O comportamento de autolesão não suicida é um problema cada vez mais reconhecido de saúde pública e clínica (Clarke et al., 2019; Hughes et al., 2019; Muehlenkamp et al., 2023; Shao et al., 2021), definido como a destruição direta e deliberada do próprio tecido corporal na ausência de intenção letal e por razões não aceitas socialmente (Nock, 2010). Formas comuns de autolesão não suicida incluem comportamentos como cortar-se, queimar-se, arranhar-se e bater-se (Hughes et al., 2019; Nester et al., 2023), podendo ocorrer o uso de múltiplos métodos (Nester et al., 2023; Plener et al., 2018). Esses comportamentos podem ser um indicador de sofrimento emocional, de transtornos psicológicos subjacentes ou de dificuldades de enfrentamento de situações estressoras (Shao et al., 2021).
Pesquisas iniciais sobre comportamento de autolesão não suicida focalizaram ambientes clínicos (Pattison & Kahan, 1983), principalmente com mulheres (Favazza & Conterio, 1989; Favazza et al., 1989). Lewis et al. (2015) afirmam que a autolesão não suicida representa um problema crítico de saúde mental também em adultos, contudo, atualmente, inúmeros estudiosos têm se debruçado sobre pesquisas voltadas ao público adolescente (Kiekens et al., 2023; Lewis et al., 2015; Plener et al., 2018; Roque et al., 2021).
A adolescência é uma etapa crucial para o início da autolesão não suicida (Kiekens et al., 2023; Roque et al., 2021), com taxas de prevalência ao longo da vida de 15 a 20% em amostras comunitárias (Plener et al., 2018). Já em amostras clínicas, foram encontradas taxas mais altas (50 a 60%) (Plener et al., 2018).
Diversos são os fatores de risco associados à autolesão não suicida. Pesquisas empíricas, revisões sistemáticas e de metanálise têm identificado fatores divergentes e semelhantes (Kiekens et al., 2023; Tang et al., 2023). Por exemplo, Shao et al. (2021) encontraram os seguintes fatores de risco em estudos longitudinais: sexo feminino; histórico de autolesão não suicida anterior; sintomas de depressão; falta de coesão e de adaptabilidade familiar. Em estudo de metanálise realizado por Fan et al. (2021), foram encontradas associações significativas entre autolesão não suicida e os sete fatores a seguir (classificação pelos tamanhos de efeito, em ordem decrescente): eventos adversos na vida (OR = 2,284); estilo de enfrentamento negativo (OR = 2,040); uso problemático da internet (OR = 2,023); distúrbios do sono (OR = 1,734); experiências traumáticas (OR = 1,728); relacionamento problemático entre pais e filhos (OR = 1,585); e problemas de saúde mental (OR = 1,578).
Isso quer dizer que a presença de eventos adversos na adolescência, estilos de enfretamento negativo e uso problemático da internet aumentam em mais de duas vezes as chances de o adolescente se autolesionar sem intenção suicida. Da mesma forma, distúrbios do sono, experiências traumáticas e problemas de saúde mental aumentam mais de uma vez e meia a chance da adoção desse comportamento autodestrutivo (Fan et al., 2021).
Outros estudiosos encontraram associações entre autolesão não suicida e negligência (Cao et al., 2023; Halverson et al., 2022; Lukenda & Johnson, 2023), demonstrando que apenas ações emocionalmente abusivas foram indiretamente ligadas à autolesão não suicida via expressividade emocional, embora os estudos também evidenciem associações significativas entre abuso emocional, abuso sexual e abuso físico (Cao et al., 2023; Lukenda & Johnson, 2023), o que parece complementar os achados entre outras amostras sobre conexões entre autolesão não suicida e críticas parentais ou antipatias em relação aos filhos (Taliaferro et al., 2020). Teorização prévia e evidências empíricas sugerem que a parentalidade pode desempenhar um papel na etiologia dos comportamentos autolesivos. Revisão sistemática realizada por Fong et al. (2022) evidenciou que, entre os comportamentos parentais, baixo suporte dos pais, alto controle psicológico e alto controle reativo foram mais consistentemente associados à autolesão não suicida.
Estilos adversos de parentalidade podem levar a esquemas iniciais desadaptativos (EIDs) que começam a se formar na primeira infância (Pilkington et al., 2021). Tais esquemas podem ter um efeito adverso que persiste até a idade adulta, contribuindo para o desenvolvimento de transtornos do humor e da personalidade (Basso et al., 2019; Shute et al., 2019). Além disso, há evidências emergentes de que os EIDs podem ser um fator de vulnerabilidade cognitiva para a autolesão não suicida (Nicol et al., 2021; Shrivastava & Scharma, 2022).
