INTRODUÇÃO
A Teoria do Sexismo Ambivalente (SA), apresentada em 1996 por Glick e Fiske (1996), surge no campo da Psicologia Social, a partir da percepção de que as pessoas têm mais facilidade em justificar preconceitos quando expressam algumas crenças subjetivamente ou supostamente positivas sobre outro grupo (Glick & Fiske, 2011). Além disso, os autores inspiraram-se também nas pesquisas sobre racismo da época, nos Estados Unidos (Gaertner & Dovidio, 1986; McConahay, 1986), que indicavam que esse não se manifestava mais de forma tão aberta, explícita e sem conflito, em função das transformações nas normas sociais, numa era dos Direitos Civis. O racismo havia se tornado mais sutil e ambivalente. Glick e Fiske perceberam que uma análise semelhante parecia se aplicar ao sexismo, todavia, destacam diferenças entre ambos. De acordo com os autores, nas relações de gênero, além de haver domínio e subordinação, os membros dos dois grupos frequentemente, têm relações mais estreitas e constantes, costumam ter relacionamentos românticos e familiares próximos. Enquanto nas relações entre grupos raciais há uma experiência de menor contato. Sugerindo, portanto, que o preconceito em relação às mulheres não se enquadra no modelo teórico deste como puramente uma antipatia (Glick e Fiske, 2011).
Desta forma, Glick e Fiske (1996) propõem o sexismo em relação às mulheres como um construto multidimensional marcado por sentimentos ambivalentes, ou seja, em vez de conceituá-lo como uma forma de preconceito que reflete unicamente hostilidade em relação às mulheres, os autores apontam o sexismo como um caso especial que retrata sentimentos ambivalentes, englobando dois conjuntos de atitudes: hostis e benevolentes. O sexismo hostil (SH) abrange crenças e atitudes abertamente discriminatórias, considerando as mulheres inferiores aos homens e expressando intolerância quanto ao papel feminino como figura de poder e decisão. Já o sexismo benevolente (SB) abarca uma visão de cunho protecionista, idealizador e afetivo, descrevendo a mulher como uma pessoa frágil, que necessita de atenção, mas que complementa o homem, o que fornece uma racionalização confortável para confiná-las a papéis domésticos e reforça sua subordinação diante da figura masculina. Desta forma, as dimensões do SA combinam concepções de falta de competência das mulheres, permitindo que os homens exerçam poder estrutural sobre elas com justificativas supostamente “benevolentes” que os possibilitam ver suas ações como não exploradoras (Glick & Fiske, 2011).
A SA é relacionada por alguns autores à violência que ocorre dentro de um relacionamento íntimo (Allen, Swan & Raghavan, 2009; Arnoso, Ibabe, Arnoso & Elgorriaga, 2017; Easteal, Holland & Judd, 2015; Expósito, Herrera, Moya & Glick, 2010; Novo, Herbón & Amado, 2016). Verifica-se que não há um consenso na literatura de uma terminologia para se referir a este tipo de violência. Entretanto a produção científica mais recente, têm optado pelo termo “violência por parceiros íntimos” (VPI), que também será utilizado no presente estudo, por este se aproximar mais de um entendimento que envolve as diversas configurações de relações íntimas afetivas. A VPI é compreendida como todo e qualquer ato de abuso físico sexual, moral, patrimonial e/ou comportamento controlador cometido contra alguém com quem mantém (ou manteve) qualquer tipo de relação íntima afetiva, independente de coabitação (Brasil, 2006; Krug, 2002; Saltzman, Fanslow, McMahon & Shelley, 1999).
Apesar haver estudos que mostram números comparáveis de VPI perpetrada por homens e mulheres (Archer, 2000; Arnoso et al., 2017; Frieze, 2005; Strauss, 2008), importantes referências (World Health Organization [WHO], 2005; 2013; 2017) apontam as mulheres como as principais vítimas. Além disso, Allen et al. (2009) propõem que a violência da mulher contra o parceiro pode, muitas vezes, ser uma reação a uma vitimização prévia, ou seja, uma resposta à violência praticada pelo parceiro.
