INTRODUÇÃO
A inserção sistemática da Psicologia no campo das políticas sociais remete às últimas décadas do século XX, uma vez que a abertura democrática e a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 possibilitaram o amplo ingresso de profissionais da área nos quadros públicos voltados para atender aos direitos sociais ampliados e garantidos na lei. Desde então, tal campo de atuação profissional tem se configurado como promissor para a área.
Em número comemorativo dos 50 anos da profissão, o Jornal do Federal, publicação do Conselho Federal de Psicologia (2012), divulgou que aproximadamente 25% dos mais de 200 mil psicólogos inscritos nos Conselhos Regionais de Psicologia trabalhavam com políticas sociais no país. Algumas delas agregam um maior número destes profissionais, a exemplo da saúde, da assistência social e da justiça. Além destas, há registros de psicólogos inseridos em outras políticas setoriais, ainda que pontualmente, a exemplo da Educação1.
Tal movimento de deslocamento de uma atuação psicológica centrada no modelo médico (baseada no atendimento individual em consultório privado por profissionais autônomos) para o trabalho assalariado nos diversos serviços sociais não tem ocorrido isento de questionamentos e reflexões. Por um lado, isto tem representado, de fato, um avanço na aproximação da categoria de psicólogos a um contingente maior da população pobre que, por muito tempo, não teve acesso à prática psicológica. Responde-se, assim, “a quem nós, psicólogos, servimos de fato?”, provocação feita por Botomé (1979) em relação à prática elitista da profissão. Por outro lado, a Psicologia, como uma profissão em permanente processo de autoavaliação e discussão de seus rumos no Brasil, não tem excluído este contexto de atuação profissional de suas análises, incorporando em seus debates não somente onde estamos e a quem atendemos, mas como estamos desempenhando nosso trabalho e para onde aponta nossa atuação.
Diversos estudos vêm atestando o descompasso entre as práticas realizadas pelos psicólogos e as demandas que lhes são dirigidas nos serviços e unidades públicos, com reprodução de atividades e adaptação de instrumentos hegemônicos, desenvolvidos nas subáreas tradicionalmente ocupadas pela Psicologia (a exemplo de Boarini, 1996; Cirilo Neto, & Dimenstein, 2017; Moreira, & Castro, 2009; Oliveira et al., 2004; Silva, & Cezar, 2013). Em alguns casos, observou-se até mesmo atuações contrárias aos objetivos das políticas onde estão inseridos.
Este cenário fica evidente quando se retoma uma análise empreendida por Yamamoto a respeito da prática do psicólogo no Brasil. Tomando dados de uma ampla pesquisa nacional (Bastos & Gondim, 2010), o autor questiona a permanência da clínica como área de atuação predominante para os psicólogos (declarada por 53% dos respondentes), mesmo diante da proliferação de contextos de trabalho e da imersão massiva de psicólogos nas políticas sociais. Ademais, Yamamoto (2012) aponta que, independentemente da modalidade de inserção profissional dos psicólogos (setores públicos, privados ou terceiro setor), as atividades principais desenvolvidas pelos psicólogos é a aplicação de testes psicológicos e psicodiagnóstico.
Ademais de determinantes não diretamente/exclusivamente relacionados à Psicologia que atravessam esta atuação (a exemplo de limitações na própria concepção das políticas setoriais, corrupção na gestão pública, limites relacionados à atuação em equipes multiprofissionais, rede socioassistencial falha ou inexistente etc.), os estudos sobre o psicólogo nas políticas sociais destacam, costumeiramente, dois pontos intrínsecos à área: as deficiências na formação e a carência de referenciais teóricos que subsidiem a prática. Ou seja, quando questionados sobre seu fazer, os psicólogos que estão em ação direta voltada para a promoção social da população pobre, explicitam um saber insuficiente para lidar com questões vitais de seu trabalho.
Como alternativa para este cenário, Oliveira e Amorim (2012) esclarecem que “para a Psicologia, o trabalho, tanto na Saúde Pública quanto na Assistência Social, exige, como primeiro passo, uma contextualização dos referenciais teórico-técnicos que norteiam as práticas [...]; requer a invenção de novos conhecimentos” (p. 564). No intuito de instrumentalizar e construir referências para o trabalho do psicólogo neste contexto, em 2006, o Conselho Federal de Psicologia lançou mão de uma importante iniciativa, o Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop). Este serviço publica referências técnicas para o psicólogo nos diversos setores das políticas sociais baseadas em pesquisas multicêntricas de âmbito nacional. Trata-se de uma iniciativa necessária, mas evidentemente insuficiente para lidar com esta questão.
