A sinestesia se trata de um fenômeno no qual o estímulo de um sentido causa reações em outro. Trata-se de uma ligação entre fenômenos intersensoriais e in-trasensoriais, ou seja, ligações entre mais de um tipo de percepção, presentes em vários contextos, tais como linguagem artística, disfunções cerebrais e doenças. Além disso, pode ser induzida por drogas e técnicas de alteração do estado de consciência (Ward, 2021; Bouvet, 2023).
Diversos estudos têm buscado elucidar possíveis relações dessa condição com características de personalidade. Considerando as peculiaridades do funcionamento cerebral e das experiências perceptivas na sinestesia, bem como suas implicações cognitivas em relação ao cérebro não sinestésico (Ward, 2021), o tema das especificidades de personalidade é um interesse da Neuropsicologia e da Psicologia da Personalidade.
A sinestesia é uma condição neurológica, que consiste num tipo de percepção experiencial desencadeada, de forma automática, por estímulos que normalmente não estão ligados a ela (Ward, 2019; Ward & Simner, 2020). Também é descrito como uma condição na qual a estimulação particular em uma modalidade sensorial ou processo cognitivo automaticamente e involuntariamente provoca uma experiência adicional em um ou vários outros domínios não estimulados (Brang, & Ramachandran, 2020; Ward & Filiz, 2020). Na última década, mais de 60 variações dessa condição foram identificadas (Simner et al., 2011).
Estudos de desenvolvimento sugerem que a sinestesia tem um componente genético e aparece nos primeiros anos de vida (se consolidando por volta dos 6 anos), e se torna estável ao longo da vida (Lebeau & Richer, 2022; Ward & Simner, 2020).
A sinestesia se trata de um nome genérico para dois tipos de estados cognitivos. O primeiro seria a sinestesia propriamente dita, na qual o estímulo de um sentido, como o olfato, involuntariamente e automaticamente é percebido como mais um outro sentido, como o auditivo. Outra forma de sinestesia seria a cognitiva ou de categoria, na qual certos conjuntos de conceitos aprendidos individualmente através da cultura também ganham um tipo de adicional sensorial, como aroma, cor ou sabor (Nanay, 2021).
A literatura abarca duas hipóteses sobre esse fenômeno. Uma delas sugere uma hiperconectividade neuronal, decorrente de uma conexão aumentada entre a área indutora e a região sensorial cerebral decorrente (Brang & Ramachandran, 2020; Maurer, et al., 2020). Há também a chamada hipótese de desinibição, segundo a qual sinestetas apresentariam redução da inibição neuronal no substrato associado ao processamento da percepção (Hauw et al., 2023). No entanto, o registro das experiências sinestésicas é genuíno, ainda que tais hipóteses demonstrem não haver um argumento conclusivo sobre seu substrato neurológico.
Os primeiros estudos publicados referentes ao tema datam do século XIX. Contudo, apenas mais recentemente, o estudo de sinestetas voltou a se destacar (Chun & Hupé, 2016; Hossain et al., 2017; Rouw & Scholte, 2016; Ward, 2021), com ênfase em características de personalidade dessa população. Nessa direção, o conceito de personalidade, embora fundamental no campo da Psicologia, apresenta variações conceituais importantes nas diferentes epistemologias. Num entendimento generalista, trata-se da forma como cada sujeito expressa ser quem é, ou seja, reflexos de sua relação com o meio decorrentes de fatores inatos (genéticos) atrelados à aprendizagem social (Paris, 2023; Zuccolo et al., 2013).
Dentre os modelos de personalidade existentes na literatura, as pesquisas sobre esse tema com sinestetas têm usado instrumentos baseados no modelo do Cinco Grandes Fatores de Personalidade. Este modelo fatorial de personalidade pode ser usado para resumir, prever e explicar a conduta de um indivíduo alocando no sujeito a explicação para seus comportamentos, ressaltando que representam tendências relativamente estáveis em diferentes contextos culturais, ainda que com alguma sus-cetibilidade à mudança com novas experiências (Pires et al., 2019). O modelo, amplamente consagrado na literatura, propõe que os traços de personalidade podem ser explicados em cinco grandes fatores: Neuroticismo; Extroversão; Socialização; Realização, e Abertura à experiência. Tais traços seriam relativamente independentes entre si, podendo ser medidos em termos de sua intensidade (Nunes et al., 2018).
