INTRODUÇÃO
Conforme a literatura, a vivência de uma perda gestacional (PG)1 gera um processo de luto particular (Lopes et al., 2017; Soubieux & Caillaud, 2015), por contrariar o que se espera do ciclo da vida (Walsh & McGoldrick, 2013) e por, muitas vezes, ser um processo não reconhecido socialmente (Casellatto, 2015). Diferentemente de outros tipos de perda, na PG não há recordações de convivência com o bebê, prevalecendo, no psiquismo da mãe, um bebê e uma relação idealizada entre ambos (Aguiar & Zornig, 2016). Tais características podem acarretar dificuldades na vivência do processo de luto decorrente desse tipo de perda.
As percepções e os sentimentos maternos são importantes tanto durante a gestação quanto após o nascimento do bebê, e podem ser afetados pelo estado emocional materno e por aspectos contextuais vivenciados pela mulher (Borges, 2018; Costa, 2015), como uma PG. A literatura tem apontado repercussões importantes desse acontecimento na vivência de uma gestação subsequente e na relação estabelecida com o novo bebê antes e após o nascimento (Al-Maharma, Abujaradeh, Mahmoud & Jarrad, 2016; Campbell-Jackson, Bezance & Horsch, 2014; Rodrigues, 2009; Silva, 2012; Vidal, 2008).
Durante a gestação, as expectativas da mãe em relação ao bebê são importantes para a construção de vínculo entre eles. Tais expectativas se originam no mundo interno da mulher, em suas relações e vivências passadas e em suas necessidades conscientes e inconscientes. Quando ocorre uma PG anterior, tais expectativas podem ser afetadas e impactar na relação com o novo bebê, quando não permitem a ele um espaço para a construção de identidade e subjetividade própria (Borges, 2018). A vivência de uma história obstétrica anterior, muitas vezes marcada por dor, sofrimento e ansiedade, em virtude dessa perda potencialmente traumática, pode fazer com que, na nova gestação, persista o sofrimento pela perda anterior, ao mesmo tempo em que se desenvolve a ligação com o novo bebê (Rodrigues, 2009). Assim, são comuns intensos sentimentos de medo de outra ocorrência de perda (Bailey et al., 2019; Fertl, Bergner, Beyer, Klapp & Rauchfuss, 2009), demarcando um senso de ameaça (Hutti, Armstrong & Myers, 2011), justamente em um período em que estão sendo traçadas e construídas as primeiras formas de relação mãe-bebê (Aguiar & Zornig, 2016).
Especificamente em relação a esse medo, um estudo norte-americano (Côté-Arsenault & Donato, 2011) evidenciou um amortecimento emocional associado à ansiedade nessas mulheres durante a nova gestação, utilizado como recurso de autoproteção. Tal amortecimento limita o envolvimento emocional com o bebê, ao mesmo tempo em que o protege, devido à tentativa de controle das preocupações e emoções maternas. Assim, a evitação do contato com essas emoções difíceis de recordar possibilita que a mãe não as direcione ao novo bebê. Em razão disso, essas mulheres apresentam maior tendência a estabelecer menores níveis de comunicação com o bebê durante a gestação posterior (Graça, 2018). Esses comportamentos e sentimentos demonstram a relutância frente ao estabelecimento do vínculo com o novo bebê, influenciada pelos medos e angústias que marcaram a gravidez anterior (Meredith, Wilson, Branjerdpom, Strong & Desha, 2017).
