Introdução
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno de neurodesenvolvimento, caracterizado pelos deficits nas áreas de comunicação e interação social (Critério A) e pelos padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades (Critério B). Estes são os critérios gerais previstos no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-V-TR) e cada qual se desdobra em outros traços. Este primeiro pode envolver deficits na reciprocidade socioemocional, na comunicação não verbal e nas relações interpessoais. Este segundo abarca as estereotipias, fala estereotipada, rituais, necessidade de rotina, rigidez cognitiva, hiperfocos e hipo ou hiperssensibilidades a estímulos sensoriais (Associação Americana de Psiquiatra, 2023).
Como transtorno de neurodesenvolvimento, o TEA está presente desde os primeiros anos de vida dos indivíduos (Critério C), havendo a possibilidade de seus traços serem percebidos quando as exigências sociais aumentam e podendo ser mascarados ao longo da vida da pessoa autista, como é o caso dos indivíduos de diagnóstico tardio, foco desta pesquisa. São percebidos prejuízos sociais, profissionais ou em outras áreas de vida (Critério D), devendo ser feito também o diagnóstico diferencial de outros transtornos ou comorbidades (Critério E) (Associação Americana de Psiquiatria, 2023).
O seu diagnóstico é clínico e pode ocorrer em qualquer fase da vida, obedecendo alguns cuidados quanto aos instrumentos utilizados e profissionais. No caso de adultos, pode envolver o psicólogo clínico durante a realização da psicoterapia, o psicólogo ou neuropsicólogo para a avaliação psicológica ou neuropsicológica, o psiquiatra ou neurologista para o processo medicamentoso e oficialização do diagnóstico. Embora todos os profissionais citados possam emitir laudos (no caso da psicoterapia é apenas possível o relatório), o laudo do médico psiquiatra ou neurologista faz-se necessário e tem maior aceitação para o acesso a serviços como o cadastro da Carteira de Identificação da Pessoa Autista (CIP TEA), para a documentação em instituições de ensino superior, para processos judiciais, para concursos, processos seletivos, entre outros direitos (Freitas, D’Avis & Batista, 2022; Scalcon, Cordeiro & Marcolino-Galli, 2024).
Com frequência, o psiquiatra ou o neurologista costuma solicitar a avaliação psicológica ou neuropsicológica para confirmação do diagnóstico, antes de emitir seu laudo. O trabalho conjunto ocorre, pois existem funções privativas de cada profissional. Entre médicos, é a prescrição de psicofármacos, por exemplo. Entre psicólogos ou neuropsicólogos com formação em Psicologia é a aplicação de testes psicológicos, que podem ser projetivos ou psicométricos, respeitando-se as evidências disponíveis e normativas da categoria (Loureiro, 2024; Conselho Federal de Psicologia, 2022).
É neste sentido que o acesso à informação se torna imprescindível, uma vez que, dependendo do nível de escolaridade e das condições socioeconómicas, culturais e regionais, este diagnóstico pode levar anos ou décadas para ser iniciado e concluído. Destaca-se a subnotificação de casos de TEA, bem como as dificuldades de acesso a profissionais qualificados, a desinformação generalizada e o capacitismo que esta pessoa terá que enfrentar. São poucos os casos em que um diagnóstico tardio será validado, aceito e respeitado, conforme percepções da própria comunidade autista (Scalcon et al., 2024; Loureiro, 2024).
Existe ainda a barreira social ao se falar sobre este tema, conforme será possível ver nos relatos, uma vez que a sociedade não costuma incentivar a busca pelo diagnóstico e muito menos sua aceitação. Desta forma, serão abordados diversas nuances deste assunto, de maneira a talvez incentivar outras pessoas da comunidade a se expressarem, a contarem suas histórias e a comunidade científica a buscar atualizar seus conhecimentos, sendo, portanto, um tema relevante social e cientificamente, cujo interesse partiu do encontro entre duas mulheres autistas, em fases diferentes da vida, com um elemento em comum: o diagnóstico tardio e suas implicações para a saúde mental das mesmas.
Assim, foi proposto como problema de pesquisa: Como o diagnóstico tardio influencia a saúde mental de adultos autistas? E como questões norteadoras: Como ocorre o processo de diagnóstico tardio e como a percepção do autista interfere sobre ele? Como os traços interferem na vida de pessoas autistas? Como o apoio entre pessoas da comunidade autista pode influenciar na saúde mental dos mesmos? Qual a importância do suporte familiar durante o processo de descoberta e auto entendimento do diagnóstico tardio?
A partir disto, foram elaborados os seguintes objetivos, geral e específicos, respectivamente: Analisar a influência do diagnóstico tardio na saúde mental de pessoas autistas, a partir de seus relatos de experiências; identificar as dificuldades do processo de diagnóstico tardio e da percepção da própria pessoa sobre seus sintomas, relatar como os traços interferem na vida de pessoas autistas e verificar como o apoio entre pessoas da comunidade autista pode influenciar na saúde mental dos mesmos.
1 Materiais e métodos
Foi realizada uma pesquisa de relato de experiência em primeira pessoa, em que os autores podem ser participantes do estudo, demonstrando pessoalidade e comprometimento (Kurtz, 2019). Estes relatos, de abordagem qualitativa, contaram com análises de textos produzidos pelas próprias autoras e mensagens trocadas, acerca do seu processo de diagnóstico tardio e de aceitação. Enquanto pesquisadoras, também inseridas como discentes em um programa de mestrado, compreendem a relevância de pesquisas deste tipo para o estudo em profundidade de um determinado tema.
Desta forma, assim como Mühlen (2024), relataram a experiência e as nuances do processo de diagnóstico tardio, em suas interseções com a saúde mental. Assim como esta autora, que também é uma mulher autista de diagnóstico tardio, reconhecem o tabu de falar sobre neurodiversidade no ambiente acadêmico e em outros ambientes sociais.