Além da necessária produção dos novos conhecimentos que subsidiam a prática, Yamamoto (2012) afirma que é essencial que a profissão compreenda de maneira mais ampla as determinações macroestruturais que condicionam este campo para que consiga ampliar seu escopo de ação profissional para além dos limites de “executor terminal de políticas segmentadas” (p. 11). Com isso, percebe-se que a construção de referencial teórico-técnico necessário para um trabalho efetivo da Psicologia nas políticas sociais requer avaliar e propor não só fenômenos psicossociais, instrumentos, teorias e técnicas de intervenção, mas sobretudo, compreender o contexto no qual atua e as mediações que o configuram assim como os limites e as possibilidades postos por este campo. Isto significa que a qualificação da área nesta vertente envolve, necessariamente, o debate acerca dos macrodeterminantes que delineiam as políticas sociais para, a partir disso, se esboçar um papel para o psicólogo neste cenário.
É visando contribuir para este debate que se objetiva com este trabalho discutir a natureza das políticas sociais e a conformação do trabalho do psicólogo neste contexto. Para realizar esta tarefa, um ponto de partida necessário refere-se à definição da perspectiva teórico-metodológica adotada para esta abordagem.
A TRADIÇÃO MARXISTA E A ABORDAGEM DAS POLÍTICAS SOCIAIS
Como afirmado por Oliveira e Costa (2018), é equivocado tomar o conceito de políticas sociais exclusivamente como decisões técnicas, desarticuladas de posições teóricas e políticas. A ideia de neutralidade política e ideológica das políticas sociais tem sido combatida desde os primórdios de seus estudos (Titmuss, 1974), sendo recorrente a afirmação de que tal termo traz embutido, necessariamente, um conjunto de valores, ideologias e perspectivas teóricas.
Nesse sentido, vários são os esforços para sistematizar as diversas correntes teóricas acerca do fenômeno – os trabalhos de Behring e Boschetti (2011) e Coimbra (1987) são exemplos de tais tentativas. Como foge ao escopo deste trabalho o debate acerca da viabilidade/necessidade de tais taxonomias, assim como uma análise das perspectivas comumente arroladas e relacionadas a este campo de estudo, considera-se suficiente demarcar a Teoria Social Marxiana (referente aos escritos originais dos próprios Marx e Engels) e a Tradição Marxista (correspondente às diversas interpretações e atualizações das obras e ideias daqueles que se mantêm fiéis aos seus pressupostos fundamentais) como balizadoras deste escrito.
De acordo com tal perspectiva, o entendimento de qualquer fenômeno relacionado ao ser social requer remissão às condições de produção da vida material, variável em cada momento sócio-histórico. Isto se dá uma vez que se entende que as relações econômicas de produção, ou seja, as formas de organização social para produção dos bens necessários à sobrevivência humana (a exemplo da alimentação, moradia, vestimentas etc.), são a base estrutural de organização dos demais aspectos da sociedade.
Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência (Marx, 1859/1982, p. 25).
Isto pode ser ilustrado pelos diversos desenvolvimentos ao longo da história humana: ao modo de produção assentado no escravismo (dominante nas civilizações antigas como o Egito e Grécia e Roma clássicas), correspondem formações sociais baseada no patriarcado e formas políticas caracterizadas pelos grandes impérios; já ao modo de produção feudal, sustentado no trabalho servil, que foi predominante durante a chamada Idade Média na Europa Ocidental, estão articulados o poder político descentralizado, a divisão da sociedade em estamentos definidos e rígidos, sob forte influência da religião católica. Não seria diferente ao se consolidar o Modo de Produção Capitalista (MPC), em desenvolvimento até o momento atual: agora, o conjunto das relações sociais está subordinado ao comando do capital (Netto e Braz, 2006).
Importante ressaltar que a articulação entre as relações econômicas de produção (base ou estrutura) e suas formas políticas, sociais e culturais (superestrutura) não deve ser vista de forma determinista e linear; de outro modo, trata-se de uma interlocução que é histórica e processual: primeiro, porque a própria produção material assume formas históricas definidas, específicas; segundo, porque a superestrutura não é simples reflexo passivo da base, mas a ela se articula de forma orgânica, exercendo influência recíproca. Com esta consideração, supera-se uma visão que reduz as relações sociais e políticas aos fenômenos econômicos, mas reconhece-se de que forma ocorre a primazia do momento econômico sobre os demais.
É tomando como referência tais pressupostos que se propõe iniciar o estudo da natureza da política social a partir da análise do MPC: é este que põe em relevo a forma política atual do Estado e a necessidade de estratégias de intervenção como as políticas sociais.
MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA, ESTADO E “QUESTÃO SOCIAL”
Considerando a impertinência de se fazer grandes digressões a respeito da transformação, lenta e processual, entre o Modo de Produção Feudal e o MPC, parte-se das observações a respeito da especificidade do MPC: uma relação de exploração específica entre duas classes fundamentais e antagônicas, a partir das quais é produzida a vida material necessária à existência humana. De um lado, há o capitalista, que detém os meios de produção (que se refere tanto aos meios de trabalho, como ferramentas e instalações; quanto aos objetos, à matéria-prima); de outro, está o proletário, que tem apenas sua força de trabalho para vender como mercadoria. Ou seja, o capitalista é dono dos meios de produção, mas não é ele quem produz; ele compra a força de trabalho do proletário, responsável por toda a produção material, que dela não se beneficia. Importante ressaltar que a afirmação da existência de duas classes fundamentais ao MPC não significa negar que outras classes ou grupos sociais se articulam a elas nas distintas formações sociais capitalistas (Boito Jr., 2007). Pode-se afirmar, pois, que a característica fundante do MPC é a exploração humana resumida na apropriação privada (por parte do capitalista) de uma produção que é coletiva (pelo conjunto de trabalhadores).
Isto se torna explícito ao se analisar, ainda que de forma breve, o processo de produção capitalista. Nele, o dono da indústria deve pagar pelos meios necessários à produção (material sobre o qual incidirá o trabalho, insumos como energia e água, instalações, máquinas e demais instrumentos de trabalho) assim como pela mão de obra necessária para operá-los. Neste ponto, é mister ressaltar que o salário pago aos trabalhadores é (supostamente) calculado com base nos gastos médios necessários à sua sobrevivência (com alimentação, moradia, transporte, vestimentas e lazer, por exemplo). O segredo da produção capitalista reside no fato de que os gastos despendidos com os trabalhadores correspondem ao suficiente para garantir sua reprodução como força de trabalho, e não aos valores por eles produzidos. É a esta diferença nos valores, entre o que é produzido pelos trabalhadores e o que é acumulado pelo capitalista, que se relaciona o conceito de mais-valia (Marx, 1890/2011).
Tão importante quanto entender este processo de produção de mercadorias é conhecer como se opera sua reprodução, ou seja, como o MPC se mantém em contínua expansão e complexificação. É sobre isto que se destaca uma segunda característica vital do MPC: sua tendência à acumulação, sua dinâmica expansiva. Conforme apontam Netto e Braz (2006, p. 125), “os capitalistas que não pretendam aumentar a escala de seus negócios ou se recusem a fazê-lo acabam naufragando no mar da concorrência, terminam engolidos pelos outros que ampliaram seus investimentos”. Importante perceber que tal análise não pode ser realizada de forma personalista, ou seja, a adesão à dinâmica capitalista pautada na concorrência predatória não deve ser atribuída às características ou escolhas pessoais (como ambição ou egoísmo). Na verdade, o desenvolvimento de tais aspectos (costumeiramente considerados exclusivamente de caráter subjetivo) está intrinsecamente articulado com a dinâmica própria de produção e reprodução do MPC. Neste modo de produção, então, o objetivo do capitalista é obter mais capital ao final do processo de produção, o que ocorre ao aumentar a produtividade gastando cada vez menos. Mesmo correndo o risco de fazer parecer que este processo, altamente refinado e complexo, por envolver múltiplos elementos e mediações, é simples e linear, o psicólogo não pode se furtar de tentativas de explicação, visto ser imprescindível compreender sua dinâmica para uma atuação crítica nas políticas sociais.
Para produzir mais, o capitalista investe em desenvolvimento científico e tecnológico, seja no que diz respeito ao aprimoramento de maquinário e instrumentos, seja referente à organização e à divisão do trabalho. Para a obtenção de custos cada vez mais reduzidos, além da busca de fornecedores com matérias-primas mais baratas e escolha de locais distantes da especulação imobiliária para instalação da fábrica, por exemplo, outra estratégia provém da exploração da força de trabalho, sobretudo, pela diminuição dos salários. E, neste aspecto, a existência de um exército industrial de reserva que pressione os salários para baixo torna-se imprescindível. Daí concluir-se que, no MPC, o desemprego é estrutural, funcional à manutenção dessa forma de a sociedade se reproduzir.
Este foi o cenário no qual se deu a consolidação do capitalismo em meados do século XIX: a Revolução Industrial, ao alcançar os países da Europa ocidental, possibilitou a substituição da manufatura pela produção industrializada; junto com isto, trouxe situações de pobreza, miséria e doenças generalizadas, fruto das extenuantes jornadas de trabalho, precárias condições nas fábricas e remuneração insuficiente para reprodução da vida material dos trabalhadores. Engels (1845/2007) descreve de forma acurada a vida dos trabalhadores ingleses em tal contexto, marcada por ritmos intensos de trabalho e péssimas condições de habitabilidade e saúde. O que não parece muito distante do momento atual: no documentário Carne e Osso (Hashizume, 2011), é retratado o degradante cotidiano de trabalhadores nos frigoríficos brasileiros.