Rinaldi et al. (2020) buscaram encontrar traços de personalidade atípicos relacionados com a sinestesia em crianças, usando o Big Five Inventory. Os resultados encontrados foram de maiores níveis de traços de Abertura para a experiência, relacionados com criatividade, além de Extroversão. Já Rouw & Scholte (2016), em pesquisa com diferentes tipos de sinestetas, encontraram níveis aumentados de Abertura para a experiência, Neuroticismo, experienciação de emoções e fantasiação e níveis diminuídos de Realização.
Chun & Hupé (2016) realizaram medidas de cognição, criatividade, personalidade e imaginação em um grupo de sinestetas, tendo encontrado níveis maiores de criatividade e Abertura à experiência. Por sua vez, Hossain et al. (2017) realizaram estudo com sinestetas cor-grafema, caracterizado pela indução de uma percepção visual de letras ou números (grafemas) a uma percepção simultânea de uma determinada cor. Hossain et al. (2017) encontraram correlação estatisticamente significante entre o nível de Abertura para a experiência e presença de percepção sinestésica.
No entanto, um outro modelo de personalidade é proposto na chamada perspectiva psicodinâmica, que consiste no uso de conceitos psicanalíticos para o estudo da personalidade (Searight, 2020). Um dos conceitos usados por esses autores é o de estrutura de personalidade. Nesta perspectiva, entende-se a estrutura como a maneira pela qual o indivíduo se organiza permanentemente e de maneira profunda, que seria expresso na vida relacional por meio do caráter, ou seja, sua manifestação visível (Bergeret, 1991). Desta forma, dados sobre os traços de personalidade seriam insuficientes para compreender tal construto de forma mais detalhada.
Na mesma direção, McAdams (1995) propõe que a personalidade pode ser compreendida como composta por três níveis de fenômenos. O primeiro deles se refere à Psicologia do Estranho (tradução nossa), que consiste nos traços de personalidade, ou seja, a forma descritiva com a qual se pode caracterizar seus comportamentos de forma comparativa e incondicional, podendo ser entendidos como “o quê” do comportamento. O segundo nível consistiria nas Preocupações Pessoais (tradução nossa), que motivam as formas de comportamento do indivíduo, podendo ser entendidos como o “porquê” do comportamento. Já o terceiro nível consistiria na Identidade, ou seja, a forma como o indivíduo se organiza enquanto história de vida com significado para si.
É possível observar que as pesquisas em direção à busca entre traços de personalidade e a sinestesia já apresentam resultados significativos. Apesar disso, não foram encontrados estudos explorando outros níveis da personalidade além do primeiro descrito por McAdams (1995) ou utilizando o modelo psicodinâmico de personalidade. Especialmente, chama atenção a ausência de estudos usando métodos projetivos, os quais, segundo McAdams (1995), seriam mais adequados para investigação do segundo e, particularmente, do terceiro níveis descritos por esse autor.
Outra questão de interesse no estudo de características de personalidade de sinestetas com métodos projetivos se refere a uma possível limitação de tais métodos para tanto, cujo teste empírico inexiste na literatura. Uma vez que empregam predominantemente estímulos visuais ambíguos, seriam, em teoria, inadequados para avaliação de sinestetas, dada a interferência da sinestesia na expressão das características de personalidade. Por outro lado, se os métodos projetivos se baseiam comumente em tarefas perceptivas como meio de avaliar a personalidade, faz sentido se perguntar sobre possíveis vantagens de seu uso para se conhecer uma população caracterizada fundamentalmente por um fenômeno perceptivo incomum.
Desta forma, o presente estudo se propõe a investigar possíveis limites e potencialidades do uso de métodos projetivos para a investigação de características de personalidade de sinestetas, em busca de possíveis particularidades dessa população nos níveis das preocupações pessoais e de identidade propostos por McAdams (1995).
Método
O presente trabalho consiste num estudo de caso, o qual parte da descrição e análise intensiva do indivíduo, sendo uma fonte de hipóteses sobre o comportamento (Marin et al., 2021). Esse modelo metodológico apresenta vantagens em relação à possibilidade de desenvolvimento de novas hipóteses e utilização de técnicas diferenciadas para o estudo de fenômenos raros (Bouvet et al., 2023; Marin et al., 2021).
