro, eu tentaria conversar, compreender o porquê e negociar. | −0,03 | 0,73 | 0,04 |
22 - Se os moradores do quarto vizinho fizessem uma festa com bebida alcoólica e o cheiro do cigarro entrasse no meu quarto, eu tentaria conversar, compreender o porquê e negociar. | 0,11 | 0,65 | −0,23 |
20 - Se um morador inventasse histórias para difamar a minha imagem, eu tentaria conversar, compreender o porquê e negociar. | 0,06 | 0,59 | 0,05 |
27 - Se o meu vizinho colocasse lixo na frente da porta do meu quarto, eu tentaria conversar, compreender o porquê e negociar. | −0,21 | 0,59 | 0,07 |
32 - Se os moradores do quarto ao lado fumassem maconha ou levassem traficantes para a moradia, eu tentaria conversar, compreender o porquê e negociar. | 0,09 | 0,54 | 0,09 |
34 - Se eu ficasse sem água no meu quarto por dois dias seguidos, eu tentaria conversar, compreender o porquê e negociar. | −0,09 | 0,50 | 0,01 |
26 - Se eu percebesse que não estão dando as condições necessárias para me sentir segur@ dentro da moradia, eu não discutiria e tentaria aceitar. | 0,08 | 0,03 | 0,74 |
33 - Se algumas roupas minhas fossem roubadas do varal, eu não discutiria e tentaria aceitar. | 0,08 | 0,05 | 0,74 |
28 - Se um morador inventasse histórias para difamar a minha imagem, eu não discutiria e tentaria aceitar a situação. | −0,06 | 0,12 | 0,73 |
35 - Se a coordenação ou a COAPE não desse a atenção devida aos problemas da Moradia, eu não discutiria e tentaria aceitar. | 0,07 | −0,06 | 0,56 |
09 - Se eu ficasse sem água no meu quarto por dois dias seguidos, eu não discutiria e tentaria aceitar. | 0,03 | −0,05 | 0,44 |
04 - Se um morador quebrasse o bebedouro, eu não discutiria e tentaria aceitar a situação. | −0,04 | 0,04 | 0,40 |
Número de Itens | 6 | 6 | 6 |
Média | 2,92 | 3,06 | 2,28 |
Valor Próprio | 4,44 | 3,53 | 3,31 |
% de variância | 16,3 | 16,2 | 15,7 |
Alfa de Cronbach | 0,82 | 0,77 | 0,76 |
Ômega de McDonald | 0,82 | 0,78 | 0,77 |
A escala apresentou consistência interna geral em níveis de 0,72 (Alfa de Cronbach) e 0,73 (Ômega de McDonald). Considerando os aspectos anteriormente assinalados, os fatores identificados podem ser descritos como seguem:
Fator I. Apresentou valor próprio igual a 4,44, correspondente à explicação de 16,3% da variância total. Os seis itens apresentaram cargas fatoriais que variaram de 0,59 (Item 17) a 0,76 (Item 12), e valores de consistência interna de 0,82 (Alfa de Cronbach e Ômega de McDonald). Esse fator foi denominado Estratégia Agressiva porque seus itens referem-se às formas de resolver conflitos que expressam irritação e perda de autocontrole e podem levar a comportamentos agressivos/coercitivos ou desrespeitosos, sem a consideração ao direito, sentimento ou opinião alheia.
Fator II. Apresentou um valor próprio de 3,53 e explicou 16,2% da variância total. É constituído de seis itens com cargas fatoriais de 0,50 (Item 34) a 0,73 (Item 30), e valores de consistência interna de 0,77 (Alfa de Cronbach) e 0,78 (Ômega de McDonald). Decidiu-se nomeá-lo de Estratégia Assertiva, uma vez que ele se refere a itens que expressam o enfrentamento, por meio do diálogo, a compreensão dos direitos e das opiniões do outro e a negociação, juntamente com a consideração aos próprios direitos e opiniões de forma assertiva.
Fator III. Apresentou um valor próprio de 3,31, e foi responsável por explicar 15,7% da variância total. Esse componente apresentou saturações entre 0,40 (Item 04) e 0,74 (Itens 33 e 35), e obteve índices de consistência interna de 0,76 (Alfa de Cronbach) e 0,77 (Ômega de McDonald). Ele foi denominado de Estratégia Submissa, por apresentar itens que expressavam um comportamento de não enfrentamento em uma situação conflituosa. Aqui, há uma aceitação dos direitos, das opiniões e dos sentimentos dos outros sem que os próprios sejam considerados.
