INTRODUÇÃO: O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DIAGNÓSTICA PSIQUIÁTRICA
Existe um problema fundamental na formulação de diagnósticos de transtornos mentais. Fundamental tanto no sentido de sua importância, quanto de sua origem. Variados são os trabalhos que demonstram as fragilidades desse processo por vias interpretativas diferentes, sejam essas filosóficas (Cooper, 2014; Foucault, 2023), sociológicas (Martinhago, Caponi, 2019), psicológicas (Uhr, 2014, Passarinho, 2020) ou psiquiátricas (Insel, 2022; McHugh, Slavney, 1998). Entretanto, a ênfase crítica está no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que se encontra em sua quinta edição revisada (DSM-5-TR), publicado pela American Psychiatric Association (APA) e disponível traduzido no Brasil (2023).
O DSM é um manual classificatório de transtornos mentais e seus critérios associados, acrescentado a isso desenvolvimento e curso, fatores de risco e prognóstico, diagnóstico diferencial e comorbidades para, segundo suas próprias impressões, facilitar o estabelecimento de diagnósticos mais confiáveis desses transtornos (APA, 2023). Ademais, salienta, já nas primeiras páginas, que seus “critérios diagnósticos atuais constituem a melhor descrição disponível de como os transtornos mentais se expressam e podem ser reconhecidos por clínicos treinados” (APA, 2023, p. XXIII). A história de sua construção, porém, não é livre de contestações contundentes e crises internas que o colocam como questionável monopolizador da autoridade determinadora de quais diagnósticos são passíveis de estabelecimento no campo da saúde mental contemporânea (Passarinho, 2020).
É importante mencionar, para efeito de delimitação histórica, que o DSM não foi a primeira referência classificatória dos transtornos mentais. Inicia-se o processo da História da Loucura em Paris, em 1656, com a criação do Hospital Geral, com a alienação dos então entendidos como loucos e, posteriormente, com a liberação por Pinel desses em Bicêtre, já na França revolucionária de 1794 (Foucault, 2023). Nos Estados Unidos, o DSM foi precedido por outras classificações. A primeira foi desenvolvida por volta de 1840, com apenas duas categorias diagnósticas: a insanidade e a idiotia. Em 1880 surgem novas categorias, incluindo: mania, melancolia, monomania, demência, dipsomania, epilepsia e paresia (Uhr, 2014). Freud, fundador da Psicanálise, acabou por propor, no início do século XX, uma divisão dos transtornos psíquicos em uma tríade, a saber: neurose, psicose e perversão (Freud, 2021), baseado em arcabouços inconscientes de determinação. Sua influência nos Estados Unidos se deu a partir de suas conferências temáticas em 1909 nomeadas e posteriormente publicadas como Cinco Lições de Psicanálise (Freud, 2019). Associando ensinamentos da psicanálise com os ensinamentos psicossociais para a gênese do sofrimento humano de Menninger (1963) é que nasce, em 1952, a primeira edição do DSM, com 106 categorias distribuídas em cerca de 132 páginas (APA, 1952).
A grande divergência entre os diagnósticos psiquiátricos começa a fomentar discussões no final da década de 1970, com o DSM em sua segunda versão, principalmente entre americanos e europeus. Uma nova versão foi elaborada para uniformizar e aperfeiçoar a validade do diagnóstico em psiquiatria, assim como padronizar suas práticas (Uhr, 2014). Faz-se necessário esclarecer que a terceira versão do DSM foi desenvolvida por psiquiatrias com visões biologizantes dos transtornos, chefiados por Robert Spitzer. Sua crença era de que seria essencial realinhar a psiquiatria à medicina, afastando-se da psicanálise, fundamentando-se o ato de diagnosticar em critérios da medicina baseada em evidências (Dunker, 2014). De sua influência surge o DSM III, em 1980, com suas 265 categorias em quase 500 páginas de texto, com pressupostos de ser um manual a-teórico, descritivo, quantificador e categorial. A expressiva mudança trouxe uma expansão de sua importância para basicamente o mundo inteiro, limitando outras vertentes diagnósticas em emergência, ou as relegando a paulatinamente perderem o campo de diálogo e o saber sobre o sofrimento humano (Figueiredo, 2021).
