A violência sexual infantil (VSI) é caracterizada como qualquer situação que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar atos sexuais ou a exposição a qualquer outro contexto libidinoso, inclusive exposição do corpo em fotos ou vídeos por meio eletrônico ou não, que tenha como finalidade a estimulação sexual do agressor (isto é, violência sexual) ou a exploração sexual (isto é, atividade sexual em troca de remuneração). Tais atos podem ocorrer sob violências física, psicológica, coerção ou incitamento, contemplando atos com e sem contato físico (Lei nº 13.431, 2017; Mathews & Collin-Vézina, 2019).
No Brasil, entre 2011 e 2017, foram notificados 184.524 casos de violência sexual, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes (Ministério da Saúde, 2018). Resultados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) referente ao ano de 2019 publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021) demonstram que 14,6% dos escolares de 13 a 17 anos foram vítimas de violência sexual, sendo que a violência foi relatada mais frequentemente pelas meninas (20,1%) do que pelos meninos (9,0%). Essa alta incidência, associada ao potencial de consequências negativas ao desenvolvimento (social, cognitivo e afetivo) das vítimas, torna a VSI um problema de saúde pública.
Para Hailes et al. (2019), as consequências da violência sexual sofrida não são caracterizadas pelo surgimento de uma síndrome distinta, mas pela apresentação de comportamentos sintomáticos e patológicos. As sequelas que a violência sexual deixa em suas vítimas é longa, entretanto, algumas das mais relatadas por pesquisas da área indicam: depressão, ansiedade, problemas de conduta, sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), agressividade, violência, raiva, culpa, conduta sexualizada, problemas interpessoais, isolamento, comportamentos autodestrutivos, baixa autoestima, tentativa de suicídio, dificuldades educacionais, medo e insegurança (Hailes et al., 2019; Platt et al., 2018).
Por mais que existam esforços para o desenvolvimento de pesquisas brasileiras sobre avaliação e intervenção com vítimas de VSI (p. ex., Habigzang et al., 2008, 2013; Sanches et al., 2019; Schaefer et al., 2018; Platt et al., 2018; Zibetti et al., 2021), ainda falta esforço coordenado para oferecer melhor suporte às vítimas e impacto nas políticas públicas de proteção. Internacionalmente, programas de estudo, prevenção e tratamento para as vítimas de VSI têm sido desenvolvidos. No entanto, ainda que o desenvolvimento de propostas de políticas públicas inovadoras (Assini-Meytin et al., 2021) e programas escolares de proteção (Ferreira et al., 2022) sejam essenciais para a redução dos índices de VSI, também são necessárias intervenções para reduzir as consequências para crianças expostas a essa forma de violência.
O atendimento de crianças vítimas de VSI começa com a identificação dos episódios de violência, chamado de revelação. A revelação é um processo dinâmico que envolve as características da criança (idade, gênero etc.) e do contexto em que ela está inserida (residência atual, inserção escolar etc.) (Alaggia et al., 2019). Por isso, treinamentos para diferentes contextos do desenvolvimento têm sido desenvolvidos para qualificar profissionais para esse momento, diminuindo a chance de impactos negativos desse processo (Aznar-Blefari et al., 2022, 2023). O avanço passa pelo acompanhamento de serviços de proteção que, se bem realizado, pode estar associado à redução dos índices de psicopatologia ao longo do tempo (Edwards et al., 2022).
Uma revisão sistemática, desenvolvida por Kim et al. (2016), avaliou estudos empíricos de intervenções psicossociais em casos de VSI publicadas em inglês entre 2000 e 2013. Os resultados apontaram a eficácia das diversas intervenções para a redução dos sintomas psicossociais causados pela VSI, como ansiedade, depressão e os relacionados ao TEPT. Nesse estudo, foram analisadas diversas estratégias de tratamento relatadas nas publicações, entretanto, a TCC foi a que trouxe resultados mais promissores. Outra revisão, conduzida por McTavish et al. (2021), reforçou os dados trazidos previamente e ressaltou a TCC focada no trauma (TCC-FT) como importante abordagem para esse público.