A VPI é um fenômeno multicausal e em muitos casos está relacionada a crenças e atitudes tolerantes ao uso da violência. Diversas culturas estabelecem, por meio de sistemas de crenças e ideologias, papéis, características e comportamentos apropriados para homens e mulheres que acabam por direta ou indiretamente, legitimar a VPI (Pérez, Fiol, Palmer & Guzmán, 2006; Valor-Segura, Expósito & Moya, 2011). Além disso, podem muitas vezes contribuir e/ou se esforçar para manter o status quo de subordinação e subjugação das mulheres em relação aos homens (Marques-Fagundes, Megías, García-García & Petkanopoulou, 2015). Tendo em vista esta possível relação entre SA e VPI e o fato de que até o momento não se tem conhecimento de um estudo de revisão que a tenha abarcado, a presente produção teve como objetivo identificar e compreender as relações estabelecidas entre o SA e a VPI na literatura científica.
MÉTODO
Conduziu-se uma busca de artigos científicos nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), PsycInfo, PubMed, SciELO e Web of Science, utilizando as seguintes combinações de descritores: (“violência por parceiro íntimo*” ou “violência de gênero*”) e “sexismo ambivalente*”. As combinações foram realizadas em português, inglês (intimate partner violence; gender-based violence; ambivalent sexism) e espanhol (violencia de pareja; violencia de género; sexismo ambivalente) e nas bases que ofereciam esse recurso, utilizou-se o filtro para exibição somente de artigos com acesso aberto. A busca se deu em março de 2019 e retornou um total de 131 referências, todas foram encaminhadas para o software livre My Endnote Web, onde foram excluídas as duplicações (51), realizada a leitura de títulos e resumos (80) e, em seguida, a leitura integral dos estudos pré-selecionados de acordo com os objetivos e critérios de inclusão estabelecidos (38). Ao final, restaram 29 artigos que compõem a presente revisão (ver detalhamento na Figura).
Os critérios de inclusão da pesquisa contemplaram artigos em: (I) português, inglês e espanhol, que tivessem (II) acesso aberto e que estabelecessem como objetivos (III) ou apresentassem como hipóteses (IV) algum tipo de relação ou associação entre SA e VPI. Foram excluídos livros, capítulos de livros, monografias, teses e artigos de revisão. Não foi estabelecido um intervalo de data de publicação dos trabalhos, objetivando encontrar um número maior de resultados e compreender a evolução das produções ao longo dos anos. As informações foram quantificadas de acordo com o tipo de estudo, autores, ano da publicação, país onde a pesquisa foi realizada, idioma da publicação e periódico onde foi publicada. Além disso, foram também analisados dados relativos à caracterização da amostra, aos instrumentos utilizados para mensurar o SA e os principais resultados no que diz respeito às relações/associações estabelecidas entre o SA e a VPI.
RESULTADOS
A princípio destacamos que os artigos abordados têm origem epistemológica nas ciências Sociais, de Saúde, e sobretudo na Psicologia. Todos têm um ou mais pesquisadores da Psicologia. As demais áreas presentes foram: Enfermagem (1), Saúde Pública (1), Medicina (2), Ciência Forense (1), Direito (1), Educação/Serviço Social (2) e Sociologia (1).
Considerando o idioma dos artigos, foram encontrados textos em inglês (22) e espanhol (5), sendo que dois deles apresentaram ambos os idiomas na mesma publicação. A despeito da produção por ano, obteve-se trabalhos a partir de 2009 até 2019, com uma maior concentração de publicações em 2017 (8). No que se refere aos países onde os estudos foram desenvolvidos, considerou-se a localidade onde foi realizada a coleta dos dados, sendo assim, o país com o maior número de trabalhos foi a Espanha (13), seguida pelos EUA (8) e França (2), os demais contam com uma publicação cada. Os periódicos onde foram publicadas as produções apresentaram-se bastante variados, sendo o Journal of Interpersonal Violence com maior número de publicações (7). Os autores e as amostras das pesquisas foram também diversificados.
Quanto às características de tratamento dos dados obtidos nas investigações, apenas um deles era de natureza qualitativa (Alvarez et al., 2018) e um segundo utilizou métodos mistos (quanti-quali) (Lelaurain et al., 2017). Nos demais, o tratamento foi quantitativo. A grande maioria dos trabalhos (28 deles) utilizaram o Ambivalent Sexism Inventory - ASI para mensurar o SA. Construído pelos autores da teoria do SA, consiste em uma medida de autorrelato com 22 itens que avaliam as atitudes sexistas em relação à mulher, em duas subescalas com 11 itens cada, referentes às dimensões do SH e SB (Glick & Fiske, 1996). Li e Zheng (2017), além do ASI, utilizaram também o Ambivalence for Men Inventory – AMI. Igualmente desenvolvido e validado por Glick e Fiske (1999), contém 20 itens, divididos em duas subescalas: SH e SB. No entanto, avaliam as atitudes sexistas perante os homens. Apenas Alvarez, Lameiras-Fernandez, Holliday, Sabri e Campbell (2018) fizeram uso de uma entrevista semiestruturada. A Tabela apresenta uma síntese dos dados autor/ano, país, periódico, amostra e características metodológicas.