Os EIDs são mecanismos inconscientes que afetam o comportamento, a cognição, a fisiologia e as emoções e se tornam, com o passar do tempo, a própria definição da pessoa. São elementos organizados de reações e experiências passadas que formam um corpo de conhecimento relativamente coeso e persistente, capaz de guiar a percepção e a avaliação subsequentes. São estruturas cognitivas que codificam, avaliam e interpretam, impondo um padrão de percepção de realidade, em uma espécie de filtro cognitivo (Young et al., 2008). O desenvolvimento dos EIDs, em seus cinco domínios, está ligado a necessidades emocionais básicas que a criança percebe como não atendidas (Tabela 1).
Tabela 1 Relação entre necessidades básicas não atendidas e esquemas iniciais desadaptativos.
Necessidade básica | Domínio (temperamento + adaptações às necessidades básicas não atendidas) |
---|---|
Vínculos seguros | Domínio I: desconexão e rejeição |
Autonomia, competência, sentido de identidade | Domínio II: autonomia e desempenho prejudicados |
Limites realistas e autocontrole | Domínio III: limites prejudicados |
Valorização do self | Domínio IV: orientação para o outro |
Espontaneidade e liberdade de expressão | Domínio V: supervigilância e inibição |
Fonte: Elaborado com base em Young et al. (2008).
Cada domínio é formado por EIDs, que totalizam 18 (Tabela 2).
Tabela 2 Domínios e seus respectivos esquemas.
Domínios (5) | Esquemas (18) |
---|---|
Domínio I: desconexão e rejeição (5) | Privação emocional |
Abandono e instabilidade | |
Desconfiança e abuso | |
Isolamento social e alienação | |
Defectividade e vergonha | |
Domínio II: autonomia e desempenho prejudicados (4) | Vulnerabilidade ao dano |
Dependência e incompetência | |
Fracasso | |
Emaranhamento | |
Domínio III: limites prejudicados (2) | Arrogo/grandiosidade |
Autocontrole/autodisciplina insuficientes | |
Domínio IV: orientação para o outro (3) | Subjugação |
Autossacrifício | |
Busca de reconhecimento/aprovação | |
Domínio V: supervigilância e inibição (4) | Padrões inflexíveis |
Isolamento emocional | |
Negativismo/pessimismo | |
Postura punitiva |
Fonte: Elaborado com base em Young et al. (2008).
Von Mühlen e Câmara (2021) esclarecem que, em situações de autolesão não suicida, encontram-se históricos de sofrimento e mal-estar psicológico, acompanhados por falta de esperança, incapacidade de lidar com as emoções, falta de sensação de pertencimento e dificuldade de manter um sentimento de bem-estar psicológico. As autoras alertam para a importância de se pesquisar sobre autolesão não suicida, devido às altas prevalências encontradas, e esclarecem que, em termos de pesquisas nacionais, existem lacunas que demonstram a necessidade de mais estudos para que se possa ter ciência da situação dos adolescentes e de adultos quanto a esse tipo de comportamento (Von Mühlen & Câmara, 2021). Adolescentes e adultos que adotam a autolesão não suicida podem estar em risco de desenvolver um comportamento habitual que atua como habilidade temporária de enfrentamento e os coloca em maior risco de morte, uma vez que podem perder o controle sobre o hábito (Muehlenkamp et al., 2023; Nicol, Mak et al., 2022; Plener et al., 2018).
Apesar da proliferação de pesquisas sobre EIDs e psicopatologias, pouco se sabe sobre os EIDs associados à autolesão não suicida em particular (Lewis et al., 2015; Nicol et al., 2021; Nicol, Mak et al., 2022). Tais informações poderiam avançar na teoria sobre variáveis cognitivas associadas ao desenvolvimento e à manutenção da autolesão não suicida, bem como poderia ser relevante para a terapia do esquema e sua aplicação à autolesão não suicida.
Diante do exposto, este estudo busca, mediante a realização de uma revisão sistemática, responder ao problema de pesquisa: “Autolesão não suicida em adolescentes e adultos, qual sua relação com os EIDs?”. Dessa forma, objetivou-se identificar a relação entre EIDs e a autolesão não suicida em adolescentes e adultos e quais EIDs são mais prevalentes entre os indivíduos que se autolesionam sem intenção suicida.
Esta revisão sistemática é fundamentada na compilação e na análise das evidências pertinentes aos EIDs e à autolesão não suicida, visando identificar padrões e tendências emergentes na conexão entre esses dois fenômenos. Tal abordagem tem o potencial de fornecer subsídios para o desenvolvimento de intervenções psicossociais e clínicas mais eficazes. Aprofundar a compreensão da relação entre EIDs e autolesão também pode desempenhar um papel importante na diminuição do estigma associado a esse comportamento.