Entretanto, desde a primeira edição, e não menos revelador do impasse gerado pelo Manual, o DSM fala em transtornos mentais e não em doenças mentais. O motivo desse conceito é o fato de que uma doença implica em uma etiologia e não é possível determinar os seus fatores, biomarcadores que confirmariam as doenças diagnosticadas, como os testes sanguíneos para diabetes e hipotireoidismo, nem quais seriam os processos patológicos subjacentes dos quadros clínicos definidos por ele (Uhr, 2014). Tal é a relevância desse pressuposto entre os critérios para a definição dos diagnósticos do DSM que, ainda hoje, no DSM-5-TR (2023), um dos itens condicionais é que “à perturbação não é atribuível efeitos fisiológicos de uma substância (por exemplo cocaína) ou a outra condição médica” (APA, 2023, p. 141), mas presente em múltiplos diagnósticos, descritos sempre de forma diferente. Excluem-se aqui os chamados Transtornos Neurocognitivos que têm achados clínicos e neurológicos marcados e estão no livro pelos aspectos psicossociais concomitantes, como prejuízo funcional, piora no desempenho cognitivo e sofrimento psíquico atrelado à doença de base.
Objetiva-se, com esse estudo, demonstrar como as escolhas defendidas pela American Psychiatric Association para a concepção do DSM e suas subsequentes atualizações acabaram por gerar um problema diagnóstico que subjaz aos seus próprios critérios categoriais supostamente neutros. Ao fazer uma crítica sobre três dos mais polêmicos diagnósticos infantis, a saber a bipolaridade, o autismo e o déficit de atenção/hiperatividade, quer-se asseverar a crise psiquiátrica contemporânea cujas consequências acarretam preocupações sobre suas relações com a indústria farmacêutica, principalmente quanto à medicalização desenfreada para transtornos que perpassa a terapêutica da saúde mental como um todo.
1 BIPOLARIDADE EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES?
O diagnóstico do Transtorno Bipolar remonta há vários séculos, pelo menos como entidade de reconhecimento fenomenológico, denominada então como doença maníaco-depressiva. O primeiro relato conhecido foi descrito por Araeteus, da Capadócia, por volta do século I depois de Cristo, o qual diz que “na maioria dos melancólicos a tristeza se converte em alegria; e os pacientes então desenvolvem o que se chama de mania” (Del Porto, 2004, p. 3). De sua origem aos dias atuais, passando pelas várias edições do tratado de Emil Kraepelin, considerado o pai da psiquiatria moderna (Healy, 2008), na passagem dos séculos, culminando no DSM-5-TR, algumas diferenças marcantes se sucederam. Hoje o diagnóstico é dividido basicamente entre dois tipos: I e II de bipolaridade, além da ciclotimia, dos quadros induzidos (por substâncias ou devido a outras condições médicas) e, finalmente, dos atípicos (também chamados de “não especificados”) (APA, 2023, p, 169) (Kapczinski; Quevedo, 2016).
Para um transtorno aparentemente tão bem estabelecido, seria esperado que o problema do diagnóstico baseado no manual-fundamento para a psiquiatria já estaria livre de críticas ou, no mínimo, de pontos questionáveis quanto aos aspectos categoriais. Não é o caso (Del Porto, 2004). Além da demora para estabelecimento do quadro típico, tanto por suas configurações multifacetadas, seu período muitas vezes inicial ser indiferenciável de uma depressão unipolar (McIntyre et al., 2020), as intercorrelações categoriais entre ciclotimia e Transtorno de Personalidade Borderline aproximam tais transtornos a ponto de dificultar sobremaneira o tratamento. Separar um caso do outro pode ser tarefa impossível quando não há comorbidade entre ambos (Perugi et al., 2015), há uma conveniência de diagnosticar ambos por suas significativas equiparações.