Participante
Além de achados em relação a aspectos da personalidade ligados à sinestesia, a literatura refere comumente um nível de inteligência geral aumentado nessa população (Rouw & Scholte, 2016). Isto posto, decidimos buscar por pessoas com sinestesia numa amostra de indivíduos com indicativos de altas habilidades/superdotação. Desta forma, a participante aqui avaliada foi recrutada a partir do banco de dados do Núcleo de Estudos e Práticas em Altas Habilidades e Superdotação (NEPAHS) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que consiste num projeto de extensão para ações de apoio à permanência e desempenho de estudantes com altas habilidades e superdotação nas universidades brasileiras. Sendo assim, foram estabelecidos como critérios de inclusão, idade igual ou superior a 18 anos e experiências sinestésicas não relacionadas ao uso de substâncias psicoativas ou quadros de lesão estrutural encefálica.
Instrumentos
Roteiro de Entrevista Semiestruturada: Criado pelos pesquisadores, teve o objetivo de realizar a categorização sociodemográfica da participante da amostra e avaliação objetiva dos critérios de inclusão no estudo. O instrumento é composto por perguntas de: Identificação; Histórico familiar; Nível socioeconômico, aferido a partir do Critério de Classificação Econômica Brasil (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, 2019); Escolaridade e profissão; Histórico pessoal; Histórico de saúde geral; Histórico de saúde mental.
The Synesthesia Battery: Tem o objetivo de identificação de diversos tipos de sinestesias (Carmichael et al., 2015). É constituído por um questionário a respeito das experiências perceptivas, a partir do qual são apresentadas uma série de tarefas de consistência e congruência em velocidade através da correlação do grafema ou fonema relacionado a uma cor em um espectro de 256 cores. Apesar de o instrumento (disponível online) ter sido desenvolvido em língua inglesa, sua aplicação foi possível devido à pessoa avaliada ser bilíngue (vide resultados).
Técnica do desenho da Casa- Arvore-Pessoa (HTP): Tarefa de realização de quatro desenhos à mão livre (casa, árvore, pessoa e pessoa do sexo oposto), em um primeiro momento acromático e, em seguida, cromático, bem como um inquérito a respeito das características dos desenhos (Buck, 2003). O instrumento permite levantar dados idiográficos sobre percepções de si-mesmo e de relacionamentos significativos, e foi recentemente atualizado para uso profissional no Brasil, passando a usar apenas uma bateria de desenhos acromáticos (Tardivo et al., 2024).
Bateria Fatorial de Personalidade (BFP): Construída a partir do modelo dos Cinco Grandes Fatores, sendo os resultados referentes à intensidade dos traços a que se referem (Nunes et al., 2010). O teste é composto por um questionário de autorrelato avaliando cada um desses fatores através de 126 perguntas através de uma escala Likert de 7 pontos.
Teste de Inteligência Não-Verbal (TIG-NV): Desenvolvido por Tosi (2006), permite uma rápida avaliação da inteligência.
Psicodiagnóstico de Rorschach: Consiste em 10 pranchas com estímulos perceptivos ambíguos e difusos (manchas). É solicitado que o avaliado relate o que essas figuras lhe parecem. Após isso, as respostas são investigadas – localização e o aspecto determinante para a identificação das respostas (Silva & Ferreira, 2019). Uma vez que as respostas são percepções sensoriais completadas subjetivamente, tanto a nível perceptivo quanto projetivo, os diferentes determinantes utilizados pelo avaliado darão informações de adaptação em relação às pranchas, bem como sua capacidade de projeção de suas próprias vivências (Rausch de Traubenberg, 1998). Diante disso, a interpretação dos dados permite inferências acerca da abordagem cognitiva e de processos de pensamento, bem como fatores da dinâmica conflitual da personalidade, voltados à indicadores de inteligência, afetividade e adaptação social (Pasian & Amparo, 2018). A aplicação, categorização e interpretação das respostas foi feita na chamada Escola de Paris do Rorschach (Pasian, 2000; Rausch de Traubenberg, 1998).
Procedimento
Por se tratar de pesquisa envolvendo seres humanos, para seu início, o projeto foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (UFPR – Setor de Ciências Da Saúde Da Universidade Federal Do Paraná – SCS/UFPR) mediante parecer 3.491.184 (CAAE-17125419.5.0000.0102).
