- É uma Íris, é linda! Estão vendo? Tem quatro asas. A cor e o brilho vêm de uma série de escamas sobrepostas… Uma ao lado da outra, como telhas de um telhado. - E a língua? - A língua chama-se tromba espiral. - Podemos ver? - Não, agora está enrolada. De outro modo, ela não voaria. Para vê-la, necessitamos de um microscópio. - E o que é um microscópio? - Um aparato para ver o infinitamente pequeno.
A partir da metáfora do microscópio, podemos tomar a pesquisa como um instrumento para ver as coisas infinitamente pequenas, que se tornam grandiosas ao possibilitar a construção de sentidos que nos permitem interpretar o mundo, ainda que não plenamente. A miudeza das coisas (Silva & Luciano, 2023) e dos gestos (Olarieta, 2017) vai compondo experiências no mundo, informando-nos sobre elementos singulares que, se analisados de forma detida, irrompem o sentido convencional, apresentando-nos, desde outra perspectiva, à complexidade da vida. No conto A língua das Mariposas de Manuel Rivas, que inspira o filme de mesmo nome, o menino Moncho, que ocupa o lugar de narrador, revela o encantamento do seu professor, Don Gregório, ao falar de tal aparato, de modo que suas palavras tinham efeito de “poderosas lentes” (Rivas, 1996).
O objetivo deste artigo é refletir sobre a construção da subjetividade estudantil, que toma contornos característicos a partir dos processos históricos que culminaram na produção do ofício de aluno/a (Marchi, 2010; Perrenoud, 1995) a partir da Modernidade. Essa produção se fez em consonância com um projeto específico de sociedade e um sentido de infância - alimentado pela ideia de despreparo, heteronomia e irracionalidade atribuída às crianças em comparação com os adultos. A escola moderna é criada, então, como espaço formalizado para a preparação desses indivíduos em amplo espectro - intelectual, profissional e moral.
Desde a universalização do projeto escolar, ser estudante e ter passado pela escola compõem um imaginário coletivo e social que é permeado de sentimentos que são conformados por algumas experiências comuns: vestir-se como estudante, cumprir uma agenda, executar as tarefas designadas pelo/a professor/a, ocupar um lugar na hierarquia dessa instituição e comportar-se de modo específico, como requer a institucionalidade escolar (Benito, 2017). No entanto, por mais que o ofício de estudante esteja submetido a uma série de injunções e demandas sociais, institui-se a partir de um processo complexo. Desse modo, como o microscópio de Don Gregório, pretende-se analisar a construção da subjetividade estudantil, atentando-se para a complexidade e para as miudezas que envolvem esse processo, que não está dado, e a partir da perspectiva daquele/a que assume essa função - a criança. Admitindo que o projeto escolar, inserido no paradigma adultocêntrico que estrutura a sociedade ocidental, é produzido pelos mais velhos e destinado aos mais novos, busca-se entender como as crianças podem transformar aquilo que recebem ao desempenhar esse papel tão afirmado e defendido socialmente - o de estudante. Duas questões parecem fundamentais para a reflexão: o que está em jogo quando convidamos as crianças a estudar e a ser estudante? Quais caminhos para a sua participação podem ser potencializados ao assumir efetivamente esse convite?
Para a construção do texto, partiu-se de um referencial teórico fundamentado no campo dos estudos da infância e estudos sociais em suas vertentes críticas. Ainda, foi utilizado a análise de um conjunto de atividades que compuseram uma oficina realizada durante quatro meses com 31 crianças matriculadas no 5º ano do ensino fundamental de uma escola pública situada em um bairro de classe popular, na Zona Norte do município do Rio de Janeiro. A oficina se deu a partir de encontros semanais e foi conduzida por mim e duas bolsistas de iniciação científica (IC). Seu objetivo era colher informações das crianças sobre como percebem a escola em que estudam, o mundo em que vivem, sua relação com os/as educadores/as e seus pares, como se veem enquanto estudantes e o que vislumbram para essa trajetória, dentre outras questões. Como parte da oficina, as crianças participaram de uma exposição de fotografias de escolas de diversos lugares do mundo; mostraram, por meio de desenhos, fotografias da sua escola, como a veem; elaboraram projetos para escolas em que gostariam de estudar, o que incluía projetar os espaços, deliberar sobre as regras, os sujeitos que comporiam as instituições criadas e o papel de cada um dentro delas etc.; e elaboraram sete livros sobre a vida dos estudantes das escolas que idealizaram. Todas as atividades foram executadas coletivamente. Ao final de cada uma, o grupo todo se reunia para apresentar e discutir o que tinha sido feito e, nesse processo, também enfrentavam as questões e os impasses que eram deflagrados. Cabe destacar que a participação das crianças não era obrigatória; nenhuma delas se recusou a participar durante todo o processo, porém seu engajamento nas atividades nem sempre se dava da mesma forma - em alguns momentos, o grupo estava mais agitado, em outros, mais comprometido. Para a análise desenvolvida neste texto, focarei na última atividade - a construção dos livros -, posto que as demais já foram discutidas em outro trabalho (Silva & Gomes, 2023).
O texto está organizado em três eixos de análise, apresentados nas seções que se seguem: 1) a função que a escola desempenha no mundo ocidental e o decorrente sentido de estudante conformado e pactuado socialmente; 2) os processos de resistência que deflagram as tensões, contradições e desajustes desse projeto, ao mesmo tempo em que ampliam um sentido de escola que reivindica a vida, em seu aspecto mais amplo; 3) como as crianças percebem suas escolas e o ofício de estudante, levando em consideração as histórias produzidas por elas em seus livros.