Neste contexto, tornam-se explícitos os impactos dessa nova forma de funcionamento da sociedade, que não demora a trazer prejuízos para todos os envolvidos. De maneira didática, pode-se sistematizar as perturbações à reprodução do MPC decorrentes dessa lógica de funcionamento em três condições centrais. Primeiro, considerando que o trabalhador é a base de toda a produção necessária para o sustento material da sociedade, não se pode explorá-lo ao ponto de sua extinção – existe um limite para que esta força de trabalho se mantenha em condições de ser comprada pelo capitalista – com isto, é posta a necessidade de regulamentação das condições de trabalho. Segundo, para que o capitalista obtenha seu lucro, as mercadorias precisam circular, ou seja, não basta serem produzidas, mas há de serem distribuídas (vendidas/compradas) para que o capital retorne ao capitalista. Com o aumento da produtividade decorrente da inovação científica e tecnológica, essa demanda pelo consumo também aumenta, o que só pode ser garantido pela classe que representa a maioria da população, os trabalhadores – assim, a definição dos salários passa a ser uma preocupação, de modo que os trabalhadores tenham condições de serem consumidores das mercadorias produzidas. E por fim, percebe-se que o desenvolvimento capitalista, ao passo em que significa o desenvolvimento e consolidação da indústria e da classe burguesa, também conduz à aglomeração dos trabalhadores em um mesmo espaço, permitindo a mútua identificação de seus problemas e à organização de suas lutas por direitos. É neste contexto de protesto contra a destituição material e moral a qual os trabalhadores estavam submetidos que a “questão social” passa a ser associada ao trabalho e pertinente ao Estado, ou seja, uma questão política e pública.
Na tradição marxista, a “questão social” é categoria central para o entendimento da natureza da política social, considerada a expressão, no cotidiano social, da contradição entre a exploração do proletariado e a riqueza da burguesia. Em outras palavras, refere-se ao conjunto de problemas sociais postos aos trabalhadores pela emergência do MPC, reconhecido como tal por esta classe social a partir de sua organização coletiva. Apesar de ter sua raiz no fundamento básico desse modo de produção – a exploração do capital sobre o trabalho –, manifesta-se de distintas formas tais como: pobreza, desemprego, analfabetismo, violência, assim como problemas de saúde e moradia. Assim, a “questão social” é travestida de problemas sociais.
Mesmo se manifestando de forma fragmentada na vida cotidiana, é este cenário tomado em conjunto que vai explicitar a necessidade de intervenções mais sistemáticas: torna-se necessário lidar com uma pobreza (e seus desdobramentos) até então desconhecida na história da humanidade. De acordo com Netto (2001),
se não era inédita a desigualdade entre as várias camadas sociais, se vinha de muito longe a polarização entre ricos e pobres, se era antiguíssima a diferente apropriação e fruição dos bens sociais, era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se generalizava. Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas. Tanto mais a sociedade se revelava capaz de progressivamente produzir mais bens e serviços, tanto mais aumentava o contingente de seus membros que, além de não ter acesso efetivo a tais bens e serviços, viam-se despossuídos das condições materiais de vida de que dispunham anteriormente (p. 42-43).
O aspecto que estava no cerne deste fenômeno não era a divisão da sociedade entre ricos e pobres – que não era novidade. O novo cenário que apontava para a necessidade de medidas sociais era que “a pobreza não era resultado da escassez, mas, ao contrário, era fruto de uma sociedade que aumentava a sua capacidade de produzir riqueza” (Raichelis, 2006, p. 14). Em outras palavras, o novo fenômeno que estava em destaque era a pobreza, não pela falta de condições objetivas proporcionadas pelo trabalho, mas pela nova organização que passa a presidir o próprio trabalho.
Diante da necessidade de lidar com o reconhecimento desta contradição, entra em cena um novo personagem, elementar para garantir a reprodução deste sistema: o Estado Moderno. De acordo com Gruppi (1996), ao longo da humanidade, existiram distintas formas políticas para lidar com a regulação das relações de poder e ordem social. O que se está chamando de “novo” é a forma política própria do MPC, o Estado Moderno. É a ele que será incumbida a função de regular as condições supracitadas a fim de impedir perturbações ao seu funcionamento, sendo por isto considerado por Mascaro (2013) a forma política própria do capitalismo. Para tanto, o Estado mantém-se alheio aos interesses imediatos das duas classes fundamentais visando conservar a tensão existente entre elas, condição necessária para que o MPC funcione: afinal, não há capitalismo sem burguesia, da mesma forma que não existiria sem proletariado. Isto significa que, se na atual correlação de forças, os capitalistas estão em vantagem, o Estado vai atuar para que assim permaneça. Entretanto, não se pode desconsiderar que o MPC não prescinde da força de trabalho do proletário, o que faz com que seja permeável as suas necessidades na medida em que possibilite sua reprodução sem que isto altere as engrenagens do sistema.
