1. INTRODUÇÃO
Esta investigação é oriunda de uma pesquisa maior, de cunho psicanalítico, que acompanhou nove bebês e suas mães no primeiro ano de vida, a partir da aplicação do método Bick de observação, com o intuito de discutir os jogos constituintes do sujeito no laço mãe-bebê. Tais jogos podem ser considerados os primórdios do brincar, sendo, portanto, os precursores do jogo simbólico, eles ocorrem no campo relacional, conforme a mãe introduz brincadeiras prazerosas, que extrapolam a pura satisfação das necessidades. Conforme Jerusalinsky (2011), tais jogos podem ser definidos como constituintes do sujeito, uma vez que é a partir deles que a mãe supõe no infans um lugar de autoria e de saber. São jogos que não ocorrem necessariamente com brinquedos e sim mediados pela voz, olhar, gesto e corpo ofertados pelo Outro Materno.
Tal pesquisa está vinculada ao programa de extensão “Mãe-bebê: da gestação ao primeiro ano de vida”, que se propõe a atuar na promoção da saúde da mulher no ciclo gravídico-puerperal, do neonato e criança até 1 ano, por meio de ações interdisciplinares de atenção à saúde, contribuindo para a melhora da qualidade de vida. As atividades do programa ocorrem num bairro da periferia de um município da região metropolitana de Porto Alegre-RS. O referido bairro é considerado vulnerável pelos altos índices de violência.
Neste artigo, partimos do objetivo de discutir o lugar do observador no método Bick de observação em contextos de vulnerabilidade. Para tanto, propomos uma problematização das questões relacionadas à ética do observador dentro do método Bick de observação, com base em excertos dos relatos de duas observações da relação mãe-bebê, que, de forma emblemática, foram suscitadas nos grupos de supervisão. Tais questões referem-se, principalmente, aos pressupostos do Método, considerando que a sua idealizadora, Esther Bick (2002), propôs uma observação de caráter participante, mas sem que o observador assumisse um papel interventivo, no sentido de interferência na relação mãebebê. Contudo, o cenário, permeado por vulnerabilidades e o tempo da primeira infância como privilegiado, no que se refere ao processo de constituição psíquica e à prevenção, colocaram as pesquisadoras diante de um impasse, sobre o lugar ocupado pelo observador nesse contexto. Nessa perspectiva, também cabe ressaltar que a pesquisa psicanalítica coloca o pesquisador em uma condição de ser surpreendido pelas descobertas, não o limitando somente a problemas de pesquisa já estabelecidos. Assim sendo, os dados obtidos são lidos e analisados a posteriori, de forma que os problemas de pesquisa, muitas vezes, são suscitados em “um só depois”.
2. O MÉTODO BICK DE OBSERVAÇÃO E A PESQUISA PSICANALÍTICA
O método Bick de observação foi criado pela psicanalista Esther Bick, em 1948, com o propósito de oferecer uma experiência de observação psicanalítica e participante de bebês, no sentido de auxiliar estudantes em formação a compreenderem mais claramente a experiência infantil de seus pacientes (Oliveira-Menegotto et al., 2006). Os procedimentos metodológicos idealizados por Bick (2002) envolvem três tempos: a observação propriamente dita, o relato da observação e a supervisão. A observação consiste em o observador realizar visitas semanais, de uma hora cada, à casa da família, desde o nascimento até o final do segundo ano de vida da criança. Durante as observações, não se tomam notas, para não interferir na atenção flutuante, um dos pressupostos técnicos do método. O relato da observação constitui-se no registro de forma detalhada e descritiva da observação, bem como dos afetos experimentados pelo observador, devendo ser elaborado logo após a visita. Por último, o seminário de supervisão é a ocasião em que o observador pode compreender, organizar e dar sentido a essas vivências, no contexto de um grupo de observadores que se reúnem, mediante a coordenação de um psicanalista com experiência no Método (Oliveira-Menegotto et al., 2006). Por estar ancorado nas principais concepções teóricas e técnicas psicanalíticas, o Método pressupõe que a análise dos dados seja conduzida pela leitura dos relatórios na mesma lógica da escuta psicanalítica clínica, considerando, portanto, o estatuto do inconsciente, a atenção flutuante e os aspectos transferenciais.
Como se trata de uma observação participante, o observador está implicado subjetivamente na pesquisa, devendo também ser considerado um participante. Dessa forma, a transferência é considerada um eixo central no que se refere ao estabelecimento dos vínculos entre o observador e a família. Nessa perspectiva, cada observador imprimirá o seu próprio estilo na condução das observações e na elaboração dos relatos. Entretanto, mesmo que reconheçamos a singularidade do observador, ele precisa prescindir de preconceitos, evitar julgamentos e ser sensível, disponível, empático e delicado. O observador deverá cuidar para que sua presença gere o mínimo de interferência possível, primando pela observação alicerçada no princípio da atenção flutuante, isto é, atendo-se a tudo o que ocorrer ao longo da observação e tomando cuidado para não eleger nenhum fator em especial para ser observado.
Embora o método Bick não tenha sido originalmente concebido como um método de pesquisa, sua aplicação, paulatinamente, foi destacando o seu potencial como método de investigação de caráter psicanalítico (Oliveira-Menegotto et al., 2006; Arpini et al., 2018). Inclusive, o emprego desse método em contextos diversos, sobretudo, os que são caracterizados por uma vulnerabilidade, como é o caso desta pesquisa, devem ser incentivados, pois não produzem prejuízos para os seus resultados (Santos & Pedroso, 2017). Autores como Daró et al. (2017) apontam o potencial do método como um instrumento de ensino, um instrumento terapêutico, de acolhimento para a família e de pesquisa.
