Desde que o fenômeno da violência contra a mulher passou a ter maior visibilidade, em especial, a partir da década de 70, com os movimentos feministas (Ávila et al., 2020), diversos estudos vêm sendo publicados com o fim de fundamentar teórico-clinicamente os serviços prestados às vítimas de violência nos equipamentos de saúde pública, sejam eles da atenção básica, da atenção hospitalar, ou ainda da atenção especializada (Schein et al., 2019). Afinados a esse grupo de pesquisadores, no presente trabalho, objetivamos tecer reflexões clínico-teóricas a partir de nossa experiência no Núcleo de Assistência Psicanalítica para Pessoas Expostas à Violência (NAPEV), fundado em 2021. A partir dele, têm sido ofertados, em contexto ambulatorial, atendimentos grupais a mulheres e a adolescentes, aos moldes de uma terapia abreviada de oito encontros, que são conduzidos em coterapia por profissionais da área da saúde, psicanaliticamente orientados (Luiz et al., 2021).
No presente trabalho, contudo, mais do que focalizarmos no enquadre grupal de mulheres ou no grupo de adolescentes, que, desde a implementação do ambulatório, vêm se revelando profícuos no cuidado às vítimas de violência, pretendemos nos centrar nas crianças, filhas dessas mulheres e/ou irmãs dessas adolescentes, que, na condição de acompanhantes, eventualmente são trazidas ao ambulatório, para aguardarem na sala de espera. Trata-se de crianças que revelam a necessidade de que o espaço da sala de espera do ambulatório seja a elas adaptado, aos moldes de uma ambiência.
Usamos o termo ambiência em alusão à constituição de dispositivos de acolhimento nos “espaços informais” das instituições, tais como a sala de espera, por exemplo, nos quais não há a priori atividades programadas. Trata-se, pois, como bem pontuam Michels et al. (2022), de transformar espaços coletivos em settings, nos quais práticas de cuidado podem ser empreendidas, ainda que tradicionalmente associemos o cuidado ao enquadre clínico individual.
Observamos que, à luz da política de humanização do SUS, são vários os equipamentos de saúde pública que têm se preocupado com a ambiência, sustentando uma acepção ampliada de cuidado que ultrapassa as tecnologias médicas e as questões relativas à interação propriamente dita entre usuários, trabalhadores e gestores (Ribeiro et al., 2014; Ronchi & Avellar, 2015). Algo que nos chama a atenção, contudo, a partir dos parcos estudos nacionais dedicados à ambiência com crianças, é que, em geral, ela tem se limitado à criação de ambientes lúdicos, com a mera disponibilização de brinquedos, revistas e televisão, nas salas de espera das instituições (Ronchi & Avellar, 2015).
Se, por um lado, consideramos valiosas tais práticas de ambiência dedicadas às crianças, uma vez que se atentam às suas necessidades de brincar e de estar com outras pessoas coetâneas, por outro lado, entendemos que a ambiência com crianças deveria ultrapassar a mera adoção de estratégias limitadas à distração infantil (Ribeiro et al., 2014), acepção esta que não raro leva os profissionais da saúde a conceberem erroneamente que recreacionistas e palhaços é que deveriam se ocupar dessa ambiência, ao invés de si mesmos (Ribeiro et al., 2017). Assim, apesar de a sala de espera ser a priori um campo demasiado desestruturado para que se torne propriamente terapêutico (Shiki et al., 2018), entendemos, afinados à obra do pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott, que a ambiência da sala de espera pode vir a se constituir um ambiente suficientemente bom1 para as crianças que ali se encontram. De maneira análoga a Winnicott (1962/ 2022), que defendia a importância de um psicanalista apropriado a cada ocasião, seria possível nos perguntar se a Psicanálise, tão associada ao consultório privado tradicional, não poderia contribuir de maneira relevante à saúde coletiva, descortinando possibilidades de intervenção terapêutica em dispositivos “desperdiçados”, tais como a sala de espera.
Deste modo, objetivamos tecer reflexões clínico-teóricas, à luz do referencial psicanalítico, de um grupo de crianças que foi acompanhado na sala de espera, no contexto da ambiência de um ambulatório dedicado a mulheres e adolescentes expostos à violência.
