Uma mudança de paradigma tem emergido na Psicologia, em especial, as contribuições da Psicologia Positiva, que enfatiza a importância de um olhar em prol da saúde e não voltado exclusivamente às doenças e psicopatologias (Seligman, 2019). Nesse sentido, o enfoque é direcionado para compreender o que contribui para que as pessoas sejam felizes, engajadas, tenham propósito de vida e implementem estratégias que promovam a saúde (Ryff, 2022).
A paixão, compreendida como uma variável positiva, é definida a partir do Modelo Dualístico da Paixão (DMP) como um desejo ou força que direciona o indivíduo para a realização de atividades que considera importantes, podendo impactar diretamente no seu empenho e dedicação para concretizar suas atividades. O DMP é um dos principais modelos que visam descrever a paixão e define esse construto em duas dimensões, sendo elas: Paixão obsessiva e Paixão harmoniosa (Vallerand et al., 2003).
Em ambas dimensões, o indivíduo possui intensos desejos de se engajar em suas atividades. Entretanto, a Paixão obsessiva se caracteriza pela redução ou ausência de controle que o indivíduo tem sobre o próprio desejo, podendo influenciar diretamente nas experiências de ansiedade e afetos negativos, enquanto na Paixão harmoniosa, o indivíduo possui a paixão alinhada com os seus desejos pessoais, o que contribui para a manutenção do controle sobre o desejo de estar engajado nas atividades desempenhadas, experimentando sentimentos relacionados com a motivação (Vallerand et al., 2003; Vallerand, 2015; Vallerand et al., 2020).
A Paixão obsessiva também se caracteriza pela sua internalização por meio de pressões externas e internas, podendo ser exemplificadas respectivamente como aceitação social e autoestima em questões que envolvem a atividade que o sujeito ama (Chichekian & Vallerand, 2022). Segundo Vallerand (2008), as pessoas com Paixão obsessiva podem vivenciar conflitos entre as atividades pelas quais são apaixonadas e outros aspectos de sua vida, podendo obter resultados negativos nos relacionamentos sociais e esgotamento.
Além disso, pessoas que persistem de maneira rígida em uma atividade possuem características de Paixão obsessiva, o que influencia diretamente nos resultados menos adaptativos, como afetos negativos, frustração, ansiedade e ruminação (Vallerand, 2008). Por exemplo, Vallerand et al. (2003) destaca que sentimentos de frustração são manifestados quando o indivíduo não experimenta um envolvimento completo nas atividades pelas quais é apaixonado. Além disso, vale mencionar que os indivíduos com Paixão obsessiva tendem a ter percepções mais baixas de felicidade, bem-estar e autoeficácia (Gong et al., 2018).
Já a Paixão harmoniosa, diferente da Paixão obsessiva, não é compreendida como opressora, mas como algo que se integra na identidade no sujeito de forma autônoma (Chichekian & Vallerand, 2022). A partir disso, pode-se destacar que a Paixão harmoniosa possibilita que o indivíduo integre outras atividades na sua vida, uma vez que ele possui o domínio sobre a atividade pela qual é apaixonado. Isso favorece que o indivíduo não possua desconforto emocional (Vallerand et al., 2003) e experimente mais bem-estar e sentido de vida (Vallerand et al., 2003; Vallerand, 2015; Vallerand et al., 2020), além de percepções mais elevadas de autoeficácia, quando comparado com indivíduos que possuem Paixão obsessiva (Gong et al., 2018).
Para avaliar a intensidade da paixão pelo trabalho, foi desenvolvida a Escala de Paixão pelo Trabalho por Vallerand e Houlfort (2003). Este instrumento foi validado em diversas amostras, incluindo canadenses, portuguesas e brasileiras (Vallerand & Houlfort, 2003; Orgambídez-Ramos et al., 2014; Pereira et al., 2018; Vallerand & Rahimi, 2022). Além disso, outros estudos em amostras estrangeiras indicaram que a paixão desempenha um papel crucial na previsão de resultados significativos, tanto na educação quanto no esporte. Por exemplo, tanto a paixão harmoniosa quanto a obsessiva foram identificadas como positivamente correlacionadas com altos níveis de desempenho, motivando a perseverança e o desenvolvimento de habilidades para alcançar a excelência na atividade (Vallerand et al., 2008; Bureau et al., 2017; Chichekian & Vallerand, 2022). É relevante mencionar que, assim como enfatizado por Peixoto et al. (2021), há uma lacuna na aplicação do Modelo Dualista da Paixão (DMP) no contexto educacional brasileiro.