2 Resultados e discussão
2.1 História de vida de Maisa
Nasci no dia 26 de janeiro de 1998, de parto normal, realizado apenas pela enfermeira no hospital de Santa Luzia - MA, filha de uma mãe professora e um pai caminhoneiro, que tinha ensino superior completo e ensino fundamental incompleto, respectivamente. Quanto ao meu histórico e desenvolvimento, comecei a falar e andar antes dos 2 anos de idade, realizei tratamento para ceratocone, miopia e astigmatismo a partir dos 3 anos, faço uso de óculos desde os 5 anos, tenho baixa visão no olho esquerdo, intolerância a lactose leve, histórico de internações breves para tratamento de sintomas menstruais e Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP). Possuo histórico familiar de diabetes, hipertensão e epilepsia/convulsão, alcoolismo e depressão.
Realizei ludoterapia com psicóloga clínica aos 7 anos, aconselhamento com a psicóloga escolar da minha Instituição de Ensino Superior (IES) durante a graduação (entre 2016 e 2018), psicoterapia desde 2018 com diversos estagiários de uma clínica escola de Psicologia e depois com profissionais formados. Realizei avaliação com três psiquiatras, sendo o primeiro em 2018 devido a sintomas ansiosos, insônia e ideação suicida, por encaminhamento do estagiário de Psicologia, momento em que foi receitado pelo psiquiatra Escitalopram® e Alprazolam®. As medicações foram interrompidas após 4 dias por efeitos colaterais intensos como vômito e sono excessivo, tendo perdido 4 kg na primeira semana.
Os sintomas, que vinham sendo conduzidos somente como Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), atingiram seu pico em 2018, forçando-me a diversas adaptações de vida, como construção de rotina, alimentação e redução da jornada de atividades acadêmicas e profissionais. O medo de tentar novamente a medicação foi um grande fator para o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento compensatórias. Sobre isto, a pesquisa de Ernsen, Pereira e Sabec-Pereira (2023) aponta o TAG como uma comorbidade frequente em pessoas autistas, com uma prevalência de 28% em seu estudo.
Concluí a graduação em Psicologia em dezembro de 2019, iniciei a especialização em Neuropsicopedagogia e Novas Aprendizagens em 2020, ao mesmo tempo que iniciei minha vida profissional como psicóloga clínica em um projeto social, em trabalho remoto. Mudei-me definitivamente para Teresina - PI, cidade onde havia estudado e resido atualmente, em 2021, começando o meu relacionamento amoroso atual. Iniciei em duas clínicas presencialmente, conciliando os atendimentos com aulas particulares de Metodologia Científica de forma remota. Concluí a segunda especialização, em Análise do Comportamento Aplicado (ABA), e entrei no Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) em 2023, através da ampla concorrência e cota como parda na cidade Parnaíba - PI.
Os outros dois psiquiatras foram em 2023, sendo o terceiro mantido até o momento presente, por demanda espontânea. Primeiro foi levantada a hipótese de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), em seguida de TEA e TDAH pelo terceiro psiquiatra. Fui encaminhada para avaliação psicológica com psicóloga clínica, confirmando no processo a presença do TEA e TDAH. Corroborando esta descoberta, Ernsen et al. (2023) indicam uma prevalência de 62% para TDAH como comorbidade e Torina et al. (2024) evidenciam que até 50% dos pacientes autistas podem conviver com múltiplos transtornos psiquiátricos.
Os sintomas de TAG já estavam sendo trabalhados na psicoterapia e estavam em remissão parcial, não apresentando dados significativos na avaliação, o que é uma realidade possível também apontada na pesquisa de Fornazari, Cavicchioli, Silva e Bosquetti (2019), que estudaram a redução dos sintomas ansiosos através da psicoterapia e intervenção medicamentosa. Este período coincidiu com a minha transição profissional para o trabalho remoto, em todas as minhas áreas de hiperfocos, possibilitando uma redução significativa dos sintomas, prejuízos e melhoria da qualidade de vida, sendo a minha adaptação mais importante.
Para o momento da avaliação psicológica, escrevi um texto de cinco páginas com meu histórico e todos os sintomas e comportamentos percebidos até então. Notei, relendo esse texto, que já tinha consciência dos hiperfocos (tantos os breves do TDAH, quanto os longos do TEA), da desatenção, da necessidade de rotina, da rigidez cognitiva, dos rituais, dos deficits para manter e compreender relacionamentos, da seletividade alimentar, da hipersensibilidade auditiva, da hipossensibilidade a dor, do pensamento acelerado, das estereotipias, da ecolalia e da procrastinação, percebendo indícios ainda exploratórios dos sintomas presentes DSM-V-TR para TEA e TDAH (Associação Americana de Psiquiatria, 2023). Esta lista, contudo, só foi construída após apontamento do terceiro psiquiatra para estas hipóteses, o que não significa sua não existência e sim a dificuldade de percepção. Sobre meus sentimentos e emoções naquele momento, identifiquei naquele texto o seguinte trecho:
- Devido à exaustão na faculdade por excesso de atividades, tive ideação em 2018;
- Estou aprendendo a lidar com a impulsividade de querer fazer várias coisas ao mesmo tempo;
- Fico ansiosa a ponto de chorar e ter crise de ansiedade, mas não deixo de fazer minhas atividades por conta disso;
- Não sinto saudade de quase nada, então esqueço com facilidade de ligar para minha família e amigos, chego a passar meses sem lembrar e raramente mantenho contato com pessoas de períodos anteriores da minha vida (ex: não falo mais com amigos de infância e nem do ensino médio sem nenhum motivo aparente);
- Se pego ranço de alguém, até consigo interagir com a pessoa, mas não fico confortável;
- Me sinto inadequada às vezes, quando penso muito sobre a forma como vivo.