Uma vez aprovado, a partir de consulta ao banco de dados do NEPAHS sobre pessoas que referiram ter vivências sinestésicas, a primeira pessoa encontrada foi convidada a fazer parte da presente pesquisa. Essa participante recebeu informações sobre os procedimentos da mesma e assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após isso, recebeu um roteiro de entrevista semiestruturada para preenchimento; em seguida, foram realizadas quatro entrevistas para a aplicação dos instrumentos aplicados na respectiva ordem: The Synaesthesia Battery, HTP, Rorschach, BFP e TIG-NV Por fim, após a análise dos dados, foi realizada a devolutiva dos resultados para a voluntária. A disposição das sessões de aplicação dos instrumentos foi estabelecida de acordo com o grau de associação relacionado, iniciando-se por tarefas de exigência associativa para tarefas de resposta objetiva.
Análise dos dados
O conjunto dos dados decorrentes da avaliação foi analisado de acordo com a teoria psicodinâmica, de forma a se obter uma descrição dos fatores de risco e proteção relativos ao funcionamento da personalidade (Gabbard, 2016; Jirásek & Sudzina, 2020). Inicialmente, os dados dos outros instrumentos foram analisados de acordo com seus respectivos manuais: Psicodiagnóstico de Rorschach (Pasian, 2000; Rausch de Traubenberg, 1998); HTP casa-árvore-pessoa (Buck, 2003); Bateria Fatorial de Personalidade (Nunes, et al. 2010). O instrumento de triagem intelectual (TIG-NV) e de sinestesia (The Synesthesia Battery) serviram para aferição dos critérios de inclusão para o estudo. Em seguida, foram buscadas convergências e divergências nos dados, que informassem sobre a estrutura de personalidade, seus déficits e potenciais.
A disposição dos dados analisados foi organizada a partir da compreensão de McAdams (1995), que discorre acerca de três níveis de observação da personalidade: Os “traços”, referindo-se a construções amplas e categóricas; as “preocupações pessoais”, que contemplam motivações e esquemas pessoais; e, por fim, o nível da “identidade” que compreende aspectos individuais de organização subjetiva do indivíduo a partir da sua história.
Resultados
A participante (doravante referida como P1) era uma mulher de 30 anos, com graduação e pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Letras. A participante trabalhava como professora de português/literatura com alunos de ensino fundamental com necessidades especiais (predominantemente, crianças com Transtornos de Espectro Autista). Filha única, referia ser casada há 10 anos e residia com o esposo, apresentando nível socioeconômico de classe B2 no Critério Brasil.
P1 relatou ter sofrido de um tumor na adenoide aos 3 anos, com perda auditiva que foi recuperada em seguida com dois anos de uso de aparelho auditivo. Apesar disso, não referiu outras doenças ou atrasos no desenvolvimento infantil. Em relação à saúde mental, negou ter passado por tratamento médico psiquiátrico ou psicológico, referiu processo de luto por falecimento do avô paterno, com menção a diagnóstico de esquizofrenia da mãe.
Em relação ao histórico de vida pessoal, P1 referiu que, durante todo o Ensino Fundamental e Médio, apresentou comportamentos muito ativos e com atitudes aquém do esperado para a sua idade, sentindo-se incompreendida por pares e professores, que a consideravam “revoltada”. Frente a isso, referiu ter encontrado, na adolescência, refúgio nas artes, teatro e esportes.
Houve a inversão da ordem de apresentação dos resultados em relação à sua aplicação, a título de organização didática da discussão do caso. Na investigação de inteligência geral (TIG-NV), apresentou percentil 98.8, com Q.I. 134 e classificação de inteligência geral muito superior. Na bateria de triagem (The Synesthesia Battery), P1 apresentou desempenho compatível com nove tipos de sinestesias. Os tipos de sinestesias identificados na avaliação são apresentados na Tabela 1.
Tabela 1 Desempenho na The Synesthesia Battery
Tipos de Sinestesia Identificados | Estímulo | Correlato perceptual |
---|---|---|
Números-Cores | Números | Cores |
Sequências- Localizações espaciais | Sequências (números, semanas) | Localizações espaciais |
Tons musicais- Cores | Tons musicais | Cores |
Acordes musicais- Cores | Acordes musicais | Cores |
Instrumentos musicais- Cores | Instrumentos musicais | Cores |
Dor- Cores | Dor | Cores |
Personalidades- Cores | Personalidades | Cores |
Temperaturas- Cores | Temperaturas | Cores |
Emoções- Cores | Emoções | Cores |
Retomando os três níveis de compreensão da personalidade descritos por McAdams (1995), por meio da Bateria Fatorial de Personalidade (BFP) foi possível ter acesso ao nível da “Psicologia do estranho”, ou seja, os traços de personalidade. Os dados são apresentados na Tabela 2.