Tabela Autor/ano, país, periódico, amostra e características metodológicas dos artigos
Autor/ano | País | Periódico | Amostra | Características metodológicas |
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Allen et al. (2009) | EUA | Journal of Interpersonal Violence | 232 universitários (92 homens e 140 mulheres) | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de inventários e escalas padronizados |
Alvarez et al. (2018) | EUA | Journal of Interpersonal Violence | 30 mulheres imigrantes que vivem nos EUA | Pesquisa de campo, qualitativa, com uso de entrevista semiestruturada |
Berke e Zeichner (2016) | EUA | Violence and Victims | 168 homens universitários | Pesquisa experimental, quantitativa, com 2 sessões: primeira com uso de inventários e escalas padronizados, segunda com um experimento comportamental laboratorial |
Boira, Chilet-Rosell, Jaramillo-Quiroz, e Reinoso (2017) | Equador | Universitas Psychologica | 646 universitários (222 homens e 424 mulheres) | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de inventários e escalas padronizados |
Gage e Lease (2018) | EUA | Journal of interpersonal violence | 101 homens moradores dos EUA | Pesquisa de campo (online), quantitativa, com uso de inventários e escalas padronizados |
Gölge, Sanal, Yavuz e Arslanoglu-Çetin (2016) | Turquia | Journal of family violence | 300 policiais e 150 membros do judiciário (365 homens e 85 mulheres) | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de inventários e escalas padronizados |
Gracia, Garcia e Lila (2014) | Espanha | Criminal justice and behavior | 308 policiais do sexo masculino | Pesquisa experimental, quantitativa, com avaliação de vinhetas com diferentes condições experimentais e uso de inventários e escalas padronizados |
Guerrero-Molina, Moreno-Manso, Guerrero-Barona e Cruz-Márquez (2017a) | Espanha | Journal of Interpersonal Violence | 129 homens condenados à prisão por crimes de VPI | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de inventários e escalas padronizados |
Guerrero-Molina, Moreno-Manso, Guerrero-Barona e Cruz-Márquez (2017b) | Espanha | Universitas Psychologica | 129 homens condenados à prisão por crimes de VPI | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de inventários e escalas padronizados |
Herrera, Valor-Segura e Expósito (2012) | Espanha | European Journal of Psychology Applied to Legal Context | 169 policiais (153 homens e 16 mulheres) | Pesquisa experimental, quantitativa, com avaliação de um julgamento fictício com diferentes condições experimentais e uso de inventário padronizado |
Jiménez, Priego, Gutiérrez, Molina, Flores e Ramírez (2015) | Espanha | REiDoCrea: Revista Electrónica de Investigación y Docencia Creativa | 49 mulheres universitárias | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de inventários e escalas padronizados |
Kosterina, Horne e Lamb (2019) | Quirguistão | Journal of health psychology | 143 mulheres em tratamento de sintomas ginecológicos | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de questionários elaborados pelos autores e inventários padronizados |
Lee, Begun, DePrince e Chu (2016) | EUA | Psychological Trauma: Theory, Research, Practice, and Policy | 79 meninas que faziam parte de sistema de bem-estar infantil | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de inventários e escalas padronizados e uma tarefa de decisão lexical |
Lelaurain et al. (2017) | França | Sex Roles | Estudo 1: 24 adultos (12 homens e 12 mulheres); Estudo 2: 123 adultos (63 homens e 60 mulheres) | Pesquisa de campo, com uso de métodos mistos (quanti-quali). Estudo 1: entrevista semiestruturada Estudo 2: questionário elaborado pelos autores e inventário e escala padronizados |
Lelaurain, Fonte, Giger, Guignarde & Lo Monaco (2018) | França | Journal of interpersonal violence | 235 adultos (120 mulheres e 115 homens) | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de questionário elaborado pelos autores e inventário e escala padronizados |
Lie Zheng (2017) | China | Journal of interpersonal violence | 272 homens homossexuais ou bissexuais | Pesquisa de campo (online), quantitativa, com uso de inventários padronizados e escalas (uma elaborada pelos autores, outra utilizada em outro estudo de outros autores) |