Sobre a experiência vivida
O grupo de crianças foi composto pelos filhos/irmãos das mulheres e adolescentes que eram acompanhadas em terapia breve e grupal no ambulatório NAPEV. Participaram, ao longo dos oito encontros (em consonância à quantidade de sessões do enquadre clínico dedicado às mulheres e às adolescentes), 10 crianças, cujas idades variaram entre três e nove anos. Tal participação deu-se de modo flutuante, como é de costume entre os grupos de sala de espera (Shiki et al., 2018).
Os encontros ocorreram entre junho e agosto de 2022, no espaço da sala de espera do ambulatório, e duravam em torno de 90 minutos. Em todos os encontros eram disponibilizados brinquedos, sendo que a apresentação destes se deu de maneira gradual, a fim de que o encontro entre as crianças e os diferentes estímulos se desse de maneira cuidadosa (Sei & Pereira, 2005).
Vale ressaltar que, apesar dessa estruturação na apresentação dos objetos lúdicos, as brincadeiras não eram planejadas previamente, não apenas devido à compreensão de que elas acabam se organizando espontaneamente, mesmo diante do planejamento prévio (Machado & Truccolo, 2023), mas principalmente em função do método psicanalítico. Deste modo, privilegiando a técnica da associação livre de ideias, que tanto versa sobre a não diretividade, as crianças não eram dirigidas em relação ao brincar. Por outro lado, reconhecemos que os brinquedos que lhe eram apresentados acabavam inevitavelmente convocando-as para um ou outro brincar, motivo pelo qual entendemos que operamos segundo o paradigma do jogo do rabisco. A partir do jogo do rabisco, Winnicott (1968/1994) fazia um rabisco aleatório numa folha de papel e, em seguida, convidava o seu paciente a fazer um novo rabisco, para que seguissem alternadamente com essa brincadeira mútua. Nesse sentido, compreendemos que, ao selecionarmos determinados objetos lúdicos para cada encontro, fazíamos algo análogo ao gesto inicial do analista, no jogo do rabisco, aguardando pelo gesto espontâneo das crianças a cada encontro (Ronchi & Avellar, 2013).
O grupo de sala de espera foi conduzido por uma psicóloga psicanalista, uma terapeuta ocupacional residente e três estudantes graduandos (da Biologia, da Enfermagem e da Medicina), que, a seu turno, eram coordenados por uma docente médica e psicanalista. Optamos por essa condução interdisciplinar devido à compreensão de que, por meio dessa troca de saberes, seria possível adotarmos um olhar não fragmentado sobre o fenômeno (Pereira et al., 2019).
Ainda com o intuito de valorizarmos a diversidade de habilidades, após a realização de cada encontro, esse grupo responsável pela ambiência conversava entre si sobre como cada um havia experienciado aquele encontro, numa integração das impressões contratransferenciais vividas. Esporadicamente, também eram realizadas conversas com as duas duplas de terapeutas (por sua vez, também de diferentes áreas da saúde) que conduziam os grupos de mulheres e de adolescentes, a fim de igualmente promover a integração entre aquilo que era trazido em cada um dos três grupos, culminando numa compreensão integrada dos grupos familiares que foram coletivamente cuidados, mesmo que em dispositivos separados.
A seguir, apresentamos uma narrativa síntese dos oito encontros grupais realizados no contexto da ambiência da sala de espera com as crianças:
Entre mãozinhas e aviões de papel
Primeiro dia. Assim como as mulheres e as adolescentes participantes pela primeira vez daquele espaço estavam provavelmente se sentindo ansiosas, mediante o desconhecido que se apresentava, nós, que nos ocuparíamos das crianças na sala de espera, também estávamos. À medida que as mulheres e adolescentes foram chegando para os seus respectivos grupos, deparamo-nos com sete crianças, pertencentes a três grupos familiares. Tentando fazer com que se vinculassem umas às outras, convidamos cada uma a pegar uma folha de papel da sua cor preferida e a escrever o seu nome. Logo, um menino de três anos nos mostrou que aquela ideia não daria certo, já que ele não sabia escrever ainda. Mas, lançando mão de sua criatividade, o próprio menino resolveu o “problema”, fazendo um contorno de sua mão na folha de papel, na tentativa de deixar a sua marca. Como numa espécie de contágio, espontaneamente, todas as outras crianças começaram a fazer o mesmo, contornando suas mãos nas folhas de papel.
