O devaneio excessivo (DE) é uma condição caracterizada por longos períodos de atividade imaginativa e fantasiosa de caráter sistemático e imersivo, que pode resultar em preocupações ou sofrimento devido aos prejuízos funcionais decorrentes do tempo despendido com ele. Trata-se de uma forma acentuada de absorção dissociativa com imersão em um estímulo externo ou interno, que resulta na desconexão de estímulos do ambiente (Soffer-Dudek, 2014). Diferencia-se da divagação mental cotidiana, especialmente no que diz respeito ao contexto e ao conteúdo dos pensamentos autogerados (Shimoni & Axelrod, 2024). A divagação mental, ou mind-wandering, refere-se a pensamentos espontâneos que surgem de estimulação interna, como memórias e fantasias, podendo ocorrer tanto durante atividades quanto em momentos de inatividade (Murray et al., 2024). Por sua vez, o DE ocorre predominantemente em momentos de inatividade, quando a pessoa relembra o passado ou fantasia, apresentando pensamentos mais introspectivos que competem com outras atividades. No DE, o indivíduo direciona sua atenção de maneira intencional, consciente e proposital na maior parte do tempo (Theodor-Katz et al., 2022). Embora não seja classificado como psicótico, algumas experiências podem incluir características dissociativas e perceptuais intensas, levando ocasionalmente a uma leve confusão entre fantasia e realidade. Na maioria dos casos, essa confusão não evolui para alucinações ou delírios plenos (Ross et al., 2020).
O devaneio frequentemente é ativado e mantido por meio de movimentos cinestésicos e música, mas não depende disso para ocorrer (Sándor, Bugán, Nagy, Bogdán et al., 2023). Os temas predominantes dos devaneios variam conforme a cultura, entretanto, alguns dos mais comuns são: ser uma celebridade ou ter relacionamento com uma; criar uma versão idealizada de si mesmo; estar em um relacionamento romântico, realização de desejos, família ou amizades imaginárias, entre outros (Aruguete et al., 2024; Bigelsen et al., 2016; Soffer-Dudek et al., 2020).
O DE muitas vezes é experimentado como um comportamento compulsivo (Soffer-Dudek & Somer, 2018) e as dificuldades em controlar o tempo gasto fantasiando levam a problemas para cumprir responsabilidades, com prejuízos no funcionamento social (Musetti et al., 2021), atividades ocupacionais (Soffer-Dudek, 2014) ou acadêmicas (Alenizi et al., 2020). Devido ao tempo despendido na fantasia em detrimento da redução de outras atividades cotidianas ou ao contraste entre a vida idealizada e a realidade, o DE causa angústia. Embora a atividade possa ser gratificante em curto prazo, ela proporciona sentimentos negativos posteriormente, como vergonha e culpa (Soffer-Dudek & Somer, 2018).
Estima-se que cerca de 2,5% da população tenha experiências de DE, ainda que sejam necessários mais estudos para precisar a prevalência ao redor do mundo (Soffer-Dudek & Theodor-Katz, 2022). Entre os grupos vulneráveis, estão aqueles com histórico de traumas e mulheres (Soffer-Dudek & Theodor-Katz, 2022; Somer et al., 2016), além de pessoa que apresentam insegurança de separação e anedonia, e um estilo de apego assustado-evitativo (Brenner et al., 2022; Sándor, Bugán, Nagy, Bogdán et al., 2023). Estudos têm indicado forte relação com sofrimento psicológico, estando associado a muitos transtornos, como os ansiosos (Alenizi et al., 2020), os depressivos (Soffer-Dudek & Somer, 2018), o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) (Theodor-Katz et al., 2022), o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) (Chirico et al., 2024; Ross et al., 2020), distúrbios do sono, tentativas de suicídio (Somer et al., 2017) e transtornos dissociativos (Ross et al., 2020).
O termo maladaptive daydreaming surgiu informalmente em comunidades na internet. Em 2002, Eli Somer, professor de psicologia clínica da Universidade de Israel, descreveu-o como uma estratégia de enfrentamento que, em alguns casos, pode substituir a interação humana, embora essa característica não seja observada em todas as pessoas afetadas (Bigelsen et al., 2016). Atualmente, é compreendido como um comportamento aditivo, devido ao desejo intenso pela experiência e a se sentirem impelidos a repetir a ação devido à gratificação significativa para aqueles que o vivenciam (Pietkiewicz et al., 2018). Diante do reconhecido impacto funcional do DE, surgiu uma proposta de compreendê-lo como uma categoria diagnóstica, sustentada por conceitos teóricos e estudos empíricos que destacam sua relevância clínica. Essa proposta, desenvolvida por autores como Eli Somer, Colin A. Ross, Nirit Soffer-Dudek e Naomi Halpern, sugere que a condição seja caracterizada por, no mínimo, dois dos seguintes critérios, mantidos por um período de seis meses: intensa absorção durante os devaneios; uso de música ou movimentos estereotipados para manter ou aprimorar os devaneios; sonhar acordado em situações de angústia ou tédio; intensificação dos devaneios na ausência de outras pessoas; irritação quando interrompido; preferência pelos devaneios em detrimento das tarefas diárias; e tentativas repetidas e infrutíferas de controlá-los. Além disso, a perturbação deve causar sofrimento clinicamente significativo ou prejudicar atividades sociais, ocupacionais ou outras, e não pode ser atribuída aos efeitos diretos de substâncias (Somer et al., 2017).