Loveland e Raghavan (2017) | EUA | Violence and Gender | 137 homens condenados a um programa de tratamento de agressores | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de inventário e escalas padronizados |
Marques-Fagundes, Megías, García-García e Petkanopoulou (2015) | Espanha | Revista de Psicología Social | 91 mulheres de 18 associações de mulheres | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de escala e inventário padronizados e questionários elaborados pelos autores |
Novo, Herbon e Amado (2016) | Espanha | Revista Iberoamericana de Psicología y Salud | 121 adultos (48 homens e 73 mulheres) | Pesquisa experimental, quantitativa, com avaliação de dilemas com diferentes condições experimentais, uso de escala, inventário e questionário padronizado, e uma medida de autorrelato de uma pergunta direta elaborada pelos autores |
Renzetti, Lynch e DeWall (2018) | EUA | Journal of interpersonal violence | 255 homens adultos | Pesquisa de campo (online), quantitativa, com uso de inventário e escalas padronizados |
Riley e Yamawaki (2018) | EUA | Sage open | 184 universitários (108 mulheres e 76 homens) | Pesquisa experimental (online), quantitativa, com avaliação de cenários com diferentes condições experimentais e uso de escalas e inventário padronizados. |
Soto-Quevedo (2012) | Chile | Acta Colombiana de Psicología | 120 adultos (62 mulheres e 58 homens) | Pesquisa experimental, quantitativa, com avaliação de vinhetas experimentais e uso de inventário padronizado e questionários elaborados pelo autor |
Valor-Segura, Expósito e Moya (2011) | Espanha | The Spanish Journal of Psychology | 485 adultos (282 mulheres e 203 homens) | Pesquisa experimental, quantitativa, com avaliação de cenários com diferentes condições experimentais, uso de inventário e escala padronizados e questionários elaborados pelos autores |
Vecina (2017) | Espanha | Journal of investigative psychology and offender profiling | 160 homens condenados por VPI | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de inventário, escala e questionário padronizados |
Vecina (2018) | Espanha | American journal of men’s health | 403 homens condenados por VPI | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de escalas e inventário padronizados e uma medida com uma pergunta direta elaborada pelo autor |
Vecina e Piñuela (2017) | Espanha | The Journal of psychology | 103 homens em tratamento judicial por VPI. | Pesquisa de campo, quantitativa, com uso de questionário e inventário padronizados e duas medidas com uma pergunta direta elaborada pelos autores |
Vidal-Fernández e Megías (2014) | Espanha | The Journal of psychology | 246 universitários (110 mulheres e 134 homens) | Pesquisa experimental, quantitativa, com avaliação de cenários com diferentes condições experimentais, uso de inventário padronizado e questionário elaborado pelos autores |
Yamawaki, Ostenson e Brown (2009) | Japão e EUA | Violence Against Women | 101 universitários americanos (45 homens e 56 mulheres) e 103 universitários japoneses (46 homens e 57 mulheres) | Pesquisa experimental, quantitativa, com avaliação de cenários com diferentes condições experimentais, uso de inventário e escala padronizados e questionários elaborados pelos autores |
Zapata-Calvente e Megías (2017) | Espanha | Revista de Psicología Social | 251 universitários (125 mulheres e 126 homens) | Pesquisa experimental, quantitativa, com avaliação de cenários com diferentes condições experimentais, uso de inventário padronizado e questionário elaborado pelos autores |
VPI E SEXISMO AMBIVALENTE
No que concerne às relações estabelecidas entre o SA e a VPI, o estudo de Boira et al. (2017), desenvolvido com estudantes universitários, mostrou que, na medida em que os níveis de SA aumentavam, em ambas as dimensões, a intensidade da VPI praticada e sofrida também subia. Um outro estudo realizado no mesmo contexto (universitário), identificou que homens com atitudes do SB perpetraram menos violência contra suas parceiras. Além disso, o maior endosso de SB pelas mulheres estava associado à redução do risco de sofrerem violência de seus parceiros, mas também a uma menor probabilidade de denunciarem a vitimização (Allen et al., 2009).