As burocracias e o processo de anonimização da instituição escolar: produção de uma subjetividade enquadrada à norma
A partir do campo da fenomenologia crítica, Benito (2020) estuda a cultura material escolar a fim de compreender a produção da experiência nessa instituição, por meio da relação que os sujeitos estabelecem com as coisas no espaço da escola - que não estão disponíveis aleatoriamente, mas colocadas a serviço da conformação específica do que deles se espera. Sua atenção à materialidade que compõe o contexto escolar se apoia na ideia de que não se refere a mero objeto, mas pertence ao mundo da experiência que, em última instância, “funda a episteme dos usos culturais da realidade” (Benito, 2020, p. 794). O material é tomado, assim, como fato cultural.
Para a temática aqui desenvolvida, os trabalhos de Benito (2017, 2020) auxiliam a compreender como a materialidade, encarnada nos vários objetos físicos presentes na escola - carteira, mesa, relógio, grade, uniforme, parque, sino etc. -, junto com outras dimensões não palpáveis, é posta à serviço da construção de uma identidade estudantil. No entanto, como é próprio de todo processo identitário, ao fornecer os códigos que comporão seus limites - onde se deve ou não sentar, quando entrar e sair, o espaço-tempo de estudar e o de brincar, quem deve ou não usar uniforme etc. -, traz à tona tensões, questionamentos e conflitos.
Rada (2008), em seus estudos etnográficos sobre a escola, por mais que reconheça as múltiplas e complexas dimensões desse espaço, conclui que se trata fundamentalmente de uma burocracia. E é sobre essa dimensão que se debruça em suas pesquisas, não porque a defenda, mas porque acredita ser necessário entendê-la, se quisermos construir frentes de resistência e desburocratizarmos a vida. Segundo o autor (Rada, 2008), a escola não apenas se organizou a partir do modus operandi das instituições burocráticas modernas como constituiu-se como uma instituição educativa especial. Especial porque os processos educativos não são exclusivos da escola, pertencem ao campo da vida e acontecem em todos os espaços - na rua, na brincadeira, entre amigos, familiares etc. Porém, o que faz dessa institucionalidade escola é “precisamente porque seus processos educativos específicos - os que outorgam a escola sua definição genuína - estão extraídos intencionalmente dos processos ordinários de comunicação” (p. 26). Segue o autor afirmando que não se pode supor, sob nenhuma justificativa, que a educação escolar é naturalmente imprescindível e inevitável, mas que é uma dentre as muitas possibilidades de encaminhar a forma como uma sociedade decide educar. O mundo ocidental definiu a escolarização como modelo de transmissão do legado cultural, o qual foi sancionado pelos Estados Nacionais Modernos. Para Dubet (2011, p. 293), a formação de uma consciência nacional - “base sobre a qual repousa o sentimento de pertencimento à comunidade dos iguais, dos cidadãos, dos nacionais” - tem na institucionalidade escolar a pedra angular para a fabricação de uma cidadania como a expressão da nação.
Fazendo dialogar Rada (2008) e Dubet (2011), tomarei, para a construção do argumento desta seção, o aspecto da uniformização produzida pela institucionalidade escolar, que o primeiro autor trata por anonimização - o que, para ele, é uma das principais tecnologias sociais da lógica burocrática. Por meio dessa tecnologia, as instituições escolares se imbuem da função de figurar o indivíduo universal, abstrato, anônimo, ao destitui-lo dos seus contextos específicos e singulares em nome de uma ordem institucional que o regula e em função do papel que espera que ele ocupe dentro dela. Aceder ao papel de estudante se faz com certo anonimato, quando a história das crianças se vê subsumida ao regulamento das normas e da lógica disciplinar. O filme Entre os muros da escola, do diretor Laurent Cantet (2008), retrata, em uma cena, exatamente a lógica burocrática descrita por Rada (2008). O personagem Souleymane, filho de imigrantes oriundos do Mali, é levado, com a justificativa de indisciplina, ao conselho de classe, que deliberaria sobre sua permanência ou não na escola. Sua mãe, que não fala francês, participa da reunião e pede ao seu filho, em sua língua nativa, que diga aos seus professores que ele é um bom menino e que a ajuda nos afazeres domésticos. Souleymane se constrange em traduzir o que a mãe disse, pois sabe que a fala da mãe sobre seu filho não encontra lugar na burocracia daquele conselho. Aquela língua, diante do francês, é sem importância, seu corpo e suas vestimentas, que localizam essa mulher em contexto social não francês, e o amor pelo seu filho também são irrelevantes. Por meio do processo burocratizador presente no conselho de classe e em outras dimensões da escola, a instituição vai promovendo o apagamento das histórias singulares e de tudo aquilo que não tem valor do ponto de vista institucional - ser bom filho, bom amigo, dentre uma série de questões que compõem a miudeza da vida.
A produção burocrática é, assim, contrária à vida em seu amplo aspecto, pois tolhe e deixa escapar aquilo que lhe é próprio - a pluralidade, as relações sociais, os conflitos, as dores, o que não encaixa em uma suposta universalidade. Além de ser avesso ao que há de singular nas biografias dos sujeitos, aos gestos e às experiências, a burocracia opera, no espaço escolar, indiferente aos aspectos considerados sem relevância, do ponto de vista da educação formal e técnica, mas que é de fundamental importância para o processo de subjetivação dos/as estudantes - as miudezas do cotidiano da escola localizadas no abraço do/a melhor amigo/a, no cheiro vindo do refeitório, nos objetos que servem de inspiração para suas brincadeiras, nos segredos que cultuam para deixar de fora os adultos.