MÉTODO
Trata-se de uma revisão sistemática sobre EIDs e autolesão não suicida entre adolescentes e adultos, realizada de acordo com a PRISMA checklist (Salameh et al., 2020). Inicialmente, a pesquisa foi realizada nas bases dados entre 3 e 29 de março de 2023. Posteriormente, entre 1 e 13 de fevereiro de 2024, foi realizada uma busca complementar para atualização dos dados até essa data. No processo de busca, foram utilizados como critérios de inclusão artigos publicados nos últimos 10 anos, em inglês e português (Brasil), revisados por pares, com referências disponíveis, que abordassem EIDs e autolesão não suicida entre adolescentes e adultos. Durante a seleção, foram excluídos estudos que apresentavam questões metodológicas deficientes, como falta de clareza nos objetivos, inadequações na seleção e descrição dos participantes, ausência de informações sobre os instrumentos utilizados, assim como problemas relacionados à validade e à confiabilidade das medidas empregadas.
A escolha do período dos últimos 10 anos se deu por se tratar de um intervalo significativo quanto aos avanços e mudanças na área. Ao se analisar os estudos publicados nesse período, é possível identificar tendências emergentes, padrões de pesquisa e lacunas no conhecimento existente. Conforme Donato e Donato (2019, p. 229), “uma parte fundamental de uma revisão sistemática é realizar uma pesquisa exaustiva da literatura para encontrar todos os estudos relevantes sobre o tema”.
As bases de dados pesquisadas foram: Público/ Editora MEDLINE (PubMed), Portal Capes (acesso CAFe), Science Direct, PsycInfo, Biblioteca Virtual da Saúde (BVS), APA PsycNet, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PEPsic), utilizando-se as combinações “nonsuicidal self injury AND early maladaptive schemas”, “nonsuicidal self harm AND early maladaptive schemas” e seus correspondentes em português: “autolesão não suicida AND esquemas iniciais desadaptativos”, “comportamento autolesivo AND esquemas iniciais desadaptativos” e “autolesão não suicida AND esquemas iniciais desadaptativos”. Inicialmente, os artigos foram avaliados em relação ao título e ao resumo por duas revisoras independentes, sendo a autora e a coautora deste estudo. Posteriormente, os mesmos artigos foram lidos e analisados na íntegra pelas revisoras mencionadas.
BUSCA INICIAL
Com a expressão de busca (non-suicidal self-injury) AND (early maladaptive schemas) na PubMed, foram identificados 12 estudos. Foram utilizados os filtros: últimos 10 anos, idades acima de 10 anos (adolescentes e adultos), estudos empíricos, e idiomas inglês e português. Entre os 12 estudos, não foram considerados elegíveis por focar no suicídio (n = 5), não abordar a autolesão não suicida (n = 1), repetido (n = 1) e não abordar os EIDs (n = 1). Ainda na mesma base, a partir da busca mediante a expressão (non-suicidal self-harm) AND (early maladaptive schemas), foram encontrados quatro estudos, sendo três repetidos e um não pertinente. Assim, da busca na PubMed, foram selecionados quatro estudos.
Posteriormente, mediante a expressão (non-suicidal self-injury) AND (early maladaptive schemas), foi realizada busca no Portal Capes (via acesso CAFe), utilizando-se os critérios: qualquer campo, artigos, últimos 10 anos, idioma inglês e revisados por pares. Nessa busca, foram identificados cinco artigos. Destes, não foram considerados por estarem repetidos (n = 3) e por não mencionarem EIDs (n = 1). Com a expressão (non-suicidal self-harm) AND (early maladaptive schemas), foi identificado um estudo, repetido na busca anterior. Portanto, apenas um estudo foi considerado elegível desta busca.
Na sequência, a busca a partir da expressão (non-suicidal self-injury) AND (early maladaptive schemas) realizada no Science Direct rendeu 78 resultados, dos quais, abordavam ideação suicida (n = 5), estava repetido em outra base (n = 1), não abordavam autolesão não suicida (n = 6), não abordavam EIDs (n = 6) e não eram pertinentes (n = 58). Como não pertinentes, foram considerados todos os estudos que abordavam temáticas não relacionadas à autolesão não suicida ou aos EIDs. A expressão de busca (non-suicidal self-harm) AND (early maladaptive schemas) rendeu cinco resultados: repetidos (n = 1) e não pertinentes (n = 4). Dessa forma, nesta base, apenas dois estudos foram considerados elegíveis.
Na base de dados PsycInfo, ao se aplicar a expressão (non-suicidal self-injury) AND (early maladaptive schemas) e delimitados os critérios de exclusão preestabelecidos, foram identificados cinco estudos. Destes, não foram considerados elegíveis: repetidos em outras bases (n = 2), validação de escala (n = 1) e que não abordavam EIDs (n = 1). Com a expressão de busca (non-suicidal self-harm) AND (early maladaptive schemas), foram identificados três estudos: repetido (n = 1), que abordava ideação suicida (n = 1) e que não abordava EIDs (n = 1). Portanto, apenas um estudo foi selecionado a partir da busca na PsycInfo.