A questão essencial, porém, é anterior à discriminação dos transtornos. Tratando-se unicamente o Transtorno Bipolar, incluindo ambos os tipos I e II há, pelo menos, 16 critérios consideráveis entre episódios maníacos, hipomaníacos ou depressivos. Quando analisada a maneira como o DSM-5-TR (2023, p. 130-142) induz a um possível diagnóstico, as fragilidades sobressaem com facilidade. Para um quadro de mania ou hipomania, para além da gravidade apontada e do tempo para sua duração (mínimo sete dias no primeiro caso e quatro no segundo) descreve-se que, nesse polo do transtorno, dos sete critérios citados, três seriam suficientes para realizar o diagnóstico. Na prática, o que isso significa é que duas pessoas poderiam receber o mesmo diagnóstico sem ter em comum nenhum dos sintomas mencionados no Manual. E se, para complexar, forem acrescentados os nove itens categoriais do polo depressivo, existiriam mais de mil possibilidades de apresentação clínica para um único transtorno. Por essa razão, as controvérsias no campo científico quanto a ele levaram alguns psiquiatras e produtores especialistas de conhecimento na área a chamarem tal transtorno como bipolaridades (De Dios et al., 2014; McIntintyre et al., 2020).
Como se não bastassem os impasses já citados, para agravar o exame do diagnóstico há, atualmente, a discussão sobre existirem ou não crianças bipolares. Segundo o DSM-5-TR, o diagnóstico é feito eminentemente em adultos, com idade de início de sintomas ao redor dos 20 anos de idade (APA, 2023). Contudo, introduziu-se uma brecha no próprio Manual para negar sua própria tese. Na parte de diagnósticos diferenciais, descreve-se que, em crianças e adolescentes com irritabilidade acentuada, pode-se ocorrer o diagnóstico de bipolaridade se houver um episódio claro de mania ou hipomania, afastando-se, assim, um diagnóstico previamente criado no DSM-5 (APA, 2014), qual seja: o Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor, o qual seria identificado em indivíduos com alterações de humor, predominantemente irritante, entre seis e 18 anos de idade. Esse diagnóstico permanece na versão mais atual do Manual (APA, 2023), ocorrendo nitidamente uma sobreposição de diagnósticos, uma vez que um dos critérios para bipolaridade é “um período distinto de humor anormal e persistentemente elevado, expansivo ou irritável” (APA, 2023, p. 140). A despeito das incongruências e indiferenciações, a International Association for Child and Adolescent Psychiatry and Allied Professions (IACAPAP), um dos mais importantes órgãos de legitimação diagnóstica psiquiátrica infantil do mundo, diz em seu Tratado de Saúde Mental da Infância e Adolescência que “é amplamente aceito que o Transtorno Bipolar pode ocorrer em crianças e adolescentes e a controvérsia passou para [...] como é diagnosticado” (IACAPAP, 2019, p. 2) e não mais sobre sua existência.
É justamente no sintoma de irritabilidade que reside a grande influência do aumento de mais de 40 vezes o diagnóstico de bipolaridade em crianças nas últimas décadas (Moreno et al., 2007) e um dos principais responsáveis por sua divulgação a nível científico é um dos psiquiatras mais referenciados na área infantil, Joseph Biederman. Apenas em 2007, Biederman foi o segundo psiquiatra mais citado no mundo, com seus 217 artigos referidos em mais de 6 mil vezes (Cooper, 2014). Joseph Biederman tem, conhecidamente, relações controversas com a indústria. Para além do fato de ter não revelado suas imbricações éticas, como pagamentos por ela na casa de milhões de dólares omitidos (Harris, 2009), muitos de seus trabalhos são financiados pela Johnson & Johnson™ que, não coincidentemente, produz Risperdal®, um antipsicótico atípico que tem como princípio ativo a risperidona. Risperidona é um dos medicamentos mais usados para tratamento de irritabilidade em crianças, principalmente naquelas que são diagnosticadas com bipolaridade, medicamento esse que tem potencial para efeitos colaterais a longo prazo ainda não conhecidos para esse grupo de pacientes. Esses usarão por anos o psicotrópico, de modo crônico, devido a um diagnóstico baseado, em essência, em sintomatologia, com grande ênfase em irritabilidade, sintoma o qual que aparece como não específico de nenhum transtorno e está presente em múltiplos diagnósticos dentro do Manual (APA, 2023).