Assim, entende-se que são as intervenções empreendidas pelo Estado com o objetivo de remediar os problemas sociais decorrentes da exploração da burguesia sobre os trabalhadores (a chamada contradição capital/trabalho) o que se configura como política social.
MOVIMENTO DO CAPITAL E POLÍTICA SOCIAL
Conforme mencionado, embora a conceituação de “questão social” remeta à expressão das desigualdades sociais produzidas e reproduzidas na dinâmica contraditória das relações sociais capitalistas, são suas consequências que se tornam objeto de intervenção do Estado: por meio de um processo peculiar, ela é tratada de forma fragmentada e parcializada, por meio das políticas sociais, como afirma Netto (2001). Se por um lado, o fundamento da “questão social” se encontra nas relações de exploração do capital sobre o trabalho, as respostas e formas de enfrentamento – as políticas sociais – se dão em relação às expressões multifacetadas deste fenômeno (saúde, trabalho, educação, habitação, segurança etc.).
Políticas sociais consistem, pois, em estratégias de enfrentamento ao conjunto de problemas sociais, econômicos e políticos resultantes das relações de exploração do capital sobre o trabalho. Por isto, empreendidas no âmbito do MPC, garantem sua reprodução sem atingir, de fato, seus determinantes.
Embora não haja consenso (vide debate empreendido por Augusto, 1989), a distinção entre política social e política pública se faz necessária neste momento. Um entendimento corrente é que as políticas públicas se referem a qualquer iniciativa de regulamentação e oferta de serviços por parte do Estado, seja de corte social, seja com outros objetivos (como no campo da comunicação, transporte e relações internacionais). Política social, por outro lado, refere-se às intervenções (públicas ou privadas, a exemplo do que ocorre com as iniciativas do “terceiro setor”) que incidem diretamente nas sequelas da já discutida “questão social”. Por isto que, para o escopo da atuação do psicólogo aqui discutida, faz sentido a referência às políticas sociais conforme este entendimento.
Importante mencionar que as políticas sociais assumem um caráter particular, dadas as condições sócio-históricas de cada contexto específico. Como bem afirma Pastorini (2004),
a “questão social” assume expressões particulares dependendo das peculiaridades específicas de cada formação social (nível de socialização da política, características históricas, formação econômica, estágios e estratégias do capitalismo) e da forma de inserção de cada país na ordem capitalista mundial (p. 113).
Neste sentido, um dos aspectos centrais na conformação das políticas sociais ao longo da história tem sido a articulação com os ciclos econômicos do MPC, caracterizados por períodos de acumulação (expansão) e crise (recessão). De acordo com Harvey (2011), a chamada “crise” do capitalismo, na verdade, é cíclica, funcional e previsível, abarcando as diversas instâncias que compõem o cotidiano social. Assim, as intervenções do Estado voltadas à classe trabalhadora respondem, em grande parte, às tentativas de redução do impacto dessas crises para o comando do capital.
Um ponto essencial a se ressaltar sobre isso é que, se a pobreza assume um caráter peculiar no MPC, as crises econômicas capitalistas também se diferenciam quando comparadas com aquelas presentes nas sociedades pré-capitalistas (Sweezy, 1983). Nestas, a carência generalizada de produtos necessários à reprodução da vida decorria, sobretudo, de catástrofes naturais (epidemias que assolavam os produtores ou desastres na natureza que destruíam os meios de produção) ou sociais (como as guerras, que dizimavam as forças produtivas). Com a emergência do capitalismo, as crises, contraditoriamente, estão relacionadas à abundância, seja sob a forma de superprodução ou de superacumulação.
No caso da superprodução, o desenvolvimento científico e tecnológico assume um papel central. Isto pode ser observado na virada para o século XX, quando o aprimoramento do conhecimento nas áreas de química, elétrica, petróleo e sobretudo de aço, possibilitou um desenvolvimento sem precedentes dos complexos industriais. Além disso, como aponta Antunes (2002), em meados do referido século, a reorganização do ambiente de produção segundo os princípios do fordismo (contribuição das ciências humanas e sociais) esteve relacionada à aceleração do ritmo no setor produtivo, gerando um alto nível de produtividade nas fábricas.
A dinamização do processo produtivo, contudo, é apenas o primeiro momento para a acumulação de capital; para que este ciclo se complete, como já mencionado, é preciso intensa atividade na esfera da circulação (o que equivale à distribuição das mercadorias, por meio de trocas, compra e venda). Assim, do segundo pós-guerra até meados dos anos 1970 instalou-se o que se chamou de Estado de Bem-Estar Social (ou Welfare State) nos países da Europa ocidental, regime de acumulação típico da fase de expansão capitalista.