Em que pesem as diferenças entre as abordagens comportamentais e cognitivas, a maioria dos estudos utiliza modelos híbridos, seja na compreensão dos pacientes, seja na aplicação de técnicas semelhantes. Nesse sentido, optou-se por utilizar o termo TCC em referência a essas abordagens, utilizadas em conjunto ou de maneira independente. A TCC tem se destacado como abordagem com mais resultados positivos em casos de violência sexual, por trabalhar com eficácia em comportamentos e quadros psicopatológicos resultantes desse fenômeno, por exemplo, a ansiedade e o TEPT (Cowan et al., 2020; Kim et al., 2016; McTavish et al., 2021). Para a ansiedade, em geral são citadas as técnicas de modelagem, de reforço, de desenvolvimento e de habilidades para enfrentamento adequado das dificuldades (coping), com pesquisas indicando potencial das técnicas de mindfulness (Westerman et al., 2020). Quanto ao TEPT, a aplicação de técnicas cognitivas, como a resolução de problemas e a reestruturação cognitiva, tem apresentado resultados promissores (Wekerle et al., 2018).
Por fim, o objetivo do presente estudo foi realizar uma revisão integrativa acerca de ensaios que abordaram a utilização de terapia, com foco em TCC, e seus resultados em casos de VSI entre 2012 e 2021. Dessa forma, este artigo visa atualizar as revisões mencionadas, abrangendo resultados publicados em outros idiomas, como espanhol e alemão.
MÉTODO
A pergunta de pesquisa – “A TCC é eficaz em casos de violência sexual infantil?” – foi delineada por meio do método PICO (Richardson & Murphy, 1998), conforme demonstrado na Tabela 1.
Iniciais | Descrição | Análise |
---|---|---|
P | Pacientes | Crianças e adolescentes vítimas de VSI (0 a 18 anos) |
I | Intervenção | TCC |
C | Grupo-controle/ comparação | Ausência de tratamento, práticas que não de TCC, comparação entre práticas de terapia |
O | Outcomes (Desfecho) | Psicopatologias desenvolvidos nas crianças após VSI (diversas) |
Nota: TCC = terapias cognitivas e comportamentais; VSI = violência sexual infantil. Fonte: Richardson e Murphy (2018).
A partir da pergunta de base, a pesquisa foi conduzida por meio de uma busca sistemática por artigos indexados nas bases de dados PubMed, Scopus, LILACS, SciELO e
PsycINFO, com o propósito de encontrar publicações com a string de busca: “child sexual abuse” AND (“cognitive therapy” OR “behavioral therapy” OR “cognitive behavioral therapy”), publicados entre 2012 e 2023. As bases de dados apresentaram, respectivamente, 25, 119, 64, 20 e 37 publicações, em um total de 265 trabalhos, dos quais foram selecionados apenas aqueles com textos completos, disponíveis no formato online e de caráter empírico. A busca pelos artigos para a elaboração desta revisão foi realizada em outubro de 2023, e os critérios de inclusão utilizados foram: estudos empíricos publicados em periódicos com revisão por pares, intervenção realizada com crianças vítimas de VSI (até 18 anos) que receberam intervenção comportamental, cognitiva ou cognitiva comportamental para o tratamento das consequências da VSI. Entradas repetidas foram excluídas, restando, assim, um total de 167 artigos. Foram excluídas da amostra estudos de caso, revisões, dissertações, teses e cartas, restando 17 pesquisas; após leitura integral, oito estudos foram selecionados. Entre os principais motivos de exclusão a partir do screening dos resumos, foram revisões teóricas e avaliação de sintomas sem aplicação da intervenção (Figura 1).
Dos artigos, nove foram excluídos por não estarem dentro dos critérios propostos para a pesquisa, pois abordavam vários tipos de trauma. Além disso, alguns deles tratavam de adultos que haviam sofrido violência sexual quando crianças, estudos de caso, adaptações transculturais de intervenções ou intervenções combinadas. Os oito estudos restantes foram material de análise desta revisão. As análises foram realizadas por dois juízes independentes que concordaram entre si integralmente com os resultados apresentados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após a aplicação dos critérios de exclusão, foram analisados qualitativamente oito estudos, cujos dados gerais estão descritos na Tabela 2. É possível perceber que as pesquisas selecionadas são originárias da América do Norte e do Brasil, apresentam uma grande abrangência de idade e predominância de pessoas do gênero feminino entre as vítimas, o que é pertinente com os dados gerais de prevalência (Kim et al., 2016).