Outros estudos também têm demonstrado que, em comparação a gestantes que não passaram por uma experiência prévia de perda perinatal, mulheres com essa vivência são mais propensas, durante a gestação, a apresentar: tristeza, mau-humor, preocupações excessivas (Chojenta et al., 2014), medos (Fertl et al., 2009) e sintomas ansiosos, vistos como preditores significativos de dificuldades na vinculação pré-natal (Gaudet, Séjourné, Camborieux, Rogers & Chabrol, 2014). Além disso, mais frequentemente persistem angústia e ansiedade também no pós-parto para essas mulheres (Chojenta el al., 2014), indicando uma real vulnerabilidade em termos de saúde mental. Ademais, é possível que o estresse pós-traumático presente na gestação anterior também se evidencie após o nascimento do novo bebê, influenciando no investimento emocional direcionado a ele e nas preocupações com a sua saúde (Armstrong, Hutti & Myers, 2009). Esse panorama se mostra um fator de risco para o desenvolvimento psíquico do novo bebê, especialmente quando há, para as mães, perda de contato com as próprias emoções, por exemplo, o que pode impactar na percepção sobre o bebê, nos cuidados direcionados a ele, assim como na relação construída entre ambos (Graça, 2018).
No que concerne à relação mãe-bebê nesse contexto, podem, então, surgir dificuldades no vínculo. O estudo de Silva (2012) demonstrou que isso pode se manifestar em comportamentos maternos de superproteção e na escolha de um nome igual ou semelhante ao do bebê falecido para o novo bebê. Em relação aos nomes dos filhos, Cramer (1993) destaca que estes são sempre “fantasmas”, independentemente do contexto, pois, quando se escolhe um nome, atribui-se um lugar, uma filiação e um laço que une os pais a uma imagem ideal de um filho, embora, ao mesmo tempo, garanta um lugar simbólico a ele. No caso de uma PG anterior, tal escolha pode influenciar a formação de identidade do novo bebê, que pode carregar, então, a função de substituir o bebê falecido (Silva, 2012; Vidal, 2008).
Segundo Vidal (2008), a substituição nos casos de PG prévia refere-se ao fato de o bebê perdido não ter sido efetivamente conhecido, ficando situado no terreno da idealização. Diante disso, a autora considera esse tipo de perda como perda ideal, com características narcísicas; é como se, em decorrência da perda, ficasse um espaço aberto a ser preenchido pelo novo bebê. Desse modo, seria esperado um processo de distorção na percepção materna, que pode desencadear comportamentos de superproteção e hipervigilância em relação à segurança e à saúde da criança nascida posteriormente, já mencionados, tornando-a vulnerável psiquicamente às questões maternas.
Cramer (1993), ao discutir o fenômeno de substituição, apontou que a criança concebida após ou durante um processo de luto parental poderia ficar responsável, inconscientemente, por reparar a perda irremediável ou por “reanimar” a mãe (Stern, 1997). Considerando-se que na PG predomina uma relação idealizada com o bebê, pois não houve tempo para ele “decepcionar” os seus pais, Cramer destaca a intensidade da demanda que pode estar dirigida ao filho subsequente, de estar à altura de um retrato ideal, principalmente ao assumir um status de pessoa a partir do filho perdido. Entretanto, o autor faz a ressalva de que um filho é sempre um ser de substituição, marcado pela fidelidade que se carrega frente a modelos com quem se mantém uma troca imaginária de valor e afeição. Essa posição garante um lugar de inserção e permanência na família. Ainda, o bebê não é um ser passivo; ele apresenta uma individualidade, que influencia na natureza das interações com os pais. Desse modo, mesmo que a substituição faça parte, em certo grau, de todos os nascimentos, é importante atentar à forma como ocorre. Nos casos de PG anterior, deve-se cuidar para o novo filho não vir a se tornar “invisível” para a família (Warland, O’leary & McCutcheon, 2011).