Estudo 2 – Estudo confirmatório da estrutura fatorial da EERCME
Esse segundo estudo versou sobre as evidências de validade baseadas na estrutura interna da escala de Estratégias de Resolução de Conflitos em Moradias Estudantis – ERCME, verificando a estabilidade dos três componentes encontrados no primeiro estudo.
Método
Participantes
Participaram da amostra 200 estudantes de graduação que residiam em moradias universitárias, localizadas em João Pessoa, Bananeiras, Areia e Rio Tinto, vinculadas a uma Instituição Federal de Ensino Superior da Paraíba (IFES), com idade média de 23,06 anos (DP=3,04), variando de 18 a 34 anos, a maioria do sexo feminino (50,5%), cursando as três áreas de ensino: saúde (36,65%), humanas (28,27%) e exatas (35,08%). A amostra foi não probabilística (intencional) e, novamente, foi colocado como critério para a participação da pesquisa uma experiência mínima de seis meses na moradia.
Instrumentos
Os participantes responderam a escala ERCME, composta de três fatores, cada um com seis itens (apresentados na Tabela 1 do Estudo 1) e as perguntas socio-demográficas. Os participantes informavam seu nível de concordância com as assertivas propostas, em uma escala de resposta do tipo Likert, variando de 1 (Nada) a 5 (Muitíssimo).
Procedimento e aspectos éticos
Assim como no primeiro estudo, empregou-se o mesmo procedimento de coleta de dados, bem como foram seguidas as recomendações da Resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde – CNS. Os participantes levaram, em média, 15 minutos para concluir os questionários.
Análise dos dados
Foi realizada uma análise fatorial confirmatória (AFC) por meio do software R (R core Team, 2020) e do pacote Lavaan (Rosseel, 2018), a fim de avaliar a adequabilidade da estrutura trifatorial encontrada. Foram utilizados, para tanto, a matriz de covariância e o estimador ML (Maximum Likelihood), adotando-se os seguintes indicadores como parâmetros de bondade de ajuste: razão qui-quadrado/graus de liberdade (χ2/gl), admitindo-se, como recomendáveis valores entre 2 e 3, aceitando-se até 5, Comparative Fit Index (CFI), Goodness-of-Fit Index (GFI), Tucker Lewis Index (TLI) e Root-Mean-Square Error of Approximation (RMSEA). Valores para CFI, GFI e TLI iguais ou acima de 0,90 e, para RMSEA de 0,05 a 0,08 (admitindo até 0,10 como limite superior) indicam um ajuste adequado do modelo (Hair et al., 2009). O ponto de corte adotado para reter o item no fator foi de 0,40. Para avaliar a confiabilidade, utilizou-se os coeficientes Alfa de Cronbach e Omega de McDonald, adotando, como ponto de corte, valores maiores ou iguais a 0,70 (Ventura-León & Caycho-Rodríguez, 2017).
Resultados
Para avaliar melhor a estrutura fatorial da ERCME, foram comparados dois diferentes modelos: o modelo composto por um fator geral (unifatorial) e o modelo proposto, composto por três fatores relacionados (trifatorial). A Tabela 2 mostra os índices de ajuste encontrados para cada modelo.
Modelo | χ2/gl | CFI | GFI | RMSEA(IC90%) | TLI |
---|---|---|---|---|---|
Modelo 1 | 5,36 | 0,31 | 0,64 | 0,14 (0,13 – 0,15) | 0,22 |
Modelo 2* | 1,86 | 0,86 | 0,88 | 0,06 (0,05 – 0,07) | 0,84 |
*modelo com melhor ajuste
Os resultados da AFC demonstraram que o modelo trifatorial apresentou os melhores índices de ajuste em comparação com modelo unifatorial. Todavia, os indicadores de ajuste do modelo foram limítrofes, o que indica que a estrutura fatorial ERCME encontrada no estudo anterior não foi confirmada [χ2(132) = 245,87, p<0,001, χ2/gl=1,862, CFI=0,86, GFI=0,88, TLI=0,84 e RMSEA=0,06 (IC 90%=0,05 – 0,07)]. Para verificar mais detalhadamente o que havia na estrutura da escala, decidiu-se observar os índices de modificação (IM) do modelo. A partir dessa abordagem, foi constatado que os itens 12 e 19 apresentavam resíduos altamente correlacionados (IM=22,65; EPC=0,40). Assim, optou-se por excluir os dois itens da escala. Em seguida, foi realizada uma nova AFC e os resultados mostraram que o modelo proposto com três dimensões relacionadas (trifatorial) apresentou melhores índices de ajuste do que o modelo unifatorial. Exceto o TLI, os índices de ajuste do modelo proposto foram estatisticamente adequados [χ2(101) = 176,860, p<0,001, χ2/gl=1,751, CFI=0,90, GFI = 0,90, TLI=0,88 e RMSEA=0,06 (IC90% = 0,04 – 0,07)]. Desse modo, a estrutura trifatorial da ERCME, agora composta de 16 itens, foi confirmada. Ademais, atesta-se que todas as saturações desse modelo (lambdas λ) foram significativas e diferentes de zero (λ≠0; z>1.96, p<0,05). A Figura 2 mostra a representação gráfica do modelo e os pesos fatoriais dos itens em cada fator.