Zapata-Calvente e Megías (2017) identificaram que o SA influenciou a percepção da VPI de universitários diante de histórias fictícias em que ambos os membros de um casal heterossexual se agridem devido a motivações diferentes: exercer controle e reagir à violência. Nos participantes homens, maiores níveis no SH e SB relacionaram-se a uma maior atribuição da motivação de exercer controle à mulher, no cenário onde foi o homem que cometeu a violência motivada pelo desejo de controlar a mulher e ela reagiu. Aqueles que apresentaram níveis mais altos no SH minimizaram a gravidade da violência masculina. Já nas mulheres, altos escores no SH foram relacionados a uma menor propensão a atribuir a motivação de controle ao sexo masculino no cenário onde o homem cometeu a violência com desejo de exercer controle sobre a mulher. Diante do cenário em que a mulher atacou seu parceiro para controlá-lo e o homem a agrediu em reação, pontuações altas no SH foram associadas com a violência masculina sendo considerada menos grave.
O estudo de Vidal-Fernández e Megías (2014), realizado também com universitários, apresentou aos participantes um cenário descrevendo um caso hipotético de violência física perpetrada por um homem contra sua parceira e dependendo da condição experimental, a vítima foi descrita como feminista e/ou como exibindo dificuldades em seu relacionamento com os outros ou não. O endosso de SH pelos estudantes previu positivamente a culpa atribuída à vítima, sobretudo quando esta foi descrita como feminista e como uma mulher “difícil de lidar”. Além disso, os homens com altos níveis de SH, comparados às mulheres, culpabilizaram mais a vítima quando ela foi apresentada como uma mulher feminista.
Uma terceira pesquisa (Riley & Yamawaki, 2018), produzida com discentes de uma universidade a partir de cenários fictícios, encontrou uma relação entre autoritarismo de direita1 juntamente a atitudes de SB, com visões mais tradicionais sobre relacionamentos, papéis tradicionais de gênero e punição para as pessoas que quebram estes papéis. Além disso, pessoas com altos índices de autoritarismo de direita e de SB eram mais propensos a encorajar as vítimas a resolveram seus problemas no relacionamento sem qualquer tipo de ajuda externa. Já os participantes que pontuaram alto no autoritarismo de direita e no SH, foram mais propensos a fazer sugestões de natureza mais julgadora para com as vítimas.
Ainda nesse mesmo contexto, Berke e Zeichner (2016), baseados no modelo de processo oposto do SB2 – que sugere que, para os homens, o SB atua indiretamente através do SH para prever a aceitação de uma política social de hierarquia como uma expressão de uma preferência pelo domínio em grupo (isto é, orientação de dominância social3) –, realizaram uma pesquisa experimental com homens graduandos a partir da hipótese de o efeito indireto previsto do SB para a violência baseada em gênero via SH também ser mediado pela orientação para a dominância social. Por meio de uma tarefa simulada de tempo de reação competitiva com uma oponente mulher, os participantes tinham a opção de dar um choque na oponente após um resultado de vitória ou derrota (como uma medida de violência de gênero). Os resultados mostraram que o SB dos participantes predizia o SH dos mesmos e este, por sua vez, predizia a violência de gênero. Além disso, a orientação para a dominância social dos participantes atuaria como um mediador adicional nessa cadeia causal através de sua associação com o SH.
Um quinto e último estudo dentro das características supracitadas comparou estudantes universitários japoneses e americanos diante de situações fictícias e mostrou que em ambas as nacionalidades aqueles participantes com alto índice de SB e SH eram mais propensos a minimizar a violência, enquanto aqueles que obtinham escores altos apenas no SB tinham maior probabilidade de culpar a vítima (Yamawaki, Ostenson & Brown, 2009).
Gracia, Garcia e Lila (2014) encontraram evidências da influência do SA nas preferências de aplicação da lei de policiais diante de casos de VPI contra mulher. Os policiais com baixos níveis de SH e altos níveis de empatia preferem uma abordagem de aplicação da lei incondicional e aqueles com altos níveis de SH e altos níveis de empatia demostraram preferir uma aplicação da lei mais condicional. Além disso, policiais com baixo índice de SB mostram uma preferência por uma abordagem de aplicação da lei irrestrita em comparação com aqueles com altos níveis de SB.
Já o estudo conduzido por Gölge, Sanal, Yavuz e Arslanoglu-Çetin (2016) com policiais e membros do judiciário mostrou que, de maneira geral, a profissão, o SH e o SB atuam como preditores de atitudes em relação ao abuso de mulheres por parceiros íntimos diante da percepção de casos que envolvem VPI contra mulheres. Outro trabalho realizado por Herrera, Valor-Segura e Expósito e (2012), com policiais a partir da avaliação de criminalidade em um caso simulado de uma mulher vítima de VPI em julgamento por assassinar seu marido que alegou legítima defesa, indicou que um protótipo de mulher espancada seria percebido como mais credível, menos responsável e menos no controle da situação do que uma ré que não se encaixava nesse protótipo, sendo esta relação protótipo-controle mediada pelo SH.