De acordo com Fleury (1994), o Welfare State pode ser caracterizado por um modelo de regulação social pautado na forte intervenção do Estado nas relações econômicas e políticas visando ampliar as condições de proteção social. Por um lado, viu-se a disponibilidade de crédito para as indústrias, investimento em infraestrutura para o setor produtivo (como o incremento do complexo energético e das estradas) e desenvolvimento da base técnico-científica por meio de políticas científicas voltadas à pesquisa. Por outro lado, houve o investimento na disponibilidade e promoção do acesso a serviços sociais até então negados para a maioria da população, a exemplo da saúde, assistência social e estratégias de pleno emprego. Importante recordar que esse período foi marcado por intenso crescimento econômico decorrente tanto da reconstrução, sobretudo europeia e estadunidense, necessária no pós-guerra quanto dos processos neocoloniais ocorridos no chamado “Terceiro Mundo”. Tal conjuntura possibilitou tamanho investimento por parte do Estado nas esferas produtivas e sociais.
A análise de tal investimento estatal em políticas sociais aponta tanto para a redução dos custos de manutenção dos trabalhadores para a classe burguesa (que se desobrigam de fornecer tais serviços, ou de pagar por eles via salários, uma vez que o Estado passa a se responsabilizar por isso) quanto para a configuração dos chamados salários indiretos, ou seja, permite que a remuneração paga aos trabalhadores seja empregada no consumo das mercadorias produzidas, e não com os serviços básicos a sua reprodução. Com isso, percebe-se que a ampliação dos direitos trabalhistas obtida nos “anos dourados” das políticas sociais, consequência da luta política dos trabalhadores organizados, também esteve diretamente articulada às demandas do ciclo do capital e ainda colaborou para a imagem de um Estado responsivo às demandas sociais, legitimando seu papel frente à sociedade.
Importante ressaltar, na análise deste contexto, o protagonismo dos trabalhadores na luta por melhores condições de vida – como já afirmado, ao maior desenvolvimento industrial está articulada uma maior organização dos trabalhadores e, com isso, respostas meramente repressivas às demandas da classe operária já não se mostram suficientes (Giannotti, 2007; Hobsbawm, 2015). Neste cenário, há de se mencionar também a importância da Revolução Russa de 1917 e da Guerra Fria no tensionamento dessas forças: era preciso apontar alternativas capitalistas que concorressem às novas experiências que se apresentavam como potenciais ao conjunto dos trabalhadores.
Para ilustrar a segunda possibilidade de manifestação das crises cíclicas do capitalismo até agora conhecida, a superacumulação, e com isso compreender como se delineiam as políticas sociais neste contexto, recorre-se à apreciação a respeito da ofensiva neoliberal: considerada um conjunto de regras doutrinárias, tal estratégia pragmática emerge em meados dos anos 1970 como resposta a uma crise de superacumulação do capital que se avizinhava (Draibe, 1993).
O que se assistia na época era uma desvantagem para os capitalistas em reintroduzir o lucro obtido na esfera da produção de volta ao setor produtivo. Isto se dava em função de diversos aspectos, tais como a alta no preço dos barris de petróleo que conduzia à queda nas taxas de lucro das indústrias, as “vantagens” trabalhistas obtidas no período anterior que encareciam o valor da mão de obra e o rápido desenvolvimento técnico-científico que colocava as indústrias em vantagem competitiva sem necessidade de maiores atualizações – já se estava produzindo em escala suficiente para o consumo. Isto significa que os grandes industriais estavam produzindo capital em escala superior à necessidade de reinvestimento na indústria.
De acordo com Silva (2012), o processo de financeirização do capital, pois, emerge como uma estratégia para valorização (uso) desse capital obtido no setor produtivo, mas sem fazê-lo retornar à esfera produtiva, transformando-o em capital fictício (ou seja, um capital que se volta a produzir mais capital, apenas por meio de juros). Com isso, enxugam-se os investimentos na esfera da produção (apesar de esta ser a única que produz os bens necessários à reprodução da vida humana) e amplia-se o investimento no capital portador de juros, que não traz qualquer ganho para o trabalhador, apenas para o capitalista.
Os principais impactos desse processo foram vistos no cenário trabalhista por meio da reestruturação produtiva, marca do período neoliberal: caracterizada pela terceirização da mão de obra, flexibilização das leis trabalhistas e automação da produção, reflete um progressivo processo de desindustrialização. Aliado a isso, cresce o setor de serviços o qual, conforme alerta Antunes (2002), emerge como terreno fértil para formas precarizadas de trabalho, marcadas pela informalidade, alta rotatividade e ausência de representação sindical.