Neste estudo, a escala apresentou consistência interna geral em níveis de 0,70 (Alfa de Cronbach) e 0,71 (Ômega de McDonald). O fator Estratégia Agressiva apresentou índices de confiabilidade acima do ponto de corte recomendado (α=0,74; ω=0,75), média de 2,69 (DP=0,89) e cargas fatoriais que variaram de 0,70 a 0,84. Por sua vez, o fator Estratégia Assertiva também apresentou índices de confiabilidade acima do ponto de corte recomendado (α=0,77; ω = 0,77), média de 3,01 (DP=0,86) e cargas fatoriais variando de 0,55 a 0,92. O mesmo ocorreu com o fator Estratégia Submissa, que apresentou confiabilidade aceitável (α=0,75; ω=0,76), média de 2,21 (DP=1,22) e cargas fatoriais variando de 0,45 a 0,94.
Discussão
Esta pesquisa teve como objetivo elaborar uma escala de Estratégias de Resolução de Conflitos em
Moradias Estudantis (ERCME), reunindo evidências de validade fatorial e consistência interna. Considerando os princípios adotados por Pasquali (2010) para criar um instrumento psicométrico, os procedimentos adotados foram pertinentes, já que tomaram por base a literatura, os instrumentos disponíveis na área de resolução de conflitos, bem como a realidade experienciada pelos estudantes que residem em moradias estudantis. Depois de operacionalizar o construto com a criação dos itens, procurou-se analisar sua adequação, considerando especialistas na área de interesse e a população à qual o instrumento se destina.
Ao realizar os procedimentos empíricos e analíticos, que compreendem o tratamento estatístico e a análise dos itens (Pasquali, 2012), foi verificado que, ao utilizar o método Acceleration Factor (Ruscio & Roche, 2012), a estrutura formada por três componentes era adequadamente ajustada. Além do mais, foram calculados indicadores de precisão da medida – Ômega de McDonald e do Alfa de Cronbach – que foram superiores ao ponto de corte comumente adotado para fins de pesquisa (0,70; Ventura-León & Caycho-Rodríguez, 2017). Considerando os resultados, foram escolhidos os itens com as cargas fatoriais mais elevadas, com base no ponto de corte sugerido pela literatura (Hair et al., 2009), e que compunham o escopo teórico, segundo os pesquisadores, obtendo-se um instrumento psicometricamen-te adequado. Ressalta-se que o percentual de variância explicada no estudo foi considerado satisfatório, mesmo abaixo de 50%, porque julgou-se que esse índice teria sofrido a influência do tamanho do questionário e por se ter utilizado uma escala Likert (Damásio, 2012).
De maneira geral, todos os fatores elencados (estratégia agressiva, estratégia assertiva e estratégia submissa) vão em direção à ideia de que existem diferentes formas de se resolverem conflitos e de que é possível discriminar os níveis que os estudantes adotam em cada uma delas no contexto da moradia estudantil. Diante do exposto, considera-se que o objetivo proposto no Estudo 1 foi alcançado.
Em relação ao Estudo 2, os resultados mostraram evidências adicionais da validade da estrutura trifatorial da ERCME e as estimativas de consistência interna também confirmaram a boa confiabilidade. Apesar de se considerar o instrumento parcimonioso, após a sua construção e avaliação das propriedades psicométricas – com sua estrutura apresentando três fatores e seis itens com cargas fatoriais acima de 0,4, em cada dimensão – constatou-se que seria necessário excluir dois itens da dimensão Estratégia Agressiva na análise para verificar a estabilidade do instrumento, devido as suas taxas de erro. No entanto, o instrumento final não comprometeu a estrutura identificada no primeiro estudo.