Tabela 2 Desempenho na Bateria Fatorial de Personalidade
Fator e facetas | Percentil | Interpretação | Fator e facetas | Percentil | Interpretação |
---|---|---|---|---|---|
Neuroticismo | 5 | Muito Baixo | Socialização | 95 | Muito Alto |
N1. Vulnerabilidade | 5 | Muito Baixo | S1. Amabilidade | 90 | Muito Alto |
N2. Instabilidade | 5 | Muito Baixo | S2. Pró-sociabilidade | 60 | Média |
N3. Passividade | 35 | Média | S3. Confiança | 95 | Muito Alto |
N4. Depressão | 5 | Muito Baixo | Realização | 90 | Muito Alto |
Extroversão | 50 | Média | R1. Competência | 65 | Média |
E1. Comunicação | 85 | Muito Alto | R2. Ponderação | 95 | Muito Alto |
E2. Altivez | 5 | Muito Baixo | R3. Empenho | 80 | Alto |
E3. Dinamismo | 75 | Alto | Abertura | 95 | Muito Alto |
E4. Interações sociais | 40 | Média | A1. Abertura a ideias | 95 | Muito Alto |
A2. Liberalismo | 80 | Alto | |||
A3. Busca por novidades | 85 | Muito Alto |
A partir dos dados da Tabela 2, é possível observar que o traço de Neuroticismo se encontra muito abaixo da média, sugerindo a presença de comportamentos calmos e relaxados, ainda que também podendo indicar padrões pouco adaptativos em relação aos seus pares (Nunes et al., 2010). Ainda nesse fator, P1 apresentou escores bastante reduzidos nas subescalas de vulnerabilidade, instabilidade emocional e depressão, denotando alta independência emocional e possíveis padrões sociais de relacionamento distorcidos, uma vez que não há preocupação com as opiniões alheias. Além disso, os dados sugerem dificuldade para reconhecer e avaliar episódios negativos de sua vida, refletindo uma postura constantemente positiva diante do futuro.
Em relação ao traço de Extroversão, os escores de P1 sugerem facilidade e dinamicidade em falar em público ou com novas pessoas, concordando com sua escolha profissional por lecionar. No entanto, ainda que confortável diante da atenção, os resultados refletiram pouca necessidade de estar em destaque, inclusive com dificuldade para o reconhecimento de suas capacidades. Já sobre o traço de Socialização, P1 apresentou escores acima da média, mais especificamente indicando alto nível de confiança em seus pares, bem como proatividade para com eles; por outro lado, tais escores também sugerem tendência a uma postura ingênua em situações prejudiciais.
No traço de Realização, o desempenho de P1 sugere ambição e dedicação em relação ao trabalho e seus objetivos, ainda que de forma planejada e pouco impulsiva. Contudo, na subescala de ponderação e prudência, apresentou escore elevado, sugerindo tentativa de controle diante de impulsividade, relacionadas à falta de planejamento e organização geral. Por fim, no traço de Abertura, apresentou elevação em relação à média em todas as subescalas, evidenciando tendências a comportamentos imaginativos, criativos e valores não convencionais, atividades que exijam imaginação e fantasia, ideias abstratas e artísticas, bem como vivências novas e variadas. Vale acrescentar, que esses aspectos em altos níveis como o apresentado, denotam forte correlação com característica de personalidade esquizotípica (Nunes et al., 2010).
Em síntese, os dados sobre os traços de personalidade da participante sugerem um estilo pessoal caracterizado por aparente tranquilidade e disponibilidade pessoal, podendo se mostrar atenciosa, afetuosa e motivada. Ainda, pareceu se destacar em termos de um pensamento criativo e mesmo pouco convencional, como tipicamente associado a artistas.
Os dados do Rorschach e do H-T-P se relacionam com o segundo e terceiros níveis descritos por McAdams (1995), referentes às preocupações pessoais (nível II, relativo ao nível das motivações do comportamento e seu significado para o indivíduo) e à identidade (nível III, referente à da organização estrutural da identidade). No H-T-P, a participante apresentou atitude de abertura para a realização das atividades; seu modelo de produção consistiu em uma sequência de traços controlados e sequências de rasuras seguidos de traços livres e espontâneos. Mais detalhes podem ser observados nas Figuras 1 e 2, que apresentam, respectivamente, os desenhos das baterias acromática e cromática.