Se a burocracia escolar retira os aspectos singulares do percurso da criança, ao demandá-la desempenhar o ofício de estudante, segundo uma função normalizadora, pode ela, ao desempenhar este ofício, escapar da burocratização? Ou seja, é possível (e desejável) que trace outros sentidos de ser estudante, de habitar os espaços da escola, de estudar e de percorrer esse longo projeto que ocupa grande parte da sua vida? Caberiam, nesse ofício, outras funções além da formação profissional acoplada à escola pela demanda capitalista? Desde sempre, as crianças tensionaram cotidianamente os limites que lhes são impostos pela institucionalidade escolar por meio de brechas que encontram. E, nessas brechas, interrogam, negam e fabulam outras formas de ser estudante.
Os processos de resistência instituídos pelas crianças nas brechas da burocracia escolar
Os contornos sonoros, os afetos e emoções, os ruídos das falas, as formas não textuais que acompanham os discursos, as performances dos corpos que balançam, emudecem e protestam veladamente, as manifestações incoerentes ou desorganizadas foram os aspectos tomados por Castro et al. (2018) para analisar as insatisfações das crianças e jovens na escola, cujas falas ou não encontram espaço para ecoar ou são classificadas fora do estatuto da racionalidade exigido como credenciamento para a participação social. É pelas brechas que as autoras tentam alcançar as recusas e resistências desses indivíduos.
Esta seção é guiada pelos conselhos de Certeau (1998), para quem o primeiro passo de uma pesquisa que pretenda olhar para a realidade de forma honesta e não soberba é “reconduzir as práticas e as línguas científicas para seu país de origem, a everyday life, a vida cotidiana” (p. 64). Procedendo, assim, mais como filósofo - que interroga e persegue as questões banais para constituir “um princípio de suspeita num terreno técnico” (p. 65) - do que como um perito - que, de forma autoritária, arbitra sobre o mundo, retirando-se dele a fim de perseguir pistas posicionadas pelo exercício da razão. A atenção, portanto, volta-se aos processos de resistência, fomentados entre mal-estar e insubordinações, e instituídos pelas crianças na escola, pois, como afirma Cohn (2013, p. 231), “à constituição de certa infância, a escolarizada, as crianças reagem tanto quanto aprendem a ser alunos”.
Tecnologias sociais são investidas constantemente e de forma exaustiva na escola e em outros campos sociais a fim de enclausurar as subjetividades aos preceitos normais, pois a diversidade que compõe a vida representa um verdadeiro desafio para os padrões universalistas. Porém, a própria vida, em sua dimensão complexa, reclama seu espaço, provoca as normas, insiste em buscar brechas, o que exige das instituições um esforço vigilante. Nas bordas dos processos institucionais, ao que deles escapa, que resiste instituir-se, reside uma potência transformadora muito grande e alimenta parte das nossas esperanças, principalmente quando nos vemos em momentos críticos em que a capacidade de imaginar outros mundos, criar caminhos e vislumbrar horizontes mais justos se vê assolapada.
Uma autora importante para análise da escola em sua complexidade é Elsie Rockwell (2018a, 2018b), que se dedicou à pesquisa sobre a cotidianidade escolar que, como apresenta, transcorre nos interstícios da burocracia, fazendo emergir as ranhuras e sobras do processo institucional: “A vida cotidiana é um espaço com rachaduras, fendas, fissuras, juntas e até mesmo falhas profundas. É para esses interstícios que devemos olhar a fim de entender e avaliar os processos sociais que configuram a realidade social” (Rockwell, 2018b, p. 239). Para a autora, as normas e as leis podem insistir permanência na vida (cotidiana), mas esta não se rende com facilidade e sempre deixará escapar as contradições, os atos que falham. Assim, sem negar a força da burocracia na estruturação da instituição escolar, Rockwell (2018b, p. 240) se volta às perguntas:
Que ordem pode haver nos arrebatos de dezenas de crianças que se cruzam e se trombam no pátio de qualquer escola? O que há de interessante em suas conversas contínuas repletas de alusões cotidianas, midiáticas e familiares? O que está em jogo em seus jogos inventados ou reinventados? Como interpretar seus atos de violência e solidariedade?
São perguntas que não necessariamente solicitam respostas acabadas, mas convidam à contínua reflexão sobre a importância da experiência cotidiana no espaço escolar, que abriga uma infinidade de histórias contadas pelos atos, corpos, sexualidade, palavras, silêncios, gestos das crianças. Na empreitada da pesquisa com crianças, também é importante considerar que não acessaremos os elementos que compõem a cotidianidade escolar em sua totalidade. Isso se deve não apenas por levar em consideração a alteridade que se interpõe entre o/a pesquisador/a adulto/a e as crianças, o que é responsável pelo acesso sempre incompleto do/a primeiro/a ao mundo das últimas, mas principalmente porque nem sempre as crianças nos inserem em seus mundos. Ao contrário disso, às vezes, fazem questão de não partilhar alguns códigos, competências e estratégias, como em uma espécie de jogo de mostrar e não mostrar. As brincadeiras das crianças estão permeadas dessa façanha, e isso lhes garante certo poder.