No portal da BVS, mediante a expressão de busca (non-suicidal self-injury) AND (early maladaptive schemas), foi identificado um estudo e, mediante a expressão (non-suicidal self-harm) AND (early maladaptive schemas), nenhum estudo foi identificado.
Nas demais bases (APA PsycNet, LILACS, SciELO e PEPsic), não foram identificados estudos a partir da aplicação das expressões de busca. Adicionalmente, foi realizada busca na lista de referências dos estudos e, assim, mais quatro pesquisas foram selecionadas.
BUSCA COMPLEMENTAR
A fim de complementar e atualizar os dados, uma busca complementar foi realizada entre 1 e 13 de fevereiro de 2024, na qual foram verificadas as mesmas bases de dados, utilizando-se os mesmos descritores utilizados anteriormente. Assim, uma vez aplicados os critérios de inclusão e exclusão estabelecidos, foram acrescentados dois estudos, encontrados na base PubMed. Nas demais bases de dados, não foram identificados estudos pertinentes ao foco desta revisão. Além disso, dois estudos foram excluídos da busca anterior devido a sua publicação ter sido em 2013 (Figura 1). Ao se analisar as referências da busca complementar, não foram encontrados artigos relevantes para o escopo desta revisão.
Assim, 13 estudos foram selecionados para esta revisão. Todo o processo de busca e seleção está demonstrado na Figura 1. Para a síntese, os estudos foram agrupados por EIDs e seus respectivos domínios, conforme preconizam Young et al. (2008).
RESULTADOS
Nesta seção, apresentam-se e discutem-se os achados da presente pesquisa. Na Tabela 3, estão dispostas as informações dos artigos selecionados (n = 13), distribuídos por autoria/ano, amostra, instrumentos de avaliação, prevalência de autolesão não suicida, variáveis correlatas e EIDs associados à prática de autolesão não suicida.
Tabela 3 Distribuição dos artigos (n = 13) quanto às variáveis avaliadas.
Autoria/ ano | Amostra | Instrumento de avaliação | Prevalência de autolesão não suicida | Variáveis correlatas | EIDs associados à autolesão não suicida | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | Idade | Gênero (%) | Tipo | |||||
Arthurs e Tan (2017) | 156 sujeitos divididos em 3 grupos de tamanhos iguais, combinados em sexo e idade | M = 25,23 anos; DP = 8,14 anos | Feminino (82,69%) | Não clínica | Deliberate Self-Harm Inventory; Big Five Inventory; Young Schema Questionnaire-Short Form | 33,33% alta frequência (último ano); 33,33% baixa frequência (último ano) | Traços de personalidade | Comparado com o grupo de \autolesão não suicida de baixa frequência e grupo-controle, o grupo de alta frequência marcou mais alto em padrões inflexíveis. O grupo de autolesão não suicida de alta frequência também pontuou significativamente mais alto do que o grupo de autolesão não suicida de baixa frequência em isolamento social, defectividade/vergonha, vulnerabilidade ao dano e emaranhamento |
Faura-Garcia et al. (2021) | 742 adolescentes | Entre 12 e 17 anos (M = 15,58 anos; DP = 1,00 ano) | Feminino (50,7%) | Não clínica | Cyberbullying Questionnaire; Functional Assessment of Self-Mutilation; Young Schema Questionnaire-Short Form; Center for Epidemiologic Studies-Depression Scale; Five Facet Mindfulness Questionnaire-Adolescents-Short Form | 44,9% no último ano | Cyber-bulling Sintomas depressivos Mindfulness | Privação emocional Abandono/instabilidade Desconfiança/abuso Isolamento social Defectividade/vergonha |
Gohari et al. (2019) | 52 adolescentes | Entre 13 e 18 anos | Feminino (100%) | Não clínica | Young Schema Questionnaire-Short Form; Siberia Schering's Emotional Intelligence Questionnaire | 59,6% (1x) 40,4% (2x) Ao longo da vida | Inteligência emocional | Privação emocional Autossacrifício |
Leppänen et al. (2015) | 60 pacientes | M = 32,4 anos; DP = 8,6 anos | Feminino (85%) | Clínica | Young Schema Questionnaire-Long Form; Young Atkinson Mode Inventory; Subscale of Parasuicidal Behaviour | 76,7% nos últimos três meses | Transtorno da personalidade borderline | Privação emocional Abandono/instabilidade Desconfiança/abuso Isolamento social |
Lewis et al. (2015) | 434 participantes | Entre 17 e 25 anos (M= 18,59 anos; DP = 1,20) | Feminino (73%) | Não clínica | Deliberate Self-Harm Inventory; Young Schema Questionnaire-Short Form; Beck Depression Inventory – Second Edition (BDI-II) | 31,8% relataram histórico de autolesão não suicida (ao longo da vida) | Sintomas depressivos | Isolamento social Isolamento emocional Baixa pontuação em Merecimento/grandiosidade |