O DE, entretanto, não é reconhecido nos manuais diagnósticos e de classificação de doenças, como o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5-TR) (American Psychiatry Association [APA], 2023) e a Classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID-11) (World Health Organization [WHO], 2024), mas desde a concepção do conceito, o interesse pelo fenômeno tem aumentado, levando à criação, em 2017, de um consórcio internacional composto por 35 pesquisadores de diversos países, incluindo o Brasil. Esses pesquisadores têm se dedicado a estudar e mensurar o DE, desenvolvendo e validando instrumentos específicos para sua avaliação, incluindo uma escala, uma versão abreviada e um roteiro estruturado para entrevista clínica, também adaptado para a população infantil (The International Consortium for Maladaptive Daydreaming Research [ICMDR], 2024). O instrumento mais usado é a Maladaptive Daydreaming Scale (MDS-16) (Somer et al., 2016), que, além da versão em inglês, já foi traduzida e validada em diversos países, com versões em turco (Metin et al., 2022), polonês (Pietkiewicz et al., 2023), italiano (Schimmenti et al., 2020), árabe (Abu-Rayya et al., 2019), persa (Ahmadi et al., 2022), hebraico (Jopp et al., 2019) e, mais recentemente, portuguâs brasileiro (Catelan et al., 2023).
Há indícios de que a ocorrência de DE tenha aumentado durante a pandemia de covid-19 devido ao isolamento social. Pessoas com essa queixa apresentaram piora na capacidade de concentração, satisfação com a vida, exaustão mental, capacidade de manter as tarefas domésticas, entre outros (Somer et al., 2020). Apesar dos avanços na compreensão do DE, persistem dúvidas sobre as condições clínicas que podem anteceder ou suceder o fenômeno. Também busca-se compreender se ele é independente de comorbidades ou se é um produto delas e quais os mecanismos de enfrentamento envolvidos. Acredita-se que o ato de devanear pode servir como uma estratégia para se desconectar do estresse e do sofrimento, regular o humor, experimentar prazer e emoções positivas, satisfazer desejos e fantasias, além de proporcionar sensações de intimidade e calmaria (Brenner et al., 2022). O objetivo deste estudo foi mapear e analisar as evidências disponíveis sobre DE, considerando sua ocorrência, evolução ao longo do tempo e interações com outras condições clínicas.
MÉTODO
Esta é uma revisão de escopo elaborada conforme orientações do Joanna Briggs Institute (JBI) (Peters et al., 2024). A condução do estudo seguiu as etapas propostas pelo Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR) (Tricco et al., 2018).
PERGUNTA DE PESQUISA
A partir do acrônimo PCC (participantes, conceito e contexto) (Peters et al., 2024), foi definida a pergunta de pesquisa. Os participantes foram pessoas com mais de 18 anos, de qualquer gênero, que apresentavam sintomatologia de DE. O conceito abordado foi o próprio DE e o contexto foi a população geral. A partir disso, o estudo teve como pergunta de pesquisa: quais são as evidências das interações do DE com outras variáveis em pessoas maiores de 18 anos?
TIPOS DE FONTES
Foram incluídos estudos de método quantitativo, revisados por pares, de caráter empírico e com acesso aberto, em qualquer idioma e que apresentaram o DE em interação com outras variáveis, dependentes ou independentes. Excluíram-se estudos de caso, estudos qualitativos descritivos, exploratórios e revisões de literatura.
ESTRATNãoGIA DE BUSCA E EXTRAÇÃO DOS DADOS
Foram consultadas as bases de dados Scielo, Lilacs, Pepsic, PsycInfo e PubMed Central por meio do Portal de Periódicos da CAPES, com o objetivo de identificar estudos publicados entre 2014 e 2024. As buscas foram realizadas em 1 de novembro de 2024, por dois revisores independentes, utilizando os descritores maladaptive (Abstract) AND daydreaming (Abstract) OR maladaptive (Title) AND daydreaming (Title). Os estudos encontrados foram importados para o EndNote Basic e, posteriormente, transferidos para a plataforma Rayyan (Ouzzani et al., 2016) para auxiliar na triagem e na seleção dos artigos.