Ao se ver com poucas possibilidades para enfrentar ou transformar o que consideram injusto, as crianças vão encontrando pequenas brechas para burlar o que está posto. Esses artifícios estão nas conversas paralelas, nos silêncios quando lhes é exigida uma resposta, no uso do corpo para seus sarcasmos, nas fofocas sobre os adultos. Tratam-se de gestos que não necessariamente utilizam para reivindicar um outro arranjo para a ordem instituída, mas apenas com o intuito de sinalizar seu desacordo. Rockwell (2018b) pontua um aspecto importante desses atos, que toma como subversão, quando se faz a partir da conformação de uma rede de solidariedade informal. O aspecto coletivo da subversão, nesse caso, contrasta com a individualização do percurso escolar. A autora arrisca dizer que a força das crianças pode chegar a provocar certo medo nos adultos. Esse medo não se refere apenas ao fato de as crianças, no coletivo, se fortalecerem em algumas situações do cotidiano da sala de aula, fazendo escapar o controle das mãos do/a professor/a, mas também - e talvez principalmente - porque, muitas vezes, instauram um mal-estar que torna frágeis as certezas que julgamos ter sobre a sua infância.
E são nessas brechas que as crianças disputam, mesmo em condição desigual de poder, outras maneiras de subjetivarem-se. Se aos mestres é sancionada a autoridade e o poder de regular os corpos na escola, há sempre que contar com a capacidade daqueles/as submetidos/as a essa autoridade de se rebelar. Na impossibilidade de apresentarem suas reivindicações em condição de igualdade, estudantes podem valer-se da astúcia, trapaça e fingimento. Essa façanha consiste, segundo Perrenoud (1995), em conseguir dissuadir, iludir, jogar com os limites da tolerância, criar estratégias minimalistas, compor uma rede de comunicação ilícita, viver uma vida dupla entre o que é adequado e aceitável aos olhos dos adultos e o que não se quer aceitar.
Para Rockwell (2018a), nem toda manifestação de oposição cotidiana presente na escola se constitui como uma frente de resistência - por exemplo, quando não afeta ou intenta afetar a distribuição de poder na ordem hierárquica da instituição ou construir alternativas a uma contracultura escolar. Às vezes, trata-se de posturas queixosas e ruidosas que, como pontuam Castro et al. (2018), não se consolidam em uma força que impacte a institucionalidade a fim de transformá-la. A resistência é posta, pelas autoras, como ferramenta política que potencialmente pode se encaminhar para uma revolução escolar e, necessariamente, é de cunho coletivo, uma vez que é gestada no compartilhamento de um mal-estar que alcança um grupo, o qual se organiza para fazer frente ao que considera injusto. As crianças constantemente expõem o mal-estar, ainda que não de forma organizada e deliberada, no dia a dia da escola. Organizar a ação parece ser a parte mais difícil, para a qual poderiam contar com a parceria dos adultos. Esse é um aspecto fundamental, principalmente se levamos em consideração o mal-estar que permeia a relação intergeracional no campo da educação escolar e da sociedade de modo geral, em que crianças e adultos se veem posicionados em lados antagônicos.
O que contam os livros construídos pelas crianças sobre ser estudante?
Esta seção se dedica à análise de parte da oficina realizada durante quatro meses com crianças do 5º ano do ensino fundamental, matriculadas em uma escola pública localizada em um bairro de classe popular, na Zona Norte do município do Rio de Janeiro. Esta parte se refere à última etapa do nosso trabalho na escola, a construção de sete livros produzidos coletivamente pela turma: O mistério do banheiro; Taekookmim; A história dos amigos; As alunas da [nome da escola em que estudam]; A vida de estudante da Maria e da Alice; A fera! Skateboard!; O menino Gael.
As crianças foram convocadas a escrever livros que contassem a história dos/as estudantes que frequentariam as escolas idealizadas por elas em atividades anteriores. Para esse processo, que aconteceu em quatro encontros, lemos diversos livros de literatura com diferentes formatos e que traziam a temática da oficina para analisar os seus componentes - personagens, ilustração, enredo, título, narrador/a, capa, formas de linguagem etc. Emprestando fatos da sua vida enquanto estudantes e do seu cotidiano aos personagens que construíram - alguns moram nos mesmos bairros que elas, pegam a mesma linha de ônibus para ir até a escola, possuem os nomes dos seus irmãos, pagam aluguel ou vivem em uma casa não tão rica, entre outros detalhes -, as crianças puderam tanto se debruçar sobre o papel que desempenham na sua escola quanto também vislumbrar caminhos que abriguem outras possibilidades de ser e estar nesse espaço.
Por meio do exercício da imaginação, é possível criar um espaço-tempo que se conecta e dialoga com a realidade e possibilita entrar em contato com outras experiências. É nos interstícios entre realidade e imaginação “que reside a potência de deformação/interrogação do real, desde um fora-dentro, fazendo-o experimentar possibilidades infinitas” (Silva & Luciano, 2023, p. 157). Para Vigotski (2018), a relação entre fantasia e realidade permeia de forma tão intensa o imaginário das crianças que é complicado contrapô-las: “há uma dependência dupla, mútua entre imaginação e experiência. Se no primeiro caso a imaginação apoia-se na experiência, no segundo, é a própria experiência que se apoia na imaginação” (p. 27). Esse entrecruzamento permite tanto interrogar a realidade quanto, ao criar, conjecturar outros contornos para ela. A imaginação transcorre da realidade ao desacordar, desconfiar, interrogar essa última. Ao propor a construção do livro, objetivamos justamente que esses dois elementos tivessem imbricados, de modo que as novas possibilidades elencadas pelas crianças para sua função social também nos dessem pistas da sua percepção da realidade em que vivem. E foi em busca dos desacordos, dos desalinhos, daquilo que não deixa a conta fechar porque sobra ou falta, do sem sentido que irrompe e põe em questão o que convencionamos ser, daquilo que embaralha a ordem do dia, que perseguimos com essa atividade.