Figura 1 Bateria acromática do H-T-P (em sentido horário, casa, árvore, primeira pessoa, pessoa do sexo oposto)

Figura 2 Bateria cromática do H-T-P (em sentido horário, casa, árvore, primeira pessoa, pessoa do sexo oposto)
As proporções dos elementos ao longo dos desenhos realizados foram majoritariamente médias para grandes, acompanhadas de ênfase na simetria. Tais dados indicam tensão e alguma rigidez em relação à limites de si (Buck, 2003); por outro lado, os desenhos apresentaram uma grande riqueza de detalhes, denotando criatividade e expressividade, ao mesmo tempo que uma tentativa de controle sobre a exposição de seus afetos e sugerindo fragilidade estrutural e vivências defensivas de caráter paranoico (ênfase nos olhos).
Várias características dos desenhos apresentaram indícios de funcionamento psicótico: distorções de proporções, uso incomum de cores e perspectivas (vide, em especial, os desenhos das pessoas nas Figuras 1 e 2). Além disso, há inconsistências referentes a distinções de gênero e faixa etária de suas produções. Durante o inquérito posterior aos desenhos, P1 apresentou associações que reforçam essa hipótese, como a descrição da pessoa de mesmo gênero acromática, a qual refere como “uma mulher, mas que poderia ser um homem” (sic). Já no desenho da pessoa de gênero oposto acromático, refere ter representado “um jovem de 19 anos, mas quis fazer um velho” (sic). Já nos desenhos cromáticos, faz associação da árvore cromática como “uma árvore dos pensamentos, ligada às ideias, cérebro”, quando questionada se pareceria mais um homem ou mulher, refere que (sic) “parece ser as duas coisas, como se fosse Adão e Eva juntos antes de serem separados, é o gênesis”.
Os dados sobre o desempenho de P1 no Rorschach são apresentados na Tabela 3. Nesse instrumento, o perfil de indicadores sobre o funcionamento lógico sugere particularização do pensamento e originalidade, ao custo de uma menor adaptação do mesmo. Apesar de um número de respostas forma elevado (RÎ), bem como de uma alta frequência de respostas enfatizando o componente formal (F%↑), a qualidade da percepção (F + % e F + ext%) foi menor que o tipicamente observado na população geral. No entanto, essa hipótese deve ser considerada com cautela, devido a outros indicadores de potencial cognitivo geral, tais alta frequência de respostas Dbl (indicativo de originalidade do pensamento), boa qualidade dos desenhos no HTP e à elevada capacidade cognitiva geral identificada no TIG-NV.
Tabela 3 Indicadores de desempenho no Rorschach
Funcionamento lógico / cognitivo | Funcionamento afetivo | ||
---|---|---|---|
Indicador | Nível do indicador | Indicador | Nível do indicador |
Total de respostas (R) | Elevado | Tipo de ressonância íntima (TRI) | Extratensivo |
Respostas Globais (G) | Muito Rebaixado | Fórmula das Tendências Latentes | Extratensivo |
Respostas em grande detalhe (D) | Elevado | Terceira Fórmula (proporção de respostas aos cartões coloridos); [(VIII+IX+X)/R]*100 | Intratensivo |
Respostas em pequeno detalhe (Dd) | Muito Elevado | Fórmula de angústia (proporção de respostas com conteúdos indicando tensão emocional); [(Hd+Anat+Sg+Fg+Sex)/R]*100)] | Elevado |
Respostas no fundo branco (Dbl) | Muito Elevado | Respostas do tipo Forma (F%) | Muito Elevado |
Respostas em detalhe inibitório Di | Muito Elevado | Respostas do tipo Forma com boa qualidade formal F+% | Muito Rebaixado |
Respostas do tipo Banal (Ban%) | Muito Rebaixado | Respostas com boa qualidade formal F+ext% | Muito Rebaixado |
Respostas com conteúdo Humano (H%) | Rebaixado | Respostas com conteúdo Animal (A%) | Muito Rebaixado |
Além disso, observa-se que o tipo de apreensão é caracterizado por G rebaixado, e Dd, Dbl e Di elevados em relação a seu grupo de referência. Tal perfil sugere minuciosidade perceptiva e variabilidade de apreensão, com componentes de originalidade e de empobrecimento da adaptação geral.