Após a conclusão do PRISMA, os artigos elegíveis foram submetidos a uma avaliação metodológica com a utilização da lista de verificação de avaliação crítica do JBI, que examina a presença de vieses na concepção, na condução e na análise dos estudos (Joana Briggs Institute [JBI], 2020). Para a síntese das informações, utilizou-se uma versão adaptada do formulário de coleta de dados recomendado pelo JBI (Peters et al., 2024), ampliado para incluir informações sobre instrumentos de medida, variáveis associadas, além de dados referentes a grupos vulneráveis e fatores de risco relacionados ao fenômeno em estudo.
ANÁLISE DOS DADOS
Foram descritas as características observadas nos estudos, contemplando informações de publicação (ano, autores e país de origem) e aspectos metodológicos (amostra e instrumentos de coleta de dados). Os resultados dos estudos tiveram seus conteúdos analisados e organizados em três categorias que emergiram após as leituras: 1) fatores de risco e vulnerabilidade; 2) comportamentos, construtos e outras variáveis associadas; e 3) desfechos psiquiátricos associados.
RESULTADOS
Ao consultar as bases de dados, apenas a PsycInfo e a PubMed Central retornaram resultados, identificando 21 e 23 estudos, respectivamente, após a aplicação dos filtros de data (2014-2024), revisão por pares e acesso aberto. A busca inicial resultou, portanto, em 44 artigos, dos quais 16 foram excluídos por duplicidade. Após a leitura dos títulos e dos resumos, cinco artigos foram eliminados por não atenderem aos critérios de inclusão. Assim, restaram 23 trabalhos para a fase de avaliação de elegibilidade, dos quais dois foram excluídos por não corresponderem aos critérios de inclusão e exclusão. A amostra final consistiu em 21 estudos, todos com qualidade metodológica considerada de moderada a alta (ver Figura 1).

Figura 1 Processo de seleção e análise dos estudos primários que integraram a revisão de escopo segundo as recomendações PRISMA
CARACTERНSTICAS DOS ARTIGOS
A amostra variou de 77 a 6.277 participantes, com média de 866,47 participantes por estudo (desvio padrão = 1392,06). O instrumento mais utilizado para medir o DE foi a MDS-16. O estudo mais antigo foi de 2018 e os mais recentes foram quatro artigos de 2024. As variáveis mais estudadas com o DE foram transtornos ansiosos (n = 6), transtornos depressivos (n = 5), abuso ou trauma (emocional, físico ou sexual) (n = 3), regulação emocional (n = 3), estresse (n = 3) e dissociação (n = 3) (Ver Tabela 1).
Tabela 1 Síntese dos objetivos e dos resultados dos manuscritos
| Autor (ano) | Objetivo | Amostra/medida de DE | Relações observadas |
|---|---|---|---|
| Alenizi et al. (2020) | Investigar a prevalência de DE e sua associação com o desempenho acadêmico e o TAG | 306/MDS-14 | Houve uma associação estatisticamente significativa do DE positiva com TAG e negativa com desempenho acadêmico |
| Bashir (2021) | Compreender o escopo completo do DE entre estudantes de medicina no Sudão | 323/MDS-16 | Relação significativa entre DE e dificuldades acadêmicas entre estudantes de medicina, especialmente nos primeiros anos do curso |
| Chirico et al. (2024) | Avaliar a relação entre DE, uso problemático de redes sociais, sintomas psicopatológicos e estratégias de regulação emocional | 531/MDS-16 | Pessoas com DE apresentaram conexões mais fortes entre sintomas de ansiedade e somatização. Sugere-se que indivíduos com DE não dependem da supressão expressiva ou da reavaliação cognitiva para regular suas emoções |
| Horváth-Labancz (2023) | Estimar a frequência de DE em uma amostra psiquiátrica mista e explorar as características de personalidade de pessoas com maior probabilidade de apresentarem a condição | 239/MDS-16 | O DE foi associado a maior sensibilidade a emoções intensas, tendência à perseverança em pensamentos negativos, busca por perfeição e, em alguns casos, dificuldade em ajustar-se às necessidades dos outros |
| Mancinelli et al. (2024) | Investigar a função do DE como estratégia de regulação emocional e analisar a associação entre DE, dificuldades de regulação emocional e sintomas de ansiedade, depressão e estresse | 252/MDS-16 | Por um lado, o DE foi positivamente associado a dificuldades em definir metas, regular emoções e escolher estratégias para lidar com desafios. Por outro lado, foi negativamente associado a sintomas de depressão e ansiedade, bem como à capacidade de resolver problemas |