Para além de situações como a de uma PG, cabe destacar que, diante da maternidade, é inevitável um processo de revivescências, conscientes e inconscientes, que pode, também, influenciar nas percepções direcionadas ao bebê, ao mesmo tempo em que permite que alguns acontecimentos parentais passados possam ser ressignificados. Alguns desses acontecimentos, que estiveram impossibilitados de simbolização até então, podem vir a se constituir como “fantasmas no quarto do bebê” (Fraiberg, Adelson & Shapiro, 1994), prejudicando a relação pais-bebê e comprometendo o desenvolvimento infantil, se não “escutados” (Teodózio & Frizzo, 2016). Como se entende a PG como um evento de difícil elaboração (Aguiar & Zornig, 2016), diante de seu caráter potencialmente traumático, esta poderia vir a se constituir dessa forma. Contudo, também é possível que a elaboração psíquica de tal evento possa continuar durante a gestação e a maternidade subsequente (Silva, 2012; Vidal, 2008).
Pouco se conhece, empiricamente, sobre as percepções e sentimentos maternos direcionados à gestação e ao bebê concebido posteriormente a uma PG. De modo geral, estudos internacionais sobre o tema tem se direcionado para o período gestacional e focado a saúde mental materna (Chojenta et al., 2014; Côté-Arsenault & Donato, 2011; Gaudet et al., 2014; Hunter, Tussis & MacBeth, 2017; Hutti et al., 2011) e o impacto dessa vivência na vinculação pré-natal (Graça, 2018; Rodrigues, 2009). Contudo, em sua maior parte, os estudos não abarcam a PG de modo exclusivo, já que incluem também perdas neonatais precoces, designadas conjuntamente como perdas perinatais. Ademais, são escassos os estudos, nacionais e internacionais, com foco posterior ao nascimento do bebê subsequente (Campbell-Jackson et al., 2014; Silva, 2012). No que tange à metodologia, estudos qualitativos brasileiros sobre as percepções e sentimentos maternos sobre a gestação e o bebê nascido após uma PG ainda são escassos. Diante dessas lacunas da literatura e da importância dessa temática em termos de prevenção à saúde mental materna e do bebê, no presente estudo objetivou-se identificar e compreender as percepções e sentimentos maternos sobre a gestação e o bebê subsequente à PG.
MÉTODO
PARTICIPANTES
Quatro mulheres (22 a 29 anos) que vivenciaram pelo menos uma PG nos últimos cinco anos e que, após essa perda, tiveram um bebê (no momento do estudo, com seis a 21 meses de vida). Na Tabela 1 são apresentadas as características das mães, da(s) PG(s) e do bebê subsequente.
Tabela 1 Caracterização das Participantes
Características | Afrodite P1 | Hera P2 | Ilitia P3 | Artemis P4 |
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Características Maternas | ||||
Idade (anos) | 22 | 29 | 29 | 29 |
Escolaridade | ESI | EM | EFI | PG |
Renda familiar (nº salários mínimos) | Sem informação | 2,5 | 2,2 | 10,5 |
Situação conjugal | Coabitação | Coabitação | Casamento | Casamento |
Tempo de relacionamento (anos) | 8 | 5 | 3 | 7 |
Religião | Católica | Católica | Evangélica e umbanda | Evangélica |
Características da perda | ||||
Momento de ocorrência da PG mais recente (semanas gestacionais) | 40 | 37 | 20 | 16 |
Sexo do bebê | M | F | F | F |
Tempo transcorrido desde a PG mais recente (anos) | 3 | 4 | 2,5 | 3 |
Outras perdas de filhos | Não | Neonatal (2 dias) | Gestacional (tempo não informado) | Gestacional (9 semanas) |
Características do bebê subsequente | ||||
Sexo | M | F | F | F |
Idade (meses) | 21 | 6 | 19 | 19 |
Tipo de parto | Cesárea | Cesárea | Cesárea | Cesárea |
Tempo transcorrido da PG até o início da gravidez subsequente (meses) | 8 | 36 | 3 | 29 |
Legenda: P = Participante; ESI = Ensino superior incompleto; EM = Ensino Médio; EFI = Ensino fundamental incompleto; PG = Pós-Graduação; PG= Perda gestacional; F = Feminino; M = Masculino
O convite para o estudo foi divulgado em mídias sociais de organizações não governamentais (ONG) que atuam na temática da perda de filhos e nos perfis pessoais (Facebook e Instagram) dos integrantes da equipe de pesquisa e do Núcleo de Estudos em Desenvolvimento e Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (NEEDS UFCSPA). Foram considerados como critérios de inclusão: idade materna entre 18 e 29 anos, vivência de pelo menos uma PG nos últimos cinco anos e ter um bebê nascido após a PG com idade entre seis e 24 meses. Os critérios de exclusão da mãe foram: presença de deficiência intelectual (observada a partir do contato) e outros quadros psicopatológicos severos, como esquizofrenia e risco de suicídio. Já os bebês não poderiam apresentar malformações.