Bierderman não é o único, todavia. Cerca de 70% da força tarefa que compôs o texto final do DSM-5, publicado em inglês em 2012, relatou ter relações com a indústria farmacêutica, o que fomenta e aprofunda as questões de quais são os interesses - e a quem interessa - das formulações diagnósticas que compõem o maior Manual de diagnósticos de psiquiatria do mundo (Cosgrove; Krimsky, 2012).
2 TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA E O LOBBY SOCIAL
De modo diverso à questão da bipolaridade, a sintomatologia do autismo, e as variedades que compõem seu espectro, é considerada bem definida e consensual entre clínicos e pesquisadores (Augustyn; Von Hahn, 2023). Os pacientes costumam ter prejuízos funcionais em dois campos de atividades sociais, quais sejam: a comunicação e a interação, associados a padrões repetitivos e restritivos de comportamento, interesses ou atividades (APA, 2023). E, a despeito de ser tratado como um transtorno e não uma doença, visto como ainda não haver uma etiologia claramente definida para o seu desenvolvimento, crê-se que sua patogênese seja genética e altere o desenvolvimento do cérebro e a conectividade neural desde muito cedo na vida (Augustyn, 2023). Tratamentos no geral costumam ser compostos por equipes multidisciplinares, sendo o farmacológico destinado muitas vezes para o controle comportamental para que a equipe e o paciente possam trabalhar em conjunto em prol da aquisição de novas habilidades ou, pelo menos, as manter (Weissman, 2023). Contudo, devido às diferenças em idade do diagnóstico, além do grau de comprometimento, outros transtornos concomitantes, situações familiar e social, nível de recursos da comunidade, assistência à saúde, oportunidades de emprego condizentes às suas potencialidades e disponibilidade de convivência inclusiva em sociedade na vida adulta, o desfecho da qualidade de vida de tais pacientes varia enormemente (IACAPAP, 2014).
E é por esse motivo que há uma grande pressão social, principalmente pelos membros dos grupos organizados de defesa dos direitos dos autistas, compostos em sua maioria por pais destes pacientes, que políticas públicas se adequem e os protejam tanto da discriminação, quanto da negligência do cuidado (Cooper, 2014). A questão, é claro, envolve dinheiro. Se, por exemplo, de uma edição para a outra, o DSM modificar os critérios para inclusão e, por conseguinte, de exclusão, daqueles que podem ser diagnosticados como autistas, uma grande parcela dos serviços ofertados pelo governo pode ser perdida, alterando o curso de vida dos pacientes. Diagnóstico que, outra vez, mas por vias diversas, influencia o prognóstico.
E o diagnóstico, para além da etiologia, é fruto, com razão, de polêmicas. No DSM-IV existia uma entidade classificatória denominada Síndrome (ou Transtorno) de Asperger, que se distinguia, em termos gerais, do autismo por ser um quadro de menor gravidade, em alguns casos de alta performance intelectual e de não apresentar dificuldades para aquisição de linguagem, o que ocorria tardiamente nos autistas, quando ocorria (APA, 1994). Com a definição das forças-tarefa para a criação do DSM-5 e a ideia de mudança da nomenclatura para um transtorno em espectro (TEA), ou seja, um agrupamento de diagnósticos em uma única nomeação dimensional, questões quanto à possibilidade de a Síndrome de Asperger vir a compor o TEA se tornaram alvo de grande discussão, midiática e científica.