| Marcusson-Clavertz et al. (2019) | Examinar como o DE e a divagação mental durante o dia se relacionam com a qualidade do sono nas noites anterior e posterior | 152/MDS-16 | O DE foi associado à divagação mental, e ambos apresentaram relação com noites de sono ruim. A divagação mental mostrou-se o principal preditor de problemas de sono, tendo uma relação mais direta com a qualidade do sono do que o DE |
| Mariani et al. (2021) | Explorar o estilo de apego, o funcionamento reflexivo e a dimensão narrativa dos devaneios mal-adaptativos | 414/MDS-16 | Indivíduos com DE demonstraram maior insegurança no apego, incerteza na função reflexiva e tendência a utilizar menos palavras positivas, afetivas e relacionadas ao futuro. Além disso, a pontuação na MDS-16 foi um preditor significativo do sofrimento psicológico |
| Metin et al. (2023) | Explorar, sob condições objetivas de estresse e em tempo real, as funções dos fatores de confinamento, as características pessoais específicas e a percepção de estresse no DE | 1796/MDS-16 | O DE esteve associado a variáveis como diagnóstico prévio de depressão maior, baixo nível educacional, introversão, instabilidade emocional e autoisolamento durante a pandemia de covid-19. O estresse percebido influenciou a intensidade do DE |
| Musetti et al. (2021) | Investigar as relações entre DE, depressão, ansiedade, estresse e variáveis relacionadas à covid-19 | 6.277/MDS-16 | O DE foi negativamente associado à idade e a estar em uma relação romântica ou coabitação não conjugal com o parceiro. Indivíduos com DE apresentaram menor probabilidade de ter doutorado ou diploma profissional. O DE foi significativamente correlacionado com sintomas de ansiedade e depressão. Por um lado, estava associado a frequências estáveis e elevadas de interações presenciais e, por outro, havia uma associação negativa entre DE e frequências elevadas de interações on-line |
| Musetti, Gori et al. (2023) |
Avaliar relação entre experiências de vida traumáticas, estilos de defesa e DE | 356/MDS-16 | O DE foi positivamente associado a experiências traumáticas e a estilos de defesa imaturos e neuróticos, mas não aos estilos maduros. A análise de mediação revelou que os estilos de defesa imaturos e neuróticos mediaram completamente a relação entre os traumas e o DE, sugerindo que esses estilos de defesa desempenham um papel significativo no seu desenvolvimento após experiências traumáticas |
| Musetti et al. (2023) | Investigar associações longitudinais do DE com ansiedade, estresse e depressão | 814/MDS-16 | O DE esteve associado ao estresse, à ansiedade e à depressão, apresentando alta estabilidade ao longo do tempo. A exposição à covid-19 não teve associação com o DE |
| Nowacki e Pyszkowska (2024) | Avaliar a relação entre DE, estilos de enfrentamento e intolerância à frustração | 317/MDS-16 | O DE foi positivamente correlacionado com enfrentamento evitativo e intolerância à frustração, e negativamente correlacionado com busca de apoio emocional |
| Ross et al. (2020) | Determinar a frequência de DE em uma amostra psiquiátrica de pacientes com alto nível de dissociação | 100/MDS-16 | Correlacionou-se à dissociação, especialmente em subescalas de absorção, despersonalização e amnésia. Também houve correlação com características secundárias do transtorno dissociativo de identidade, sintomas psicóticos e obsessivo-compulsivos, e transtorno da personalidade borderline |
| Sándor et al. (2020) | Adaptar, avaliar a MDS-16 para húngaros e estabelecer sua pontuação de corte. Avaliar relação entre DE e experiências adversas na infância | 160/MDS-16 | Abusos emocional, físico e sexual, negligência emocional e física sofrida na infância são fatores relacionados com maiores chances de desenvolvimento de DE |
| Sándor, Bugán, Nagy, Bogdán et al. (2023) |
Avaliar as características de apego e as dificuldades de regulação da emoção entre pessoas com DE e comparar com pessoas sem essa condição | 717/MDS-16 | Indivíduos com DE apresentaram níveis moderados de confiança, ambivalência e distância nos relacionamentos, além de baixa a moderada autodefesa nas interações, com alta importância atribuída aos relacionamentos e alta dependência emocional |