Mediante a divulgação, 51 mulheres demonstraram interesse em participar (41 via WhatsApp, nove via e-mail e uma por indicação). Dessas, 14 preencheram os critérios de inclusão. Dentre elas, oito não enviaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado e/ou não responderam o contato da equipe de pesquisa. Seis mulheres realizaram a coleta de dados presencialmente (n = 1) ou via Skype (n = 5). Dentre essas, optou-se por homogeneizar as participantes (Flick, 2009) em relação ao momento da PG (segundo trimestre em diante), selecionando-se quatro, número que, segundo Gil (2002), seria suficiente para trabalhar de forma adequada diante da complexidade de informações dos estudos qualitativos.
DELINEAMENTO, INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS
Trata-se de um estudo qualitativo e transversal, que deriva de projeto que recebeu apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS (Edital Pesquisador Gaúcho 2017) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa da terceira autora). Mediante a divulgação do estudo, as participantes contactaram a equipe de pesquisa. Nesse contato inicial foram explicados os objetivos e procedimentos de coleta e verificados os critérios de inclusão. Foi, então, enviado o TCLE por e-mail para as mães que não residiam em Porto Alegre ou região, sendo solicitado o seu reenvio preenchido e assinado. Para as demais, esse procedimento ocorreu presencialmente, antes da aplicação dos instrumentos, que aconteceu nessa ordem: Ficha de Dados Sociodemográficos e Clínicos (FDSC, adaptada de Núcleo de Infância e Família – NUDIF, 2008a); Brief Symptom Inventory (BSI, Derogatis [1993], versão adaptada da validação para Portugal por Canavarro [1995;2007]), para avaliar sintomas psicopatológicos; Questionário sobre Vivências de Perda (QVP) (Vescovi, Esswein & Levandowski, 2017), para investigar perdas de familiares, amigos e/ou de filhos (ocorridas desde a gestação até o período posterior ao nascimento) e as características dessa(s) perda(s); e Entrevista sobre a Vivência de Luto Materno e Experiência da Maternidade Atual (adaptada de NUDIF, 2008b), de caráter semiestruturado, que abordava a experiência da PG, a experiência da maternidade atual e as representações da maternidade em relação ao cuidador principal da mãe. No presente estudo foram considerados os conteúdos que se referiram aos sentimentos e percepções maternas acerca da gestação e do bebê subsequente à PG, emergidos em qualquer parte da entrevista.
Cabe destacar que, nas coletas via Skype, realizou-se a leitura dos instrumentos para as participantes. Já nas coletas presenciais, adotou-se o autopreenchimento. Quanto às entrevistas, todas foram gravadas em áudio para posterior transcrição. Antes do início da coleta de dados, foi realizado um estudo-piloto com um caso, para verificar a adequação dos instrumentos e da logística de coleta. O processo de coleta de dados durou em média 100 minutos, e foi organizado em um ou dois momentos, conforme a preferência das participantes. Tanto na coleta presencial como nas coletas online, agendadas conforme a disponibilidade das participantes, essas se encontravam em suas residências.
CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFCSPA (Parecer: 2.934.589) e seguiu as diretrizes da Resolução no 466/2012 e no 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisas com seres humanos. Todas as participantes receberam o TCLE, no qual constavam os objetivos da pesquisa, a garantia de confidencialidade e sigilo dos dados, a possibilidade de desistência ou retirada do consentimento sem nenhum tipo de prejuízo e os contatos das responsáveis pelo estudo. A participação foi voluntária e considerada de risco mínimo, devido à temática poder gerar algum desconforto. Contudo, esse não foi significativo a ponto de causar algum dano às participantes. Não foram identificadas situações de sofrimento intenso, que exigissem acolhimento ou mesmo encaminhamento das entrevistadas para atendimento psicológico. Os materiais coletados foram arquivados em local seguro na UFCSPA.
PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DE DADOS
A FDSC serviu para a caracterização das participantes. Tanto o QVP como o BSI foram utilizados para identificar o cumprimento dos critérios de inclusão no estudo (vivência de PG e indicadores de psicopatologia), juntamente à percepção das entrevistadoras sobre a participante durante a entrevista. O BSI serviu também para informar o estado de saúde mental materno.
As entrevistas foram analisadas por meio de análise temática, organizada de modo indutivo e reflexivo (Braun & Clarke, 2006; Braun, Clarke, Hayfield & Terry, 2019), sendo os temas representantes de um padrão de significado (evidente de forma explícita ou latente) diante do conjunto dos dados, a partir de um processo de codificação que emergiu da leitura do material, sem uma definição preexistente. A análise foi realizada em seis etapas, conforme a indicação de Braun e Clarke (2006): 1) familiarização com os dados, 2) geração de códigos iniciais, 3) busca por temas, 4) revisão de temas, 5) definição e nomeação dos temas e 6) produção de relatório.
A análise foi realizada pela primeira e segunda autoras de forma cega e independente. Eventuais dúvidas foram discutidas para a obtenção de um consenso. Após isso, a análise foi apresentada à terceira autora para verificar a adequação e a eventual necessidade de modificações na estrutura temática. Com isso, objetivou-se o aperfeiçoamento na codificação, na busca dos temas e na exemplificação dos dados, além de se atenuar possíveis vieses. A categorização final é apresentada a seguir.
RESULTADOS
A partir da análise foram identificados dois eixos temáticos: 1) Sentimentos maternos sobre a gestação e 2) Percepções e sentimentos maternos sobre o bebê após o nascimento. Na Tabela 2 estão apresentados os eixos temáticos e os respectivos subtemas, suas definições e alguns exemplos.
Tabela 2 Eixos temáticos e subtemas derivados da análise temática
Eixo Temático 1: Sentimentos Maternos sobre a Gestação | |
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Eixo Temático 2: Percepções e Sentimentos Maternos sobre o Bebê após o Nascimento | |
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Em resumo, o primeiro eixo temático, que se refere aos sentimentos maternos relacionados ao período da gestação subsequente à PG, demonstrou sentimentos de medo e preocupação de ocorrência de nova PG, ambivalência em relação ao desejo de ter o bebê, e angústia frente ao tipo de parto e nascimento do bebê. Também foi observado um desejo de não revelar para a família a nova gestação. O segundo eixo temático, que demonstrou as repercussões da PG vivida anteriormente nas percepções e nos sentimentos da mãe sobre o bebê também após o nascimento, evidenciou a idealização do bebê, de suas características e da relação mãe-bebê, além da continuidade de sentimentos de medo e preocupação frente à possibilidade de morte do bebê, mesmo após o seu nascimento. Também ficou demonstrada certa substituição do bebê falecido pelo novo bebê, revelada nas escolhas de nomes iguais ou semelhantes entre os bebês e do uso de roupas e objetos.