Ao considerar o método Bick de observação no campo da pesquisa psicanalítica, é essencial situar que o pesquisador e os participantes são tocados pela experiência, sem que isso seja visto como um impasse. Os procedimentos da pesquisa, nesse sentido, não têm um cunho linear e previsível. É preciso considerar, no caso da pesquisa psicanalítica, que a forma como o pesquisador se apropria da metodologia de pesquisa provém de suas próprias marcas inconscientes. Semelhante à clínica, a pesquisa psicanalítica está firmada na técnica e no estilo e singularidade do pesquisador/psicanalista (Iribarry, 2003). Nessa perspectiva, o pesquisador conduz a pesquisa por meio de seu estilo próprio e da forma como se apropriará e reorganizar os significantes dos participantes da pesquisa, produzindo um conhecimento singular em seu estudo. A pesquisa psicanalítica transita no campo das impossibilidades de previsões do inconsciente, que opera numa lógica muito particular. Portanto, não se trata de falta de rigor, mas sim de seguir princípios psicanalíticos que ordenam a lógica do inconsciente e de suas formações (Coelho & Santos, 2012). Cada pesquisa psicanalítica, nessa perspectiva, é o resultado da apropriação do sujeito pesquisador, revelando sua autenticidade e sua singularidade, amparadas pelo laço transferencial. O contato com os participantes, durante as observações, bem como a narrativa destas, nos seminários de supervisão, permitem que múltiplas vozes constituam o caso. Nesse sentido, cada pesquisador extrairá seu aprendizado de forma singular, a partir de sua Erfahrung, uma experiência subjetiva que se transformou em aprendizagem (Iribarry, 2003).
3. OS DESAFIOS DO LUGAR DO OBSERVADOR NO MÉTODO BICK DE OBSERVAÇÃO
A infância, sobretudo o primeiro ano, é um tempo em que ocorrem as primeiras inscrições significantes, decisivas em relação à constituição psíquica do bebê. É considerada, assim, um período privilegiado tanto para o processo de constituição psíquica quanto para a prevenção, pela permeabilidade de novas inscrições significantes, que ocorrem na relação dialética com o adulto que encarna as funções parentais, (Jerusalinsky, 2011). Portanto, o privilégio que o observador da relação mãe-bebê tem consiste em acompanhar a constituição dessas primeiras marcas e do laço que funda o sujeito psíquico. Tal privilégio, no entanto, o coloca também frente a frente com situações de risco para o desenvolvimento infantil. Nesse sentido, perceber os fatores de risco que estão associados a transtornos da infância produz angústia no observador, engendrando um tensionamento entre intervir, no sentido de buscar a prevenção, e não intervir, permanecendo num compasso de espera, o que pode representar a possibilidade de instalação de um quadro psicopatológico. Tal paradoxo se deve ao fato de que, na atualidade, não há mais como negar que a detecção precoce dos sinais de risco para a constituição psíquica do bebê permite desenvolver intervenções no campo da prevenção (Teperman, 2004). Além disso, a pesquisa, muitas vezes, propõe uma inversão da lógica da clínica, a começar pelo lugar desde o qual surge a demanda. Diferente da clínica, no campo da pesquisa, a demanda origina-se do pesquisador, que busca a família e a convida a participar da investigação. O observador, nessa perspectiva, ocupa outra posição na transferência que se estabelece. A demanda não surge, portanto, de um problema no desenvolvimento do bebê. No contexto da observação, quando algo não vai bem, muitas vezes, a família permanece alheia, enquanto o observador, por meio de seu olhar sensível e acurado, pode identificar. Por essas razões, partilhamos de uma preocupação de problematizar a intervenção dentro do método Bick de observação e, no caso de intervir, da cautela no que se refere à forma que ela será conduzida.
Nossa intenção não é, de forma alguma, recomendar, a priori, esse método como intervenção, diante de qualquer situação que se perceba como um risco. Por esse motivo, apontamos a importância da supervisão, um espaço reflexivo em que a observação e o observador são acolhidos, para fins de discussão acerca do seu papel junto à família que ele acompanha. Assim, a supervisão torna-se um importante instrumento de discussão sobre como o observador pode conduzir o processo, no sentido de não se omitir, mas também dar o tempo necessário para a mãe construir uma resposta possível ao que se passa com a criança, não interferindo na sua forma singular de sustentar a função materna. A fim de problematizar a questão da intervenção no método Bick de observação, discutiremos a ética do observador, proposta por Bick (1964/2002) em contraponto com a Resolução CFP n° 016 (2000) e a Resolução CNS n° 510 (2016), bem como as diretrizes da pesquisa psicanalítica.
4. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Esta investigação foi conduzida respeitando os três tempos propostos por sua idealizadora, Esther Bick. Entretanto, os bebês foram observados, juntamente com suas mães, somente ao longo do seu primeiro ano de vida. Conforme o primeiro tempo, as observações ocorreram semanalmente, sempre no mesmo horário, no período de uma hora cada, na residência do bebê, entre os anos de 2016 e 2018. As observações foram realizadas por acadêmicos do Curso de Psicologia e psicólogos, que estão vinculados à pesquisa por meio, respectivamente, da iniciação científica e do aperfeiçoamento científico. Os observadores foram devidamente capacitados para conduzir as observações pela líder da pesquisa, que tem experiência no Método. Ao todo, foram observados nove bebês, cujas famílias participam do programa de extensão. As mães foram contatadas por extensionistas do Programa, que fizeram o convite para que se integrassem à pesquisa. Faz-se importante ressaltar, considerando os aspectos éticos, que a pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética da Universidade Feevale (CAAE: 51987315.6.0000.5348). As mães, inicialmente, assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando a sua participação na pesquisa e levando em consideração os objetivos e os procedimentos metodológicos. Conforme o segundo tempo, cada observação foi relatada pelo observador, seguindo os pressupostos metodológicos do método Bick de observação. Esses relatos foram considerados material de pesquisa, lidos e discutidos em seminários de supervisão coletiva, considerando o terceiro tempo proposto pelo Método. Os seminários ocorreram, inicialmente, semanalmente e, posteriormente, quinzenalmente.
Ao considerar a pesquisa maior, todas as observações já foram encerradas e os relatos dessas observações foram minuciosamente lidos e discutidos nos seminários de supervisão. Por se tratar de um método observacional, de cunho psicanalítico, a pesquisa está apoiada em métodos abertos de investigação e compreensão dos resultados. Assim, pautando-se no objetivo geral, pela escuta e leitura flutuante dos relatos de observação e das discussões suscitadas nos seminários de supervisão, surgiram, a posteriori, objetivos específicos. Essas discussões foram engendradas tendo em vista a singularidade dos casos acompanhados e mobilizando, no grupo de supervisão, novos problemas de pesquisa. Isso é, corroborado pela ideia de que, na pesquisa psicanalítica, o pesquisador permanece na condição de ser surpreendido pelas descobertas, indo a campo sem um saber prévio sobre exatamente o que encontrará. Nessa perspectiva, a ética do observador foi um desses problemas de pesquisa objeto de discussão no seminário de supervisão, resultando na construção deste artigo.
O observador no método Bick tem um importante papel na condução das observações, no sentido de assegurar uma postura observante, sensível e delicada. Sua função, entretanto, não envolve, a priori, uma intervenção no modo como a mãe conduz a sua maternagem. Nós, observadores, servimos como um ego auxiliar da mãe, que, a partir da concepção de Winnicott (1983/1990), significa fornecer sustentação ao saber materno, busca uma relação empática e, portanto, sem julgamentos. Essa é uma questão de extrema relevância e que sustenta o método de observação criado por Esther Bick, uma vez que o observador deve procurar suprimir as intervenções diretas na relação da mãe com o bebê. Tal princípio ético baseia-se na lógica de que a intervenção direta poderia atrapalhar o estabelecimento do laço mãe-bebê, interferindo no processo de tornar-se mãe, pois ela poderia tomá-la como uma desaprovação, uma crítica ou uma censura. Essa concepção encontra sustentação no argumento de Winnicott (1987/1994), de que o berço da relação da mãe com seu bebê é tão fundamental que não deveria sofrer interferências diretas de profissionais, tais como médicos e enfermeiros, no sentido de possibilitar que a mãe tenha o tempo necessário para se apropriar dos desafios da maternidade e se ocupar do bebê, considerando a singularidade desse laço.
O observador é orientado a participar da experiência, despindo-se, tanto quanto possível, dos seus hábitos terapêuticos e teorias que embasam o seu dia a dia clínico, para poder, então, observar. A palavra de ordem presente na descrição do Método e seus achados por Bick é que partimos do não saber: eu não sei e não procuro nenhuma conclusão. Nesse sentido, observar um bebê significa deixarse impregnar por uma realidade sensível (sons, cores, atmosferas emocionais) que entram em ressonância com esses mesmos aspectos do observador. É relevante, nessa perspectiva, uma atitude de espera, tolerância e paciência frente ao desconhecido e ao “não saber”. Significa deixar-se penetrar por mensagens não compreendidas, tolerar essa não compreensão, suportar viver na falta de um sentido, aguardando que ele surja. Além disso, o observador deve ser discreto, atento, receptivo, delicado e não crítico, para depois relatar suas observações nos mínimos detalhes. Não deve, nesse sentido, aconselhar, interpretar, interferir. Esta capacidade de lidar com o não saber é reconhecida como indispensável ao analista, em sua prática clínica, para poder acompanhar seu paciente sem precipitar interpretações. Da mesma forma, o observador aprende a observar, a sentir antes de teorizar e tolerar a forma particular de cada mãe exercer o cuidado com o seu bebê. O observador pode, também, aprender a estar com a mente aberta, sem ideias preconcebidas e assim perceber a singularidade de cada relação mãe-bebê (Oliveira-Menegotto et al., 2006).
Quanto à Resolução CFP n° 016 (2000), é de fundamental importância considerarmos o artigo 3°, parágrafo 4°, que refere que “o pesquisador deverá garantir que dispõe dos meios, recursos e competências para lidar com as possíveis consequências de seus procedimentos e intervir, imediatamente, para limitar e remediar qualquer dano causado”. Pesquisar no campo da relação mãe-bebê é adentrar em um terreno de vulnerabilidades. Portanto, exige sensibilidade e empatia do observador. Esses aspectos foram assegurados com o desenvolvimento da habilidade de observar e com o espaço do seminário de supervisão, cujo propósito é acolher o observador e seu relato, discutir sobre os caminhos singulares que vem percorrendo e considerar os efeitos de suas observações e ações feitas nas casas das famílias acompanhadas.