Outra variável que pode estar relacionada à variável motivacional (paixão) diz respeito à autoeficácia para decisão de carreira. Esse construto é central na Teoria Social Cognitiva de Carreira (Lent et al., 1994), que busca elucidar os comportamentos adaptativos de carreira de que os indivíduos dispõem para se engajarem e prosperarem nos ambientes de trabalho e educacionais em seus percursos profissionais. A autoeficácia refere-se às crenças que as pessoas têm em sua capacidade para organizar e realizar ações para atingir determinados resultados, isto é, o quanto o sujeito confia em sua capacidade de estabelecer e executar um plano de ação com sucesso, mesmo diante de eventuais obstáculos. Essas crenças não constituem um traço global de personalidade, mas podem ser desenvolvidas e estão associadas a domínios específicos do funcionamento humano (Bandura, 1977).
Lent e Brown (2013) ponderam que a capacidade de tomada de decisão na carreira é esperada em indivíduos que tenham crenças de autoeficácia fortalecidas no que diz respeito às habilidades de exploração e tomada de decisão, expectativas satisfatórias de resultados, capacidade de estabelecer metas, planos de ação definidos, apoio ambiental e barreiras mínimas do contexto, além de características específicas de personalidade. Em relação à crença de autoeficácia, no que diz respeito à competência exploratória, refere o quanto o sujeito acredita que consegue explorar suas características pessoais, interesses e condições socio-econômicas, além de informações acerca das profissões e operacionalização de seus objetivos por meio de ações (Lent et al., 2016). A crença de autoeficácia na competência decisional diz respeito ao quanto a pessoa acredita ser responsável pela sua carreira. Em suma, a autoeficácia para ambas as competências tem como desfecho pessoas mais decididas e menos ansiosas em seu processo de escolha e desenvolvimento de carreira (Lent & Brown, 2013). Estudo recente realizado por Peixoto et al. (2022), com uma amostra de trabalhadores, evidenciou relação moderada e positiva entre Paixão harmoniosa e autoeficácia ocupacional, ao passo que a Paixão obsessiva apresentou correlação negativa e baixa. Adicionalmente, os autores observaram um papel mediador da autoeficácia ocupacional na relação entre Paixão harmoniosa e persistência flexível no trabalho.
Além disso, em relação à indecisão de carreira, pesquisas têm demonstrado associações entre esta variável e variáveis que representam estados internos (ansiedade de escolha profissional) e traços (ansiedade de traço), além de variáveis contextuais como barreiras externas e conflitos interpessoais (Brown & Rector, 2008; Brown et al., 2012). Nessa direção, na literatura científica é possível identificar que as dificuldades de escolha de carreira podem estar associadas a quatro fatores de indecisão, a saber: neuroticismo/ afetividade negativa, ansiedade de escolha/ compromisso, falta de prontidão e conflitos interpessoais (Brown et al., 2012; Xu, 2020). Na mesma direção, Lajom et al. (2018) demonstraram relações positivas moderadas entre Paixão harmoniosa pelo trabalho e autoeficácia para decisão na carreira, enquanto a Paixão obsessiva associava-se apenas de maneira fraca com essa variável.
Ao considerar os constates motivacionais apresentados, o objetivo deste estudo foi estimar evidências de validade para a Escala da Paixão pelos Estudos e analisar a capacidade preditiva deste instrumento sobre a indecisão de carreira e autoeficácia para decisão de carreira. Como hipóteses, espera-se obter: H1) estrutura fatorial formada por dois fatores para a Escala de Paixão com índices de ajustes que suportem o modelo teórico e estimativas de precisão satisfatória para o contexto educacional (Marsh et al., 2013; Peixoto et al., 2019); H2) relação preditiva positiva entre Paixão harmoniosa e autoeficácia para decisão de carreira (Peixoto et al., 2022); H3) relação preditiva negativa entre Paixão harmoniosa e indecisão de carreira; H4) relação preditiva positiva entre Paixão obsessiva e indecisão de carreira (Lajom et al., 2018; Peixoto et al., 2021).