Um dos pontos discutidos foi o fato de que haveria um viés de memória dos pais durante o evento do diagnóstico, e que, como este tende a ocorrer tardiamente, não seria possível confirmar quando se sucedeu a aquisição da linguagem (Happe, 2011), impossibilitando a diferenciação entre um e outro. Em outro estudo, crianças teriam recebido ora diagnóstico de Asperger, ora autismo, a depender da clínica em qual foram inicialmente atendidos (Lord et al., 2012). Ademais, utilizando esboços preliminares dos critérios diagnósticos para o DSM-5 para o TEA, muitos dos que eram diagnosticados no DSM-IV deixariam de sê-lo (Mattila et al., 2011). Em contrapartida, um estudo muito citado pelos membros dos comitês do DSM indicava que a maioria das crianças com diagnóstico estabelecido no DSM-IV viria a mantê-lo no DSM-5 (Huerta et al., 2011). Não havia, portanto, congruência dialógica nem mesmo dentro do próprio corpo técnico-científico.
Tal discrepância transpareceu em falas de David Kupfer, chefe da força-tarefa do DSM-5, nas quais defendia um estreitamento dos critérios para o novo diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista na nova edição do Manual, uma vez que estava aumentando consideravelmente a quantidade de crianças diagnosticadas (Verhoeff, 2010). E, de forma mais explícita, que o comitê deveria fazer o necessário para garantir que nem todos que tivessem a chance de ser diagnosticados com autismo ou Síndrome de Asperger o fossem com TEA, posto que mais que diagnosticar, nesse caso, envolveria políticas públicas mais robustas, mais profissionais nas equipes e, claro, dinheiro estatal (Harmon, 2012).
O resultado de tais divergências nada relacionadas ao transtorno em si culminou na união dos grupos em luta pelos direitos de ambos os tipos de pacientes, em um movimento popular massivo organizado contra a APA, para que fossem incluídos critérios amplos que garantissem a continuidade do cuidado (Cooper, 2014). Do jogo de forças surgiram dois efeitos. Primeiro, a retirada da linguagem como fator de decisão para gerar um diagnóstico em TEA, dada a complicada avaliação após a sua aquisição. E, em segundo, uma nota que consta da página 51 do DSM-5 (2014) e que permanece no DSM-5-TR (2023), que diz que “indivíduos com um diagnóstico do DSM-IV bem estabelecido de transtorno autista, [e] transtorno de Asperger [...] devem receber o diagnóstico de TEA”. A APA cedeu, demonstrando que a definição classificatória pouco tem a ver com critérios sólidos científicos, mas com aspectos externos como forças políticas, gastos públicos e pressões sociais, como o já ocorrido com a inclusão do Transtorno de Estresse Pós-Traumático e a exclusão da homossexualidade do rol de transtornos do manual no passado (Insel, 2022; Cooper, 2014; Dunker e Kyrillos Neto, 2010; Uhr, 2014).
O que importa, então, para a realização do diagnóstico, esconde-se por detrás das páginas do DSM e preso à história que o antecede.
3 TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E/OU HIPERATIVIDADE E MUITOS OUTROS “OU”
O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) é um binômio categorial composto por critérios que devem ser analisados separadamente, apesar de comporem o mesmo diagnóstico. De um lado se encontram comportamentos típicos de uma inquietude comportamental, impaciência na realização de atividades e uma impulsividade causando prejuízos em desempenho escolar e relações interpessoais. De outro lado, marcante desatenção, com reduzida capacidade de foco para conseguir finalizar tarefas cotidianas, associadas a uma lentidão do processamento cognitivo e de resposta (Krull e Chan, 2023). Cada parte do binômio do TDAH apresenta nove itens de avaliação, sendo necessários seis, ou de um, ou de outro, para que o diagnóstico seja estabelecido (ou predominantemente hiperativo ou predominantemente desatento ou combinado) (APA, 2023). Além disso, é necessário estarem presentes os critérios antes dos 12 anos de idade, independentemente de quantos, em um período superior a seis meses de persistência de tais comportamentos disfuncionais em pelo menos mais de um ambiente de convivência do avaliado (APA, 2023).