A Resolução CNS n° 510 (2016) aponta que o campo de pesquisa em Psicologia é caracterizado pela heterogeneidade epistemológica e empírica, existindo diferenças notáveis, apesar de características similares. Tanto os pesquisadores quanto os participantes são sujeitos singulares, subjetivos e complexos, suas ações são parte constituinte da relação estabelecida no contexto de pesquisa. Diferente das ciências exatas, os resultados obtidos na pesquisa psicanalítica estão intimamente atravessados pela transferência, estabelecida na relação entre pesquisador e participantes da pesquisa. Ainda, as interações do participante de pesquisa em seu contexto são estudadas a partir dos recursos psíquicos do sujeito-pesquisador, não sendo possível sustentar uma total neutralidade (Borsa & Nunes, 2008).
Outro aspecto envolvido na pesquisa em Psicologia refere-se aos impasses éticos próprios da complexidade do seu fazer, sobretudo quando se trata de sujeitos em situação de vulnerabilidade biopsicossocial. Questões como a vulnerabilidade podem ser entendidas pela Resolução CNS n° 510 (2016, p. 4) como “situação na qual pessoa ou grupo de pessoas tenha reduzida a capacidade de tomar decisões e opor resistência na situação da pesquisa, em decorrência de fatores individuais, psicológicos, econômicos, culturais, sociais ou políticos”. Nesse sentido, a pesquisa com pessoas em situação de vulnerabilidade demanda conduta e rigor ético redobrados. A busca pela mínima interferência no contexto observado, característica do método Bick de observação, não implica omissão ou negligência, de forma que o pesquisador deve estar atento não somente aos procedimentos metodológicos, mas também ao impacto da pesquisa nos participantes, bem como às situações de risco encontradas. Sendo assim, as resoluções aqui apresentadas servem como guias de orientação e de reflexão e não devem ser utilizadas para justificar uma posição acrítica ou omissa do pesquisador.
Uma vez que o contexto em que esta pesquisa ocorre é caracterizado por extrema vulnerabilidade social e psíquica, o observador acaba por se encontrar em um enorme paradoxo, sentindo-se, muitas vezes, convocado a intervir em situações de risco. No caso desta pesquisa, tais situações, quando sentidas pelo observador, foram cuidadosamente discutidas em seminário de supervisão e quando necessárias, foram encaminhadas para a coordenação do programa de extensão e, particularmente, num dos casos acompanhados, houve o encaminhamento para um serviço de atendimento em Estimulação Precoce. Entretanto, nem sempre pesquisas como esta estão vinculadas a alguma extensão ou serviço e reconhecemos a importância de se contar com serviços de acolhimento e acompanhamento terapêutico, em casos que se identifica a necessidade de encaminhamento.
As resoluções aqui apresentadas convocam os pesquisadores a não coadunarem com situações de risco ou vulnerabilidade. Conforme o artigo 3°, parágrafo 5° da Resolução 510/2016, o pesquisador deve oferecer “recusa de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de indivíduos e grupos vulneráveis e discriminados e às diferenças dos processos de pesquisa” (Resolução CNS n° 510, 2016, p. 5). Quanto ao artigo 3°, parágrafo 9°, ressaltase o “compromisso de todos os envolvidos na pesquisa de não criar, manter ou ampliar as situações de risco ou vulnerabilidade para indivíduos e coletividades, nem acentuar o estigma, o preconceito ou a discriminação” (Resolução CNS n° 510, 2016, p. 5). Para coroar a reflexão sobre a importância de não seguirmos um método à risca, sem que cada situação seja cuidadosa e eticamente avaliada, a Resolução CNS n° 510/2016, em seu artigo 20, propõe que o pesquisador adote as medidas cabíveis, a fim de proteger qualquer participante com autonomia reduzida. No caso desta pesquisa, os bebês observados representam tal categoria. Portanto, como pesquisadores, somos convocados a encontrar um modo de proteger e minimizar o sofrimento destes bebês, uma vez que há uma fragilidade neste contexto, no que se refere aos serviços oferecidos às crianças na primeira infância e suas famílias (Zornig, 2010).
4.1. OS DESAFIOS DO LUGAR DE OBSERVADOR/PESQUISADOR: DISCUSSÃO DOS CASOS NINA E AUGUSTO
O debate proposto neste artigo surgiu dos encontros de seminário de supervisão e, em especial, de dois casos que instigaram o grupo, no que se refere aos paradoxos do lugar do observador/pesquisador. O caso Nina refere-se a uma bebê, primeira filha de um casal jovem, com um pouco mais de 20 anos de idade, mas que contavam com uma família presente e atuante. Antes de completar 1 ano, Nina passou por três internações hospitalares. Ela teve intercorrências em seu nascimento, culminando em paradas cardíacas, que desencadearam um quadro convulsivo e, por sua vez, um severo atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Tal descompasso sugeria uma paralisia cerebral e requeria um encaminhamento para a estimulação precoce, mediado pela coordenação do programa de extensão “Mãe-bebê: da gestação ao primeiro ano de vida”, que fora acionada pela professora responsável pela pesquisa. O caso Augusto refere-se a observações marcadas por situações de vulnerabilidade, desamparo e violência na relação mãe-bebê e na relação da mãe com o filho Antônio, de 2 anos. A mãe, com apenas 18 anos, vivia com o pai, de 31 anos, e os dois filhos do casal, ela permanecia a maior parte do tempo sozinha com as crianças. Além da maternidade prematura, a mulher aparentava estar fatigada e em sofrimento. Suas atitudes, durante as observações, eram, em geral, permeadas por hostilidade e reações agressivas, muitas vezes desmedidas, considerando as situações observadas.