Nkol et al. (2021) | 403 estudantes (200 universitários; 203 do ensino médio) | Entre 16 e 25 anos: 200 universitários (M = 20,38 anos; DP = 2,29 em mulheres e M = 20,83; DP = 2,31 em homens); 203 estudantes do ensino médio (M = 16,64 anos; DP = 064 em mulheres e M = 16,88; DP = 0,76 em homens) | Feminino: universitários (64%); estudantes de ensino médio (67,98 %) | Não clínica | "Você já se machucou fisicamente de propósito?", com uma resposta dicotômica sim/não; Young Schema Questionnaire-Short Form; Depression Anxiety Stress Scale-Short Form (DASS-21) | 31% ao longo da vida; destes, 30% relataram que seu incidente mais recente de autolesão não suicida foi no mês anterior; 33% relataram incidência de, pelo menos um episódio semanal, e quase metade (47%) observou que tinha se machucado de propósito em pelo menos 10 ocasiões | Gênero Estresse Ansiedade Depressão | Defectividade e vergonha Abandono/instabilidade Isolamento emocional |
Nkol, Mak et al. (2022) | 125 estudantes | M = 18,68 anos; DP = 1,25 anos | Feminino (64,8%) | Clínica | "Você já se machucou fisicamente de propósito?", com uma resposta dicotômica sim/não; Young Schema Questionnaire-Short Form | Toda a amostra | Funções da autolesão não suicida | Abandono/instabilidade Defectividade/vergonha (funções intrapessoais) Autocontrole/autodisciplina insuficientes (funções interpessoais); gerenciar a angústia interna (intrapessoal) e influenciar seu ambiente externo (interpessoal) |
Pauwels et al. (2016) | 491 mulheres | Entre 14 e 45 anos (M = 21,44 anos; DP = 5,85 anos) | Feminino (100%) | Clínica | Young Schema Questionnaire-Long Form; Self-Injury Questionnaire | 53,6% ao longo da vida; 30% no último mês | Transtorno alimentar | Autocontrole/autodisciplina insuficientes Privação emocional Defectividade e vergonha Subjugação Padrões inflexíveis Emaranhamento |
Pozza et al. (2020) | 596 participantes | Entre 18 e 76 anos (M = 35,23 anos; DP = 13,79 anos) | Feminino (66%) | Clínica | Milwaukee Inventory for Dimensions of Adult Skin Picking; Young Schema Questionnaire-Long Form | Toda a amostra | Idade | Dependência/incompetência (subtipo focado e automático) Privação emocional (os 3 subtipos) Busca de aprovação e reconhecimento (automático) Desconfiança e abuso (focado) Fracasso (misto) |
Quirk et al. (2014) | 566 universitários | Entre 18 e 43 anos, M = 19,41 anos; DP = 2,01 anos. Após aplicação do instrumento sobre autolesão não suicida permaneceram 228 participantes | Feminino (75%) | Não clínica | Parent Rearing Behavior The EMBU; Young Schema Questionnaire-Short Form; Ruminative Response Scale; Checklist com 11 comportamentos de autolesão não suicida com a pergunta: “Você se envolveu em algum desses comportamentos no último ano, últimos seis meses ou nunca?”; Ruminação: lista com 66 itens com a pergunta: ”Quão importante cada razão tem sido para você em termos de sua motivação para se machucar?” | 52% ao longo da vida | Ruminação Estilos parentais | Motivação intrapessoal: privação emocional; defectivi-dade/vergonha; isolamento social/alienação; autocontrole/autodisciplina insuficientes Motivação interpessoal: abandono/instabilidade; desconfiança/abuso; subjugação |
Saarijärvi et al. (2023) | 112 participantes | 13 e 22 anos | Feminino (72,88%) | Clínica | Young Schema Questionnaire-Short Form; Ottawa Self-Injury Inventory Functions Scale (OSI-F) | Toda a amostra | Regulação emocional Uso de tabaco | Autossacrifício Abandono e instabilidade Padrões inflexíveis Dependência e incompetência |
Shi et al. (2023) | 1.139 participantes | 16 e 29 anos | Feminino (50,3%) | Não clínica | Young Schema Questionnaire-Short Form; Ottawa Self-Injury Inventory Functions Scale (OSI-F) | 8,67% | Regulação emocional | Privação emocional Vulnerabilidade ao dano e à doença Emaranhamento Autossacrifício Abandono e instabilidade |
Shrivastava e Sharma (2022) | 32 participantes | Entre 15 e 25 anos | Feminino (72%) | Clínica | General Health Questionnaire (GHQ)-12; Young Schema Questionnaire-Short Form | Toda a amostra | Regulação emocional | Postura punitiva Isolamento emocional Busca de aprovação e reconhecimento Negatividade/pessimismo |
Legenda: EDIS: Esquemas Iniciais Desadaptativos.