Método
Participantes
A amostra foi composta por 239 participantes. A maioria residia na região Sudeste (84,3%), com os demais distribuídos por outras regiões do Brasil (15,7%). A distribuição dos participantes em relação à origem étnica foi de 66,6% de pessoas brancas, 26,8% de pessoas pardas/pretas e 4,2% de pessoas amarelas, enquanto 2,4% optaram por não informar sua cor/raça. As idades dos participantes variaram entre 18 e 55 anos (M = 24,5; DP = 7,5), com 70,82% do sexo feminino e 29,18% do sexo masculino. Quanto ao estado civil, 80,51% se declararam solteiros, enquanto 18,65% se declararam casados ou em união estável e 0,87% viúvos. Em relação à renda mensal, 9,6% optaram por não fornecer esta informação e 26,4% declararam não ter renda individual, enquanto 17,2% informaram que ganhavam até R$ 1.100,00, 27,6% entre R$ 1.101,00 e R$ 2.200,00, 10,5% entre R$ 2.201,00 e R$ 3.300,00, 2,4% entre R$ 3.301,00 e R$ 4.400,00, e 6,3% acima de R$ 4.401,00. Quanto ao tipo de instituição de ensino, 91,42% dos participantes informaram que estudavam em instituições privadas e 8,58% em instituições públicas. Sobre o turno de estudo na universidade, 70,82% informaram que estudavam à noite, 19,3% de manhã, 0,86% à tarde e 9,01% em período integral. Vale mencionar que 74,68% mencionaram que estavam cursando sua primeira graduação, sendo 54,66% estudantes de psicologia, 6,78% de engenharias, 5,51% de biomedicina, 4,24% sistema de informação e os 28,81% restantes em outros cursos. Por último, os participantes foram distribuídos em diferentes semestres, sendo que a maioria se declarou estudante do 1º semestre (28,39%), 7º (18,64%) e 8º (13,14%).
Instrumentos
Questionário de Caracterização
Foi desenvolvido um questionário para identificar os participantes, com questões relativas ao sexo, idade, cor/raça, estado e renda mensal individual. Foi avaliado também se os participantes estudavam em universidades públicas ou privadas e em quais turnos, bem como se o curso atual correspondia à primeira graduação.
Escala da Paixão – EP (Peixoto et al., 2019; Vallerand et al., 2003)
Foi adaptada para o português brasileiro por Peixoto et al. (2019) para o contexto esportivo. O instrumento é composto por 12 itens que buscam avaliar a paixão por meio de duas dimensões, sendo elas: Paixão harmoniosa (ex. Item 1 : “Esta atividade está harmonizada com as outras atividades em minha vida” – α = 0,81 e Paixão obsessiva (ex. Item 2: “Tenho dificuldades em controlar meu desejo de realizar essa atividade” – α = 0,75). Considerando a aplicação da escala de paixão ao contexto educacional, e a adaptação do conteúdo dos itens para avaliação do envolvimento com a atividade específica, a palavra “atividade” foi substituída por “estudos” e a ação na atividade foi representa pelo verbo “estudar”, a fim de captar a paixão pelos estudos. Este procedimento foi proposto desde a concepção do instrumento (Vallerand et al., 2022), e também foi empregado em pesquisas realizadas no contexto brasileiro (Peixoto et al., 2021). Como exemplo de itens das dimensões da Paixão harmoniosa “Meus estudos estão em harmonia com as outras atividades em minha vida” e obsessiva “Tenho dificuldade em controlar meu desejo de estudar”. Esse procedimento tem sido adotado por diferentes pesquisadores, haja vista que a paixão não deve ser considerada um traço estável, mas um construto que se estabelece na relação com uma atividade (Marsh et al., 2013; Vallerand et al., 2003). A escala utiliza uma chave de resposta do tipo Likert de sete pontos, variando de “1” não concordo a “7” concordo plenamente.