Nesse dia, chamou-nos a atenção em especial uma criança de nove anos, que ficava o tempo todo auxiliando o seu irmão caçula e nos auxiliando com a arrumação da sala. Num determinado momento, em que estávamos conversando sobre os nossos animais prediletos, ela espontaneamente fez o desenho de um animal, que era metade gato (animal preferido de um de nós) e metade coelho (animal preferido dela). Se, por um lado, era reconfortante ter uma criança tão prestativa e cuidadosa, em meio a tantas outras que demandavam atenção, por outro, pairava a dúvida: por que será que ela não se colocava como alguém a ser cuidada? No final desse primeiro encontro, várias crianças tiveram dificuldade de ir embora com suas respectivas mães e irmãs. Numa tentativa de atenuar o mal-estar frente à despedida, ficamos dando “tchau” com as mãozinhas de papel que por acaso haviam sido feitas no início daquele encontro (e que, de certo modo, haviam inaugurado um senso de identidade grupal).
No segundo encontro, compareceram seis crianças. Tão logo elas foram chegando na sala de espera, acompanhadas das mulheres e das adolescentes, já começaram a fazer espontaneamente desenhos do contorno de suas mãos nas folhas de papel colorido, como se quisessem retomar a atividade feita na semana anterior, criando um senso de continuidade entre os encontros. Mas, logo, as crianças se interessaram pelos brinquedos novos que havíamos levado, vale dizer, a casinha de boneca e o carrinho de ambulância. Enquanto brincávamos, aproveitamos para conversar sobre ambos os temas que os brinquedos evocavam: sobre com quem elas moravam e sobre o motivo de suas mães e irmãs estarem sendo acompanhadas no ambulatório. Chamou-nos a atenção que todas elas pareciam entender que suas mães estavam tristes e precisando frequentar o grupo para se sentirem melhores. Uma das crianças chegou inclusive a dizer que sabia que a sua mãe estava sofrendo por causa das brigas com o seu pai.
Ao darmos abertura para que as crianças falassem sobre suas famílias e sobre o ambulatório, rapidamente, começaram a falar de suas dores. Algumas delas contaram que haviam perdido familiares, durante a pandemia da COVID-19, querendo inclusive encenar, com o carrinho de ambulância, como seria se os mesmos tivessem sido socorridos a tempo. Uma menina de seis anos chegou a nos dizer, nessa hora, que, embora chamasse o seu padrasto de “pai”, o seu pai biológico havia falecido recentemente. Quando perguntamos se ele havia falecido também em função da pandemia, seu meio-irmão respondeu por ela, falando que o pai dela havia falecido num acidente grave de trânsito. Nessa hora, vendo que a menina havia ficado visivelmente abalada (chegando inclusive a rasgar o desenho que ela estava fazendo, de tanta força que ela começou a colocar no manuseio da canetinha), perguntamos se ela sabia dessa informação. Ela respondeu que não. Sentou-se no colo de um de nós e ali ficou silenciosamente durante o resto do encontro. Antes que o encontro fosse encerrado, conversamos com ela, dizendo-lhe que era importante que sua mãe, ao sair do grupo de mulheres, fosse informada de que ela ficara sabendo desse “segredo familiar”. Mas, quando lhe dissemos que desse modo a sua mãe poderia cuidar do sofrimento dela, a menina nos pediu para que nada disséssemos, falando que a sua mãe não aguentaria. De fato, quando as mulheres saíram do grupo e retornaram para a sala de espera, vimos sua mãe dizendo às outras mulheres, na frente das crianças que ali se encontravam, que estava às vias de se matar, tamanho o sofrimento que a atravessava. Parecia, afinal, que o grupo de crianças estava anunciando que demandava um espaço de acolhimento que talvez não experienciassem em seus lares.