Não obstante os primeiros registros sobre o transtorno datarem do filósofo grego Teofrasto no século IV antes de Cristo (IACAPAP, 2020), Keith Conners é considerado como um dos pioneiros dos estudos sobre tratamento e identificação dos pacientes com quadros de TDAH ao desenvolver um instrumento em 1969 composto por 37 itens, o qual levava seu nome (Carey, 2017). Inicialmente criado para mensurar o impacto do tratamento com psicoestimulantes (já existia na época a Ritalina®) em crianças hiperativas, logo este se disseminou entre os médicos como método diagnóstico psicométrico para o transtorno em si, que era conhecido então como Reação Hipercinética da Infância no DSM-II (APA, 1968). Somente em 1980, no DSM-III, foi estabelecido o papel dúplice hiperatividade/desatenção, modificando sua nomenclatura para Transtorno de Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade (APA, 1980) e a inclusão da possibilidade de o diagnóstico ser realizado igualmente em adultos. Essa última inclusão se justificou por estudos longitudinais para reconhecimento do quadro persistindo entre adultos (Gittleman et al., 1985; Hetchman e Weiss, 1986).
Independentemente do quadro focado de modo aparente apenas em interesses científicos, em meados da década de 1980 já ocorria o aumento preocupante do consumo no mundo de metilfenidato, princípio ativo da Ritalina®, em especial nos Estados Unidos. Tal consumo explodiria a partir de 1990, saindo de 600 mil diagnósticos de TDAH para 3 milhões e meio (Schwarz, 2023). Um dos principais motivos, para além da maior margem de critérios para realizar o diagnóstico, tanto com o aumento de itens a considerar, quanto do acréscimo da desatenção como outro “ou” que compõe o transtorno, combinado ao agora possível diagnosticar adultos, foi a incursão do mercado como motor de estimulação para aquisição dos psicotrópicos como método eficaz para controle dos sintomas. É importante frisar que nos EUA há uma política branda quanto à propaganda de medicamentos diretamente para a população, o que faz com que indivíduos comprem a imagem comercial de tratamentos para diagnósticos para o que não são treinados a realizar. A pressão para prescrição não ocorre, assim, de indústria para psiquiatra unicamente, mas de indústria para população, e de população para psiquiatras - ou clínicos não especialistas, o que é mais grave. Foi assim com o Prozac®, princípio ativo da fluoxetina. Foi assim com a Ritalina® (Shorter, 2021).
Para piorar, Conners foi o chefe responsável por uma pesquisa financiada pelo governo americano para avaliação de tratamentos possíveis para o TDAH, iniciando em 1994, com primeiros resultados disponibilizados em 1999 - a pesquisa seria conduzida até 2014. Ao comparar psicoestimulantes com terapia comportamental, psicoestimulantes demonstraram maior eficácia. Contudo, após dois anos, os resultados iniciais foram reavaliados e já não se encontrava diferença significativa entre ambos. Conners, em 2001, sugeriu que a melhor resposta terapêutica seria a combinação das medidas (Carey, 2017).
Como consequência, e pelo atraso ou pela saída mais cômoda, aliada aos interesses mercadológicos, a chamada epidemia de TDAH estava instalada. Em um dos relatórios da CDC (Center of Disease Control and Prevention) de 2014 estimou-se que cerca de 5% das crianças entre dois e 17 anos estavam usando psicoestimulantes como metilfenidato para Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. No período de uma década, apenas nos Estados Unidos, o mercado de psicoestimulantes passou de 1,7 bilhão de dólares para US$9 bilhões, quintuplicando as vendas (SCHWARZ, 2023).