| Sándor et al. (2023) | Avaliar relação entre trauma, dissociação e DE | 717/MDS-16 | O DE apresentou correlação positiva com experiências traumáticas e com experiências dissociativas, como confusão e fragmentação de identidade, perda de controle, amnésia e intensa absorção |
| Soffer-Dudek e Oh (2024) | Criar uma versão resumida da MDS-16 e avaliar relação do DE com sintomas gerais de saúde mental | 2.548/MDS-16; MD-SF5 | O DE foi associado a angústia psicológica, solidão, experiências psicóticas, consumo excessivo de álcool e suicídio. Entrevistados mais jovens relataram mais sintomas de DE |
| Soffer-Dudek e Somer (2018) | Explorar a dinâmica de níveis variados de DE e sofrimento psicopatológico | 77/MDS-14 | O DE esteve bidirecionalmente relacionado a sintomas dissociativos, obsessivo-compulsivos, depressão, ansiedade e emoções negativas |
| Somer et al. (2020) | Explorar a relação entre DE, isolamento e quarentena durante a pandemia de covid-19 | 1.565/MDS-16 | Os índices de devaneio foram maiores em quem foi obrigado a se isolar ou com comorbidade com TAS, outros transtornos de ansiedade ou TDM |
| Theodor-Katz (2022) | Investigar coocorrência de DE e TDAH entre adultos diagnosticados com TDAH | 98/MDS-16 | Pessoas com TDAH e DE, comparadas a participantes apenas com TDAH, apresentaram mais depressão, solidão e baixa autoestima |
| Zsila et al. (2018) | Examinar a associação da adoração de celebridades com o uso problemático de internet, DE, desejo de fama e autoeficácia | 437/MDS-16 | Altos níveis de adoração de celebridades foram associados ao DE, tanto como preditor quanto como desfecho. O DE foi positivamente relacionado ao uso problemático de internet e ao desejo de fama, e negativamente à autoeficácia |
Nota: MDS-16 = The Maladaptive Daydreaming Scale (16 itens); MDS-14 = The Maladaptive Daydreaming Scale (14 itens); MD-SF5 = The Maladaptive Daydreaming Scale - Short form.
ANÁLISE DE CONTEЪDO DOS ARTIGOS
Fatores de risco e vulnerabilidade
Dois estudos relacionaram DE com gênero. Em um deles, as mulheres tiveram chances ligeiramente mais altas em relação aos homens de apresentar DE (Soffer-Dudek & Oh, 2024). Contudo, no outro, observou-se o fenômeno mais comumente entre os homens (Bashir, 2021). Ser mais jovem (Musetti et al., 2021; Soffer-Dudek & Oh, 2024) e ser solteiro (Musetti et al., 2021) foram fatores associados à maior probabilidade de DE. Três estudos avaliaram fatores de risco relacionados ao contexto pandâmico. Estar exposto à covid-19 não teve associação com DE (Musetti, Soffer-Dudek et al., 2023), mas se isolar ou cumprir quarentena representou maior propensão a apresentar a condição (Metin et al., 2023; Somer et al., 2020). Três estudos relacionaram DE com experiências adversas na infância. Experiências traumáticas (Musetti, Gori et al., 2023), abusos emocional, físico e sexual, e negligência emocional na infância estiveram relacionados a maiores chances de desenvolver DE (Sándor, Bugán, Nagy, Nagy et al., 2023; Sándor et al., 2020). Um estudo relacionou o fenômeno com características de personalidade, estando associado a maior sensibilidade a emoções intensas, tendência à perseverança em pensamentos negativos, busca por perfeição e, em alguns casos, dificuldade em ajustar-se às necessidades dos outros (Horváth-Labancz et al., 2023).
Comportamentos, construtos psicológicos e outras variáveis associadas
Três estudos relacionaram DE a sintomas de saúde mental negativos. O fenômeno foi associado a angústia (Soffer-Dudek & Oh, 2024), solidão (Soffer-Dudek & Oh, 2024; Theodor-Katz et al., 2022), autoestima rebaixada (Theodor-Katz et al., 2022) e baixa autoeficácia (Zsila et al., 2018). Quatro pesquisas investigaram dificuldades de regulação emocional e enfrentamento adaptativo em indivíduos com DE. A condição apresentou correlação positiva com enfrentamento evitativo (Nowacki & Pyszkowska, 2024), intolerância à frustração (Nowacki & Pyszkowska, 2024) e dificuldades em definir metas (Mancinelli et al., 2024; Sándor, Bugán, Nagy, Bogdán et al., 2023), além de estar associada à insegurança na escolha de estratégias para lidar com desafios (Mancinelli et al., 2024). Também foi identificada correlação negativa entre DE e busca de apoio emocional (Mancinelli et al., 2024; Nowacki & Pyszkowska, 2024), supressão expressiva e reavaliação cognitiva (Chirico et al., 2024), bem como uma tendência a adotar uma orientação negativa para a resolução de problemas (Mancinelli et al., 2024).