Quanto ao período de publicação, com exceção de 2018, foram identificados estudos nos demais anos. Os anos com maior número de publicações foram 2023, 2022, 2021 e 2015, com 15,38% (n = 2) em cada um deles. Os estudos com delineamento transversal prevaleceram (84,61%; n = 11), seguidos pelos randomizados (15,38%; n = 2). A amostragem totalizou 4.908 participantes, com idade entre 13 e 76 anos, em sua maioria mulheres. O instrumento para avaliação dos EIDs que mais se evidenciou foi o Young Schema Questionnaire (100%; n = 13), tanto na versão short form (86,61%; n = 11) quanto na versão long form (15,38%; n = 2) (Tabela 3).
As amostras variaram de 32 (Shrivastava & Sharma, 2022) a 1.139 participantes (Shi et al., 2023), sendo que, em todos os estudos, a maioria era de mulheres (de 50,3 a 100%). As amostras não clínicas prevaleceram (n = 7; 53,84%), e os instrumentos de avaliação mais utilizados para mensurar a autolesão não suicida foram o Deliberate Self-Harm Inventory (n = 2; 15,38%) e o Ottawa Self-Injury Inventory Functions Scale (OSI-F) (n = 2; 15,38%) (Tabela 3).
No que diz respeito à prevalência de autolesão não suicida, estudos (30,77%; n = 4) utilizaram amostras nas quais já estava definida a presença de autolesão não suicida (Nicol, Mak et al., 2022; Pozza et al., 2020; Saarijärvi et al., 2023; Shrivastava & Sharma, 2022). Nos demais, a prevalência variou de 30 (Pauwels et al., 2016) a 76,7% (Leppänen et al., 2015), considerando o mês anterior à pesquisa (Tabela 3).
Estiveram associados à autolesão não suicida e aos EIDs: idade (Pozza et al., 2020), gênero (Nicol et al., 2021), ruminação (Quirk et al., 2014), estilos parentais adversos (Quirk et al., 2014), estresse e ansiedade (Nicol et al., 2021), traços de personalidade (Arthurs &Tan, 2017), sintomas depressivos (Faura-Garcia et al., 2021; Lewis et al., 2015; Nicol et al., 2021), cyberbullying (Faura-Garcia et al., 2021), funções da autolesão não suicida (Nicol, Mak et al., 2022), transtorno da personalidade borderline (Leppänen et al., 2015) e transtornos alimentares (Pauwels et al., 2016). Como fatores de proteção estão: mindfulness (Faura-Garcia et al., 2021), inteligência emocional (Gohari et al., 2019) e regulação emocional (Saarijärvi et al., 2023; Shi et al., 2023; Shrivastava & Sharma, 2022) (Tabela 3).
No que diz respeito aos EIDs que se mostraram ligados à autolesão não suicida, a maioria se localizou no domínio I (desconexão e rejeição). Associações estatisticamente significativas (p < 0,05) foram encontradas entre autolesão não suicida e privação emocional (Faura-Garcia et al., 2021; Gohari et al., 2019; Leppänen et al., 2015; Pozza et al., 2020; Quirk et al., 2014; Shi et al., 2023); abandono/instabilidade (Faura-Garcia et al., 2021; Leppänen et al., 2015; Nicol et al., 2021; Nicol, Mak et al., 2022; Quirk et al., 2014; Saarijärvi et al., 2023; Shi et al., 2023); desconfiança/abuso (Faura-Garcia et al., 2021; Pozza et al., 2020; Quirk et al., 2014); isolamento social/alienação (Arthurs & Tan, 2017; Faura-Garcia et al., 2021; Leppänen et al., 2015; Lewis et al., 2015; Quirk et al., 2014); e defectividade/ vergonha (Arthurs & Tan, 2017; Faura-Garcia et al., 2021; Nicol et al., 2021; Nicol, Mak et al., 2022; Quirk et al., 2014).
Nos esquemas do domínio II (autonomia e desempenho prejudicados), foram encontradas associações estatisticamente significativas entre autolesão não suicida e vulnerabilidade ao dano e doenças (Arthurs & Tan, 2017; Shi et al., 2023); dependência/incompetência (Pozza et al., 2020; Saarijärvi et al., 2023); fracasso (Pozza et al., 2020) e emaranhamento (Arthurs & Tan, 2017; Shi et al., 2023) (Tabela 3).