Porém, subjacente às polêmicas levantadas e continuamente debatidas no campo científico, bem como no jornalístico sobre os excessos da mercantilização do TDAH (Carey, 2017; Schwarz, 2023; Resende, Pontes e Calazans, 2015; Insel, 2022; Shorter, 2021; Frances, 2016), existe o problema de não se saber com exatidão qual a prevalência de pessoas acometidas pelo transtorno. Em múltiplas fontes, os dados são contraditórios e discrepantes. Considerando somente crianças, em fontes confiáveis que usam metanálises para divulgação de resultados (o maior nível de evidência científica nos moldes em que se faz ciência na atualidade), os números vão de 3 a 5% no Consenso Europeu (Kooij et al., 2019), 5 a 7% no IACAPAP (2020) e inacreditáveis 2 a 18% no UpToDate, a maior fonte atualizada de dados médicos do mundo (Krull e Chan, 2023). Em se tratando de DSM, em 2014 (DSM-5), o diagnóstico estava em valores por volta de 5% em crianças e, na revisão de 2023, 7,2%, um aumento que seria relevante caso a próxima frase do texto não invalidasse qualquer cálculo, posto que “a prevalência entre países apresenta uma grande variação, de 0,1 a 10,2% das crianças e adolescentes” (p. 71). Culpabilizam-se a heterogeneidade dos estudos e as populações estudadas. Culpabilizam-se métodos de coleta dos dados e a influência da mídia. No fim das contas, desconhece-se o real tamanho do problema, ainda que o consumo de medicamentos continue a crescer.
E se não bastasse a série de impasses de toda ordem acima citados que perfaz o TDAH, no campo estrito da ciência, se é que existe tal purismo, além do desconhecimento quanto à prevalência, não há concordância quanto aos achados de imagem que corroborariam o distúrbio como parte do grupo de condições denominados Transtornos do Neurodesenvolvimento - como TEA e Transtorno do Desenvolvimento Intelectual. Estudos do início do século XXI encontraram redução volumétrica dos cérebros dos afetados em cerca de 3 a 5% (Castellanos et al., 2002) com relação a controles (indivíduos sem o transtorno). Ademais, metanálises utilizando ressonância magnética funcional relataram múltiplas disfunções em vários domínios de redes neurais envolvidos em atividades cognitivas de alto-nível (Yeo et al., 2011; Cortese et al., 2012). Tais dados são coadunados por Oscar Bukstein, professor de psiquiatria de Harvard, responsável por escrever o texto do UpToDate relacionado aos aspectos patogênicos do TDAH (2023), passando a impressão de uma aparente convergência de dados que indicariam um caminho para a origem do transtorno, talvez doença.
Contudo, mais uma vez, os dados são conflituosos. Se do DSM-5 (2014) consta a informação sobre essa redução volumétrica e as supracitadas disfunções de condução elétrica cerebrais, o DSM-5-TR diz que “apesar de alguns estudos de neuroimagem mostrarem diferenças em crianças com TDAH se comparadas com a amostra de controle, uma metanálise envolvendo todos os estudos de neuroimagem demonstrou que não há diferenças entre os indivíduos com TDAH e a amostra de controle” (2023, p. 72). O grifo é do próprio Manual. Não há, porém, menção a qual estudo o texto se refere.
Como conciliar tais informações se não há, cronologicamente falando, coerência interna científica? É preciso lembrar que, mesmo que o DSM-5-TR tenha sido publicado em 2022 nos EUA, seus dados antecedem em meses a anos sua publicação. Bukstein, em seu artigo do UpToDate revisado em junho de 2023, decidiu ignorar essa crucial informação do maior manual diagnóstico em psiquiatria, levando em consideração apenas os dados que compunham evidências que lhes eram mais convenientes ou relevantes?
E, mais importante: de que transtorno está se falando exatamente?
CONCLUSÃO: A CRISE DA “DOENÇA” MENTAL
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais é fruto e espelho histórico da cultura americana. Contraditório, com sobreposição de sintomas inespecíficos entre supostos diagnósticos, é hoje uma ferramenta pragmatista, estruturalista, com tendências hegemônicas e desprovido da intenção de uma busca nosológica, ou seja, causal dos transtornos, apesar de estar paradoxalmente aderido ao discurso da medicina baseada em evidências, que tem como um de seus princípios a busca por verdades científicas (Passarinho, 2020).