Neste momento, já percebia diversos prejuízos acumulados ao longo de anos, de aspectos que eu ainda estava tentando identificar. A ansiedade, por exemplo, eram muitas vezes crises sensoriais ou devido à mudança de rotina, que eu ainda não sabia nomear e também apontadas no livro de Armenara, Stringhini e Kunkel (2022). Depois de concluído o meu diagnóstico tardio aos 25 anos de idade, escrevi um texto não publicado intitulado “Descobrindo-se autista e TDAH”, para marcar o meu processo de descoberta. Nele, identifiquei o que me levou a procurar o psiquiatra novamente sem um encaminhamento e com os sintomas de TAG em remissão, assim como minha luta com o diagnóstico tardio. Escrevi em um trecho:
O diagnóstico veio em um momento que, após reflexões com minha psicóloga, continuava me inquietando. Como uma pessoa que gosta de encontrar padrões, aquilo (a minha vida) não estava fazendo muito sentido. Tomei a iniciativa de marcar o psiquiatra, o segundo da minha vida, pedi para ela um relatório e fui.
A percepção da diferença entre o sujeito autista e as outras pessoas neurotípicas também foi um aspecto apontado na pesquisa de Santos (2022). A busca por respostas é uma característica muito comum entre pessoas neurodivergentes, quando um diagnóstico inicial não abarca todos os sintomas apresentados ou está equivocado. Em mulheres, o diagnóstico acaba ocorrendo mais tardiamente do que em homens, assim como há maior chance de erros de diagnóstico, como aponta a pesquisa de Soares et al. (2023). Sobre isso, também houve o empecilho do meu próprio processo de invalidação:
Minha suspeita até então estava focada no TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), que eu não sabia se iria ser confirmado. Apesar de ser profissional de saúde, ainda estava na fase de me identificar, mas tentar justificar cada comportamento.
“Eu sou desatenta.”
“Ah, mas eu também faço várias coisas ao mesmo tempo, como poderia ter atenção sobre uma só? Minha vida sempre foi um caos, nunca estive fazendo apenas uma coisa por vez.”
“Me sinto muito agitada e inquieta.”
“Mas a psicóloga não concorda comigo, já que no relatório ela negou.”
“Mas eu não fico agitada na frente das pessoas. Eu sento, eu pareço estar ouvindo, eu não balanço muito meu corpo. Enquanto isso minha mente está a um milhão por hora e quando estou sozinha, passo horas mexendo em objetos na minha escrivaninha enquanto trabalho. Brinco com pincéis, cabos de aparelhos, alicates, garrafas de água e tudo que estiver ao meu alcance. Mantenho tudo isso fora do campo visual do meu interlocutor durante videochamadas. Se estiver em ligação, eu me pego balançando e sorrindo.”
Esse é um exemplo do tipo de conflito interno que me pego às vezes tendo e naquela época eu tinha muito.
A invalidação, externa e interna, é um processo que dificulta a busca de diagnóstico, bem como de tratamento entre pessoas da comunidade, sendo inclusive uma queixa muito comum. Sobre isto, o diagnóstico tardio passa por desafios de reconhecimento e aceitação dos traços, conforme indica a pesquisa de Lima et al. (2024). Eu era uma adulta buscando diagnóstico, em um intenso processo de mascaramento, que não conseguia reconhecer todos os meus traços ainda, conforme ficou claro neste outro trecho:
Em 2023, passei pelo segundo psiquiatra, tivemos uma consulta, ele também concordou com a possibilidade do TDAH, mas me pediu mais consultas para poder me dar um laudo. Eu concordei e na vez seguinte em que fui, com minhas anotações para compartilhar, descobri na hora do atendimento que ele havia saído da clínica e eu seria atendida por outro psiquiatra. Um baque horrível no momento, frustrante, irritante, mas eu entrei na sala do meu terceiro psiquiatra.
Ele me perguntou, lá pelas tantas: “Você tem alguma sensibilidade a roupas ou comidas?”.
Eu pensei: “Esse doido tá me perguntando se eu sou autista?”. Porque eu saquei na hora, eu conhecia os critérios diagnósticos, eu tinha lido os manuais. Mas conhecer e reconhecer em mim eram coisas diferentes.
[...]
Resultado: saí da consulta com um encaminhamento para avaliação psicológica para autismo e TDAH.
Este baque inicial de ter não uma, mas duas hipóteses, foi sentido desde o primeiro dia, conforme registrei:
Passei o caminho de volta para casa inteiro em silêncio, dúvida e luto.
Foram noites em que eu identificava traços, justificativa os mesmos e esse looping continuou.
Notei também como o próprio processo de avaliação psicológica era afetado pela minha literalidade, rigidez cognitiva e desatenção. Mesmo como profissional, eu não trabalhava com avaliação na época, então não estava com os manuais dos testes e nem poderia ler eles para não atrapalhar. Este processo, dependendo da forma como for conduzido, pode gerar ainda mais dúvidas:
Eu marquei a avaliação psicológica e comecei a saga dos testes psicológicos.
Lembro-me de passar um teste inteiro perguntando o significado das afirmativas que eu precisava concordar ou discordar.
“Gostar pressupõe fazer?”
“Isso precisa ser sempre?”
E assim por diante.
Lembro-me de sair exausta da bateria de testes de atenção, porque eu cismei que tinha que dar o meu melhor para saber até onde eu poderia ir. Eu literalmente cantava as figuras que estava procurando nas folhas dos testes: “lado preto, lado preto, lado preto... cima preto, cima preto, cima preto... bolinha preta, bolinha preta, bolinha preta...”. Em justificativa: haviam diversas figuras parecidas e eu tinha que circular uma figura específica, então eu cantava a característica que a diferenciava das demais para lembrar o que eu estava procurando.
Eu perguntei 3 vezes a data para a psicóloga que estava me avaliando no mesmo dia, para só depois perceber que estava escrito em um quadro na minha frente. A ironia é que me perco no que estou fazendo, em datas, às vezes em dias das semanas. Então ou eu anoto ou eu repito até terminar o que estou fazendo. E isso é muito cansativo.
Até para escrever aqui eu me foco em aspectos diferentes: em falas, na narrativa, em detalhes específicos e assim por diante. Espero que seja paciente comigo e entenda que é dessa forma caótica que meus pensamentos se organizam.