Para além das histórias que contam os livros construídos pelas crianças, cabe destacar o processo que acompanhou essa construção, o que também será objeto de análise. As relações entre pares e com os/as adultos/as foram postas em cena não apenas em alguns enredos, mas vivenciados no espaço-tempo da oficina que, embora estivesse submetida a algumas regras escolares, acontecia fora da formalidade da sala de aula e era conduzida por adultas que não eram suas professoras, o que possibilitava às crianças experimentarem outros arranjos de ocupar o espaço, como expandir seu corpo no chão, não fazer nada quando não estavam dispostas ou porque atravessavam alguns problemas pessoais. Sua relação conosco, pesquisadoras, também serviu para refletirem sobre como se relacionavam com a sua professora. O fato de haver uma professora de uma universidade e das duas outras pesquisadoras serem suas estudantes despertou muita curiosidade e especulação entre as crianças. Muitas queriam saber como era a universidade, tentavam comparar se ser estudante universitário era o mesmo que ser estudante do 5º ano, se havia diferença entre o desempenho das funções docentes entre a sua professora e a universitária. É como se elas tentassem elaborar sua condição de estudante por meio daquele vínculo que permitiu algumas identificações e também diferenças. Todas nós desenvolvíamos as mesmas atividades e tratávamos umas às outras por nossos nomes. Mas observamos que algumas crianças se aproximavam das estudantes de iniciação científica para compartilhar algumas questões pessoais - amizade, menstruação e fatos do dia a dia -, como se, embora reconhecessem nelas a figura de adultas e pesquisadoras, se identificavam com elas enquanto estudantes. As próprias crianças puderam, em um dos encontros, se deslocar e perceber qual era a sua parcela de responsabilidade na relação com a sua professora. Nesse dia, elas estavam eufóricas, dançavam, conversavam e foi difícil para nós realizar a atividade que propusemos. Nesse momento, uma criança se solidariza com a sua professora e diz: “se vocês três estão tendo dificuldade, imagina a professora que é uma só”.
Também foi algo digno de nota a preocupação das crianças com a estética dos livros. Em vários momentos do relatório, deparei-me com as nossas observações em relação ao capricho com que elas desenvolviam o que era solicitado. Em alguns casos, a estética era algo tão importante que a história tinha que se adequar à forma e não o contrário. Demoravam-se cuidando dos detalhes da colagem, do desenho, da construção das linhas - que tinham que ser perfeitas para receber a escrita. Muitas vezes, perdiam-se no tempo (cronológico) que tínhamos - o tempo de uma aula. Segundo Barbosa (2006), a temporalidade cronológica - versão da leitura do tempo da Modernidade e responsável pela regularização dos ritmos e da adequação dos tempos individuais ao tempo social - adentra o espaço escolar como organizador da vida na infância. A autora prossegue afirmando que o tempo da escola, marcado por seus ritmos sequenciais, rígidos e repetidos - hora de entrada e da saída, das aulas, do recreio - ganha prioridade em relação ao tempo da infância, como aquele que abriga o desejo da criança, seu sonho, sua emoção, a brincadeira - que opera a partir de outra dimensão temporal, a do faz de conta. Nossa presença na sala era sempre recebida com certo alvoroço pelas crianças, e parte desse entusiasmo se devia ao fato de a oficina interromper a sequencialidade da rígida rotina escolar. Qualquer novidade - até a disposição da cadeira e do sentar - era recebida com muita agitação.
Na construção dos livros, pôde-se perceber a entrada da criança em outra dimensão espaço-temporal, que lhe permitia se perder, se encontrar, divagar, conflituar com seus colegas, como também se deparar com o engessamento da rotina, quando precisávamos apressá-las ou interrompê-las. Em algumas escolas que construíram, o calendário escolar subvertia toda essa lógica. Havia uma que funcionava todos os dias, incluindo fim de semana e feriado, porque não era desconectada da vida. Em outras, não havia uma separação entre trabalho e descanso, tomados de forma estanque em espaços-tempos igualmente rígidos. Nessas, as crianças brincavam e trabalhavam no pátio e na sala sem determinação de lugares para atividades específicas; descansavam e trabalhavam, conforme seu ritmo e necessidade.
Passemos aos livros e às fabulações das crianças sobre as diversas formas de ser e estar na escola. Na feitura do livro O mistério do banheiro, as crianças tensionaram alguns limites sociais. A história conta a aventura de Amir, personagem principal que, ao entrar no banheiro da escola, depara-se com uma poça de sangue e um alicate no chão. Todo roteiro é construído a partir das tentativas de Amir para desvendar esse mistério - de onde saiu o sangue, quem havia se machucado ou machucado alguém etc. A única coisa que sabíamos da história era o título e que envolvia muito sangue - as crianças faziam questão de enfatizar isso. Iniciou-se uma espécie de jogo das crianças desse grupo conosco. Elas criaram um clima de suspense para atrair nossa atenção e, de fato, ficamos preocupadas com o que viria. Quando nos aproximávamos, elas começavam a falar baixinho e escondiam os desenhos. A história era simples: o sangue no chão do banheiro era resultado de um dente quebrado de um aluno da escola que estava apostando corrida. Mais do que o mistério em torno do desfecho da história, as crianças iam tensionando, nesse jogo de mostra e esconde, o limite de temáticas que elas sabiam que não podiam ser faladas nem por crianças, nem na escola. Ao final, um integrante do grupo chegou até nós e disse sorridente: “duvido que vocês imaginavam que a história terminaria assim. Acharam que era sobre morte, né?”. De fato, temíamos que fosse, e o temor foi denunciado pelo alívio que sentimos quando o mistério foi revelado.