Em uma outra contextura, de pesquisas realizadas com homens condenados judicialmente por VPI, Loveland e Raghavan (2017) encontraram forte correlação entre o SH e o controle coercitivo (considerado no estudo como um aspecto da VPI). Vecina (2017; 2018) também apresenta dois trabalhos com homens condenados por crimes de VPI. Ambos apontam correlações significativas entre VPI, SA e variáveis morais (absolutismo moral4, fundamentos individualizantes e fundamentos vinculativos5). Seguindo com essa categoria de amostra e nessa linha de que o SA nos homens condenados por VPI pode ter raízes em fundamentos morais, Vecina e Piñuela (2017), acreditando que pelo menos dois destes fundamentos (fundamento de autoridade e fundamento de justiça5) podem servir para prever a intenção de mudar o comportamento violento contra a parceira, indicaram que o SB se correlaciona positivamente com o fundamento de autoridade e o SH correlaciona-se negativamente com o fundamento da justiça. Ambos os fundamentos contribuem para explicar as dimensões do SA e apenas o fundamento da justiça prevê a intenção de mudar o comportamento de violência contra a parceira.
Guerrero-Molina, Moreno-Manso, Guerrero-Barona e Cruz-Márquez (2017a; 2017b) apresentaram duas publicações com uma mesma amostra de homens condenados à prisão por crimes relacionados à VPI. Em ambas, os resultados mostraram que o SH se correlacionou positivamente com a falta de admissão de responsabilidade, a minimização do dano causado, a culpabilização da vítima e as justificativas de autodefesa para a violência perpetrada. Já o SB correlacionou-se com a falta de admissão de responsabilidade e maior tendência para minimizar o dano causado.
Na pesquisa de Alvarez et al. (2018), de acordo com o relato de mulheres imigrantes residentes nos EUA vítimas de VPI, aquelas que buscaram mais oportunidades para si, como procurar emprego e desenvolver suas redes e atividades sociais, eram mais propensas a experimentar o SH. Já aquelas que se ajustavam mais com os papéis tradicionais de gênero (tomando conta das crianças e do lar), condizentes com o SB, se mostraram mais dispostas a aceitar o abuso de seus parceiros. Uma outra investigação indicou o SA e o domínio no relacionamento6 como reguladores da relação entre o endosso da ideologia de masculinidade tradicional7 e a aceitação mais forte dos mitos da violência doméstica8 (Gage & Lease, 2018).
Lelaurain et al. (2017) identificaram a partir da opinião de homens e mulheres, frente a uma narrativa fictícia de VPI, que ideologias baseadas no SA e em mitos da violência doméstica9, atuariam como lógicas condicionais para minimizar ou justificar a VPI. Em um passo adiante, Lelaurain el al. (2018) encontraram uma ligação positiva entre a adesão ao amor romântico9, SA e mitos da violência doméstica9. Ademais, foi demonstrado que a relação entre o amor romântico e a legitimação da violência é mediada pelo SA e por mitos da violência doméstica9.
No trabalho de Renzetti, Lynch e DeWall (2018), encontrou-se que o consumo de álcool e o SH estão positivamente associados à perpetração da VPI e que o SH modera a relação álcool-VPI para perpetração da VPI física. Um outro estudo mostrou que adultos com crenças do SH se mostraram propensas a justificar a discriminação e a agressão contra as mulheres por parte do parceiro íntimo (Valor-Segura et al., 2011). Já de acordo com Lee, Begun, De Prince e Chu (2016), foi identificado em adolescentes no sistema de bem-estar infantil previamente expostos à VPI que, à medida que o SH das adolescentes aumentou, também aumentaram suas crenças de que a violência no namoro é aceitável.