Registro aqui uma crítica ao processo de elaboração dos testes psicológicos que, embora possuam manuais para os profissionais explicando o sentido de cada item do teste, não demonstram a mesma clareza nas folhas de aplicação, gerando uma intensa necessidade de interagir para indivíduos que já possuem déficits na interação e comunicação social. Dito isto, mesmo após fechado o diagnóstico, o luto e processo de aceitação podem ser extremamentes delicados:
Finalizada a avaliação psicológica, recebi meu laudo da psicóloga com 2 diagnósticos: Transtorno do Espectro Autista nível 1 de suporte e TDAH predominantemente desatenta. E de novo, senti que não era hiperativa o suficiente ou que não conseguia passar isso para as pessoas, mas tudo bem. Depois de alguns meses, descobri que isso se chama masking, que é quando tentamos mascarar traços ou comportamentos que as outras pessoas julgam estranhos. Imitamos, sem realmente entender o sentido de agir daquela maneira, apenas para que o julgamento cesse. E para quem passou anos lidando com bullying (no caso eu), minha cota de julgamento tinha colaborado fortemente para mascarar meus sintomas.
Voltei no terceiro psiquiatra, ele me deu o laudo dele (que teria maior utilidade pra mim), me ofereceu Ritalina (para a desatenção) e Donaren (para minha insônia), mas eu recusei. A minha experiência com remédios junto ao primeiro psiquiatra tinha sido horrível, talvez porque ele achasse que eu tinha TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada) e os efeitos colaterais das medicações me fizeram perder 4 kg em uma semana e dormir por 3 dias quase sem interrupção. Falei desde o início que eu só queria respostas, não estava aberta a medicações. Eu preferia reorganizar a minha vida inteira do que ter que passar por efeitos colaterais novamente.
Saí daquela consulta meio anestesiada, em silêncio o trajeto inteiro, com 2 laudos e muitas perguntas, que eu mesma precisaria pesquisar e responder, já que aparentemente os profissionais que me acompanhavam não eram muito tidos a isso. Não acho que sejam profissionais ruins, nem antiéticos. Eles apenas não pensam como eu.
A falta de suporte profissional especializado na psicoterapia também dificultou este processo, aspecto este relatado nas pesquisas de Duarte, Ribeiro e Nazaré (2024) e Rosa (2024). Embora houvessem evoluções em outras demandas, não abarca a complexidade da situação, como descrevi:
Minha psicóloga é de uma abordagem chamada Gestalt, que é não diretiva. A abordagem dela não enfoca muito a ideia de transtornos. Então ela me deixa falar livremente, faz algumas perguntas ou pontua sobre o que estou falando. Eu diria que ela foca mais no meu autoconhecimento do que em um transtorno. Ela me perguntou, quando compartilhei minhas suspeitas, o que iria mudar.
Eu disse: eu vi um vídeo que me define bem. Nele dizia “vai mudar tudo e nada ao mesmo tempo, nada porque o passado não será mudado e tudo porque você terá nomes para coisas que sempre sentiu e nomes são poder”.
[...]
Com o diagnóstico eu tinha nomes, mas ainda faltava muito.
Foi neste ponto que eu comecei uma intensa jornada em busca de respostas e aprendi muito mais assistindo vídeos no Tik Tok™ de adultos autistas do que com todos os profissionais que já passei e as especializações, sendo as redes sociais um local de disseminação de informações de produtores de conteúdo autistas como mostrado na pesquisa de Gonçalves e Moreira (2022). Iniciei o uso de Atentah e Donaren, sem efeitos colaterais dessa vez, mantendo o terceiro psiquiatra. Refiz a minha vida pessoal e profissional, fazendo minhas próprias adaptações de vida e me abrindo a sensibilidade do processo de ser uma adulta autista de diagnóstico tardio. Somente em 2024 encontrei uma psicóloga, que também tem TDAH e com quem estou atualmente, que conseguiu se abrir a essa experiência junto comigo, tendo então o apoio profissional que faltava.
Desta forma, todo este processo me proporcionou a sensibilidade necessária para ser uma profissional melhor e que buscou se capacitar para ajudar outros adultos autistas a obterem seu diagnóstico tardio, primeiramente como psicóloga em processos de psicoterapia, posteriormente se abrindo à avaliação psicológica e à docência em uma especialização em Análise do Comportamento Aplicada.
2.2 O encontro e as descobertas dentro da comunidade
Conhecemo-nos em março de 2023, no contexto do mestrado. Ambas pareciam muito diferentes à primeira vista, mas a convivência por uma semana de cada mês, durante as quais tínhamos aulas, começou a despertar comentários e depois piadas sobre Charlene ser neurodivergente. Durante 1 ano, foi sugerido que Charlene buscasse a avaliação psicológica e psiquiátrica com outros profissionais, pois seus traços autistas eram muito perceptíveis. Ela demonstrava muita rigidez cognitiva sobre buscar um diagnóstico, crises explosivas e de esgotamento, necessidade de rotina e dificuldade de se ajustar às atividades nas aulas enquanto elas aconteciam. O mestrado nos exigiu mudar de rotina diversas vezes, ter 30 minutos para ler um texto, montar apresentações dinâmicas e muita socialização.
Andamos em ritmos diferentes por um bom tempo, com uma começando seu processo de aceitação e a outra em constante negação. Havia diferenças entre os níveis de compreensão de cada uma acerca do TEA, de acesso a profissionais, de recursos financeiros, de abertura ao novo, de nível de suporte, entre outras questões. Uma pessoa autista com TDAH também possui diferenças de funcionamento em comparação com indivíduos autistas sem TDAH, inclusive sobre o planejamento, flexibilidade e controle inibitório, como mostrado na pesquisa de Fabre e Lúcio (2021).
Apesar disso, começou-se um processo de vínculo inicial, para que, em 2024, Charlene também iniciasse o seu processo diagnóstico, notando-se a influência da convivência entre pessoas da comunidade para a própria descoberta de novos integrantes, a partir das redes solidárias, como mencionado por Caron Neto e Nascimento (2022). Foram diversas conversas para esclarecer dúvidas, para explicar termos e sintomas, para auxiliar na busca de profissionais, enquanto o mestrado consumia muito da rotina de Charlene. Entre estes debates, estavam questionamentos sobre o que era um traço e como ele poderia aparecer na prática, não somente na teoria, o que proporcionou descobertas individuais e coletivas.