DISCUSSÃO
Em relação ao primeiro eixo temático, “Sentimentos Maternos sobre a Gestação”, verifica-se a predominância de medo e preocupações referentes à gestação, o que pareceu estar vinculado à experiência de perda anterior, já que as falas indicaram medo de se vincular ao novo bebê e perdê-lo, assim como constante verificação do andamento da gestação. Tais achados concordam com a literatura, que indica ser comum o medo de repetição do passado (Côté-Arsenault & Donato, 2011), isto é, de uma nova perda. Achados semelhantes foram encontrados em estudos com essa temática (Bailey et al., 2019; Fertl et al., 2009; Hunter et al., 2017; Meredith et al., 2017), que identificaram maiores níveis de medo, ansiedade e preocupações em gestantes que já sofreram PG. Particularmente, de acordo com o estudo de Hutti et al. (2011), realizado nos Estados Unidos, as mulheres reportam uma sensação de ameaça em sua gestação subsequente, que permanece mesmo quando não existe um risco clínico real na nova gestação. O estudo demonstrou, inclusive, a maior utilização de recursos de cuidado em saúde nesses casos, como frequentes ligações, procedimentos e exames médicos.
O que se percebe entre essas mulheres é uma “quebra de confiança” de que a gravidez pode vir a ser bem-sucedida, devido à PG anterior. Diante disso, é plausível e esperado que mecanismos de autoproteção sejam acionados, acarretando um amortecimento emocional (Côté-Arsenault & Donato, 2011). Isso explicaria o desejo delas de não revelar a nova gestação para familiares e outros, por medo de criar expectativas em si e nas pessoas ao redor e, repentinamente, vivenciar outra PG. Tal panorama corrobora os achados de Bailey et al. (2019), que apontaram uma relutância por parte das mulheres para comunicar a notícia da gravidez, devido ao medo de outra ocorrência de aborto, o que acionou, como mecanismo de autoproteção, uma postura de distância emocional frente à nova gestação.
Ademais, a maioria das participantes (com exceção de uma) demonstrou ambivalência diante da descoberta da nova gestação. Embora a ambivalência seja um processo esperado, não existindo gestações completamente aceitas ou rejeitadas (Simas, Souza & Scorsolini-Comin, 2013), é possível que, nos casos de PG prévia, acentue-se, servindo, de certa forma, para proteger a mulher diante da possibilidade de uma nova perda. Contudo, é preciso atentar para esse sentimento, para que não repercuta negativamente na relação com o novo bebê (Fonseca, Rocha, Cherer & Chatelard, 2018).
Além de todo o contexto emocional da gestação, as participantes apresentaram angústias importantes em relação ao parto, momento que demarca a possibilidade do encontro com o bebê real (Soulé, 1987; Pedreira & Leal, 2015). Foi perceptível certa urgência nessas mulheres (manifestada pelo desejo de antecipação do parto), a fim de impedir uma fatalidade e garantir a sobrevivência do bebê. Embora o parto seja considerado um evento que tipicamente mobiliza a mulher emocionalmente, envolvendo angústias e medos (Tostes & Seidl, 2016; Velho, Santos & Collaço, 2014), entende-se que, no caso das participantes, essa angústia também pode estar vinculada à história obstétrica anterior, marcada por intensa dor, sofrimento e ansiedade (Rodrigues, 2009). Um estudo (Fertl et al., 2009) realizado em contexto europeu mostrou que gestantes com elevados níveis de medo e ansiedade durante a gestação subsequente a um aborto apresentaram maior tendência a partos cirúrgicos e com datas pré-definidas. No presente estudo, apenas uma das participantes realizou parto vaginal.
Desse modo, o medo e a preocupação presentes durante a gestação, vinculados à(s) PG(s) anterior(es), perpassaram os subtemas identificados na análise, referentes à ambivalência ante a gestação, ao desejo de manter a gestação em “segredo” e aos intensos sentimentos de angústia. Tais sentimentos ilustram as premissas do estudo de Rodrigues (2009), que demonstrou a conexão dessas manifestações com as experiências traumáticas que permearam a gestação anterior e que podem vir a impactar a relação mãe-bebê após o nascimento.