O SB apareceu como fator de risco no processo de percepção da violência psicológica, segundo Marques-Fagundes et al. (2015). O estudo apontou que, quanto mais participantes aderiram ao SB, menos elas perceberam tais comportamentos como abuso. Em contrapartida, quanto mais participantes aderiram à ideologia igualitária, compreendida no estudo como uma ideologia feminista, que luta para alcançar igualdade entre os gêneros, mais elas percebiam os comportamentos descritos como abuso. Na pesquisa de Soto-Quevedo (2012), ao examinarem uma vinheta contendo uma situação de VPI, os participantes que aderiam ao SB, enquanto o nível de SH era baixo, culpavam as vítimas quando sentiam que estas transgrediam o estereótipo de gênero e tendiam a isentá-las quando sentiam que se comportavam de acordo com tal estereótipo. Assim como as descobertas de que atitudes de SH e SB em relação às mulheres estão relacionadas à VPI nas relações heterossexuais, na pesquisa de Li e Zheng (2017), as duas dimensões do SA se mostraram como preditoras da vitimização na VPI em relações homossexuais.
Numa direção um pouco distinta, Kosterina, Horne e Lamb (2019) encontraram, em mulheres pacientes de clínicas ginecológicas, uma relação positiva entre a experiência de qualquer tipo de violência e o número de sintomas ginecológicos. O SH e o SB não mediaram a relação entre violência e sintomas neste estudo. Novo et al. (2016) não encontraram interferência do SA na percepção subjetiva da vitimização na VPI diante da leitura de uma vinheta com um caso de VPI.
Por fim, Jiménez et al. (2015) partem da noção de que o SA pode interferir na necessidade de fechamento cognitivo; esta, por sua vez, é uma tendência das pessoas de buscar e manter uma resposta definitiva a um determinado problema, evitando confusão, ambiguidade e incerteza, portanto, pode desempenhar um papel importante nas relações intra e interpessoais, intra e intergrupos. Além disso, segundo os autores, a sociedade de hoje não acomoda a existência do homem que sofre violência da parceira, uma vez que, socioculturalmente, as mulheres apenas exercem violência para se defenderem dos homens. Sendo assim, ao explorarem a consciência de que as mulheres podem exercer violência contra os homens, não observaram correlação entre as variáveis SA e a necessidade de fechamento cognitivo. De acordo com os autores, isto pode indicar a falta de consciência do fato de que as mulheres podem exercer a violência em relação aos homens.
DISCUSSÃO
A presente revisão buscou sintetizar um panorama geral de como têm sido estabelecidas, na literatura científica, especificamente de artigos publicados em periódicos científicos, as relações/associações do sexismo ambivalente com a VPI. Com base nos resultados encontrados, nota-se uma lacuna de produções no contexto brasileiro. Os manuscritos brasileiros com os quais temos contato são trabalhos de validação e avaliação de propriedades psicométricas do Inventário de Sexismo Ambivalente, no entanto, nenhum deles apresenta relação entre o SA e a VPI, motivo pelo qual não apareceram nas buscas. Conseguimos identificar, através das referências dos estudos aqui abordados, uma única pesquisa realizada no Brasil: Glick et al. (2002) investigaram a relação entre SH e SB com atitudes sobre abuso de esposas em diversas amostras na Turquia e no Brasil. Os resultados indicaram que em ambos os países o SH e o SB se correlacionaram positivamente com atitudes que legitimam o abuso, além disso, o SH representava uma variação única, ao passo que o SB, estando o SH controlado, não se relacionou com as atitudes de abuso da parceira. Isto nos leva a duas questões. Primeiramente, uma possível limitação da presente produção no que diz respeito aos descritores utilizados para a busca. Talvez se mais termos que se referem à violência na relação conjugal tivessem sido utilizados, trabalhos nacionais poderiam ter sido encontrados.
O segundo ponto é que, assim como na pesquisa de Glick et al. (2002), o estudo de Allen et al. (2009), incluído nesta revisão, aponta o SB como um suposto fator de proteção contra VPI, uma vez que altos índices de SB diante de baixos escores em SH não se correlacionam com atitudes de legitimação ou perpetração da VPI. Contudo, há certa contingência nessa proteção quando as mulheres desafiam ou fogem de seus papéis convencionais. Em outras palavras, quando as mulheres se ajustam aos papéis tradicionais de gênero, condizentes com o SB, podem ser menos propensas a sofrer violência do parceiro, porém, tendem também a aceitar mais a VPI e/ou a não percebê-la como abuso (Glick et al., 2002), o que pode ser observado similarmente nos resultados apresentados nas produções de Alvarez et al. (2018), Marques-Fagundes et al. (2015) e Soto-Quevedo (2012).