Autores (ano) | País | Amostra | |||
---|---|---|---|---|---|
N | Idade M (DP) | Mín-max | % gênero feminino | ||
Mannarino et al. (2012) | Estados Unidos | 158 | 7,60 (2,07) | 4–11 | 62% |
Springer et al. (2012) | Estados Unidos | 32 | 7,93 (1,50) | 6–10 | 59% |
Hébert e Daignault (2014) | Canadá | 25 | 5,26 (0,60) | 3–6 | 60% |
Misurell et al. (2014) | Estados Unidos | 45 | 10 (3,44) | 4–17 | 74% |
Liotta et al. (2015) | Estados Unidos | 153 | Não menciona | 5–13 | 66% |
Habigzang et al. (2016) | Brasil | 103 | 11,76 (2,02) | 7–16 | 100% |
Hiller et al. (2016) | Estados Unidos | 166 | 8,01 (1,49) | 6–10 | 65,7% |
Allen e Hoskowitz (2016) | Estados Unidos | 260 | 8,50 (2,50) | 3–12 | 80,4% |
A literatura aponta a necessidade do desenvolvimento de intervenções terapêuticas específicas para o tratamento das consequências da violência sexual contra meninos (Hohendorff et al., 2012; Hohendorff, Habigzang et al., 2014; Hohendorff, Salvador-Silva et al., 2014), devido às suas peculiaridades. No Brasil, a pesquisa de Hohendorff, Salvador-Silva et al. (2014) sugere, de maneira pioneira, a adaptação de uma intervenção cognitivo-comportamental para meninos vítimas de VSI por meio de um estudo de caso múltiplo (n = 3).
Os resultados apontam melhora nos níveis de depressão, estresse e ansiedade, e redução de atribuições e percepções distorcidas sobre a violência sexual. Na Tabela 3 são exibidos os delineamentos dos estudos e as principais abordagens utilizadas para o atendimento de crianças.
Autores/ano | Grupo-alvo | Grupo-controle | Avaliação pré/pós | Acompanhamento do responsável não abusador | |
---|---|---|---|---|---|
Técnica | Modalidade | ||||
Mannarino et al. (2012) | TCC-FT | Individual | TCC-FT + narrativa do trauma | Sim | Sim |
Springer et al. (2012) | TCC-BJ | Grupo | Ausente | Sim | Sim |
Hébert e Daignault (2014) | TCC-FT | Individual | Ausente | Sim | Sim |
Misurell et al. (2014) | TCC-BJ | Individual | Ausente | Sim | Sim |
Liotta et al. (2015) | TCC-BJ | Grupo | TCC-BJ + terapia individual (maior parte focada no trauma) | Sim | Sim |
Habigzang et al. (2016) | TCC | Grupo | Ausente | Sim | Não menciona |
Hiller et al. (2016) | TCC-BJ | Grupo | Ausente | Sim | Sim |
Allen e Hoskowitz (2016) | TCC-FT | Individual | Técnicas não estruturadas* | Sim | Não menciona |
Nota: TCC-BJ: terapia cognitivo-comportamental baseada em jogos; TCC-FT = terapia cognitivo-comportamental focada no trauma; * Brincadeiras e jogos, não protocolares, registrados nos atendimentos das vítimas de VSI. Todas as crianças receberam tratamentos mistos (com técnicas estruturadas na TCC-FT e não estruturadas) e a proporção de uso nas sessões com cada abordagem foi avaliada (como forma de controle).
Em todos os estudos selecionados, a abordagem utilizada foi a TCC-FT de forma individual, inicialmente desenvolvida para crianças vítimas de violência sexual, entretanto, com o decorrer do tempo, passou a ser aplicada a vítimas de outros tipos de trauma (Mannarino et al., 2012). Além disso, do grande corpo de evidências para crianças vítimas de VSI, estudos apontam a TCC-FT como a abordagem mais indicada para crianças e adolescentes vítimas de quaisquer eventos traumáticos (McTavish et al., 2021; Wekerle et al., 2018).
A TCC-FT é um tratamento focal, mais flexível e rápido, que, em geral, inclui os pais/cuidadores ativamente no processo, participando de sessões separadas e/ou conjuntas, nas quais são enfatizados os processos de comunicação positiva, atitudes assertivas, confiança mútua, habilidades aprendidas, entre outros (Lobo et al., 2014). A TCC-FT é indicada para crianças de 3 a 17 anos que apresentem como queixa principal desfechos decorrentes do trauma, como depressão, problemas comportamentais e TEPT (Cohen et al., 2006, 2018).