Quatro estudos associaram DE a comportamentos aditivos. Ele foi positivamente correlacionado ao uso problemático da internet e de redes sociais (Chirico et al., 2024; Zsila et al., 2018), consumo excessivo de álcool (Soffer-Dudek & Oh, 2024) e dificuldade em controlar impulsos (Sándor, Bugán, Nagy, Bogdán et al., 2023). Além disso, identificou-se uma relação bidirecional entre altos níveis de adoração a celebridades e a ocorrência de DE, sendo que cada uma dessas condições funciona como preditora da outra (Zsila et al., 2018).
Duas pesquisas relacionaram DE com padrões de apego e relacionamento desadaptativos. Indivíduos com DE apresentaram maior insegurança no apego, incertezas quanto à função reflexiva, tendência a empregar um número reduzido de palavras positivas, afetivas e relacionadas ao futuro, além de dificuldades em se engajar em metas (Mariani et al., 2021; Sándor, Bugán, Nagy, Bogdán et al., 2023). Outro estudo observou que o DE estava associado a frequências elevadas de interações presenciais e apresentou correlação negativa com a frequência de interações on-line (Musetti et al., 2021).
Três estudos investigaram a relação entre DE e prejuízos no desempenho acadêmico. Indivíduos com DE apresentaram menor probabilidade de obter doutorado ou diploma profissional, especialmente em casos de níveis elevados de ansiedade e nos primeiros anos de curso (Alenizi et al., 2020; Bashir, 2021; Musetti et al., 2021).
Desfechos psiquiátricos associados
As seguintes comorbidades foram associadas a índices mais elevados de devaneio: transtorno de ansiedade social (TAS) (Somer et al., 2020), transtorno de ansiedade generalizada (TAG) (Alenizi et al., 2020), transtorno depressivo maior (TDM) (Soffer-Dudek & Somer, 2018; Somer et al., 2020), TDAH (Theodor-Katz et al., 2022), transtornos dissociativos, TOC e transtornos psicóticos (Ross et al., 2020). Um estudo indicou características clínicas únicas, distintas das do TDAH, pois enquanto este é marcado por desatenção involuntária, o DE é caracterizado por um desvio voluntário da atenção (Theodor-Katz et al., 2022). Indivíduos com DE também apresentaram duas vezes mais probabilidade de tentar suicídio (Soffer-Dudek & Oh, 2024).
Cinco pesquisas evidenciaram associação entre DE e ansiedade e depressão em diferentes níveis de gravidade, variando entre leve, moderado, grave ou extremamente grave (Chirico et al., 2024; Musetti et al., 2021; Musetti, Soffer-Dudek et al., 2023; Soffer-Dudek & Somer, 2018; Theodor-Katz et al., 2022). Em contrapartida, um estudo indicou que o DE está negativamente associado aos sintomas de depressão e ansiedade, sugerindo que ele pode funcionar como um atenuante desses estados emocionais negativos (Mancinelli et al., 2024). Outros seis estudos o relacionaram a sintomas de outros quadros clínicos: sintomas de estresse (Musetti, Soffer-Dudek et al., 2023), somatização (Chirico et al., 2024), sintomas dissociativos (Ross et al., 2020; Soffer-Dudek & Somer, 2018), como confusão e fragmentação de identidade, perda de controle, amnésia e intensa absorção (Sándor, Bugán, Nagy, Nagy et al., 2023), sintomas psicóticos (Chirico et al., 2024; Soffer-Dudek & Oh, 2024) e sintomas obsessivo-compulsivos (Chirico et al., 2024; Soffer-Dudek & Somer, 2018). Observou-se também correlação entre o DE e a divagação mental, ambos associados positivamente a noites de sono ruim (Marcusson-Clavertz et al., 2019).
DISCUSSÃO
Apesar dos estudos recentes, o DE tem um importante campo de evidências que permite compreender o fenômeno e sua inter-relação com outras variáveis psicológicas e transtornos. O instrumento mais utilizado para mensurar o DE foi a MDS-16, que possui boas propriedades psicométricas (Somer et al., 2016) e inclusive já conta com uma versão brasileira (Catelan et al., 2023). Dois estudos que abordaram relação com gênero apresentaram conclusões divergentes quanto à maior vulnerabilidade. Tal discrepância pode ser atribuída a diferenças metodológicas, amostrais ou culturais, porém, apesar dessa variação, é amplamente reconhecida a maior vulnerabilidade das mulheres ao DE, o que pode ser explicado pela maior suscetibilidade a transtornos mentais comuns (Grapiglia et al., 2021), os quais, por sua vez, estão associados ao fenômeno (Somer et al., 2020).