Escala de Indecisão de Carreira – Reduzida (CIP-20; Salvador, 2022)
É composta por 20 itens numa versão reduzida, a partir de uma adaptação para o contexto brasileiro realizada por Salvador et al. (2022) da versão construída por Hacker et al. (2013) que conta com 65 itens. O instrumento avalia as dificuldades que um indivíduo poderá ter no processo de escolha de carreira por meio de quatro fontes de indecisão, sendo elas: Neuroroticismo/Afetividade Negativa (5 itens); é exemplo de item “Frequentemente sinto-me com muito medo e ansioso(a)”, Ansiedade de Escolha/Compromisso (5 itens); é exemplo de item “Frequentemente me sinto desencorajado(a) para tomar uma boa decisão de carreira”, Falta de Prontidão (5 itens); é exemplo de item “Estou bastante confiante de que serei capaz de superar obstáculos para conseguir seguir a carreira que desejo”. É necessário destacar que todos os itens da subescala de Falta de Prontidão são invertidos. E, por fim, Conflitos Interpessoais (5 itens); é exemplo de item “Estou indo contra os desejos de alguém importante para mim se eu seguir a carreira que mais me interessa”. A chave de resposta é do tipo Likert de seis pontos, variando entre “1” discordo fortemente e “6” concordo fortemente. A escala apresenta estimativas de confiabilidade adequadas, variando entre α = 0,88 (Falta de Prontidão) e α = 0,97 (Ansiedade de Escolha/Compromisso).
Escala de Autoeficácia para Decisões de Carreira de Estudantes de Ensino Superior (Costa et al., 2022)
É composta por 51 itens que buscam avaliar a autoeficácia para decisão de carreira em estudantes universitários. A escala replica o modelo hierárquico de cinco fatores de primeira ordem e um fator geral de autoeficácia para decisão de carreira de segunda ordem, na qual os itens do instrumento apresentaram bons índices de ajuste e cargas fatoriais acima de 0,30. Os níveis de precisão do instrumento são satisfatórios, com índices acima de 0,70, sendo eles: autoavaliação (ex: Reconhecer meus pontos fortes e fracos – α = 0,80), coleta de informações práticas (ex: Usar a internet para pesquisar sobre profissões e áreas de atuação – α = 0,86), planejamento de futuro (ex: Reconhecer quais são os passos necessários para atingir um objetivo de carreira – α = 0,84), seleção de objetivos (ex: Investir em cursos e atividades extracurriculares para atingir os meus objetivos – α = 0,79) e resolução de problemas (ex: Resolver problemas relacionados à minha carreira – α = 0,82). A escala utiliza como chave de resposta em escala Likert, variando de “1” acredito pouco ou nada, a “5” acredito totalmente.
Procedimentos
Este estudo foi aprovado integralmente pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São Francisco (CAAE: 61638216.0.0000.5514). A coleta dos dados foi on-line via plataforma Google Forms e divulgada por meio das redes sociais, estando acessível por cerca de 2 meses. Como critério para inclusão da pesquisa, o participante deveria ter no mínimo 18 anos completos. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi apresentado ao sujeito no início da pesquisa. Foi garantida a não identificação dos participantes nos resultados desta investigação.
Análise dos dados
Inicialmente foram realizadas estatísticas descritivas para descrição da amostra. Considerando a ausência de evidências de validade e precisão da Escala de Paixão pelos Estudos no contexto brasileiro, foi avaliada a estrutura interna da medida por meio da Análise Fatorial Confirmatória (AFC). Para adequação da amostra à AFC foram utilizados os Teste de Esfericidade de Bartlett e o Kaiser-Meyer-Olkon (KMO). O estimador utilizado foi o weighted least square mean and variance adjusted (WLSMV), a partir da matriz de correlações policóricas (Suh, 2015). Para avaliação do ajuste do modelo foram utilizados os índices RMSEA, CFI e TLI considerando RMSEA < 0,08, CFI e TLI > 0,90 como adequados RMSEA < 0,06, CFI e TLI > 0,95 como bons (Tabachnick & Fidell, 2019). As análises foram realizadas em ambiente R, utilizando o pacote lavaan (Rosseel, 2012).
Para avaliação da precisão por consistência interna dos fatores, foram utilizados os coeficientes alfa de Cronbach e ômega de McDonald (Dunn et al., 2014), ambos calculados por meio do pacote psych em ambiente R (Revelle, 2021). Foram considerados indicadores satisfatórios de precisão aqueles que apresentaram valores superiores a 0,70, conforme indica a literatura (Tabachnick & Fidell, 2019).