Apesar de utilizar a mesma abordagem, cada pesquisa apresentou especificidades. No estudo de Hébert e Daignault (2014) foi utilizada uma adaptação da TCC-FT, terapia individual para crianças em idade pré-escolar, buscando evidências de sua eficácia nesse público. No estudo conduzido por Allen e Hoskowitz (2016), todos os terapeutas foram treinados na abordagem TCC-FT, mas eram livres para escolher entre técnicas menos estruturadas que usualmente aplicavam ou técnicas mais estruturadas baseadas na TCC-FT. Portanto, as crianças receberam tratamentos mistos de acordo com as particularidades de cada terapeuta, que, por sua vez, deveria fazer o registro sistemático do uso de cada uma das técnicas. Nesse sentido, o número de técnicas não estruturadas (jogos, brincadeiras, entre outros) foi inserido em um modelo de regressão, atuando como controle do efeito das técnicas estruturadas.
O ensaio realizado por Liotta et al. (2015) associou a TCC-FT a uma abordagem denominada terapia cognitivo-comportamental baseada em jogos (TCC-BJ). A TCC-BJ associa os princípios da TCC a brincadeiras estruturadas, na modalidade grupal, destinada a crianças. Em relação a esse estudo, comparou-se uma intervenção grupal de TCC-BJ com uma intervenção combinada de TCC-BJ + TCC-FT. A amostra foi dividida entre aqueles que participaram da terapia de grupo e aqueles que participaram de terapia de grupo associada à terapia individual. A partir dessas abordagens terapêuticas, e considerando que a VSI apresenta importante potencial de causar danos em suas vítimas, diversos desfechos foram avaliados. Na Tabela 4, são descritos em termos de comportamentos-alvo e resultados obtidos na avaliação pré e pós-intervenções.
Comportamentos/sintomas | Estudos selecionados | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Mannarino et al. (2012) | Springer et al. (2012) | Hébert e Daignault (2014) | Misurell et al. (2014) | Liotta et al. (2015) | Habigzang et al. (2016) | Hiller et al. (2016) | Allen e Hoskowitz (2016) | |
TEPT e trauma | ||||||||
Resultado global | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | N/A | Sim |
Dissociação | N/A | N/A | Sim | N/A | Sim | N/A | N/A | Sim |
Trauma | N/A | Sim | N/A | Sim | Sim | N/A | N/A | N/A |
Comportamentos externalizantes | ||||||||
Resultado global | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | N/A | sim | N/A |
Raiva/agressão | N/A | N/A | N/A | N/A | Sim | N/A | N/A | Sim |
Comportamento sexual atípico | Sim | Sim | N/A | N/A | Não* | N/A | Sim | Sim |
Comportamentos internalizantes | ||||||||
Resultado global | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | N/A | Sim | N/A |
Ansiedade | Sim | Sim | N/A | N/A | Sim | Sim | N/A | N/A |
Depressão | Sim | Sim | N/A | N/A | Sim | Sim | N/A | Sim |
Nota: N/A = variável não avaliada na pesquisa; Não = não houve efeito; Sim = efeito positivo da intervenção em teste; * = não funcionou apenas na intervenção em grupo, na modalidade individual os resultados foram positivos.
Os resultados da Tabela 4 demonstram que as intervenções realizadas tiveram como desfecho principal a redução de alguns comportamentos comumente citados na literatura especializada em casos de VSI. Em todos os estudos, os desfechos de redução dos comportamentos globais relacionados ao TEPT estiveram presentes. Apesar dos diferentes instrumentos de medida utilizados, como Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School-Age Children-Present and Lifetime Version-PTSD Module (KSADSPTSD; Kaufman et al., 1997), Child Behavior Checklist (CBCL; Achenbach, 1991), Child Sexual Behavior Inventory (CSBI; Friedrich, 1997), Trauma Symptom Checklist for Children (TSCC; Briere, 1996), Children’s Knowledge of Abuse Questionnaire– Revised (CKAQ-R; Tutty, 1995), Child Post-Traumatic Stress Reaction Index – Parent Questionnaire (CPTS-RI-PQ; Nader, 1994), Child Dissociative Checklist (CDC; Putnam et al., 1993), versão francesa da Escala de Dificuldades Psicológicas do Quebec (Préville et al., 1992), Modified PTSD Symptom Scale (MPSS-SR; Falsetti et al., 1993), versão francesa adaptada da História da Vitimização (Wolfe et al., 1987), desenvolvida por Parent e Hebert (2000), e Trauma Symptom Checklist for Young Children (TSCYC; Briere, 2005), todos apontaram índices satisfatórios relacionados a trauma, como exemplo da dissociação e da depressão.