Em ambos os casos, as observadoras relataram sentimentos de impotência e frustração. Para conduzir as discussões, foram utilizados excertos dos relatos da observação desses dois bebês, bem como relatos da Erfahrung dos observadores, ou seja, dessa experiência subjetiva que foi narrada em supervisão, a fim de identificar e problematizar as questões relacionadas à ética do observador dentro do método Bick de observação.
Em tais experiências de observação, as observadoras sentiram-se, em determinados momentos, impelidas a intervir, no sentido de oferecer uma escuta, um amparo, por meio de palavras, de atitudes, para algo que era sentido como desamparo e vulnerabilidade. Nessa perspectiva, cabe destacar o que Arpini et al. (2018) evidenciam. De acordo com a pesquisa conduzida por esses autores, a escuta e a observação, mediadas pela postura de cuidado, atenção e sensibilidade do pesquisador, podem representar um potente recurso de investigação no contexto da pesquisa em saúde materno-infantil.
A bebê Nina produzia na observadora uma intensa preocupação com relação à negação da família referente aos atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor que, cada vez mais, ficavam evidentes. Sabendo da importância da Estimulação Precoce, no sentido de intervir num tempo especialmente receptivo, por conta da neuroplasticidade (Ministério da Saúde, 2016), a observadora vivenciou sentimentos de angústia, que foram amparados pelo grupo no espaço da supervisão. A gestação de Nina é relatada pela mãe como complicada, pois ela teve uma grave infecção urinária. O parto também foi descrito como difícil, de modo que a bebê sofreu três paradas respiratórias, necessitou ser entubada em diversos momentos, para conseguir respirar, e permaneceu hospitalizada por 22 dias. A bebê também apresentou um quadro convulsivo nos quatro primeiros meses de vida, quadro clínico que, somado aos atrasos percebidos pela observadora em seu desenvolvimento, levaram o grupo de supervisão à suspeita de uma Paralisia Cerebral, caracterizada por lesões neurológicas que podem gerar diversas limitações funcionais (Leite & Prado, 2004). Na 9ª observação (4 meses e 3 semanas), podemos destacar as primeiras impressões da observadora quanto aos atrasos no desenvolvimento de Nina, acompanhados da negação da família.
A avó conta que depois da internação hospitalar e da entrada do medicamento para convulsão, ela começou a perceber mais movimentos na Nina, conta que a bebê toma o medicamento às 6h da tarde e às 6h da manhã e que esta semana iniciará a fisioterapia. A tia conta que a fisioterapia será para ajudar no desenvolvimento de Nina, pois as convulsões podem tê-la afetado. A avó diz que Nina praticamente não se mexia e ficava sempre apática, molinha e paradinha, mas que agora ela leva as mãozinhas à boca, pois podem estar nascendo os dentinhos, e que ela reage mais, tentando conversar. Conta também que faz sons com a boca para Nina e que ela responde com o mesmo som, diz que por vezes Nina enxerga ela em algum lugar da casa e emite aquele som, que é algo das duas [refere-se a uma comunicação entre as duas]. Vejo Nina mexer a cabeça para os lados, mas em nenhum momento ela procurou levantar o pescoço ou fazer qualquer movimento que indicasse tentar se levantar. Também não leva os pezinhos até as mãos e só movimentou os pés quando sentiu desconforto, se movimenta mais com os bracinhos e com expressões faciais, as expressões que mais demonstrou foram a de sorriso fácil, contemplativa e a de “dor de barriga”, conforme a avó nomeia.
Na 10ª observação (4 meses e 4 semanas), a mãe de Nina conta que a médica do hospital indicou que ela buscasse um tratamento psicológico para ter um suporte para cuidar da filha, e recomendou um tratamento baseado na intervenção fisioterapêutica para a bebê. Entretanto, ela não sabia informar o motivo de a médica indicar este tratamento. A recomendação médica parecia apontar para atrasos no desenvolvimento psicomotor da bebê e para efeitos psíquicos do diagnóstico na mãe. Diante disso, é importante considerar que a família dificilmente estará preparada para encarar o peso estigmatizante de um diagnóstico. O medo daquilo que é incompreendido, a incerteza em relação à criança e os sentimentos de culpa geram uma dor emocional que pode ser insuportável, sendo a negação uma forma de defesa (Buscaglia, 2002). Ainda na 10a observação, após a medicação para convulsão, a mãe de Nina refere que ela apresentou evoluções no desenvolvimento, as quais não foram identificadas pela observadora, a não ser a não reincidência das convulsões:
A mãe relata que após iniciar a medicação para a convulsão, Nina se mostra mais esperta e que ela percebe que o desenvolvimento está mudando. Que Nina está interagindo mais, se mexendo mais e que ela está mais tranquila sabendo que o medicamento impede o ataque epilético. Percebo que Nina ainda não segura a cabeça e que se mexe pouco ainda, fica olhando televisão e apresenta dificuldades em levar as mãozinhas até a boca, por vezes reclamava até que conseguia chegar com as mãozinhas na boca, então permanecia um período chupando os dedinhos.