Ao longo dos próximos encontros, algumas crianças que haviam comparecido aos dois primeiros não mais retornaram, enquanto outras, até então conhecidas no ambulatório apenas pelos relatos de suas mães, no grupo de mulheres, foram concretamente trazidas até nós. Destacamos aqui um desses encontros, que, apesar de ter contado com a presença de apenas duas crianças, ambas com cinco anos e pertencentes a grupos familiares distintos, foi especialmente marcante. Nesse encontro, embora essas crianças estivessem sentadas lado a lado, cada uma ficou brincando com um objeto distinto: enquanto a menina brincava com a casinha, o menino brincava com os animaizinhos de plástico. Mas, mais do que brincarem com objetos lúdicos distintos, nos chamou a atenção que, enquanto a menina, no brincar da casinha, havia disposto bonecos que representavam todas as pessoas de sua família, nos diferentes cômodos da casa, esquecendo, no entanto, de atribuir uma boneca que representasse a si mesma, o menino brincava que os animais estavam sendo devorados por um monstro laranja (um boneco de pelúcia laranja). Não tardou para que as duas brincadeiras se cruzassem, com o menino simulando que o monstro laranja estava destruindo também a casinha e os bonecos que ali se encontravam.
Em meio ao choro da menina ao ver a sua morada destruída, ficamos pensando: como cuidar da agressividade do menino sem assumirmos uma postura que pudesse ser sentida como violenta por ele? Começamos a nomear que, talvez, o monstro laranja estivesse com fome e precisasse ser nutrido com a comida que havia na casinha. Dissemos também que, talvez, o monstro laranja estivesse sofrendo por não ter uma família, assim como as pessoas e os animais que ele havia atacado, motivo pelo qual ele talvez precisasse de carinho. Nossas intervenções, contudo, pareciam ser em vão. O monstro laranja seguia destruindo todo o cenário lúdico, por vezes batendo de verdade em nós, a ponto de termos que pedir para que ele parasse, pois estava nos machucando efetivamente.
Quando já estávamos contratransferencialmente exaustos desse encontro, já tendo nos rodiziado espontaneamente para tentar, cada um a seu modo, acalmar o monstro laranja, um de nós teve a ideia de fazer um desenho do monstro laranja. Somente a partir desse gesto foi que o menino, surpreendentemente, parou de simular que o monstro laranja atacava a tudo e a todos, para, num primeiro momento, observar curiosamente o desenho que estava sendo feito.
Na sequência, ele mesmo resolveu fazer uma reprodução gráfica do monstro laranja, desenho esse que ele, muito contente, quis mostrar para a sua mãe, ao reencontrá-la após o grupo de mulheres. Nos encontros seguintes, chegamos até a conversar entre nós se deveríamos ou não deixar o monstro laranja disponível, dado o temor de que o brinquedo despertasse novamente um lado “monstruoso” do menino, o que nos desafiaria constratransferencialmente, mais uma vez.
Quando estávamos caminhando rumo aos dois últimos encontros, começamos a nos inquietar acerca de como seria o processo de despedida. Por mais que se tratasse de um grupo aberto, com participação flutuante das crianças, que, “a priori”, estavam ali apenas aguardando suas mães e irmãs que se encontravam em cuidado terapêutico, tínhamos a impressão de que aquele enquadre havia se constituído em algo diverso e que, consequentemente, nós também havíamos nos tornado algo a mais do que “recreadores” na sala de espera. Assim, num dos últimos encontros, relembramos às crianças de que aquele espaço seria encerrado em breve. A temática da despedida iminente acabou sendo entrecruzada com a temática dos pais, talvez porque coincidentemente o grupo encerrava-se próximo à data do dia dos pais, talvez porque falar de despedidas remetesse inexoravelmente ao lugar dos pais em suas vidas, levando em consideração que algumas das crianças haviam perdido o convívio diário com os pais devido à dissolução da conjugalidade violenta do casal parental. Então, quando uma das crianças nos contou que não havia ido à festa da escola em homenagem ao dia dos pais, dizendo, no entanto, que havia cantado uma determinada música no dia das mães na escola, propusemos que formássemos uma banda com os instrumentos musicais de brinquedo ali dispostos e que performássemos juntos a referida música. Assim, num dos últimos encontros, cantamos juntos a música “Fico assim sem você” de Claudinho e Buchecha, cuja letra parcial é a seguinte: “Avião sem asa, fogueira sem brasa, sou eu assim sem você; futebol sem bola, Piu-Piu sem Frajola, sou eu assim sem você; por que é que tem que ser assim? (...)”.
A partir dessa música, uma criança decidiu fazer uma dobradura de papel em formato de avião. E, assim como ocorrera com as mãozinhas de papel feitas no primeiro encontro, terminamos esse encontro com todos fazendo um aviãozinho de papel. Ficamos lançando os aviões de papel entre nós até que os grupos de mulheres e de adolescentes fossem encerrados e algumas mães e irmãs recebessem, também, arremessos de aviãozinho de papel em suas direções, ao nos reencontrarem na sala de espera.