Foram realizadas correlações de Pearson entre os fatores de paixão pelos estudos, autoeficácia para decisão de carreira e indecisão de carreira, a fim de verificar as relações bivariadas entre as variáveis deste estudo. As correlações e respectivas significâncias foram calculadas utilizando o pacote Hmisc, em ambiente R (Harrell, 2021). Para interpretar as correlações, foram seguidas as recomendações de Cohen (1992), que indicam que as correlações entre 0,10 e 0,29 são fracas, correlações entre 0,30 e 0,49 são moderadas e correlações acima de 0,50 são fortes.
Para avaliar o modelo preditivo da Paixão pelos Estudos sobre a autoeficácia para decisão de carreira e sobre a indecisão de carreira, foi utilizada a Modelagem de Equações Estruturais em ambiente R por meio do pacote lavaan (Rosseel, 2012), tendo como estimador o weighted least square mean and variance adjusted (WLSMV). No entanto, no modelo preditivo de Paixão pelos Estudos sobre autoeficácia para decisão de carreira optou-se pelo estimador maximum likelyhood robust (MLR), pois o estimador WLSMV apresentou overfitting. Para avaliação dos ajustes do modelo foram utilizados os mesmos critérios utilizados na AFC, ou seja, RMSEA < 0,08, CFI e TLI > 0,90 como adequados RMSEA < 0,06, CFI e TLI > 0,95 como bons (Tabachnick & Fidell, 2019). As análises também foram realizadas por meio do pacote lavaan, em ambiente R (Rosseel, 2012).
Resultados
Para verificar a fatorabilidade da Escala de Paixão pelos estudos, foram realizados o Teste de Esfericidade de Bartlett e o Kaiser-Meyer-Olkon (KMO). Os resultados sugerem que a matriz é adequada para análise fatorial (Bartlett = 1424,72; df = 66; p < 0,001; KMO = 0,87) (Hadi et al., 2016). Em seguida foi realizada a AFC e os resultados são apresentados na Figura 1.
Foram evidenciados bons índices de ajuste para o modelo de dois fatores (CFI = 0,99; TLI = 0,99; RMSEA = 0,02), e todos os itens apresentaram cargas superiores a 0,30, conforme esperado. Os índices de consistência interna também foram favoráveis para os dois fatores, sendo alfa = 0,88 para Paixão harmoniosa e alfa = 0,83 para Paixão obsessiva. Em seguida, na Tabela 1, são apresentadas as correlações bivariadas entre paixão pelos estudos, indecisão de carreira e autoeficácia para decisão de carreira.
M(DP) | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | |
---|---|---|---|---|---|---|
1. Paixão harmoniosa | 4,83(1,4) | α =0,88 | ||||
2. Paixão obsessiva | 2,86(1,3) | 0,48*** | α = 0,83 | |||
3. Autoavaliação | 4,03(0,5) | 0,42*** | 0,15* | α =0,81 | ||
4. Coleta de informações | 4,14(0,5) | 0,51*** | 0,24*** | 0,74*** | α =0,88 | |
5. Planejamento de futuro | 3,98(0,6) | 0,47*** | 0,20** | 0,69*** | 0,73*** | α =0,86 |
6. Seleção de objetivos | 3,76(0,6) | 0,51*** | 0,28*** | 0,64*** | 0,73*** | 0,77*** |
7. Resolução de problemas | 3,81(0,6) | 0,39*** | 0,15* | 0,70*** | 0,77*** | 0,77*** |
8. Afetividade negativa | 3,65(1,24) | -0,11 | 0,22*** | -0,19** | 0,00 | -0,15* |
9. Ansiedade de escolha | 3,03(1,25) | -0,13 | 0,22*** | -0,13* | -0,05 | -0,16* |
10. Falta de prontidão | 1,30(0,81) | -0,51*** | -0,21** | -0,54*** | -0,57*** | -0,58*** |
11. Conflitos interpessoais | 2,31(1,46) | -0,08 | 0,37*** | -0,09 | -0,03 | -0,07 |
6 | 7 | 8 | 9 | 10 | 11 | |
---|---|---|---|---|---|---|
1. Paixão harmoniosa | ||||||
2. Paixão obsessiva | ||||||
3. Autoavaliação | ||||||
4. Coleta de informações | ||||||
5. Planejamento de futuro | ||||||
6. Seleção de objetivos | α =0,78 | |||||
7. Resolução de problemas | 0,76*** | α =0,84 | ||||
8. Afetividade negativa | -0,10 | -0,16* | α = 0,82 | |||
9. Ansiedade de escolha | -0,13* | -0,08 | 0,56*** | α =0,81 | ||
10. Falta de prontidão | -0,57*** | -0,55*** | 0,14* | 0,00 | α =0,68 | |
11. Conflitos interpessoais | -0,06 | 0,01 | 0,28*** | 0,45*** | -0,03 | α =0,89 |
Nota. * p < 0,05; ** p < 0,01; *** p < 0,001
Nota-se na Tabela 1 que Paixão harmoniosa se correlacionou de forma positiva, com magnitudes moderadas e fortes, com todos os fatores deste construto. No entanto, a Paixão obsessiva se correlacionou de forma positiva e fraca com os fatores da autoeficácia para decisão de carreira. Em relação à indecisão de carreira, a Paixão harmoniosa se correlacionou de forma significativa somente com o fator Falta de prontidão de indecisão de carreira, sendo essa uma correlação negativa e forte, enquanto Paixão obsessiva se correlacionou positivamente e de forma moderada com Conflitos interpessoais, e com magnitude fraca com os demais fatores de indecisão de carreira.