Naquele momento, tanto para as crianças quanto para nós, um sentido de infância e o que cabe ou não às crianças saberem foram postos em tensão. Com o mistério, que se fez a partir do jogo que foi instituído pelas crianças conosco, elas testavam e inquietavam o que o mundo adulto firmou como sendo próprio ou impróprio para elas - e sabiam que a temática de morte, por exemplo, é interditada em nome da preservação de suas supostas ingenuidade e pureza. De nossa parte, experimentamos a difícil tarefa que é sustentar a perspectiva crítica que embasa nossa pesquisa no campo dos estudos da infância, e não em qualquer espaço - mas a escola, lugar da boa infância - e não em qualquer contexto político - mas o do avanço de movimentos conservadores que disputam, a partir de uma pauta moral, um sentido para a infância -, além da responsabilidade, enquanto adultas e pesquisadoras, com os sujeitos da nossa pesquisa, as instâncias a que respondemos e o texto que produzimos. Todos esses aspectos se mostraram ali na tensão da construção de uma subjetividade infantil, com a ação da criança imbricada aos impasses da sua relação com a geração mais velha. Como o mistério foi desvendado logo no primeiro dia, pois teríamos acesso ao material para levar para casa, nos outros dias esse grupo foi se divertindo com a produção de uma peça a partir da história. Era nítida a alegria que experimentaram no processo e com o resultado. Um aluno de outro grupo diz: “cara, a história de vocês ficou muito legal! Eu queria muito ter feito parte dessa história! Deixa eu participar, por favor?”. Um dos autores mencionou que, caso o projeto continuasse, eles poderiam fazer o segundo volume. Não bastasse a história ganhar uma peça, ganhou também um rap e os personagens foram apresentados a partir de rimas improvisadas.
O livro Taekookmin foi construído por um grupo de crianças que, desde o início da oficina, mostrou muito interesse pela cultura coreana e quase tudo que fez recebeu nomes em coreano; algo bastante popular entre as crianças com a difusão midiática do gênero musical k-pop, proveniente da Coreia do Sul. A história se passa “em um dia qualquer” e não traz eventos extraordinários, mas apenas a rotina de estudantes que têm que acordar cedo, correr muitas vezes para não se atrasar e nem sempre chegam dispostos à escola. O personagem mais inteligente e bom aluno - que é exatamente o que esperam os adultos e a escola, estando mais próximo das expectativas desses que das crianças - era a figura de menos destaque, assumindo o protagonismo personagens com outras características, como o “gente boa” e o “engraçado”. O primeiro apenas aparece, os demais - suas rotinas e amizades - são os que ganham a cena.
A história dos amigos é narrada no passado - não como uma espécie de era uma vez, que normalmente é a deixa para o início de um conto de fadas. Se tratava de um passado em que, segundo as alunas, se “vivia no tempo da escola”. Nesse tempo - o escolar -, a amizade é destacada como algo muito importante. No entanto, a história também é permeada por muitas brigas: a professora briga muito, os alunos brigam na sala e no pátio, e não há uma conciliação como nos contos de fada. As autoras fecham sua história deixando o mal-estar causado pelas brigas, que aparecem e permanecem sem explicação. Elas próprias protagonizaram uma enorme briga no fechamento da atividade. No último encontro de apresentação do livro, em decorrência da narração dessa história, o tema da violência foi puxado pelas alunas, o que desembocou em um debate muito importante. Se a história não teve fechamento, ao contrário, no debate, elas e os demais colegas fizeram uma reflexão de por que a violência acontece. Alguns disseram que, muitas vezes, as crianças reproduzem a violência dos seus pais, descontando em colegas; outros se assumiram como sujeitos mais briguentos e avaliaram a necessidade de mudar. Também relataram que as brigas são fomentadas por disputas presentes na escola e, em alguns casos, o ato de violência aparece como mecanismo de defesa, quando a criança prefere antecipar certos comportamentos agressivos para que não venha a sofrê-los dos seus pares. Todas se sentiram mobilizadas, identificando o tema como algo que necessitava de solução, mas que fugia ao controle delas. Pareciam entender que se tratava de uma questão que não dependia apenas do seu esforço. Em rodas de conversa sobre o que gostavam ou não na escola, “ir para a sala da direção” estava entre as queixas mais apresentadas, pois simbolizava estarem inseridas em algum tipo de conflito e ter que responder à pessoa que ocupa o cargo mais elevado na escola - o/a diretor/a -, entendendo-se, assim, imersas em uma lógica hierárquica e de poder. No entanto, em muitas escolas que idealizaram, a direção se manteve presente e sob a gestão de um/a adulto/a. Embora reconhecessem os impasses advindos de uma relação desigual entre os/as adultos/as-educadores/as e crianças-alunos/as, o que impacta, muitas vezes, no silenciamento e subordinação das/os últimas/os, consideravam que um projeto escolar e educacional não se faria sem os/as primeiros/as. Dessa forma, pareciam reivindicar a parceria adulta na mediação de questões importantes que atravessam o cotidiano escolar, como a violência.