Reflexões clínico-teóricas
A despeito de termos contado com uma participação flutuante das crianças, observamos que foi possível constituir uma grupalidade entre as crianças presentes em cada um dos encontros, apesar de alguns estudos sobre grupos infantis pontuarem sobre a tendência de que as mesmas brinquem isoladamente (Machado & Truccolo, 2023) ou de que demandem certo tempo de convívio até conseguirem ouvir umas às outras, ao invés de falarem ao mesmo tempo (Leite & Onocko-Campos, 2020).
Embora consideremos que o fato de as crianças brincarem espontânea e coletivamente seja um dos sinais de que essa grupalidade foi constituída, compreendemos que, mesmo nos momentos da ambiência nos quais as crianças estavam envoltas em atividades aparentemente desconectadas entre si, não obstante, a ação grupal se fazia presente (Shiki et al., 2018). Nesse sentido, podemos pensar que, no encontro grupal em que haviam apenas duas crianças, cada qual brincando com um objeto lúdico distinto, — vale dizer, a casinha e o monstro laranja —, ainda assim pareciam produzir uma cena complementar: enquanto uma brincava de casinha e cuidadosamente representava os integrantes da família, esquecendo-se de si mesma, a outra brincava de ser um monstro laranja que atacava descontroladamente a todos, despertando inclusive a impressão contratransferencial na equipe responsável pela ambiência de que o menino teria se transformado ele próprio num monstro laranja.
Apesar de destacarmos essa cena emblemática, ao longo dos oito encontros que compuseram o grupo da ambiência, deparamo-nos com diferentes crianças que tendiam a se apresentar num desses dois polos, isto é, ou no campo da agressão ou no campo da submissão, que, ao nosso ver, estariam intimamente ligados ao fato de se tratar de crianças cujos familiares se encontravam num campo de violência, em que comportamentos agressivos e submissos se apresentam num interjogo altamente complexo (Tachibana et al., 2021).
Em relação à agressão especificamente, observamos, na literatura especializada, uma compreensão de que os comportamentos agressivos de crianças cujos familiares protagonizaram cenas violentas equivaleriam a uma repetição dessa cena violenta, seja num campo de reprodução dos comportamentos aprendidos (Silva et al., 2022), seja à luz da transgeracionalidade2 (Mosena & Bossi, 2022). A partir de Winnicott, contudo, podemos pensar que, talvez, as cenas violentas com as quais nos deparamos em alguns encontros constituíam uma tentativa da criança de dramatizar as forças cruéis e destrutivas do mundo interior, na medida em que a criança representava a si própria num papel destrutivo, na esperança de encontrar uma autoridade externa (Peixoto Junior, 2022). Nesse sentido, mais do que estarmos diante de crianças mergulhadas em pulsões destrutivas, brincando de modo aprisionado e pouco transformador, numa espécie de repetição mortífera (Paes & Zornig, 2018), tratar-se-iam de crianças esperançosas por soluções criativas do entorno (Onocko-Campos, 2018), o que de fato teria sido possível, no caso do monstro laranja, a partir da realização do desenho do monstro e do suporte que a equipe deu a essa encenação.
De maneira análoga, podemos pensar winnicottianamente que as outras crianças que, num extremo da agressão, revelavam-se num campo de submissão, assim o faziam não apenas em função de um espelhamento de suas mães e irmãs, vítimas de violência e, portanto, submetidas a um processo de coisificação (Curti, 2023), mas também como resultado de um amadurecimento precoce desenvolvido defensivamente, aos moldes de um falso self.Winnicott (1960/2022) discorreu sobre o falso self para se referir a uma camada que, ao encobrir o verdadeiro self, poderia, em situações radicais, promover uma dissociação do indivíduo consigo mesmo. Assim, embora muitos psicanalistas tenham discorrido sobre os casos nos quais o indivíduo cinde com a realidade externa, Winnicott preocupou-se com uma outra condição psicopatológica, em que a cisão defensiva dar-se-ia do sujeito consigo mesmo, o que o levaria a não entrar em contato com seu sofrimento radical, sob o custo psíquico de ter a sua espontaneidade e criatividade igualmente furtadas. De fato, observamos, na literatura especializada, que, não raro, mediante falhas ambientais radicais, o indivíduo apresenta uma postura dissociada aos moldes de um falso self patológico, por vezes tendo, inclusive, bastante dificuldade de sonhar e de brincar (Levinzon, 2019).