O SB, como apontam Glick e Fiske (1996; 2011), pode ser visto como um importante complemento para o SH, podendo atuar na legitimação do SH e no controle da resistência das mulheres às desigualdades de gênero, uma vez que, na medida em que as mulheres, ao acreditarem que dependem dos homens como seus protetores e provedores, são menos propensas a protestar contra o poder deles ou buscar sua própria independência. Além disso, Glick et al. (2000) em uma pesquisa com 15.000 homens e mulheres de 19 países verificaram que nos países onde os homens apresentam níveis mais altos de SH, as mulheres endossam mais fortemente o SB, segundo os autores, pela possibilidade de proteção que esta dimensão se propõe a oferecer às mulheres. No entanto, “a adesão das mulheres ao SB serve apenas para reforçar a desigualdade de gênero, oferecendo uma promessa de proteção altamente contingente que é promulgada somente quando as mulheres se comportam de acordo com as expectativas e prescrições sexistas” (Glick et al., 2002 p. 296). Portanto, a subjetiva benevolência em relação às mulheres carrega os mesmos preconceitos da dimensão hostil, expressando de maneira equivalente preceitos de dominância e poder masculino, no entanto, por seu caráter subjetivamente favorável torna-se mais sutil, socialmente menos antiquada; sob uma máscara de romantismo e agradabilidade em vez de seu real caráter prejudicial.
Acredita-se que, em função desta estreita relação entre as dimensões do SA, representada inclusive por uma correlação positiva entre as subescalas de SB e SH no Inventário de Sexismo Ambivalente (Glick & Fiske, 1996; Glick et al., 2000), não é possível estabelecer com clareza, os fatores específicos de influência de cada uma delas no fenômeno da VPI. Nos resultados apresentados, os fatores se replicam diversas vezes no SH e no SB, corroborando essa complementariedade e reforço mútuo entre as dimensões.
Nota-se também que os trabalhos da presente revisão não focaram a investigação na relação apenas entre VPI e sexismo ambivalente. Na grande maioria deles havia a presença de outra teoria ou constructo que intermediava ou complementava esta relação. Estes foram apenas citados e/ou descritos com breves notas para facilitar o entendimento dos resultados de suas respectivas pesquisas, pois não condiz com os objetivos do trabalho explorar estes pontos. No entanto, podemos observar que a maior parte desses construtos e teorias foca, de certa forma, em elementos presentes em crenças e fatores sociais convencionais, assim como a SA, o que reforça a importância de se explorar mais a fundo estes fatores, possibilitando direcionar esforços para a prevenção da VPI.
Uma última observação importante que merece ser destacada é que, apesar de alguns estudos trabalharem a VPI entre homens e mulheres sem especificação de gênero entre vítimas ou perpetradores, preponderantemente a mulher foi reconhecida como a principal vítima da VPI e o homem como o agressor. Este achado corrobora com pesquisas importantes da literatura (WHO, 2005; 2013; 2017), além disso, vai ao encontro do que é proposto na SA, de que as manifestações sexistas contra as mulheres constituem uma forma de legitimar e sustentar as desigualdades de gênero (Glick & Fiske, 1996; Ferreira, 2004).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar dessas relações variarem de acordo com a população investigada, é inegável que o SA pode ter influências significativas no contexto da VPI. Além disso, deve-se atentar para o fato de que as vítimas desta violência são preponderantemente mulheres. Uma vez que o SB, como supracitado, atua no sentido de legitimar o SH e perpetuar as desigualdades de gênero, a VPI seria uma forma de reproduzir e firmar esta desigualdade, refletindo uma força social responsável por estruturar relações de poder entre os gêneros e modelar as dinâmicas sociais (Corradi, 2009; Stevens, Oliveira, Zanello, Silva & Portela, 2017). Sendo assim, destaca-se a importância de se estudar a VPI dentro de diferentes contextos socioculturais explorando como questões estruturais como o sexismo podem interferir nas experiências de VPI dos indivíduos.
Apontamos como limitação do estudo a quantidade de descritores utilizados na busca, como citado brevemente acima, assim como o número de base de dados. Acredita-se que a busca em mais bases de dados e com mais descritores, principalmente no que diz respeito a termos relativos à VPI, poderia ter retornado um número maior de resultados. Entretanto, considera-se que os achados aqui apresentados são importantes quanto ao panorama atual da literatura e à compreensão da VPI associada ao sexismo ambivalente, possibilitando norteadores para futuras pesquisas e, sobretudo, para se pensar em formas de atuação voltadas para a prevenção e combate da VPI.