No domínio III (limites prejudicados), associações inversamente significativas foram encontradas entre autolesão não suicida e arrogo/grandiosidade (Lewis et al., 2015) e positivas em autocontrole/autodisciplina insuficientes (Nicol, Mak et al., 2022; Quirk et al., 2014). No domínio IV (orientação para o outro), foram encontradas associações com subjugação (Quirk et al., 2014); autossacrifício (Gohari et al., 2019; Saarijärvi et al., 2023; Shi et al., 2023); e busca de reconhecimento/aprovação (Pozza et al., 2020; Shrivastava & Sharma, 2022). Por último, no domínio V (supervigilância e inibição), foram encontradas associações entre autolesão não suicida e padrões inflexíveis (Arthurs & Tan, 2017; Saarijärvi et al., 2023); isolamento emocional (Lewis et al., 2015; Nicol et al., 2021; Shrivastava & Sharma, 2022); negativismo/pessimismo (Shrivastava & Sharma, 2022); e postura punitiva (Shrivastava & Sharma, 2022) (Tabela 3).
Pode-se observar, na Tabela 4, que o domínio com maior número de esquemas relacionados à autolesão não suicida foi o primeiro, desconexão e rejeição (n = 11; 84,61%). Neste, os esquemas que mais estavam ativados nas amostras pesquisadas foram: abandono e instabilidade (n = 7; 53,85%), privação emocional (n = 6; 46,15%), isolamento social/alienação (n = 5; 38,46%), defectividade e vergonha (n = 5; 38,46%), e desconfiança e abuso (n = 3; 23,08%). Salienta-se que, em todos os domínios, foram encontrados EIDs associados à autolesão não suicida.
Tabela 4 Distribuição dos estudos em domínios e EIDs.
DISCUSSÃO
Os resultados evidenciaram que o domínio I (desconexão e rejeição) foi o que apresentou maior número de esquemas ativados. Nele, prevaleceram os esquemas de abandono e instabilidade, privação emocional, isolamento social/alienação e defectividade e vergonha.
Esse primeiro domínio está ligado à necessidade emocional básica de vínculos seguros (Young et al., 2008). Os autores explicam que indivíduos com esquemas nesse domínio têm dificuldades de formar vínculos seguros e satisfatórios com outras pessoas, porque acreditam que suas necessidades emocionais não serão atendidas.
Experiências de ser desacreditado, invalidado ou rejeitado criam um ambiente no qual a criança não aprende a gerenciar adequadamente as emoções negativas (Braden et al., 2021; Holden et al., 2021). Como resultado, a criança fica vulnerável ao enfrentamento com angústia mediante comportamentos autolesivos. A relação entre ambientes invalidantes e autolesão não suicida foi encontrada em várias amostras (Fong et al., 2022; Guérin-Marion et al., 2020; Holden et al., 2021; Vieira et al., 2021).
Pilkington et al. (2021) explicam que os EIDs estão relacionados à percepção de cuidados parentais inadequados; assim, a autolesão não suicida pode servir como ferramenta de enfrentamento à dor causada pelos esquemas do primeiro domínio (Saldias et al., 2013). A dificuldade em desenvolver vínculos pode explicar, em certa medida, a necessidade de se autolesionar. Nock (2010) afirmou, por meio de uma teoria social, que esse comportamento autodestrutivo sem intencionalidade suicida pode ser repetido após uma primeira ocorrência, pois é uma forma eficaz de comunicar, influenciar e conectar com outras pessoas em diferentes contextos de vida. Ocorre, sobretudo, quando as tentativas menos extremas de comunicação não atingem os objetivos (Muehlenkamp et al., 2023).
Johnson et al. (2022) exploram a ideia de que a autolesão não suicida pode desempenhar um papel na regulação dos sistemas neurobiológicos (p. ex., sistemas opioides endógenos) e psicológicos (como exacerbar o afeto negativo e a desregulação emocional) afetados pelo trauma na infância. Essa regulação pode resultar em alívio temporário da dor e estabelecer um ciclo de reforço negativo que perpetua o comportamento de autolesão não suicida. A explicação para esse fenômeno pode residir na liberação de endorfina, hormônio associado ao bem-estar, durante e após a autolesão, o que atua como uma forma de distração para sentimentos como angústia, tristeza e frustração, criando uma relação de dependência. Esse ciclo leva os indivíduos a envolverem-se em práticas cada vez mais complexas e prejudiciais, mantendo níveis elevados de endorfina para evitar a abstinência (van der Venne et al., 2021). Assim, a autolesão não suicida ocorre após um evento estressor e é uma estratégia utilizada para lidar com os afetos negativos sentidos no momento, ou seja, as pessoas que se ferem de forma intencional relatam que a autolesão não suicida traz alívio à angústia emocional (Johnson et al., 2022; Muehlenkamp et al., 2023; Nock, 2010), o que é muito presente em indivíduos com esquemas do primeiro domínio (Young et al., 2008).