Desde essa perspectiva, seria possível pensarmos que, talvez, a menina que ficava preocupada em cuidar do irmão e do grupo, chegando inclusive a fazer um desenho com o intuito de nos agradar ou, ainda, a outra menina que, ao brincar de casinha, se lembrou de colocar um boneco que representasse cada um de seus integrantes familiares nos cômodos, esquecendo de colocar a si mesma nessa cena, assumiram dissociadamente uma postura zelosa e precocemente amadurecida com o entorno, o que denunciava, num avesso, o sentimento de não poder contar com o cuidado do outro.
Podemos pensar inclusive que a menina, que, em um dos encontros, pediu para que a mãe não ficasse sabendo que ela havia chorado por ter descoberto detalhes sobre o falecimento de seu pai, estivesse justamente descortinando essa postura protetiva em relação à condição de sua mãe, mais do que se colocando como alguém que tinha a esperança de vir a ser emocionalmente amparada por ela. Havia ali uma inversão geracional, em que, ao invés de ela contar com o holding materno, isto é, com a sustentação emocional de sua mãe para com ela, sofria “escondido”, como forma de ofertar holding à própria mãe.
Ao pontuarmos aqui a incapacidade das crianças de contarem com o holding materno, não entendemos, entretanto, que tais mulheres-mães estariam cometendo falhas com seus filhos, devendo ser convocadas a assumir um “legítimo” exercício da parentalidade (Bustamante & Onocko-Campos, 2020). Consideramos, inclusive, que essa exigência poderia vir a ser sentida, por elas, como mais uma forma de violência, se pensarmos que a violência de gênero se manifesta também através dessa lógica materno-centrada predominante, segundo a qual as mulheres-mães, independentemente de suas condições concretas de vida, são cobradas a atender a um ideal desumanizador e aprisionante (Baluta & Moreira, 2019).
Compreendemos, afinados à Winnicott (1963/2022), que, para que tais mulheres-mães pudessem ofertar holding aos seus filhos, fazia-se necessário que elas próprias pudessem se sentir emocionalmente amparadas pelo ambiente. A partir dessa perspectiva, entendemos que o ambulatório lhes ofertava holding num duplo sentido: de modo mais direto, através dos encontros dos grupos de mulheres; e, também, de modo indireto, através dos encontros da ambiência que ocorriam na sala de espera, na medida em que as mães podiam compartilhar com a equipe da ambiência o cuidado e a responsabilidade pelo bem-estar da criança (Santos & Onocko-Campos, 2015).
Ademais, vale destacarmos que, ao nosso ver, a ambiência da sala de espera pôde revelar-se um ambiente suficientemente bom não apenas devido à capacidade das crianças de constituírem uma grupalidade entre si, complementando-se nas cenas lúdica, por meio de introjeções, projeções e identificações (Basso et al., 2019), mas também devido ao fato de os cinco responsáveis diretos pela ambiência também terem constituído entre si uma grupalidade.
Vieira et al. (2020) pontuam que, embora Winnicott não tenha feito uma teorização sistemática sobre o trabalho em equipe, discorreu sobre a importância da atuação compartilhada num duplo sentido: 1) pela possibilidade de cada profissional assumir uma postura de dependência em relação à própria equipe; e 2) pela possibilidade de a equipe ofertar um maior senso de estabilidade aos pacientes, já que, na eventual ausência de um dos profissionais, os demais ainda se fariam presentes, cunhando um ambiente confiável.
Em relação ao primeiro deles, sabemos que o trabalho no campo da violência não raro leva o profissional da saúde a um estado de desespero/desesperança, devido à radicalidade do sofrimento psíquico que por ele é testemunhado (Ribeiro & Cesar, 2021). Nesse sentido, entendemos que o fato de termos realizado esses encontros em conjunto permitiu que pudéssemos constituir uma grupalidade na qual compartilhávamos angústias variadas, sejam relacionadas ao início ou ao final do grupo da ambiência, sejam acerca de como porventura nos sentíamos engolidos pela destrutividade de algumas das crianças. É como se tivéssemos contado com o holding uns dos outros, viabilizando uma experiência menos solitária. No que tange ao segundo aspecto, se pensarmos que não apenas a participação das crianças ao longo dos oito encontros deu-se de modo flutuante, como também a participação dos integrantes da equipe (em função de alguns terem sido contaminados pela COVID-19 ao longo do processo) assim se deu, vemos que o senso de estabilidade só ocorreu por conta de termos tido um grupo cuidando de outro grupo.