Os vídeos de outras pessoas da comunidade auxiliaram bastante a firmar um consenso sobre a comunidade autista baseado na repetição dos relatos e não somente em uma opinião individual, uma vez que levantavam novas pautas, mostravam experiências compartilhadas e satisfaziam as lacunas teóricas acerca do tema, havendo uma intensa busca como indica Gonçalves e Moreira (2022).
Por outro lado, é importante esclarecer que, como Maisa era uma psicóloga que trabalhava apenas com o serviço de psicoterapia na época e devido à impossibilidade de atender Charlene nesta modalidade, foram buscados outros profissionais da região da mesma e em projetos sociais online. Esgotadas as possibilidades, ambas debateram os limites éticos e técnicos de realizar a avaliação psicológica em conjunto, para poder facilitar o diagnóstico com o psiquiatra (que daria acesso aos direitos que Charlene estava precisando) e posterior encaminhamento para a psicoterapia com outro profissional.
Feito este acordo, começou-se o estudo e preparação para colocar em prática esta ideia, com a preocupação de não extrapolar limites, sendo bem sucedido, pois já não estavam mais tendo aulas presenciais juntas e os contatos esporádicos eram para falar sobre pesquisa e TEA. O processo de avaliação de Charlene seguiu todas as etapas previstas pelo Conselho Federal de Psicologia (2022), desde a anamnese, até a escolha dos testes, entrevistas após cada dia de testes, devolutiva e entrega de laudo.
Para isto, foram utilizados testes psicométricos e escalas livres psicométricas, com vistas a reduzir erros de interpretação e de correção, uma vez que a correção era automatizada e realizada pelas editoras dos testes. Encerrada a avaliação psicológica de Charlene, foi possível iniciar uma amizade, que resultou no desejo de compartilhar suas histórias no presente artigo.
Como disse Charlene em setembro, após encerrado seu processo de avaliação, em uma das centenas de conversas por mensagem que tiveram: “Quero levar esperança para as pessoas que assim como eu não entendem o mundo e queriam ir embora dele”. Outro trecho, de uma conversa no mesmo mês, retrata bem o sentimento entre duas pessoas da comunidade:
Maisa: Pessoas neurotípicas não veem pela nossa ótica, mesmo sendo acolhedoras. É como se elas ficassem na superficialidade e olhassem pelos critérios diagnósticos, não pela experiência da pessoa. Se a gente diz que desregula, se a gente diz que traz sofrimento, que não suporta, é verdade, não exagero.
Charlene: Exatamente. Mas percebo que elas não entendem a dimensão de nossa fala. Meu Deus, não é um sofrimento normal, é um sofrimento de morte que eu sinto.
Sendo o TEA um transtorno de neurodesenvolvimento, ele afeta toda a vida de uma pessoa, desde seus primeiros anos até a sua morte. Costumamos dizer que não existe um “antes” do transtorno, como em alguns outros, logo, seus traços também aparecem nos testes de personalidade, como no caso de ambas as autoras e também conforme apontado por Silva (2019). Toda experiência, seja ela sensorial, comunicativa ou decisória, em todos os campos de nossas vidas, passam pelos sintomas, pela nossa compreensão de mundo e é isso que queremos dizer quando falamos que neurotípicos não entendem ou até mesmo minimizam o nosso sofrimento mental.
Este ponto impacta diretamente na procura por diagnóstico e tratamento, uma vez que mesmo profissionais de saúde carecem de um conhecimento aprofundado a respeito do TEA em suas mais diversas faixas etárias e níveis de suporte, assim como também estão sujeitos a serem capacitistas, a cometerem erros de diagnóstico, entre outras situações que acabam desencorajando pessoas da comunidade e suas famílias. Embora a ideia não seja fazer uma separação, já existe dentro da comunidade a iniciativa de buscar profissionais que também são neurodivergentes, devido às especificidades do próprio TEA e ao medo de não serem compreendidos (Lima et al., 2024; Loureiro, 2024; Rosa, 2024; Santos, 2022; Soares et al., 2023; Torina et al., 2024).
2.3 História de vida de Charlene
A década de 1980 é marcada, no Brasil, por alguns acontecimentos históricos, dentre eles, a redemocratização do país, após um processo de interrupção do regime político advindo com o golpe empresarial militar de 1964, o retorno às eleições diretas (1989) e a promulgação da nova Constituição Federal (CF/1988), que assegura a liberdade democrática e o direito de ir e vir a todos os cidadãos. É também a década em que nasci. Com tantos fatos históricos atravessando minha estreia nesse mundo, só poderia tornar-me historiadora, identidade perceptível em minha escrita. Tudo remete à história e neste momento literalmente, recupero minhas memórias desde à infância à fase adulta para falar da maior descoberta sobre mim, o diagnóstico do TEA.
Filha de pais com pouca instrução, com poucas possibilidades de acesso à escola, minha mãe, natural do Piauí, apenas conseguiu concluir a 3a série do antigo primário (atual Ensino Fundamental), deixou de estudar por dificuldades financeiras. Meu pai, natural do estado do Ceará, pertencente a uma família do interior, enfrentou grandes dificuldades na infância, tendo que trabalhar desde cedo e sendo aposentado por invalidez ainda jovem. Ambos tiveram dificuldades para prosseguirem nos estudos e as circunstâncias os impeliram a outros rumos que não fosse o ambiente escolar.
Sou a terceira filha de um total de quatro filhos. Fui muito esperada porque até então meus pais tinham dois meninos e minha mãe sonhava com a chegada de uma menina. Porém, ela adoeceu e teve problemas na gravidez, precisando recorrer aos serviços de saúde várias vezes durante a gestação. Aos três meses apresentei choro compulsivo, o que levou minha mãe a buscar ajuda médica. Fui hospitalizada por alguns dias e não conseguindo chegar a um diagnóstico, o médico concedeu alta. Minha mãe trouxe-me para casa, pois não havia mais o que fazer. Como que por um milagre, ela conta que fiquei curada.