Outros comportamentos relacionados às violências sexuais e descritos como desfechos nos estudos foram comportamentos internalizantes e externalizantes, ansiedade, depressão, raiva/agressão, comportamento atípico e preocupação sexual. A análise dos estudos demonstra que todos exibiram melhorias nos problemas comportamentais previamente selecionados, corroborando a literatura ao apresentar evidências da eficácia da TCC em casos de VSI.
Por se tratar de um estudo desenvolvido em um serviço especializado, o ensaio conduzido por Liotta et al. (2015) averiguou se o histórico do paciente (demografia e características de violência) e os dados dos pré-testes poderiam predizer se, após a avaliação inicial, haveria diferenças entre o grupo de indivíduos encaminhados à intervenção TCC-BJ e o grupo encaminhado à intervenção combinada (TCC-BJ em grupo + TCC-FT individual). Não houve diferenças entre os grupos quanto às características demográficas e dos eventos de violência. Entretanto, a maior presença de problemas nos comportamentos sexuais foi considerada um preditor para o encaminhamento à TCC combinada (associando a abordagem em grupo com TCC-FT individual). O resultado sugere que a terapia individual é mais efetiva em relação aos comportamentos referentes a preocupações sexuais, mas que as intervenções em grupo podem ser suficientes para outros sintomas decorrentes da VSI.
Hébert e Daignault (2014), em estudo realizado com crianças em idade pré-escolar e seus cuidadores, obtiveram a redução dos problemas comportamentais internalizantes, externalizantes e dissociação. Além disso, houve também redução na pontuação global para o TEPT, porém o domínio de evitação da Child Post-Traumatic Stress Reaction Index (CPTS-RI; Nader, 1994) não respondeu ao tratamento. O estudo investigou e identificou que a intervenção com pais reduziu comportamentos relacionados ao TEPT e ao sofrimento psicológico. O follow-up demonstrou que os efeitos do tratamento se mantiveram por até seis meses após o término do tratamento.
No estudo conduzido por Allen e Hoskowitz (2016), o tratamento das crianças podia ser realizado tanto com técnicas estruturadas baseada na TCC-FT quanto com técnicas não estruturadas (brincadeiras, jogos, entre outras), de acordo com as preferências do profissional. Quando analisados por meio de comparação de médias simples, observou-se que houve melhora em todos os desfechos avaliados, independentemente da técnica empregada. No entanto, os modelos de regressão permitiram observar que o uso de técnicas estruturadas (TCCFT) era um bom preditor da redução dos sintomas de estresse pós-traumático, dissociação, ansiedade e raiva/agressão. Por sua vez, o emprego de técnicas não estruturadas não foi eficaz para esses desfechos. O modelo de regressão ainda indicou que as reduções da preocupação sexual e da depressão eram mais relacionadas ao número de sessões do que propriamente à técnica utilizada. No âmbito geral, o estudo trouxe como resultado que a TCC estruturada apresenta melhores resultados quando utilizada com crianças expostas ao trauma, mas também destaca importantes apontamentos em relação à eficácia de técnicas não estruturadas para alguns sintomas. Por fim, embora menos efetiva do que a TCC-FT, receber mais técnicas não estruturadas (brincadeiras/experiências) também demonstrou efeito positivo sobre os sintomas dos pacientes (Allen & Hoskowitz, 2016).
Outro dado relevante do estudo conduzido por Allen e Hoskowitz (2016) foi identificar que há uma dificuldade entre os terapeutas em aplicar intervenções estruturadas como, por exemplo, modelos de TCC-FT. Nesse estudo, os terapeutas foram submetidos a um programa de treinamento de TCC-FT, incluindo um curso didático on-line e um presencial de dois dias. Todos deveriam utilizar medidas padronizadas de resultados e relatar resultados mensais aos administradores do programa. Entretanto, muitos utilizaram técnicas menos estruturadas com as quais estavam habituados e cerca de 40% dos terapeutas envolvidos não enviaram qualquer dado para a pesquisa, o que denota a falta de hábito com protocolos estruturados de atendimento (embora tenham evidências de maior efetividade), bem como pode representar algum viés de análise.