O livro O menino Gael também traz a temática da violência escolar. A história narra o cotidiano de um personagem que é um nerd e apanha de outras crianças. Não é incomum, no cotidiano das escolas, que a figura do aluno tomado como nerd desperte a raiva de muitos outros, por se encaixar no imaginário de um estudante colado na idealização da burocracia escolar em torno da figura do bom aluno, deixando, por contraste, a figura do que seria considerado o mau aluno em evidência. O nerd é, assim, lido como o que trai seus pares ao jogar o jogo dos adultos. O grupo responsável por essa história era composto por estudantes de comportamento exemplar, da perspectiva normativa. Sempre muito quietos, atentos, executavam as atividades com muita organização. Na sua história, Gael consegue reagir à violência que sofre. Porém, os autores não apresentam um desenrolar da postura dos personagens - adultos e crianças. A história simplesmente acaba com todos sendo levados para a secretaria após uma briga, permanecendo lá por 1 hora “e fim”. Como se esse fim representasse um “é isso aí”, é assim que as coisas são e seguirão, como se a solução para a violência, aspecto tão delicado e recorrente no ambiente escolar, esbarrasse em uma dificuldade de ser vislumbrada até mesmo na ficção. Levando em consideração os desgastes e o mal-estar que acompanham o processo de escolarização, por vezes, atravessado por violências reais e simbólicas, desconfianças e hostilidades entre os sujeitos que integram essa experiência, Castro e Tumolo (2019) destacam a necessidade da reinvenção dos laços afetivos entre adultos/as e crianças na experiência de transmissão, de modo a posicioná-los em torno de ideais comuns no processo de educação. “Mal-estar”, “frustrações”, “ciclo quase interminável de ofensas”, “trocas de farpas”, “esgarçamento total dos vínculos”, “desânimos” (Castro, Tumolo, 2019, p. 47) são algumas das expressões que elas utilizam para contextualizar a pesquisa que fundamenta o texto, realizada também em uma escola pública do município do Rio de Janeiro. A hostilidade percebida nas relações intra e intergeracional faz com que as autoras narrem um cenário em que os sujeitos vão construindo uma convivência marcada inexoravelmente pelo desprezo e pela exaustão advinda da retroalimentação de uma violência. Esse cenário - que se vê, de certa forma, presente nos enredos de alguns livros das crianças - revela a urgência da (re)construção do espaço escolar - não sem conflitos, mas com possibilidades diversas de convivência -, sob a pena de um esgarçamento total do vínculo entre os sujeitos que compõem a escola, o que tornaria inviável o ato de educar, que é, antes de tudo, fundamentado na relação intersubjetiva.
Ao contrário do livro mencionado acima, o enredo de A menina e os livros encontra no faz de conta a solução para algumas questões. O livro narra a aventura da personagem principal Bela com sua amiga Letícia. Ambas tinham “o poder de entrar nos livros, e elas liam, brincavam, se divertiam”. Também convidam todas as crianças a entrarem no livro Dora Aventureira e as convocam a pegar o vilão. Ao encontrá-lo, na verdade, percebem que não era mau, mas cheio de peripécias, sujeito que confundia os demais, embaralhava as aparências. “Você é muito brincalhão, fez a gente vir até aqui, mas nós continuamos sendo seus amigos”, diz Bela. No espaço-tempo do faz de conta de um livro dentro de outro, elas transformam a suposta maldade de um vilão em truque, ao conhecê-lo mais de perto e entender seus atos.
O livro As alunas da [nome da escola em que estudam] foi construído a partir do relato de cada componente sobre o que gostam e não gostam em sua escola, e o que gostariam de experimentar, como mais liberdade durante o recreio e aulas que acontecessem ao ar livre. Por isso, segundo elas, trata-se de um livro muito legal e divertido. Acrescentam que se a história delas adentrasse a realidade: “seria maravilhoso, tia, porque a gente faria o que a gente quisesse… seríamos livres e teríamos aula aqui fora!”; “nossas aulas são muito divertidas, animais”. Além disso, assumem que ser estudante é muito mais do que cumprir as tarefas formais, é gostar dos amigos, rir no recreio, se arrumar etc. Diz uma personagem: “como vocês sabem eu gosto de ciências, mas a minha vida de estudante é mais do que gostar de ciências”.
Na história de A vida de estudante da Maria e da Alice, contornada por mistérios e aventuras, as alunas exploram o primeiro dia de aula - uma cena que ocupa a fantasia de quem ainda não foi e é marcada na memória de muitos que passaram pela escola. Suas fantasias residem na interrogação das personagens sobre um lugar desconhecido em que se adentra por um “portão misterioso”. Isso se contrapõe à ideia socialmente estabelecida da escola como o lugar da criança, de modo que parece tratar de uma obviedade e de um espaço tão familiar à infância que o estranhamento não encontra lugar. Nessa história, as crianças também narram obstáculos que precisam percorrer, enigmas a decifrar e armadilhas em que caem até que encontram “um baú com ouro” e ficam ricas. A aventura que descrevem do seu percurso escolar parece também conter as expectativas e funções que convencionalmente se atribuem à escola - após vencer obstáculo por obstáculo, ser bem-sucedida, o que significa, dentro dos parâmetros capitalistas, ser rica, encontrar o baú com ouro.
Por fim, destaco o processo e a história do livro A fera! Skateboard! que foi construído por um grupo bastante entrosado e que acolheu um colega que não estava vindo para a escola. Esse aluno residia em uma instituição de acolhimento para crianças quando iniciamos a oficina. Logo depois, foi adotado por uma família que o entregou para outra instituição. Fugindo desse último lugar, passou a morar na rua e se manteve afastado da escola durante esse período. Ao retornar à instituição anterior, voltou a frequentar a escola e isso se deu justamente no início dessa atividade. Foi recebido no grupo dos seus melhores amigos, que resumiu para ele o que tinha sido feito até ali. Esse aluno assumiu a posição de escritor e foi traçando o enredo para uma história que tinha pensado, a qual teve a aprovação das outras crianças. A história era sobre uma competição de skateboard que se passava na escola entre os grupos Baby, Tempo e Raikais. O personagem principal da equipe Raikais, que é um fera, alguém com excelente desempenho naquele esporte, ganha a competição. Ele possui uma casa e uma mãe. A história não retrata a competição em si, mas se desenrola com o personagem principal chegando em casa e pedindo para sua mãe ligar a televisão para ver seu filho fera brilhar. Havia uma alegria especial que acompanhava o fazer da produção do livro desse grupo, e estava nitidamente relacionada ao retorno da criança que esteve afastada da escola. Importante destacar que sua melhor amiga se manteve especialmente agitada e triste durante o tempo em que não se sabia onde ele estava. A turma como um todo sentiu esse afastamento, pois era uma criança muito divertida e com bom entrosamento com seus colegas. Sua amiga ficou tão entusiasmada com o livro do grupo que disse, com olhos arregalados: “tia, nós vamos ganhar o prêmio Nobel! Pode nos esperar lá na UERJ, vamos lançar nosso livro lá”. E o livro do prêmio Nobel conta a história da vida de um estudante, porém destacando suas habilidades para além das exigências escolares, fala dos seus sonhos e do desejo de ser reconhecido por sua mãe. Desse modo, parece que as crianças convocam os adultos não apenas para a resolução de impasses - como nas situações de violência das histórias apresentadas acima - como também para o compartilhamento de alegrias.