Na 12ª observação (5 meses e 1 semana), a família de Nina passou a questionar a observadora sobre a importância da fisioterapia e sobre os documentos necessários. A observadora entendeu ser necessário reiterar o que havia sido solicitado pela médica, ao indicar a fisioterapia, ou seja, a promoção do desenvolvimento de Nina. Durante a semana que antecedeu a 15ª observação (6 meses), a mãe contatou a observadora, via telefone, questionando sobre a documentação necessária para a primeira sessão de fisioterapia. A observadora pontuou que a família deveria entrar em contato com o posto de saúde ou com a fisioterapeuta. Inundada pelo receio de que a família não realizasse o contato, a observadora se informou quanto à documentação necessária. Seu receio se confirmou durante essa observação, que ocorreu um dia antes da consulta marcada com a fisioterapia. Os pais de Nina não possuíam os documentos necessários para o atendimento fisioterapêutico, optando por não comparecer no horário previamente agendado pelo serviço. Tomada por um sentimento de angústia, a observadora sentiu-se convocada a intervir, auxiliando a família de Nina a se organizar quanto à documentação necessária, para garantir que eles a levassem para a sessão. A observadora, nessa perspectiva, sentiu-se autorizada pela família a interferir nesse processo, tendo em vista que ela já estava sendo consultada sobre os procedimentos envolvidos à requisição do atendimento.
A desorganização da família, constatada pela observadora, foi relatada durante o seminário de supervisão, em que se percebem os movimentos flutuantes dessa família, entre negar e se questionar sobre os atrasos no desenvolvimento da bebê. Em situações como essa, percebe-se que a mãe mantém um desejo pautado na ambiguidade com relação à confirmação do diagnóstico (Mannoni, 1995). Durante os seminários de supervisão, o grupo continuou questionando-se sobre a possibilidade de se tratar de um caso de Paralisia Cerebral, no entanto, tanto este quanto outro diagnóstico não se confirmou em nenhum momento nas observações, reforçando os movimentos de negação da família. Diante disso, fezse importante endereçar essas questões para os profissionais da fisioterapia que estavam acompanhando a família, por meio do programa de extensão. Assim, a coordenadora da Pesquisa acionou a coordenação do Programa, de modo que todos estivessem cientes do funcionamento de negação da família e os recebessem de forma acolhedora. Esse acionamento surtiu os efeitos esperados, pois, na 17ª observação (6 meses e 2 semanas), a avó refere à observadora que:
Foram na fisioterapia e que eles gostaram. Terão que levar Nina duas vezes por semana e, mais tarde, três vezes, sendo que poderão usar o serviço por quatro anos. Diz que a fisioterapeuta explicou que Nina está com atrasos no desenvolvimento, que deveria estar se sentando, segurando a cabeça mais firme e que eles devem estimular Nina a sentar e a rolar no chão. Conta que tem colocado um pano no chão para Nina rolar e que ela está tentando se virar, mas o bracinho a segura, deixando-a presa. Diz que vão ganhar um chiqueirinho, que ela usou com as outras meninas e que será bom para colocar a Nina, pois ela pode cair do sofá. A mãe conta que a avó levará a menina nas segundas e ela nas quartas, toda semana, pois estará trabalhando. Comenta que não sabiam que a menina estava com atrasos e que se não fosse a fisioterapeuta falar, eles não se dariam conta, pois por elas estava tudo bem. Ela diz que não imaginavam que a menina tivesse qualquer problema.
Houve, no relato da avó, uma ruptura no processo de negação da família. A negação era, inicialmente, objeto de nossa preocupação. Entretanto, a partir desse relato, tal ruptura passou a povoar as nossas inquietações, uma vez que não sabíamos se tal aspecto psíquico estava sendo trabalhado nessas consultas e percebemos uma fragilidade dessa família, no sentido de suportar o fato de que a bebê apresentava um comprometimento orgânico. Durante a 31ª observação (9 meses e 3 semanas), após o período de hospitalização da bebê, por conta de complicações respiratórias, a observadora questiona se Nina retomou a fisioterapia, ao que o pai responde negativamente, afirmando que “não retomou e não vai retomar”. Justifica-se, dizendo que
Estão sem carro, que o sogro que tinha carro a levava, mas agora não tem mais. A avó que ia junto levar está trabalhando e não tem quem leve a menina. O pai afirma que Nina não precisa mais, pois está muito bem, que deram um andador para ela e que ela anda pela casa inteira no andador, o mostra para mim, no canto da sala. Conta que se senta na frente do degrau para ela não cair, a coloca dentro e ela sai por tudo.
A afirmação do pai despertou preocupação na observadora, uma vez que se trata de uma sala pequena, sem espaço livre, além do fato de Nina, ao longo da observação, ter permanecido sem mexer suas mãos, deixando a observadora sem condições de imaginar a cena que o pai relatava. Diante deste relato, o grupo de supervisão fez uma associação ao modo como se deu a ruptura dessa negação e a suposição de que não havia espaço para a elaboração de questões psíquicas no atendimento fisioterapêutico. O caso de Nina nos atentou para a sensibilidade necessária na postura do observador e em suas intervenções, no sentido de respeitar o tempo da família, uma vez que a negação dela quanto aos atrasos do desenvolvimento da bebê continuava presente. Quando não há uma elaboração psíquica acerca do fator de adoecimento, neste caso o diagnóstico de Nina, corre-se o risco de produzir mais resistências, e, se as intervenções da observadora fossem mais incisivas, poderiam intervir na forma singular da mãe sustentar a função materna, que não seria o objetivo do método Bick.