No que se refere ao ajuste do modelo, cabe destacar que os indicadores devem ser avaliados em conjunto e, em algumas situações, podem divergir entre si (Lai & Green, 2016). No caso do modelo trifatorial melhor ajustado, apesar de o indicador TLI não apresentar valor igual ou superior a 0,90, quando tomado em conjunto com os outros indicadores, aponta para a aceitação do ajuste da estrutura trifatorial como melhor entre as outras.
Os resultados do estudo apresentaram suporte empírico e teórico (Deluty, 1981), o que reforça a premissa de que modelos testados a partir de modelagem por equações estruturais devem vir acompanhados de embasamento teórico (Kline, 2015). Apesar dessas conclusões, faz-se necessário que a escala seja testada considerando uma amostra maior, uma vez que os indicadores de ajuste podem sofrer variações em diferentes tamanhos amostrais.
Neste estudo, foram coletadas evidências sobre a validade dos fatores da escala, comprovando que se trata de uma medida tridimensional com boa consistência interna, isto é, o estudo forneceu suporte adicional de que a Estratégia Assertiva, a Estratégia Submissa e a
Estratégia Agressiva são fenômenos distintos. A dimensão Estratégia Assertiva está de acordo com a perspectiva teórica de Deluty (1981) e pode ser encontrada em diversas tipologias, como, por exemplo, a de Vuchinich (1990), denominada Compromisso, a de Kurdek (1994), denominada Resolução Positiva de Problemas e a de Van Doorn et al. (2008), denominada Negociação. Segundo os autores, essas estratégias proporcionam um desenvolvimento equilibrado e saudável no indivíduo e nas relações sociais.
A dimensão Estratégia Submissa, também foi encontrada nos estudos de Vuchinich (1990), que divide essa estratégia em duas: Retirada e Submissão, e no de Kurdek (1994): Retirada e Conformidade. Entretanto, todas elas expressam, em comum, um comportamento de não enfrentar uma situação conflituosa. Essa dimensão também corrobora a teoria utilizada neste estudo (Deluty, 1981) e a estratégia proposta por Van Doorn et al. (2008) denominada de Retirada. A dimensão Estratégia Agressiva foi encontrada nos estudos de Deluty (1981) e em outros, mas com diferentes denominações, como Envolvimento em Conflitos (Kurdek, 1994), Dominância (Van Doorn et al., 2008) e Impasse (Vuchinich, 1990).
Os resultados deste estudo indicaram que é possível medir as três estratégias de resolução de conflitos, no contexto das moradias estudantis universitárias, e verificar a forma como os estudantes residentes estão enfrentando situações conflituosas é de suma importância, pois esses dados podem contribuir para a construção de programas de intervenção que possam ser utilizados para diminuir queixas e conflitos existentes nessas microssociedades (Delabrida, 2014; Garrido, 2015; Wanie et al., 2017), e as consequências negativas geradas por conflitos, quando são frequentes, intensos e resolvidos inadequadamente (Everett & Loftus, 2011; Garrido, 2015; Johnson et al., 2011; Osse & Costa, 2011; Porter & Newman, 2016; Shekhawat et al., 2016; Taub et al., 2013; Thombs et al., 2015).
Considerações Finais
A ERCME possui evidências psicométricas satisfatórias, tratando-se de um instrumento breve e de fácil compreensão, que pode ser utilizado em pesquisas que tenham como foco conhecer as formas como os estudantes resolvem seus conflitos em moradias universitárias. Destaca-se que não foram encontrados instrumentos nacionais ou internacionais com esse objetivo, sendo esse o primeiro instrumento validado neste contexto.
Como limitações deste estudo, observa-se que não foi avaliada a estabilidade temporal (teste-reste) da escala nem foram consideradas evidências de validade discriminante, por exemplo, com medida de desejabilidade social. Considera-se relevante a realização de estudos que teste, a validade convergente do instrumento a partir de suas relações com construtos semelhantes. Ademais, estudos com reaplicações são necessários porque as amostras que compuseram esta pesquisa não podem ser consideradas como representativas da população brasileira, pois, embora tenham sido constituídas de estudantes residentes em diferentes moradias estudantis, essas moradias só estavam localizadas no Nordeste do Brasil.