Minha vida escolar iniciou-se aos quatro anos de idade. Tenho memórias desse tempo. Lembro de ser uma criança muito quieta, assustada e calada. Tinha dificuldades para interagir com as colegas de sala e me sentia diferente delas, mas não sabia explicar o motivo, apenas me via como alguém estranha. Observava muito tudo ao meu redor, o comportamento das outras crianças, a forma como brincavam, sorriam, pareciam tão confortáveis e eu me sentia indiferente àquilo tudo. Tive dificuldades para adaptar-me à escola, pois sempre foi muito difícil para mim, deixar o ambiente familiar, onde eu me sentia segura. Fora dele eu me sentia vulnerável, perdida.
Sobre os episódios que marcaram minha trajetória escolar, destaco dois. O primeiro quando tinha quatro anos. Lembro que cheguei à escola e tinha outra professora. Aquela mudança provocou em mim uma reação de desespero e me recusei a ficar na escola. Esse acontecimento foi tão forte que lembro ainda hoje a sensação provocada. No segundo episódio eu já tinha onze anos, cursava a 5a série. Era outra escola, outros colegas. Tinha apenas uma amiga na sala, não conseguia interagir na hora do recreio e preferia ficar na sala, era uma forma de evitar contato com outras pessoas no pátio. Tentei algumas vezes incluir-me entre as outras meninas, mas minha ingenuidade foi vista como oportunidade por crianças mais astutas que eu e acabei me tornando alvo, apanhava e era ridicularizada por uma delas e todos riam. Eu me sentia um ser pequeno, uma criatura bizarra, estranha e não conseguia reagir. Aquilo me marcou profundamente. Eu acreditava que minha estranheza era característica da infância e pensava:
Quando crescer vou ser igual às outras pessoas, não serei mais essa criança insegura, medrosa, tímida, vou ter amigos e ser normal. Fui crescendo, cheguei à adolescência e percebi que os sintomas além de não desaparecerem, intensificaram-se. Terminei o Ensino Médio e em seguida iniciei minha vida profissional, precisava ajudar com as despesas de casa, pois o único que possuía renda na família era meu pai. A experiência do primeiro emprego foi desastrosa, chorava sozinha sem entender por que aquilo era tão difícil para mim, pois eu estava apenas fazendo o que todos fazem na fase adulta. Eu trabalhava como vendedora numa loja, o que não poderia ser mais desesperador para quem tem dificuldades na comunicação. Não conseguia falar, passava o dia em silêncio e passei a sofrer assédio por parte do patrão, que muitas vezes gritava comigo. Eu queria chorar, desaparecer, mas por não saber o motivo de minha dificuldade, não conseguia reagir. Aquela situação durou quatro meses, quando fui despedida e esse foi, até então, o dia mais feliz da minha vida, enfim a liberdade.
Conforme evidenciado no trecho acima, eu carregava traços clássicos do autismo, manifestados através da dificuldade em me comunicar e do sofrimento por não entender o caos em que me encontrava desde que me iniciei neste mundo. Fracassada a primeira tentativa de inserção no mercado de trabalho, decidi que o melhor para mim seria prestar vestibular para Pedagogia, pois poderia trabalhar com crianças. Quando terminei o curso, fui aprovada em um concurso público para exercer a função de professora da rede pública de ensino, cargo que ocupo até os dias atuais.
Tudo o que eu havia planejado deu certo, minha estratégia de sobrevivência obteve êxito: consegui passar no vestibular para Pedagogia, ser aprovada em concurso público para atuar como professora do público infantil e consegui por anos manter essa rotina. Eu não sabia, mas inconscientemente busquei aquilo que chamo de adaptação. Mesmo assim, não era uma adaptação para acolher as minhas necessidades como autista, mas sim para sobreviver e cujas circunstâncias diárias acabaram me levando mais fundo à exaustão em prol de parecer uma pessoa neurotípica. Durante a busca por informação sobre o espectro, Maisa me explicou que esconder os traços do autismo é uma característica de adultos sem diagnósticos, mas que o termo usado por profissionais e pela comunidade é “mascarar”, como também indicado nas pesquisas de Duarte et al. (2024) e Rosa (2024). Fiz mascaramento a vida inteira sem ter consciência disso, apenas tentava sobreviver e fingir estar adaptada a situações desconfortáveis.
O mestrado sempre fez parte dos meus planos, porém, eu não me via saindo de minha cidade, convivendo longe de casa e tendo interações com outras pessoas, isso fez com que eu adiasse meu sonho por anos. Em 2019 tive conhecimento a respeito da existência do ProfEPT. É um mestrado ofertado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI), localizado próximo a minha casa. Era tudo que eu precisava, pois não iria precisar me deslocar para outro estado ou cidade, nem compartilhar moradia ou dormitório, pois tenho dificuldades para dormir em ambientes diferentes daquele que estou acostumada. Devido à pandemia do Covid-19, o Exame Nacional de Acesso (ENA) foi adiado e somente em 2023 foi possível sua realização.
Fui aprovada e iniciei o curso em março de 2023. Durante as aulas, metodologias de trabalho em grupo foram realizadas. Percebi que não conseguia realizar as atividades nesse formato, ficava confusa, as informações pareciam chegar ao meu cérebro de maneira caótica, eu sentia que a mudança provocada pela interação em grupo me desestabilizava, ou usando um termo comum na comunidade, me desregulava. Chegava em casa exausta, com a sensação de que minhas energias haviam sido minadas e algumas vezes precisei faltar no dia seguinte devido à sobrecarga sensorial, aspecto este também indicado por Rosa (2024). Quando tinha comemoração na sala, por ocasião do aniversário de alguém da turma, eu dava um jeito de não estar presente para não ter que interagir.