Diferente das questões do atraso do desenvolvimento de Nina, no caso de Augusto o que gerou angústia na observadora e no grupo de supervisão foi o desamparo que atravessava a relação mãe-bebê. Isso era evidenciado também na relação da mãe com o filho mais velho, Antônio, de 2 anos. Durante as observações destacaram-se as dificuldades que a mãe encontrava para lidar com a maternidade dupla. Percebemos uma mãe fatigada e adoecida que exercia sua função materna de forma severa, com atitudes muitas vezes desmedidas em relação ao cuidado dos filhos, que em diversas situações eram permeadas por hostilização. Isso pode ser visto na 16a observação (4 meses e 6 dias):
Augusto, no chão da sala, começa a chorar, no entanto, Valentina parece não se preocupar com o choro do bebê e continua a vestir Antônio e conversar comigo do quarto, neste momento me sinto angustiada, Augusto chora e se mexe bastante, após algum tempo, pergunto a Valentina se poderia pegá-lo no colo e ela responde do quarto “claro pode pegar”. Pego Augusto no colo e ele imediatamente para de chorar, me sinto aliviada e, ao mesmo tempo, aflita, pois o bebê está todo suado mesmo estando apenas de fraldas.
Inundada pelo sentimento de desamparo, identificada com o bebê, a observadora sentiu a necessidade de intervir, colocando-se à disposição para auxiliar a mãe. Nesta posição, ofereceu-se como um ego auxiliar, na intenção de sustentar a mãe para que ela pudesse sustentar seu bebê. É importante pontuar que logo após o nascimento do bebê, a mãe encontra-se fragilizada, precisando ser cuidada para se sentir suficientemente boa (Winnicott, 2011). Nesse sentido, intervenções diretas, que correm o risco de despotencializar o saber materno, podem ser nocivas, quando não respeitam a cadência singular do exercício da maternidade. Essa seria a principal razão de o método Bick de observação estar pautado na ética da não diretividade da intervenção do observador. Quando nos referimos à intervenção, buscamos inspiração naquilo que propõe Santos e Pedroso (2017). Para esses autores, a observação deve estar fundamentada num olhar sensível para o desenvolvimento infantil, compreendendo as experiências e necessidades da infância. Na 29ª observação (7 meses e 7 dias), a mãe, por algumas vezes, colocou a observadora na posição de cuidadora dos seus filhos, conforme solicitações a seguir:
Valentina deixa Augusto na rede, pedindo que eu ficasse de olho nele. Valentina entra na casa e, no mesmo instante, Augusto rola na rede ficando de bruços, rapidamente seguro suas costinhas tentando virá-lo e posicioná-lo melhor. Antônio tenta subir na rede e digo não a ele, que ignora e ri da situação, o que me deixa nervosa. Fico de joelhos no chão segurando Augusto na rede e tentando impedir e distrair Antônio, para que não machuque o irmão.
A dinâmica um tanto hostil da família e a sensação de desamparo, sentidas, em especial, na transferência estabelecida no campo relacional mãe-bebê-observadora, fez com que a última se sentisse aflita e até, em alguns momentos, hipervigilante, como se precisasse estar sempre preparada para agir. Isso pode ser visto na 24a observação (6 meses e 3 dias):
Antônio coloca a vassoura para o alto e quase acerta a mãe e o irmão, no susto, levanto-me do sofá para impedir, mas Valentina segura a vassoura com uma das mãos no alto da cabeça, enquanto Augusto acorda com o movimento inesperado da mãe. Antônio ri da situação dando gargalhadas e segurando a vassoura. Valentina segura na outra ponta da vassoura e rispidamente grita para que o filho solte o objeto, com alguns puxões tira a vassoura do filho que continua rindo, “eu não tô rindo, Antônio, agora chega! Vai colocar teu chinelo e para de incomodar”, ainda rindo Antônio pega um dos chinelos e atira no rosto da mãe. Fico tensionada no sofá, e não sei para onde olhar. Valentina coloca Augusto ao seu lado sentado no sofá, dizendo “espera só um pouquinho, agora chega”, o bebê não consegue sustentar-se sentado e, na segunda tentativa de Valentina em deixá-lo ali, eu me ofereço para segurá-lo. Ela coloca Augusto em meu colo, que também parece impressionado e tenso, a mãe atira a vassoura pela porta. Os risos de Antônio se calam e se transformam em pavor, ele percebe que a mãe não está brincando, olha para ela com olhos arregalados. Valentina pega o filho pelo braço e dando uma palmada diz para que ele coloque o chinelo. O menino coloca o chinelo, enquanto Valentina segura seu braço agressivamente.
As cenas de violência eram dirigidas, especialmente, a Antônio e aconteciam na presença de Augusto. Tais cenas começaram a se intensificar com o decorrer das observações, o que fez com que o grupo de supervisão se questionasse sobre os limites das agressões e do “bater” na criança, em um contexto sociocultural em que tais ações parecem estar naturalizadas. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei n° 8.069, 1990), no Livro I, artigo 5°, dispõe que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais”. Diante da impossibilidade de intervir de outra forma, uma forma mais direta e protetiva, uma vez que este não é o objetivo do método Bick, porém compreendendo a responsabilidade do observador diante desse contexto, decidiu-se acionar o programa de extensão, a fim de que realizassem visitas domiciliares à família, no sentido de lhe dar um lugar de escuta. Uma das cenas de violência que mais marcou a observadora ocorreu na 25ª observação (6 meses e 10 dias):
A mãe, olhando para Antônio que está sentada ao lado dela no sofá, chorando sem parar, pede para que ele limpe o rosto na toalha “limpa essa cara Antônio, que nojo esse ranho, seu porco”. O menino ignora a mãe e empurra a toalha para o chão com o pé. Antônio desce do sofá e fica às voltas da mãe ainda chorando e pedindo o celular, tenho a impressão de que a qualquer momento Antônio agredirá a mãe e Augusto, então Valentina empurra Antônio, pedindo que ele se afaste, o menino volta e novamente é empurrado. Ele cai por cima do carrinho, aos meus pés, fico assustada e angustiada, e imediatamente ajudo Antônio a levantar, porém o menino não parece querer ajuda, o corpo fica amolecido e o choro agora parece de mágoa, um choro sentido e fungado, ele encosta a cabecinha na minha perna e fica ajoelhado no chão enquanto acaricio suas costas, pedindo para que ele levante do chão. Valentina parece não se preocupar.