O efeito preditivo da paixão sobre a autoeficácia para decisões de carreira foi verificado por meio de modelagem por equações estruturais. O modelo, apresentado na Figura 2, obteve índices de ajuste satisfatórios (CFI=0,93; TLI = 0,91; RMSEA = 0,79). O modelo mostrou que a Paixão harmoniosa foi preditora positiva de todos os escores da autoeficácia para decisão de carreira, enquanto Paixão obsessiva predisse significativamente somente o escore de autoavaliação. O modelo explicou 30% da variância de Coleta de informações, 28% de Seleção de objetivos, 26% de Planejamento de futuro, 22% de Autoavaliação e 17% de Resolução de problemas.
Verificou-se também a relação preditiva da Paixão harmoniosa e obsessiva sobre a indecisão de carreira, por meio de modelagem por equações estruturais. O modelo, apresentado na Figura 3, obteve bons índices de ajuste (CFI = 0,99; TLI = 0,99; RMSEA = 0,27). Paixão harmoniosa foi preditora negativa de todos os fatores da indecisão de carreira, enquanto Paixão obsessiva predisse positivamente os fatores da indecisão de carreira, com exceção do fator Falta de prontidão, que não foi significativo. Vale ressaltar que o modelo foi capaz de explicar 28% da variância de Conflitos interpessoais e Falta de prontidão, 13% da Ansiedade de escolha e 11% da Afetividade negativa.
Discussão
O objetivo da presente pesquisa foi buscar evidências de validade para a Escala da Paixão pelos estudos e verificar sua capacidade preditiva sobre dois desfechos: a indecisão de carreira e autoeficácia para decisão de carreira. Esse instrumento já foi aplicado em diferentes contextos e culturas (Pereira et al., 2018; Peixoto et al., 2018; Prates et al., 2019) e os resultados encontrados nesta pesquisa indicaram que a estrutura interna da escala de Paixão pelos estudos correspondeu à proposta original (com os fatores de Paixão harmoniosa e Paixão obsessiva). Adicionalmente, verificou-se que a Paixão harmoniosa esteve positivamente relacionada aos indicadores de autoeficácia para decisão de carreira e negativamente associada à indecisão de carreira. Por sua vez, a Paixão obsessiva mostrou-se preditora negativa da autoeficácia para decisão de carreira e positiva da indecisão de carreira. O que sugere a importância do conhecimento do tipo de envolvimento com os estudos e seus impactos distintos sobre a escolha profissional.
Os resultados provenientes da AFC reproduziram os achados comumente observados na literatura (Vallerand et al., 2020), com índices de ajustes que suportam a mensuração do Modelo Dualístico da Paixão pelos Estudos, conferindo, assim, as primeiras evidências de validade e precisão para o contexto acadêmico brasileiro, de acordo com as diretrizes propostas na versão da American Educational Research Association, American Psychological Association & National Council on Measurement in Education (AERA et al., 2014). Resultados semelhantes foram observados em estudos com a versão original do instrumento, com evidências de validade estimadas em uma amostra de 338 estudantes universitários canadenses francófonos (Marsh et al., 2013), bem como junto a amostras asiáticas, como nos estudos realizados por Zhao et al. (2015) com uma amostra de 286 participantes, e Chen et al. (2021) que acessaram uma amostra de 260 participantes, sendo em ambos os casos estudantes universitários chineses. Pode-se inferir que a estrutura dualista da Paixão pelos Estudos também foi corroborada em uma amostra brasileira, e que a medida apresentou bom nível de confiabilidade no contexto educacional/universitário. Desta forma, os resultados encontrados corroboraram a H1.