Os sintomas estavam aumentando e cheguei ao final do ano esgotada, sem ânimo, acordava sem motivação, não queria levantar da cama, pois me recusava a enfrentar qualquer forma mínima de interação. Em janeiro de 2024 senti uma tristeza profunda acompanhada de vários questionamentos, dentre eles:
Por que estou assim, afinal estava realizando o sonho de uma vida inteira? Como faço para entender o que está acontecendo comigo? Segui lutando contra esses sintomas até que um dia, através de uma conversa pelo whatsapp, relatei à Maisa, mestranda e colega de sala, que já havia me orientado a buscar uma avaliação para diagnóstico do TEA, pois percebia traços em mim, que não estava bem, falei tudo que estava acontecendo e ela percebeu a urgência de meu diagnóstico para que eu pudesse entender o motivo do meu sofrimento, buscar terapia e adaptações para minha possível condição. Nunca pensei que tudo aquilo que estava vivendo era o limite enquanto pessoa neurodivergente vivendo como uma pessoa neurotípica. Meus pais não tiveram acesso à informação sobre o espectro, cresci acreditando ser uma criança neurotípica, então era impossível associar meus sintomas ao TEA.
Conforme consta no trecho acima, foi por influência de Maisa que busquei o diagnóstico, mesmo sem acreditar ser uma pessoa autista. Era um ato de desespero, minha vida estava ameaçada pelo sofrimento, em pouco tempo se tornaria insuportável a manutenção da vida, sentia-me excluída, estranha, rejeitada, incapaz, inútil, deslocada e tudo isso me levou à ideação suicida, que é um sintoma muito presente em pessoas autistas, conforme identificado por Nalin, Matos, Vieira e Orsolin (2022). Tenho rigidez cognitiva e isso dificultou a busca por profissionais com os quais eu me identificasse. Precisava confiar no profissional para acreditar que ele poderia me ajudar. Diante dessa dificuldade e percebendo meu desespero, Maisa sugeriu fazer minha avaliação e àquela altura eu não tinha mais como negar que precisava.
Fiz vários testes que envolveram minha atenção, percepção e comunicação social, cognição, teste de personalidade, dentre outros, pois as etapas que antecedem o diagnóstico são rigorosas e o autismo só é confirmado se os sintomas não puderem ser melhor explicados por outros transtornos. Ao final dos testes, outros transtornos foram descartados e o laudo confirmou que estou no espectro, dentro do nível 2 de suporte, com comorbidade em TAG e Transtorno Depressivo Maior (TDM). Busquei um psiquiatra para validação do laudo. Devido à minha dificuldade com situações presenciais, a consulta foi realizada através da plataforma Google Meet™ e, mesmo não me sentindo confortável em chamada de vídeo, foi menos exaustivo para mim.
Durante a consulta, o psiquiatra fez uma série de perguntas e enquanto respondia, fazia um resgate das memórias de sofrimento de toda a minha vida. Falei de minha dificuldade para dormir, o incômodo com barulho, da necessidade de rotina diária e de planejamento, da importância que dou à aparência dos alimentos, da insegurança diante de situações novas, da minha dificuldade em fazer amizades e dos meus ensaios que antecedem as conversas. Ele ouviu, analisou tudo e marcou meu retorno após um mês.
Importante ressaltar que eu já havia passado por outro psiquiatra e que logo na primeira consulta afirmou que eu não era autista. A falta de acolhimento pode levar o adulto autista sem diagnóstico ao desespero, como também indicado por Nalin et al. (2022). Não ouvir o relato da paciente e de imediato descartar qualquer transtorno sem realizar nenhuma investigação, coloca em xeque a capacidade deste profissional. E isso remete a outra questão também importante, que é considerar autista apenas quem apresenta traços visíveis, ignorando o quadro mental (não visível da paciente). Posteriormente, descobri que esse primeiro psiquiatra foi capacitista, isto é, preconceituoso para com pessoas com deficiência e baseava-se apenas em estereótipos de autistas nível 3 de suporte, que ele chamou de “autistas de verdade”. Infelizmente, experiências de capacitismo são muito presentes na vida de adultos autistas, como mostrado por Liroa, Benitez, Branco e Guerreiro (2024).
O segundo psiquiatra confirmou o laudo psicológico e emitiu meu laudo médico onde consta diagnóstico compatível com F84.0 (CID-10) / 6A02.0 (CID-11), indicando TEA com ausência de deficiência intelectual e pouco ou nenhum prejuízo na fala, junto com os códigos para TAG e TDM grave sem sintomas psicóticos. A confirmação veio acompanhada de emoção, da possibilidade de autoconhecimento, pois agora eu sabia o motivo de uma vida inteira de sofrimento. Foi libertador, palavra com que me identifico e também indicada pelos participantes da pesquisa de Liroa et al. (2024). Os próximos dias foram de um estado de plenitude, eu não precisava mais ser tão severa comigo, julgar meu comportamento, me culpar por não conseguir interagir porque eu tinha um motivo para ser daquele jeito. Precisava contar a minha família, mas não me sentia preparada, não sabia como eles iriam reagir, precisava de um tempo para processar essa descoberta.
Após três meses, confidenciei à minha família que sou autista. Decidi escrever um texto e postar no grupo da família, esclarecendo algumas questões do espectro para que entendessem meu comportamento ao longo da minha vida, texto este que Maisa batizou de Manifesto Autista, em referência ao meu hiperfoco em marxismo. Um dos trechos diz o seguinte:
Busquei avaliação porque estava tendo muita dificuldade de socializar, não conseguia sair de casa. No mestrado, uma das mestrandas percebeu que eu era autista e me orientou a buscar avaliação. Ela é autista e viu traços em mim. Eu sentava todo dia na mesma cadeira e não conseguia fazer trabalhos em grupo porque a mudança de rotina confundia meu cérebro.