No que se refere às políticas sociais, uma contrarreforma do Estado ganhou celeridade com o argumento de que o investimento estatal realizado no período anterior (ou seja, no Welfare State nos países de economia central, e nas gestões pautadas no desenvolvimentismo, em países como o Brasil) significava mau uso dos recursos públicos, de forma ineficaz – os gastos públicos com políticas sociais universalistas foram considerados os responsáveis pela quebra do orçamento estatal. Assim, procedeu-se à focalização das políticas, privatização de serviços sociais básicos e chamamento às ações filantrópicas e voluntaristas do “terceiro setor”2, caracterizando um retrocesso nas respostas à “questão social”, até então considerada uma responsabilidade pública por situar-se na esfera dos direitos sociais.
Na verdade, o que estava por trás desta manobra era desviar o gasto público das políticas sociais para valorizar o capital fictício que ganhava cada vez mais corpo, seja por meio dos empréstimos tomados pelo Estado dos grandes conglomerados internacionais (e, consequentemente, pagamento dessa dívida com juros), seja pela concessão de vantagens às instituições financeiras. Apesar da complexa lógica envolvida no movimento do capital financeiro requerer explicações aprofundadas acerca da composição e destinação do chamado fundo público, o que foge ao escopo deste artigo, propõe-se na sequência compreensões mínimas a respeito do tema, dada sua importância na conjuntura brasileira atual.
Didaticamente, o fundo público pode ser compreendido como toda a capacidade de mobilização de recursos que o Estado tem para intervir, seja por meio das empresas públicas, pelo uso das suas políticas monetária e fiscal, assim como pelo orçamento público (Salvador, 2012). Tal montante arrecadado pelo Estado tem origem diversificada, tais como a emissão de moedas, venda de títulos públicos e empréstimos. Contudo, sua maior parte é oriunda da carga tributária, sobretudo aqueles impostos que incidem sobre a produção e consumo.
Isto significa que os impostos pagos por toda a população, seja por meio das contribuições previdenciárias debitadas diretamente dos salários, seja pelo consumo de produtos e serviços também pagos com estes mesmos salários, vão compor as receitas do Estado. Com isto, a expectativa é de que tais valores retornem à população sob a forma de políticas necessárias à reprodução dessa população. A realidade, contudo, é outra.
Os dados do orçamento público brasileiro de 2019 podem ilustrar o que, de fato, acontece. Do orçamento federal executado no referido ano (2,711 trilhões de reais), destaca-se que 25,25% foram destinados aos benefícios previdenciários do Regime Geral da Previdência Social e do Regime Próprio dos Servidores Públicos Federais, incluindo o pagamento de inativos, pensões e outros benefícios previdenciários; 10,44% corresponderam às transferências aos estados, Distrito Federal e municípios. São outros dois gastos, contudo, que merecem atenção. De um lado, menos de 14% foram destinados à execução de políticas de saúde, educação, assistência social e trabalho (além destes, os investimentos em segurança pública, transporte, ciência e tecnologia, cultura e habitação, juntos, não chegam a 1% do montante). Do outro lado, 38,27% do total de recursos do orçamento público foi gasto com pagamento de juros e amortização da dívida pública3.
Além disso, há de se mencionar o caráter regressivo da taxação de impostos brasileira, atingindo com maior impacto os trabalhadores assalariados e as classes de menor poder aquisitivo, que são responsáveis por 61% das receitas arrecadadas pela União. Por exemplo, famílias com renda de até dois salários mínimos destinam em torno de 40% da renda familiar com impostos, ao passo em que as famílias com renda superior a 30 salários mínimos precisam gastar aproximadamente 15% da sua renda em tributos indiretos (Salvador, 2012).
Diante deste contexto, torna-se imprescindível desmistificar a ideia de que o orçamento público se limita a uma peça técnica e seu planejamento, um processo formal, burocrático. Ao contrário, ele é carregado de cunho político ao refletir as escolhas políticas e a correlação de forças sociais a elas subjacentes, definindo a direção e a forma das prioridades estatais e registrando a qual classe recaem os ônus e os bônus da produção social da riqueza.
Boschetti (2010) afirma que a origem da dívida pública não é recente, mas veio a ocupar tal dimensão no orçamento público dos países de economia periférica como o Brasil no momento da ofensiva neoliberal nos anos 1970, atualizando-se como estratégia central de valorização do capital na última década, após a manifestação da longa onda recessiva em 2008. Conforme mencionado, naquele período, países de economia central viram-se com superacumulação de capital, encontrando como estratégia o deslocamento do capital industrial, produtivo, para o financeiro. Foi então que os Estados nacionais compareceram como tomadores de empréstimos desse capital, a juros variáveis (ou seja, os credores definem o valor dos juros, como empregar o empréstimo e como pagar a dívida), fazendo com que ao longo destes 50 anos a dívida tenha crescido astronomicamente. Aos donos deste capital não interessa a liquidação da dívida em si, já que é a partir dela que incidem os juros, cujo pagamento é superior ao próprio montante tomado de empréstimo.