Ser jovem e estar solteiro foram associados a uma maior probabilidade de DE e uma hipótese para isso é a maior exposição dos jovens a longas jornadas de trabalho e desafios característicos da idade, frequentemente associados a altos níveis de estresse, depressão e ideação suicida (Park et al., 2020), fatores igualmente relacionados ao DE (Musetti, Soffer-Dudek et al., 2023; Soffer-Dudek & Oh, 2024; Soffer-Dudek & Somer, 2018). A busca por intimidade de indivíduos solteiros em geral frequentemente se manifesta por meio de fantasias, o que também pode justificar a maior incidência de DE entre essa população (Brenner et al., 2022).
A exposição ao risco de contágio pela covid-19 não apresentou relação significativa com o DE, mas o isolamento social foi associado a um aumento na ocorrência de episódios (Musetti, Soffer-Dudek et al., 2023). Isso pode ser explicado pelo papel do DE em suprir a necessidade de interações sociais, uma vez que a fantasia pode funcionar como um meio de preencher lacunas emocionais geradas pela falta de contato direto com outros (Flickinger, 2024). Durante o isolamento, a fantasia pode proporcionar uma sensação de conexão sem os riscos interpessoais do contato real (Metin et al., 2023; Somer et al., 2020).
No contexto do desenvolvimento, o DE foi associado a experiências traumáticas e adversas na infância, o que sugere o papel das experiências infantis no seu desenvolvimento (Musetti, Gori et al., 2023; Sándor, Bugán, Nagy, Bogdán et al., 2023; Sándor, Bugán, Nagy, Nagy et al., 2023). Nem todas as pessoas com DE vivenciaram traumas, mas existem indícios de que o trauma seja um importante preditor em conjunto a outros fatores. Observou-se que pessoas com experiências traumáticas tinham devaneios com versões idealizadas da experiência, em uma tentativa de controle ou alívio (Somer & Otgaar, 2024). A tentativa de viver uma situação ideal também explicaria a associação do DE com a adoração de celebridades. Sugere-se que pessoas com DE tentem satisfazer necessidades emocionais não atendidas, frequentemente se envolvendo em relacionamentos unilaterais e não recíprocos com figuras da mídia ou personagens de ficção, com o objetivo de experimentar afeto, reconhecimento e valor, por meio de narrativas idealizadas (Flickinger, 2024).
O DE também esteve associado a maior sensibilidade a emoções intensas e pensamentos negativos (Horváth-Labancz et al., 2023), o que pode ser explicado pela função recorrente de escape (Chirico et al., 2024) ou regulação emocional do fenômeno (Brenner et al., 2022).
Uma possível explicação para a correlação positiva entre o uso da internet, redes sociais e o consumo excessivo de álcool seria a presença de mecanismos subjacentes, comuns tanto a esses comportamentos quanto ao DE, como a função de fuga e a regulação emocional (Weiss et al., 2022). Foi observada correlação entre DE e impulsividade. A dificuldade de controlar impulsos tem relação com déficits nas funções executivas (Diamond, 2013) e o DE é caracterizado por um comportamento espontâneo difícil de inibir. Uma hipótese é que haja déficits similares no controle inibitório entre as duas condições.
Em relação às associações entre DE, padrões de apego e relacionamentos desadaptativos, essas três condições estão ligadas a dificuldades interpessoais (Mariani et al., 2021; Sándor, Bugán, Nagy, Bogdán et al., 2023; Soffer-Dudek & Somer, 2018). Tais dificuldades correlacionam-se a uma maior tendência ao isolamento, o qual, por sua vez, apresenta forte relação tanto com indivíduos socialmente isolados quanto com o desenvolvimento do DE. Essa conexão é corroborada por estudos que exploram a relação entre isolamento e manifestações de DE em ambas as direções (Metin et al., 2023; Somer et al., 2020).
O prejuízo acadêmico foi um fator decorrente do DE (Alenizi et al., 2020; Bashir, 2021; Musetti et al., 2021). Como se trata de um comportamento que consome tempo e energia cognitiva, ele compete com outras atividades cotidianas e desvia o foco das demandas acadêmicas (Theodor-Katz et al., 2022). Esse impacto é preocupante, uma vez que pode agravar o sofrimento emocional dos indivíduos, favorecendo o surgimento ou a intensificação de sintomas ansiosos e depressivos (Wang et al., 2023).