A fragilidade diagnóstica levou à ascensão de políticas públicas para os transtornos, associadas à emergência da indústria farmacêutica, determinando relevância social indiscutível, como quem é considerado sadio e quem é doente (apesar de não se ter certezas no manual de que sejam realmente doenças), qual tratamento é oferecido, quem paga pelos tratamentos, quem recebe benefícios por invalidez, quem tem direito a serviços de saúde mental, tratamentos diferenciados em escola, profissão, quem pode ou não ser preso caso cometa um crime, entre outras vicissitudes (Frances, 2016). Com o aumento de diagnósticos, hoje na casa das 500 categorias e mais de mil páginas do DSM-5-TR (APA, 2023), gerou-se todo um aparato mercadológico para que indivíduos passassem a tomar medicações psicotrópicas, tornando-se a maior fonte de arrecadação da indústria farmacêutica. E, nada obstante o avanço científico, com a introdução de novas medicações, quase nenhuma delas é mais eficaz que as criadas há três décadas, ainda que muitas das mais recentes tenham efeitos colaterais mais toleráveis (Stahl, 2022).
Com efeito, para um país que se propõe a ser o maior referencial em definição de “doença” mental, seus dados epidemiológicos mostram o fracasso de sua tentativa de controlá-la. Insel traz em seu livro Healing Our Path From Mental Illness to Mental Health (2022) informações contundentes acerca do problema. Há três vezes mais suicídios que homicídios em seu território, ultrapassando em mortalidade câncer de próstata, câncer de mama e AIDS. Apesar de o suicídio ter reduzido em 38% no mundo de 1990 até hoje, no território em questão houve aumento de 30%. Junto a isso, os gastos com tratamento, internamento e cuidados crônicos em saúde mental ultrapassou valores de 200 bilhões de dólares por ano - já em 2013, tornando-se o tipo de condição médica mais dispendioso, necessitando algum tipo de assistência no país, que tem hoje o sistema de saúde mais caro do mundo (Insel, 2022). No relatório anual de 2020 do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) dos trinta e oito países mais ricos do mundo, os EUA se encontram em trigésimo segundo quanto ao bem-estar mental geral infantil e em último com relação a políticas sociais voltadas para esse grupo vulnerável. Mais sintomático é o fato de que, das 193 nações que compõem a Organização das Nações Unidas (ONU), os EUA são o único país que não ratificou o texto de mais de 30 anos do tratado da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, o mais importante documento sobre direitos humanos da História (Mehta, 2015). O problema, entretanto, não é só lá. É do mundo, visto como o DSM é utilizado indiscriminadamente e, a indústria, globalmente disseminada.
Uma das conclusões a que se pode chegar é que, mesmo com o aumento do consumo de medicações, com o consequente aumento de diagnósticos e categorias para transtornos psiquiátricos, com melhora mas não necessariamente cura desses nomeados transtornos (Cipriani et al., 2018; Galletly et al., 2016), o que a classificação proposta pelo DSM trouxe foi resultados não esperados para além do consumo e da arrecadação da indústria farmacêutica (Shorter, 2021). Não se vive melhor. Pior, fala-se hoje das epidemias geradas justamente pela própria existência, reprodução e complacência frente ao uso do DSM como única fonte de diagnóstico para classificação do sofrimento humano, com ainda mais insidiosas consequências a longo prazo para o abuso das medicações associadas a esses transtornos. Epidemias essas preocupantes, principalmente quando se trata de crianças e adolescentes (Resende, Pontes e Calazans, 2015).
Podem-se providenciar melhores cuidados e tratamentos, mas se os determinantes sociais e de estilo de vida, singularidades e condições de potencialidades estiverem sendo limados por interesses alheios à saúde, não há diagnóstico possível que reduza prejuízos, disfunções e sofrimentos. As desigualdades em saúde surgem, antes de categorizações e cientificidades, das inequidades na sociedade que as perpetua (Marmot, 2016).