Ao se comparar a presente revisão com revisões conduzidas previamente, destacam-se três pontos. O primeiro é uma evolução na literatura caracterizada pela consolidação da TCC-FT como uma das principais abordagens para esse público. Por exemplo, na revisão realizada por Kim et al. (2016), há uma ampla gama de modalidades de intervenção, como TCC específica para violência sexual, TCC com especificidade de gênero, TCC-FT e TCC-BJ. Na presente revisão e na conduzida por McTavish et al. (2021), a TCC-FT foi a abordagem mais estudada e a que agregou evidências mais robustas no período. Mesmo considerando eventuais diferenças metodológicas entre esta revisão e a conduzida por McTavish et al. (2021), quando comparadas às mais antigas, ambas demonstram a consolidação dessa abordagem.
O segundo ponto é a relativa estabilidade quanto à necessidade de intervenção com os pais e cuidadores não infratores no processo terapêutico. Do ponto de vista teórico, a participação familiar pode influenciar na recuperação da vítima desde o momento da revelação. Nesse sentido, estudos demonstram que as crianças têm mais capacidade de lidar com a experiência de uma violência sexual quando as mães lhe dão apoio e acreditam em seus relatos, o que também teria a capacidade de promover a resiliência futura dessas crianças (Baía et al., 2014; Manay & Collin-Vézina, 2021; Priolo & Rodrigues, 2018; Wekerle et al., 2018). Contudo, apenas em um dos estudos revisados os pais/cuidadores foram incluídos no tratamento (ou foram tratados), embora suas respostas sobre as crianças tenham sido coletadas. Esse dado converge com a publicação de Kim et al. (2016), em que apenas parte das publicações incluiu os cuidadores e/ou a família no processo de recuperação das vítimas. Em ambas as revisões, foram identificados desfechos psicológicos positivos para as crianças e para os pais a partir dessa abordagem conjunta, no entanto, as evidências seguem sendo limitadas. Nesse sentido, a presente revisão também revela a necessidade de mais estudos empíricos para avaliar o benefício à vítima de VSI em uma abordagem combinada com familiares.
O terceiro ponto observado na revisão é que, mesmo utilizando estratégias de busca em português, foram identificados poucos estudos que cumpriam os critérios de inclusão conduzidos no Brasil e em países da América Latina. Essa carência também foi observada por McTavish et al. (2021). Como reportado previamente, há um esforço de pesquisadores brasileiros para a produção de conhecimento sobre a temática (Habigzang et al., 2008, Sanches et al., 2019; Schaefer et al., 2018; Platt et al., 2018; Zibetti et al., 2021). No entanto, menor quantidade e qualidade de estudos no período investigado podem refletir a necessidade de coordenação entre os pesquisadores e a sociedade em geral para maior investimento em pesquisas que resultem em suporte às vítimas de VSI.
Os dados encontrados nesta revisão acrescentam às evidências apresentadas por Kim et al. (2016) sobre o uso da TCC em vítimas de VSI. Além disso, reforçam os dados obtidos por McTavish et al. (2021) quanto à recomendação da TCC-FT como abordagem eficaz para as sequelas psicopatológicas resultantes da vitimização. Além da eficácia quanto aos sintomas do TEPT, foi observada a eficácia na redução de problemas comportamentais, ansiedade, depressão, vergonha, isolamento, falta de atenção, entre outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta revisão apresenta três elementos fundamentais sobre a aplicação da TCC em casos de abuso sexual infantil: a utilização da TCC-FT na literatura, a necessidade de intervir também com os pais/cuidadores (não infratores) e a necessidade de pesquisas nacionais, considerando sua pouca expressão na busca realizada. Em suma, esta revisão apresenta trabalhos empíricos de intervenções da TCC em casos de violência sexual, com todas as pesquisas encontradas apontando para melhora das consequências negativas desse fenômeno, bem como para o fortalecimento da resiliência em uma das intervenções. Espera-se que esta revisão integrativa possa fomentar pesquisas nacionais, bem como intervenções baseadas em evidências para vítimas brasileiras.