A associação entre DE e outras condições clínicas é esperada (Somer et al., 2017). As comorbidades mais frequentes associadas ao DE foram transtornos de ansiedade (Alenizi et al., 2020; Somer et al., 2020) e transtornos depressivos (Soffer-Dudek & Somer, 2018; Somer et al., 2020). Isso pode ser explicado tanto pela desregulação emocional, uma característica comum a esses transtornos (Faustino, 2021) e também compartilhada por indivíduos com DE (Celban & Nowacki, 2024), quanto pelo uso do DE como uma forma de lidar com o sofrimento (Chirico et al., 2024). O TDAH também esteve relacionado ao DE (Theodor-Katz et al., 2022). Ambas as condições têm o desvio de atenção recorrente de tarefas do mundo externo devido a distrações criadas no mundo interno (Somer et al., 2017), mas é importante enfatizar que o TDAH tem um desvio de atenção involuntário, enquanto no DE trata-se de um desvio voluntário (Theodor-Katz et al., 2022).
Entre os sintomas associados ao DE, o estresse parece ter um papel importante. Situações estressoras demandam constante ajustamento psicológico (Reis & Faro, 2020) e aumentam a vulnerabilidade emocional (Wang et al., 2023), que podem fazer indivíduos com propensão ao DE a devanear como forma de escape e regulação das emoções (Chirico et al., 2024). Além disso, em casos mais exacerbados, o estresse pode desencadear experiências dissociativas (Chirico et al., 2024; Graumann et al., 2023) e somatização (Musetti, Gori et al., 2023), duas condições que apareceram associadas ao DE nos estudos levantados.
No caso dos sintomas obsessivo-compulsivos, as compulsões são realizadas com o objetivo de reduzir a ansiedade gerada pelas obsessões. De forma semelhante, no DE, o indivíduo se envolve em fantasias para evitar ou aliviar sentimentos negativos. Esses comportamentos, embora inicialmente tragam alívio temporário, acabam reforçando um ciclo vicioso que perpetua o sofrimento emocional (Chirico et al., 2024; Soffer-Dudek & Somer, 2018). Assim, o DE pode ser compreendido como uma estratégia disfuncional de regulação emocional, afetando o sono, a divagação mental e a persistência dos sintomas (Marcusson-Clavertz et al., 2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou mapear como o DE tem sido descrito na literatura e analisar as evidências disponíveis sobre esse fenômeno. Ser jovem e solteiro foram identificados como fatores risco ao DE, assim como condições de isolamento social. Experiências adversas na infância, maior sensibilidade a emoções intensas, busca por perfeição e apego inseguro parecem explicar a tendência que algumas pessoas têm a devanear excessivamente. O DE foi correlacionado positivamente ao uso problemático da internet e de redes sociais, consumo excessivo de álcool e dificuldade em controlar impulsos - aspectos que podem ser explicados por possíveis déficits no controle inibitório e/ou em estratégias de regulação emocional. Além disso, a adoração excessiva a celebridades esteve associada a maior probabilidade de DE, sendo uma relação de influência mútua entre ambos os comportamentos. O DE também demonstrou associação com diversos transtornos psiquiátricos, incluindo transtornos de ansiedade e transtornos depressivos. Entre os sintomas relacionados ao DE, destacam-se a somatização e os sintomas dissociativos, psicóticos e obsessivo-compulsivos, frequentemente mediados ou agravados pelo estresse. Esses achados sugerem a presença de um padrão significativo de desregulação emocional e de um repertório limitado de estratégias de regulação emocional entre indivíduos com DE.
Quanto às limitações, este estudo não incluiu a literatura cinzenta sobre o fenômeno nem abarcou outras faixas etárias além dos adultos. A aplicação de critérios rigorosos de inclusão e exclusão pode gerar vieses de seleção e de interpretação dos dados. No entanto, ela permite a inclusão de uma ampla variedade de evidências e métodos, o que é útil quando a literatura é heterogênea ou emergente. Além disso, a revisão de escopo possibilita a identificação de lacunas em áreas específicas da pesquisa, contribuindo para futuras pesquisas e o desenvolvimento de intervenções.
Os achados indicam que, embora seja aparentemente uma condição distinta, o DE está associado a diversas condições psiquiátricas, frequentemente relacionado a sofrimento psicológico anterior ou posterior a ele. Assim, é importante ter cautela ao considerá-lo uma entidade nosológica independente ou um epifenômeno de outras condições. Entretanto, devido ao importante impacto psicológico decorrente, é importante aprofundar estudos sobre o fenômeno a fim de que seja possível entender melhor seu funcionamento e, consequentemente, viabilizar o desenvolvimento de intervenções clínicas baseadas em evidências.