Nesse trecho, explico o motivo que me levou a buscar o diagnóstico, pois enfrentei todas as minhas dificuldades sozinha, minha família não sabia o que se passava comigo, sempre escondi os sintomas e chorava sozinha. Tenho dificuldades de expressar sentimentos e isso é muito doloroso, porque não recebi suporte algum. Tentei mostrar também em meu texto destinado à minha família que o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento e que, portanto, acompanha o indivíduo desde a gestação até o fim da vida e exemplifiquei algumas falas capacitistas, conforme trecho abaixo:
Uma coisa que todo mundo pergunta quando descobre que alguém é autista: Mas só agora você sentiu isso? A resposta é não. Desde que me entendo por gente tenho todas essas dificuldades, só que não relatava nada porque eu mesma não sabia o que era, só me sentia diferente, mas não fazia ideia que era autista. Outra coisa que as pessoas falam e isso é crime, é capacitismo: Ah, mas agora todo mundo é autista, autismo tá na moda. Não, ninguém escolhe ser autista porque ninguém escolhe viver assim com tantas dificuldades e só quem é autista sabe o que falo, o que acontece é que agora as pessoas tem acesso ao diagnóstico e à informação, na nossa infância a gente sequer sabia o que era autismo, isso faz com que muitas autistas cheguem na fase adulta e cometam suicídio, porque eles não se encaixam em nada, não entendem o mundo a sua volta e não suportam viver com tanta dificuldade. Não é fácil ser autista, digo isso com propriedade. Temos interesses diferentes das outras pessoas, temos nossa própria forma de ver o mundo e a maioria dos assuntos que as outras pessoas se interessam, não é interessante para nós.
Minha intenção com esse trecho foi incentivar minha família a entender meu comportamento, meu jeito próprio de ser e sentir o mundo. Preciso de entendimento, de compreensão, principalmente de preparo para os momentos em que preciso de suporte. O mundo ainda é muito excludente, desde que me descobri autista e sei as dificuldades de viver no espectro sem diagnóstico, preocupei-me em ser instrumento de apoio para outros adultos no espectro, porque vejo que a sociedade ainda vê o autismo limitado à infância, mas crianças crescem e o autismo não desaparece. Noto que esta exclusão social também é apontada por Duarte et al. (2024). Assim, precisamos construir uma sociedade que enxergue o autismo infantil, que também é negligenciado pelo Estado, ao não construir escolas inclusivas, mas que também entenda que a infância é apenas uma das fases da vida humana e que o espectro o acompanha em todas as demais. Abaixo, segue outro trecho com informações esclarecedoras a respeito do espectro:
Esse é um pequeno resumo do mundo autista, que é muito complexo, o autismo me acompanha 24h: na comida, que tem que ser bem quente e com a aparência que meu cérebro definiu; nos estudos, que tenho um horário rígido a ser seguido; no trabalho, no mestrado, na vida pessoal, no ambiente social, em tudo. Então meu cérebro não descansa, tudo meu é planejado e isso gera cansaço e esgotamento. Isso não significa que não dá pra viver bem sendo autista, dá sim, só que precisamos de acompanhamento psicológico e psiquiátrico pra nos ajudar a entender nosso cérebro porque tem coisa que nem eu entendo, e precisamos também de compreensão e suporte da família, porque quando o autista não tem isso, ele é julgado pelos seus atos e tido como alguém que inventa coisas, quando na verdade é o cérebro que funciona assim. Por isso estou fazendo esse resumo. Estou tomando medicação e tá me ajudando, eu sentia muita dor de cabeça, tava pensando em desistir do mestrado porque não conseguia estudar, mas agora estou bem graças a ajuda dos profissionais e o laudo que me ajudou a me entender.
No trecho acima, tentei dimensionar as dificuldades do espectro para que minha família entenda minhas escolhas, minhas especificidades e fiz questão de esclarecer a importância do suporte profissional e familiar para que autistas tenham qualidade de vida. São necessários muitos ajustes, mas não é impossível viver bem, porém, sozinho não conseguimos. Precisamos do apoio da família, da sociedade e do Estado. Este último, no sentido de assegurar que os direitos da pessoa autista sejam assegurados na prática, mediante políticas públicas, uma necessidade também indicada por Duarte et al. (2024), Lima et al. (2024) e Nalin et al. (2022).
Finalizo mencionando a importância do diagnóstico tardio para adultos no espectro. No meu caso, em específico, passei a entender minhas limitações e elaborar estratégias que mantenham meu equilíbrio para que eu saiba lidar com situações desafiadoras, estou em processo de autoconhecimento, mas já percebo o quanto o diagnóstico foi importante para minha saúde mental, que estava muito fragilizada. Preciso de adaptações, minha depressão está controlada com medicação, mas percebo que qualquer mudança de rotina pode desencadear uma crise, então, é fundamental que meus direitos como pessoa autista sejam assegurados para que eu consiga me manter neste mundo.
Considerações finais
Ao final deste relato, foi possível observar que o diagnóstico tardio influenciou positivamente a vida de duas pessoas autistas, no sentido de favorecer o autoconhecimento, acolhimento, melhoria da autopercepção, busca por ajuda profissional, adaptações de vida e redução dos prejuízos inerentes aos sintomas e suas comorbidades. As dificuldades percebidas, por sua vez, estavam principalmente centradas em encontrar profissionais capacitados para o diagnóstico tardio e no processo de mascaramento dos sintomas em adultos. Também notou-se a presença de ideação suicida no histórico de ambos os relatos, anteriores ao diagnóstico tardio, o que aponta para o risco de vida em pessoas não diagnosticadas.
Os traços, que acompanham toda a história de vida de pessoas da comunidade, podem prejudicar diversas áreas, tais como a vida pessoal, profissional e acadêmica, bem como as relações interpessoais. Por fim, o apoio dentro da comunidade, pode influenciar na busca por ajuda profissional, no processo de percepção dos sintomas e na construção de vínculos, tão difíceis para pessoas com déficits na comunicação e interação social. E, assim, como ato de resistência, espera-se que estes relatos possam auxiliar profissionais e estudiosos a entenderem em profundidade uma amostra do universo autista, bem como incentivar outras pessoas autistas a se perceberem.