No que diz respeito às relações com as outras variáveis empregadas neste estudo, observou-se que a Paixão harmoniosa foi preditora positiva da autoeficácia para decisão de carreira. Peixoto et al. (2021) evidenciaram que, uma vez que o sujeito desenvolve uma Paixão harmoniosa pelos estudos, tenderá também a desenvolver crenças de autoeficácia ao desempenhar tarefas relacionadas aos estudos, podendo investir seus esforços e persistir em suas metas. Sendo assim, sua autoeficácia educacional é afetada positivamente e a probabilidade de resultados positivos no meio acadêmico é potencializada.
Na mesma direção, Lajom et al. (2018) demonstraram, em uma amostra de estudantes universitários, que a Paixão harmoniosa pelo trabalho estava positiva e moderadamente associada à autoeficácia para decisão na carreira (r = 0,42), enquanto a Paixão obsessiva relacionava-se positivamente com magnitude fraca (r = 0,13). Tais resultados se alinham àqueles observados na presente pesquisa, sugerindo que trabalhadores que apresentam níveis mais elevados de Paixão harmoniosa são mais autodeterminados e intrinsecamente regulados, o que pode promover a autoeficácia na tomada de decisão de carreira por meio de uma autorregulação mais eficaz e de maior percepção de domínio na atividade em questão. Contudo, vale ressaltar que o estudo de Lajom et al. (2018) baseou-se em uma compreensão unidimensional da autoeficácia para decisão de carreira (Taylor & Betz, 1983), o que impossibilitava maior exploração do construto. Além disso, os autores tiveram como objeto de estudo a paixão pelo trabalho.
Ao voltar-se para os resultados do modelo testado na presente pesquisa, observa-se que Paixão harmoniosa pelos estudos pode contribuir com uma importante faceta do desenvolvimento da carreira, a percepção da capacidade de tomada de decisões na carreira, sugerindo a relevância do planejamento da carreira no decorrer da formação universitária (Ourique & Teixeira, 2012), bem como da relevância do estabelecimento de uma relação harmoniosa com os estudos (Chichekian & Vallerand, 2022; Peixoto et al., 2021; Vallerand, 2015). Desta forma, os resultados corroboram a H2, haja vista que ao internalizar as atividades universitárias de forma autônoma à identidade, os estudantes percebem-se capazes de se envolver em atividades de outros contextos sem estabelecimento de conflitos internos e externos (Vallerand, 2015). Nessa perspectiva, desenvolver uma relação harmoniosa com os estudos pode ser visto como uma estratégia de potencialização das crenças de capacidades de exploração do ambiente, como utilização de diferentes estratégias para coletar informações sobre possibilidades na carreira, seleção de objetivos ao estabelecimento de prioridades de forma a gerenciar com sucesso tarefas de tomada de decisão de carreira mesmo frente a dificuldades e desafios, bem como a percepção de capacidade de planejar o futuro, definir metas e organizar passos para concretizar os objetivos de carreira.
Adicionalmente, o desenvolvimento da Paixão harmoniosa pelos estudos permite que os estudantes persistam de forma flexível diante dos desafios e barreiras referentes à formação profissional (Chichekian & Vallerand, 2022; Lajom et al., 2018), contribuindo, assim, para o desenvolvimento de um autoconceito acadêmico e aspirações profissionais e, portanto, de crenças quanto à capacidade de traçar e executar estratégias para resolver problemas inesperados quanto às possibilidades de carreira, o que resultaria em uma autoavaliação positiva. Complementarmente, observa-se que a Paixão obsessiva se relacionou de maneira significativa e negativa apenas com o fator Autoavaliação, sugerindo que este tipo de engajamento com os estudos reflete uma relação mais conflituosa com a atividade de interesse, podendo incluir experiências de pressões internas e externas durante o envolvimento com a tarefa, assim como afetos negativos e insatisfação com os resultados oriundos dos seus esforços (Philippe et al., 2009; Vallerand et al., 2003).