Os indicadores do funcionamento afetivo no Rorschach são descritos a seguir. As fórmulas de Tipo de Ressonância Íntima e Tendências Latentes apresentam a prevalência de respostas Cor e Estompage (predominantemente de baixa qualidade formal, comparada a seu grupo de referência) em relação às respostas movimento (estas, por sua vez, numa alta frequência, mas em baixa proporção em relação ao total de respostas no protocolo). Tais indícios sugerem um perfil de personalidade do tipo Extratensão Dilatada (usando a terminologia proposta por Rausch de Traubenberg, 1998), no qual há uma abertura extratensiva com controles mais racionalizados e potencial criativo e expressivo.
Já em relação à fórmula de reatividade aos cartões coloridos, a participante não apresentou variação em relação aos outros cartões, refletindo pouca reação externa à estimulação dos últimos cartões. Este dado é relativamente inesperado para o caso aqui reportado, já que a presença de sinestesia visual levaria a um desempenho que diferiria do restante dos cartões, o que não ocorreu no teste (vide, contudo, o H-T-P, onde tal expectativa foi confirmada). Desta forma, os dados do Rorschach sugerem uma preservação dos recursos de dobrar-se sobre si (Rausch de Traubenberg, 1998) característicos da intra-tensão, que funcionaria como fator de regulação da tendência extratensiva sinalizada ao longo do protocolo.
Apesar disso, a terceira fórmula estrutural se apresentou acima da média populacional, sugerindo presença de angústia elevada no Rorschach. Este indício sugere fragilidade estrutural, no sentido de primitivismo do funcionamento psíquico (Rausch de Traubenberg, 1998). Ao mesmo tempo, a qualidade das associações expressas no H-T-P e os conteúdos das respostas no Rorschach sugerem que os indicadores de funcionamento esquizoide (McWilliams, 2014) foram mais consistentes do que os efeitos da sinestesia que seriam esperados (particularmente, um desvio da terceira fórmula e predomínio de respostas-cor), sugerindo que tais fenômenos (funcionamento esquizoide e sinestesia) podem ser identificados paralelamente.
Em síntese, os dados indicam elevada tendência a expressar afeto, caracterizando um perfil Extratensivo Dilatado. Apesar disso, pareceu se colocar nos relacionamentos interpessoais com predominância de vivências de ambivalência. Frente a tais vivências, tendeu a experienciar grandiosidade compensatória e refugiar-se na fantasia, também experienciando afetos de ordem paranoica. Apresentou indícios de vivências de angústia caracterizadas por temor de descontrole dos pensamentos e sentimentos em um nível mais profundo, bem como de temor frente ao próprio ambiente, favorecendo reações de evitação ao contato interpessoal íntimo.
Em um nível mais estrutural, P1 apresentou uma apreensão da realidade caracterizada por excessiva minuciosidade, podendo se mostrar criativa e não convencional. Contudo, em virtude do tipo de angústia predominantemente expressa, tal funcionamento sugere uma tentativa de controle da angústia no seio de uma estrutura psicótica, caracterizada por concretismo do pensamento e vivências auto voltadas frente à realidade compartilhada.
Apesar disso, é possível perceber uma atitude intelectualmente ativa e vívida, típica da extratensão dilatada, no qual os afetos são predominantemente ex-ternalizados (num momento inicial), ainda que com capacidade reflexiva e de regulação das vivências. Tais dados sugerem um nível de integração do afeto e pensamento compensado, caracterizado pela tendência se expressar com vivacidade afetiva, ainda que parecendo não convencional ou mesmo excêntrica. Nesse sentido, há evidências de uma estrutura psicótica compensada (McWilliams, 2014), em função da capacidade reflexiva e adaptativa e funcionamento cognitivo básico preservado e mesmo altamente aguçado.
A compensação apontada anteriormente se justifica em especial pelo desempenho de P1 no Rorschach. Ainda que dotada de sinestesias relacionadas a cores, o desempenho nas pranchas coloridas não diferiu significativamente do restante do protocolo. Por outro lado, os indícios de estruturação psicótica (mais especificamente, esquizotípica) foram mais consistentes devido ao predomínio de respostas E, baixa qualidade formal (no sentido de compartilhado com o tipicamente observado, e não como empobrecimento cognitivo), baixa proporção de respostas com conteúdo humano, alta incidência de respostas Di e fórmula de angústia elevada.