Nesse sentido, em relação ao segundo eixo temático, “Percepções e Sentimentos Maternos sobre o Bebê após o Nascimento”, especificamente no que concerne aos significados que o bebê carrega consigo, verificou-se percepções e sentimentos maternos direcionados à felicidade, luz, renascimento, atenuação da dor emocional, entre outros aspectos. Por um lado, esses significados positivos denotam a possibilidade materna de vinculação ao bebê, o que repercute positivamente na relação mãe-bebê e na constituição psíquica da criança. Por outro lado, podem apresentar a percepção de um bebê que “retira” a mãe de um estado de dor, medo e angústia predominante durante a gestação. Nesse sentido, Stern (1997) destacou ser possível, dependendo do estado emocional materno, que um bebê possa vir a assumir o papel de reanimar a mãe para a vida, como um convite à interação. Tal padrão pode se manter em escolhas objetais futuras dessa criança.
Nesse sentido, nos subtemas “Sua Majestade, o bebê” e “O laço entre nós: sobre a relação com o bebê” também foi possível perceber que as mães pareceram abrir espaço somente para o que havia de positivo tanto em relação às características e atributos do bebê quanto à relação estabelecida com ele. Apenas uma verbalização fez referência à birra da criança, denotando um aspecto menos idealizado da filha. Parece ser comum, mesmo em contextos típicos de maternidade, que as mães descrevam essa experiência de forma superlativa, talvez por uma dificuldade de colocar em palavras o encontro com o recém-nascido e o impacto emocional de recebê-lo (Nogueira, Chatelard & Carvalho, 2017). Contudo, pode-se entender que, em um contexto de PG anterior, o bebê que nasce subsequentemente pode vir a ser um reparador dessa perda (Cramer, 1993), assumindo, assim, prioritariamente características à luz da idealização. A literatura também aponta que, em caso de PG, as mulheres podem sentir-se inconscientemente culpadas (Vidal, 2008), o que pode levar a uma necessidade de reparação subsequente, demonstrada por essa idealização (Rodrigues, 2009). Apesar disso, também é importante destacar que essas participantes sentiram muito medo de uma nova perda durante toda a gestação, talvez se sentindo mais autorizadas, a partir do nascimento do bebê, a abrir espaço para as características e percepções mais positivas, o que denota, também, uma abertura para o estabelecimento de um vínculo. Contudo, não se pode esquecer que é possível que essa “idealização” não forneça espaço para que o bebê assuma um senso de identidade próprio (Silva, 2012), o que pode ser preocupante para o seu desenvolvimento e constituição psíquica.
Desse modo, observou-se que a construção de identidade do novo bebê pode ser afetada, em alguma medida, pela função de substituição do bebê falecido, como percebido na fala de todas as participantes, ao fazerem referência a comportamentos como o uso de objetos e roupas do bebê anterior no bebê atual e à escolha do mesmo nome ou de nome semelhante ao do bebê falecido. Provavelmente, o fato de os bebês nascidos após a PG serem do mesmo sexo que o bebê falecido facilitou, em alguma medida, esse caráter de substituição do novo bebê. Achados semelhantes foram encontrados por Silva (2012) no âmbito do Rio Grande do Sul. A autora destacou que dificuldades no vínculo podem aparecer, também, por meio de semelhança na escolha do nome, por exemplo, já que a substituição está pautada na tendência de associar o bebê vivo ao bebê falecido, denotando essa dificuldade de estabelecer um novo vínculo afetivo com uma nova pessoa (Vidal, 2008).