O mesmo arcabouço teórico pode fundamentar os resultados obtidos no segundo modelo em que os tipos de paixão se associaram de maneira inversa aos indicadores de indecisão na carreira. Desta forma, vale mencionar os prejuízos de se relacionar com os estudos de forma obsessiva, uma vez que a Paixão obsessiva está associada a maiores níveis de afetividade negativa, ansiedade de escolha e conflitos relacionais. Tais resultados corroboram a literatura sobre o Modelo Dualístico da Paixão que tem oferecido evidências às consequências intrapessoais do envolvimento obsessivo com a atividade de interesse (Verner-Filion & Vallerand, 2016). Sverdlik et al. (2021) observaram que a Paixão obsessiva se mostrou positivamente associada a emoções negativas como tédio e ansiedade em estudantes universitários, prejudicando os esforços para desenvolvimento de estratégias para aprendizagem e o bem-estar. Nessa direção, Peixoto et al. (2021), em uma amostra composta por universitários brasileiros, encontraram associações positivas entre Paixão obsessiva e distresse psicológico e procrastinação, bem como associação negativa com medida de satisfação com a vida.
Em relação aos Conflitos interpessoais, Vallerand (2015) destaca o potencial negativo deste tipo de envolvimento com a atividade para as relações interpessoais, uma vez que ao envolver-se de forma rígida com os estudos, os estudantes tendem a apresentar prejuízos no estabelecimento de novos amigos e parceiros de estudo/trabalho, bem como exigir envolvimento desproporcional daquelas parcerias já estabelecidas, criando conflitos com essas pessoas e prejuízos à manutenção desses relacionamentos. Por outro lado, quando o estudante se apaixona de forma harmoniosa pelos estudos (e posteriormente com o trabalho), tende a experienciar resultados mais adaptativos, inclusive nos relacionamentos (Peixoto et al., 2021; Sverdlik et al., 2021; Vallerand, 2015). Nesse sentido, destaca-se a relevância da paixão como uma variável que pode contribuir para a compreensão da qualidade dos relacionamentos pessoais estabelecidos no contexto educacional e profissional, haja vista a importância dos relacionamentos no enfrentamento dos desafios profissionais no mundo contemporâneo (Nye et al., 2017). Desta forma, pode-se inferir que os resultados encontrados corroboram a H3 e H4.
Considerações finais
As evidências obtidas neste estudo sugerem que estabelecer uma Paixão harmoniosa com os estudos pode contribuir para que o estudante experiencie maiores níveis de decisão sobre sua trajetória profissional, enquanto a Paixão obsessiva pode influenciar de forma negativa na autoavaliação que ele faz de suas preferências e habilidades profissionais, além de favorecer indecisões profissionais. Ao considerar o raciocínio de Vallerand (2015), que destaca a importância de discernir o tipo de paixão envolvida em uma atividade, esse estudo favorece a compreensão da importância de intervenções educacionais que priorizem que os sujeitos estabeleçam uma Paixão harmoniosa com os estudos e, posteriormente, com sua profissão.
Contudo, algumas limitações desta pesquisa necessitam ser descritas, como o fato da amostra ser composta, em grande parte, por estudantes de psicologia que se declararam como brancos, da região Sudeste e de universidades particulares. Futuros estudos devem reunir esforços para contar com amostras com participantes de universidades públicas e de diferentes etnias e regiões. Outra importante limitação corresponde ao fato do desenho transversal de pesquisa para testar as correlações entre as variáveis empregadas no presente estudo, o que impede a inferência de causa e efeito entre as variáveis. Vale ressaltar que os dados da presente pesquisa foram acessados por meio de instrumentos de autorrelato, que podem ser influenciados por vieses de resposta, como desejabilidade social e aquiescência. Nesse sentido, novos investimentos em pesquisas devem ser feitos para avaliar a replicabilidade dos resultados usando métodos de controle de viés de resposta e o entendimento (ou seja, estudos qualitativos/método misto) de como essas variáveis se integram ao tempo com base em estudos longitudinais. Por fim, outras variáveis relevantes ao engajamento nos estudos e trabalho podem ser incluídas ao modelo, como experiências de afetos positivos e negativos e satisfação das necessidades básicas.