Discussão
Neste estudo, foi possível observar a viabilidade do uso de métodos projetivos na avaliação de sinestetas, especialmente no sentido de distinções mais profundas do impacto da sinestesia no funcionamento cognitivo e afetivo. Essa observação é importante como contraste ao senso comum de considerar que experiências de sinestesia seriam contra indicativos ao uso desses métodos, dado seu caráter como tarefa dependente da percepção visual e de cores. Nessa direção, o estudo de caso mostrou dados que permitem identificar uma sobreposição da sinestesia e do funcionamento estrutural da personalidade.
Por outro lado, os dados corroboram a literatura acerca da correlação entre sinestesia e personalidade em alguns níveis. Isso porque P1 apresentou uma elevada abertura à experiência e tendência à fantasiação, assim como observado em outros estudos com sinestetas (Chun & Hupé, 2016; Hossain, et al., 2017; Rinaldi et al., 2020; Rouw & Scholte, 2016), bem como uma comorbidade entre sinestesia e funcionamento psicótico (Nugent & Ward, 2022).
Além disso, em um nível mais profundo de motivações, afetos e estrutura, o caso se revelou com uma estrutura psicótica de funcionamento esquizoide, ainda que compensada (McWilliams, 2014). Este tipo de personalidade se caracteriza por um alto nível de afetividade num primeiro momento, relacionada a um excesso de estimulação afetiva e vivências de angústia de desintegração. Segundo Gabbard (2016), este modo funcional se relaciona com uma estrutura com potencial fragmentação, provocando uma tendência a voltar-se ao seu interior, recorrendo à sua própria perspectiva de mundo e fantasias. Tais vivências pareceram, no caso de P1, ser controladas por meio de um esforço de integração entre afeto e pensamento, decorrente sobretudo de fatores de proteção como a alta inteligência e uma rotina ambiental sem grandes estressores (conforme referido pela própria pessoa avaliada).
Diante disso, os dados evidenciam que a sinestesia opera como um fenômeno sobreposto à estrutura psicótica, retroalimentando os mecanismos internos de fantasiação e manutenção de vivências ditas “excêntricas”. Na mesma direção, Nunes et al. (2010) sugerem que indivíduos com elevado traço de Abertura à experiência tenderiam a apresentar funcionamento esquizoide/esquizotípico.
Dessa forma, enquanto experiências sinestésicas se constituem numa condição neurodiversa independente (ainda que não necessariamente em contínuos típico-atípico ou preservado-patológico; Ward, 2019), sua presença teria um efeito incremental no funcionamento cognitivo e afetivo. Este efeito consistiria numa tendência a experiências perceptivas incomuns (potencialmente vividas com estranhamento), podendo potencializar vivências desadaptativas (Carmichael et al., 2018; Nugent & Ward, 2022), ou mesmo compartilhando mecanismos cerebrais, como hipotetizado para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (van Leeuwen et al., 2020).
Van Leeuwen et al. (2021) reportaram que sinestesias de cor estão associadas com maiores níveis de esquizotipia positiva ou desorganizada, levantando duas hipóteses para sua ocorrência. Por um lado, esses mesmos autores sugerem a possibilidade de o efeito ser modulado por uma comorbidade entre sinestesia e outros traços cognitivos relacionados à esquizotipia. Por outro, propõem a hipótese de haver similaridades nos mecanismos geradores dos relatos perceptivos associados com esquizotipia e sinestesia.
Diante do apresentado no presente trabalho, é possível tratar dessa correlação como a primeira hipótese, de uma comorbidade moduladora desses dois fenômenos. No entanto, futuros estudos devem realizar maiores explorações neurológicas acerca da estrutura e funcionamento neuronal nos dois casos para compreender suas similaridades e diferenças.
Em síntese, os dados indicam a relevância de considerar a presença de sinestesias como um importante indicador de neurodiversidade, associado significativamente ao risco de comorbidades neuropsiquiátricas e neurodesenvolvimentais, ainda que não necessariamente impedindo o uso de instrumentos de avaliação como métodos projetivos. Ainda que estejamos cientes da limitação de um estudo de caso para generalização do conhecimento, o estudo de caso aqui apresentado permitiu fazer perguntas provocadoras em Neuropsicologia e Psicologia da Personalidade não abordadas no país (até onde pudemos averiguar), que contribuem para um aprimoramento da prática clínica nessas áreas.