Tomada pelo sentimento de angústia ao ver Antônio nessa situação de desamparo e negligência afetiva, e ao ver Valentina sentindo-se esgotada e, por isso, incapaz de ser empática com seu filho, a observadora sentiu a necessidade de intervir. Através do acolhimento direcionado a Antônio, mas também à mãe, a observadora assumiu a função de ego auxiliar, já mencionado anteriormente, sustentando e amparando emocionalmente a relação mãe-bebê, uma vez que este último se encontra em estado de dependência e vulnerabilidade psíquica. Da mesma forma que no caso de observação da bebê Nina, as intervenções das observadoras ocorreram em momentos cruciais, que lhes evocaram sentimentos de angústia e desamparo. Em todas as situações, ambas as observadoras se sentiram autorizadas pelas mães a intervir. Esse cuidado é essencial e exige que o observador esteja sensível à sua posição na observação e às possíveis repercussões de seus atos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso objetivo, ao longo deste artigo, foi discutir o lugar do observador na aplicação do método Bick de observação, em contextos de vulnerabilidade. Apresentamos dois casos em que a ética do observador, específica do método Bick de observação, foi posta à prova e precisou ser repensada, a fim de atender a uma ética mais ampla, direcionada às pesquisas em Psicologia. Ao nos depararmos com os casos apresentados, sentimos a necessidade de revisitar os pressupostos teóricos do método Bick, a fim de atualizá-los, consoante ao contexto de vulnerabilidade pesquisado. Compreendemos, durante as observações, que, quanto mais complexa for a realidade estudada, mais importante torna-se o rigor ético e conceitual das intervenções. Entendemos, assim, que o lugar do observador é de alguém que fornece sustentação ao saber materno, por meio da empatia e da condição de abstinência, no que tange a julgamentos. Nesse sentido, a saída encontrada, em ambos os casos, foi intervir de uma forma indireta, acionando o programa de extensão.
Para além dessa intervenção, em algumas situações, aqui relatadas, as observadoras sentiram-se impelidas a abandonar a função observante e entrar em cena para auxiliar as mães a atender os seus bebês. Tais intervenções ocorreram mediante um clima de autorização das mães. As supervisões, muitas vezes, foram inundadas pela angústia sentida e vivida pelas observadoras, sendo necessário retomar os princípios desse método observacional. Nesse sentido, optou-se por não intervir diretamente no cuidado com os bebês, mas também não se omitir diante das situações de vulnerabilidade encontradas. Para que as observadoras não tirassem o protagonismo das mães no cuidado com seu bebê, as intervenções foram pautadas na sustentação do ego auxiliar às famílias, para que elas pudessem se organizar diante das circunstâncias e assumir a função de cuidadoras. Desse modo, o grupo de supervisão possui destaque no Método, por constituir-se como um espaço reflexivo, em que a observação e o observador são acolhidos para fins de discussão acerca do seu papel junto à família que acompanha. Nesse sentido, a supervisão é um importante instrumento de discussão sobre como o observador deve conduzir, no sentido de não se omitir, mas também não interferir na forma singular da mãe sustentar a função materna.
Um importante avanço, em se tratando de questões éticas em pesquisas que envolvem a participação de seres humanos, foi a Resolução CNS n° 510 (2016). Ela convoca os pesquisadores ao compromisso de não corroborarem com a construção, manutenção ou ampliação de situações de risco ou vulnerabilidade, estigma, preconceito e discriminação. Para além, incentiva o respeito à diversidade e a participação de indivíduos vulneráveis em pesquisas. Assim, a não realização de estudos com esses indivíduos implicaria uma estagnação do campo da pesquisa científica. Contudo, há a necessidade de tais pesquisas estarem pautadas em uma ética que prevê intervenções visando à proteção desses indivíduos, pelo caráter da vulnerabilidade que permeia esse contexto. Nesse sentido, teoricamente, tornarse-ia inviável a participação de indivíduos em situações de vulnerabilidade em pesquisas que utilizam o método Bick de observação, pela ética não interventiva própria ao Método. Contudo, sendo a Psicologia uma ciência que se propõe, em última instância, a proteger e desenvolver a autonomia dos indivíduos, como preterir, para fins de pesquisa, esse público?! Essa reflexão ética e a convocação sentida pelas observadoras serviram de base para a construção deste artigo.
Por fim, pesquisas como esta ilustram os desafios encontrados na prática do método Bick de observação em contextos de vulnerabilidade, uma vez que o observador se sente convocado, pelas premissas éticas, a intervir nas situações de risco que encontra. Ainda, revelam o quanto as fases iniciais da infância são um período privilegiado e fértil para estudar e identificar elementos e indicadores tanto de saúde mental como de atrasos no desenvolvimento. Contribuem, nesse sentido, para uma perspectiva preventiva, uma vez que permite a identificação precoce de riscos para o desenvolvimento infantil.