Por fim, todas as participantes referiram medo e preocupações sobre o bebê após o nascimento, o que pareceu ser uma continuidade dos medos e preocupações vivenciados ao longo da gestação, porém, com algumas particularidades. Tais sentimentos sofreram transformações que reverberaram em superproteção e hipervigilância em relação ao bebê. Em geral, a literatura aponta que os pais parecem esperar o pior durante a gestação, sendo possível que isso diminua no convívio com a criança. Entretanto, pode seguir o sentimento de ameaça, sobressaindo-se a sensação de que o filho pode morrer a qualquer momento, quando, por exemplo, adoece (Campbell-Jackson et al., 2014), não sendo incomum, nesses casos, comportamentos de superproteção direcionados ao filho (Silva, 2012). Entende-se que, diante da PG anterior, essa ameaça esteja ainda intensa para as participantes, perpassando fortemente as suas percepções e sentimentos sobre o bebê.
De fato, o medo de uma nova ocorrência de perda influenciou as percepções maternas e permeou todos os subtemas discutidos nesse estudo, mesmo que aparecendo de formas distintas na gestação e a partir do nascimento. Desse modo, é possível pensar que a PG anterior atue como um “fantasma no quarto do bebê” (Fraiberg et al., 1994), apresentando repercussões importantes para as mães e, consequentemente, para seus filhos. Entretanto, essa história não precisa ser o destino dessas duplas, o que também ficou perceptível em alguns discursos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo objetivou identificar e compreender as percepções e sentimentos maternos sobre a gestação e sobre o bebê subsequente a uma PG. Desse modo, contribuiu para o entendimento de que a vivência de uma PG repercute nesses aspectos. As mulheres mostraram-se ambivalentes em relação à gestação, temerosas frente a uma nova perda e angustiadas em relação ao parto e ao nascimento do bebê. Após o nascimento, o bebê foi percebido de forma muito positiva, denotando tanto o estabelecimento de um vínculo como também uma idealização frente à maternidade e à criança. Também se percebeu que os medos e as preocupações presentes na gestação assumiram outras formas após o nascimento, tais como superproteção e hipervigilância em relação ao bebê. Ainda, em partes, os novos bebês assumiram para as mães um lugar de substituição do bebê falecido, o que foi demonstrado por meio do uso de (quase) todos os objetos do bebê falecido e pela escolha de nomes muito semelhantes ou mesmo iguais aos anteriores, podendo contribuir para isso o fato de os bebês nascidos após a PG serem do mesmo sexo que o bebê falecido.
Dessa forma, os achados indicaram que a PG anterior se constituiu como um fantasma no quarto do bebê, perpassando as percepções e sentimentos maternos sobre a gestação e sobre o bebê. Foi possível constatar que as mães estavam conseguindo estabelecer uma relação com o novo filho, mesmo que, por vezes, permeada por esses fantasmas. Em função disso, esses resultados apontam para a importância de espaços de troca, inclusive com os profissionais de saúde, já que essas mulheres mostraram uma maior procura de exames e serviços médicos, a fim de verificar se a gestação transcorria bem. Assim, é importante que os profissionais estejam atentos para o contexto e os sentimentos que as mulheres vivenciam após uma PG, pois podem auxiliar em termos de prevenção de saúde mental das mães e de seus bebês, bem como na vinculação pré e pós-natal, aspectos esses que podem impactar no desenvolvimento infantil.
Espera-se, portanto, que este estudo reforce a importância da compreensão das percepções e sentimentos maternos sobre a gestação e sobre o bebê subsequentes à PG e que inspire novas pesquisas nessa área, ainda incipientes. Sugere-se que estudos futuros possam considerar também o bebê, buscando observar e compreender como ele reage diante das percepções maternas afetadas por uma experiência de PG prévia, assim como também incluir o pai ou outros familiares, já que este é um contexto importante. Ainda, sugere-se a ampliação das amostras e sua diversificação em termos culturais e econômicos. Por fim, recomenda-se que sejam realizadas investigações direcionadas aos serviços de saúde, para auxiliar na prevenção da saúde mental do binômio mãe-bebê e de sua família.