Entremeando a vida que levam na escola e fora dela com as histórias que fabularam, foi possível ter acesso às miudezas e a uma infinidade de histórias, que podem funcionar como pistas para nós adultos de como as crianças percebem o cotidiano escolar, o que negam, ao que resistem, o que vislumbram de diferente e também o que não conseguem vislumbrar como solução para alguns impasses, como o caso da violência. Em quase todas as histórias, os personagens não atendem apenas às expectativas da lógica burocrática e não figuram indivíduos abstratos e anônimos, mas, ao contrário, o papel de estudante que colocam em cena dialoga justamente com contextos específicos e histórias miúdas: valoriza a amizade, a fantasia e a brincadeira; apresenta situações familiares; descortina conflitos e põe, de certa forma, em questão a posição dos/as adultos/as diante da complexa função de subjetivar-se dentro do espaço institucional da escola, destacando o aspecto relacional de todo e qualquer processo educativo. Ou seja, suas vidas e questões singulares reivindicam espaço no livro, nos informando que todos esses elementos - reais e imaginários - concorrem para a produção da subjetividade estudantil. Assim, com as crianças e com Perrenoud (1995), afirmo que é preciso abrir a escola à vida, “por em causa a separação entre escola como lugar de aprendizagens e outros de existência” (p. 28), borrar as fronteiras que impedem que as miudezas adentrem o cotidiano escolar, abrigar as infinidades de histórias dos sujeitos que compõem seus espaços.
Considerações Finais
Finalizando o texto, retomo o filme A língua das Mariposas para abordar a temática da participação da criança na escola. O filme narra a relação de parceria entre o mestre Don Gregório e seu aluno Moncho, que vai à escola pela primeira vez. Essa experiência é permeada por uma série de fantasias, medos e perguntas sobre o que vai encontrar, como são seu professor e seus colegas, experimentando certo desamparo. O encontro da criança com um mundo novo apresentado pela escola e a consequente demanda de digerir esse mundo, seus códigos e acordos, que não são os mesmos dos que regem a sua casa, e ter que passar por essa experiência sem contar com as figuras familiares é de extrema importância para o processo de subjetivação estudantil. Diante do novo, a criança tem a oportunidade de interrogá-lo e, assim fazendo, pode desestabilizar o que se pretende ser previsível, regular, como a burocracia que sustenta o projeto escolar.
Na aventura de ir para escola e lidar com um mundo novo, Moncho conta com a escuta atenta do seu professor, que acolhe suas dúvidas, paixões, segredos e medos, de modo que ele é apresentado como uma criança encantada com a escola, apaixonado pelas descobertas. É, sobretudo, a parceria do seu professor que vai lhe permitindo ressignificar seu lugar na escola e na comunidade em que vive, entender o contexto político de uma Espanha que se vê ameaçada pela chegada do fascismo de Franco.
Com o recorte do filme, destaco a participação da criança, tomada a partir de um processo coletivo, o que convoca deslocamentos intergeracionais. No desafio da vida escolar, a participação dos/as estudantes não se consolida - a despeito do papel desempenhado pelo adulto, que tem se posicionado como gestor dos destinos da sociedade e da vida das crianças. Como pontua Rockwell (2018b, p. 261), são os adultos que conformam os limites do mundo simbólico e material dentro do qual se desenvolve a cultura dominante e produzem tanto as restrições como as possibilidades de autonomia para as crianças. A observação da autora é também uma convocação para que assumamos, enquanto adultos, nosso lugar de parceiros/as das crianças nessa empreitada, principalmente quando nos vemos diante de uma relação permeada por conflitos e mal-estar. Nós temos convocado as crianças a estudar e a assumir o papel social de estudante por meio de um longo percurso escolar. Ao assumirem essa convocação, parece que as crianças também têm sinalizado - por meio das suas recusas, posturas corporais, silêncios, brincadeiras, fabulações e outros artifícios - suas percepções, desejos e expectativas para a função social que ocupam. Considero que nesse movimento reside uma potência para a participação das crianças, uma vez que coloca em jogo o mundo que os mais velhos apresentam e as expectativas que as novas gerações possuem em relação àquele que querem habitar. Se, como apresenta Cohn (2013), à produção da infância (universal) escolarizada as crianças reagem tanto quanto aprendem no processo de subjetivarem-se no espaço da escola, podemos supor que é no cotidiano da escola que um caminho para a sua participação pode ser potencializado. É ali que a burocratização escolar é desafiada pelas miudezas da vida, que se inserem pelas brechas da institucionalidade e entram em disputa no processo da subjetivação estudantil.