Seria ainda válido nos indagar se, desde uma perspectiva psíquica, não teríamos operado tal como uma rede. Embora o termo “rede” seja empregado na área de saúde para se referir às diferentes instituições que gestam conjuntamente as dificuldades apresentadas por aquele que está protagonizando o alvo de cuidado, entendemos que seria possível traçar esse paralelo a partir da acepção de Benghozi (2010) para quem, no vínculo psíquico rede, forma-se uma malhagem entre aqueles que a compõem, malhagem essa que não apenas tem uma função de continente, mas que também viabiliza construção-desconstrução-reconstrução de novas conexões. Esse potencial criador da rede se manifestaria, segundo Benghozi (2010), não apenas entre os profissionais parceiros de diferentes instituições, mas também a partir da aliança entre a família atendida e a própria rede, já que ali haveria o encontro entre continentes diferentes propiciando uma remalhagem.
Assim, será que ao trabalharmos com diferentes integrantes de um mesmo grupo familiar, por meio de grupos que transcorriam paralelamente, em espaços separados, — conduzidos por equipes distintas que, no entanto, trocavam suas impressões após os encontros — , não teríamos de algum modo constituído psiquicamente uma rede altamente complexa, na qual diversas grupalidades (das crianças entre si, das adolescentes entre si, das mulheres entre si, das famílias como um todo, de cada uma das equipes de profissionais/estudantes entre si e da equipe geral como um todo) puderam criativamente estabelecer novas conexões? Algo que, ao nosso ver, ilustra bem essa questão é o fato de algumas das crianças do grupo de ambiência, ao final de um dos encontros, — em que havíamos discutido sobre o encerramento daquele espaço — , terem endereçado seus aviõezinhos de papel (fabricados para ludicamente representar as partidas/despedidas) a suas irmãs e mães, que haviam acabado de sair de seus respectivos grupos. Teria sido essa uma comunicação de que, a partir daquele momento, aguardavam que as trocas afetivo-emocionais do grupo de ambiência pudessem ser reendereçadas para seus grupos familiares?
Considerações finais
A partir desse relato de experiência, vemos uma possibilidade de cuidado num setting pouco ortodoxo, que não raro desperta resistência por parte dos profissionais da área da saúde (Santos & Onocko-Campos, 2015). Cabe destacarmos que nós mesmos, quando iniciamos os encontros da ambiência na sala de espera, sem termos os objetivos clínicos que, de saída, perpassavam os grupos de mulheres e de adolescentes, não imaginávamos que esse enquadre se revelaria tão potencialmente mutativo, sustentando uma função visivelmente terapêutica para as crianças que por ali passavam (Santos & Onocko-Campos, 2015).
Nesse sentido, surge a dúvida: deveria esse grupo permanecer na ambiência da sala de espera ou entrar numa das salas do ambulatório, ocupando um espaço em seu interior, bem como os outros dois grupos terapêuticos? Lembramo-nos mais uma vez de Winnicott (1953/2019), que tanto discorreu sobre o espaço potencial ao longo de sua obra, concebendo-o como uma área intermediária, vale dizer, uma terceira área experienciada pelo indivíduo, que estaria entre o seu mundo interno e o mundo externo. Desse modo, o espaço potencial equivaleria a um refúgio em que o indivíduo poderia descansar e nem sequer precisaria distinguir os fatos das fantasias (Serralha, 2019). A partir desta interlocução adicional com Winnicott, entendemos que, mais importante do que definirmos se esse grupo se configurou como um grupo terapêutico (que deveria ter ocorrido dentro de uma das salas do ambulatório) ou se ele funcionou como um grupo de ambiência (que deveria mesmo ter seguido do lado de fora, isto é, na sala de espera), temos certeza, entre o dentro e o fora aqui discutidos, de que ele se configurou como um espaço potencial.