Nesses ambientes estressores em que se desenvolvem os EIDs, existe a necessidade do sujeito de buscar formas de alívio para sua dor psíquica. Nock (2010) explica que as razões pelas quais as pessoas se machucam diferem de uma para outra, e múltiplas motivações podem coexistir. No entanto, parece que a autolesão não suicida é mais frequentemente motivada pela necessidade de regular os afetos negativos (Muehlenkamp et al., 2023; Nock, 2010; Sorgi-Wilson et al., 2023), punir-se (Muehlenkamp et al., 2023; Nester et al., 2023) ou evitar punições (Muehlenkamp et al., 2023), influenciar pessoas, comunicar-se com os outros, expressar desespero ou angústia (Nock, 2010), produzir sensações normais ou até mesmo por distração (Taylor et al., 2018), pertencer a um grupo (Muehlenkamp et al., 2023) e receber cuidado (Nester et al., 2023). A interação entre predisposição biológica (ou seja, tendência a ser emocionalmente reativo e intenso) e invalidação das relações infantis contribui para déficits na regulação das emoções, o que, por sua vez, aumenta o risco de autolesão não suicida (Linehan, 1993; Holden et al., 2021). Ambientes invalidantes são aqueles em que as emoções (Nicol, Kavanagh et al., 2022) e experiências não são reconhecidas ou validadas (p. ex., a criança é ignorada, não é levada a sério ou é culpabilizada por sua reação emocional ou preferências), presentes no desenvolvimento dos esquemas do primeiro domínio (Young et al., 2008).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou identificar a relação entre EIDs e a autolesão não suicida em adolescentes e adultos, além de investigar quais EIDs são mais prevalentes entre os indivíduos que se autolesionam sem intenção suicida. Foram considerados elegíveis 13 estudos, cujos resultados evidenciaram associações entre todos os EIDS (n = 18) e o comportamento de autolesão não suicida. Contudo, os esquemas do domínio I (desconexão e rejeição) foram os mais presentes e, entre eles, os esquemas de privação emocional, abandono e instabilidade, isolamento social/alienação, e defectividade e vergonha. Os esquemas do primeiro domínio se formam em ambientes invalidantes, de maneira precoce, antes mesmo de a criança adquirir a linguagem e isso repercute em toda a sua infância e adolescência até a vida adulta.
A literatura evidenciou que ambientes invalidantes estão associados tanto ao desenvolvimento de EIDs quanto à adoção de comportamentos de autolesão não suicida, pois causam angústia emocional recorrente e a autolesão é, por vezes, a estratégia adotada na busca de alívio para o sofrimento. Como se trata de um comportamento que gera, em certa medida, esse alívio esperado, tende a se repetir ao longo da vida.
Nesse cenário, a identificação precoce dos fatores de risco, tanto para o desenvolvimento de EIDs quanto de autolesão não suicida, é fundamental para lidar com esse problema e desenvolver estratégias de prevenção e intervenção eficazes. É importante ressaltar que os fatores de risco não são determinantes, mas indicam a probabilidade aumentada de uma pessoa se envolver em comportamentos autolesivos.
Para avançar nos esforços de rastreamento e intervenção, é importante que os profissionais da saúde estejam atentos aos sinais de EIDs e de autolesão não suicida e sejam capazes de identificar precocemente os indivíduos em risco. Uma abordagem multidisciplinar, envolvendo profissionais da saúde mental, médicos, assistentes sociais e outros membros da equipe de cuidados, é essencial para oferecer uma intervenção abrangente e personalizada.
Além disso, é fundamental investir em campanhas de conscientização e educação pública para reduzir o estigma associado à autolesão não suicida e promover a compreensão sobre os fatores de risco e as estratégias de apoio disponíveis. A disponibilidade de serviços de saúde mental acessíveis e de qualidade também desempenha um papel central na prevenção e no tratamento desses comportamentos.
Algumas limitações foram encontradas ao longo da realização deste estudo, por exemplo, o recorte idiomático. Sugere-se que mais pesquisas sejam realizadas a fim de ampliar para outros idiomas, principalmente no contexto nacional, em que não foi encontrada nenhuma publicação que contemplasse os construtos. Cabe ressaltar que, embora o presente estudo tenha alcançado seu objetivo, não se teve a ambição de esgotar o tema nem de responder em definitivo a algum questionamento sobre EIDs e autolesão não suicida.