Com isto, percebe-se o compromisso do Estado com a esfera financeira em detrimento das intervenções que minimizem as sequelas da “questão social”: destina parcela significativa do gasto público para o atendimento dos imperativos de regulação da ordem do capital (valorização do capital financeiro por meio do pagamento dos juros da dívida pública), ao passo em que enxuga o gasto social, privatiza serviços públicos essenciais, focaliza políticas assistenciais e desregulamenta direitos trabalhistas duramente conquistados.
Este cenário se radicaliza no contexto brasileiro com a eleição de Jair Bolsonaro como Presidente da República em 2018, considerado candidato da extrema direita no espectro político-partidário brasileiro. Se o conservadorismo se avizinhava desde as Jornadas de Junho de 2013 e a polarização das eleições presidenciais de 2014, se agravou com o golpe que levou ao impedimento da Presidenta Dilma Rousseff e se mostrou presente na gestão de Michel Temer. Dentre os feitos de tal programa político, destaca-se a aprovação da Emenda Constitucional no 95 em 2016, que implanta um Novo Regime Fiscal (também conhecida como “teto de gastos” por limitar os gastos públicos pelos próximos 20 anos); e a realização da Reforma Trabalhista em 2017 (que altera cláusulas da Consolidação das Leis Trabalhistas em favor da ampliação da terceirização, da fragilidade das relações de trabalho por meio das negociações e acordos que podem não oferecer vantagens ao trabalhador e da desestruturação do sindicalismo ao desobrigar a contribuição sindical, por exemplo).
No mandato Bolsonaro, a onda conservadora, caracterizada como “economicamente liberal, moralmente reguladora, securitariamente punitiva e socialmente intolerante” (Almeida, 2019, p. 185-186), tem sua face mais cruel na ofensiva contra os direitos historicamente conquistados pela classe trabalhadora. Só em 2019, ocorreu a publicação da Nota Técnica nº 11/2019 pelo Ministério da Saúde, referente à Nova Saúde Mental (que em linhas gerais propõe mudanças na Rede de Atenção Psicossocial focalizando nos hospitais psiquiátricos ao invés dos serviços substitutivos), a extinção de espaços democráticos de debates e deliberações (a exemplo do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea), a retirada da população LGBT da Política de Direitos Humanos por meio da Medida Provisória nº 870/2019, além de desmontes e ataques às políticas de habitação (com redução de quase 50% do investimento do Programa Minha Casa, Minha Vida), cultura (logo em sua posse, extinguiu o Ministério da Cultura e o redimensionou em secretaria), educação (sobretudo a partir do contingenciamento de verbas para as instituições federais de ensino, dos impasses colocados para a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) que se encerra em 2020 e da desqualificação da carreira docente) e de proteção indígena (não se pode esquecer a nomeação de um ex-missionário evangélico para a coordenação dos povos isolados e do Projeto de Lei que permite atividades econômicas em terras indígenas, assemelhando a política indígena atual à era colonial).
Ademais destes exemplos, torna-se necessário pontuar a aprovação da Reforma da Previdência em novembro de 2019 (Emenda Constitucional nº 103). Sob o discurso da necessidade de ajuste fiscal, apontada como decisão técnica e com promessa de redução da desigualdade social em longo prazo, a contrarreforma de um dos pilares do Sistema de Seguridade Social brasileiro traz o cariz classista em sua essência. De acordo com Silva (2019), ao alterar critérios como tempo de contribuição, idade mínima para aposentadoria, definição dos valores salariais como base para o cálculo dos valores a serem recebidos, a nova legislação promoverá a abertura de mercado para a previdência privada (como complementação de renda), a ampliação do exército industrial de reserva que pressiona os salários para baixo e o fortalecimento do capital financeiro ao garantir sua apropriação do orçamento público por meio do sistema da dívida pública, já debatida.
É este o cenário no qual se situa o psicólogo que atua na interface com as políticas sociais. Entender a necessidade e importância do conhecimento de tal conjuntura para o seu trabalho é o objeto de que trata a próxima sessão.
PSICOLOGIA, POLÍTICAS SOCIAIS E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Se o trabalho do psicólogo no campo das políticas sociais pode ser considerado prática recente, o desconhecimento acerca do “que fazer” neste contexto e as consequentes críticas decorrentes dessa incerteza, tornam-se compreensíveis. A alternativa para este quadro aqui vislumbrada aponta para a importância de se dar um passo atrás: para “saber fazer” é preciso conhecer – o contexto, as demandas, os recursos, os limites e possibilidades da ação profissional.
Neste ponto, retoma-se a proposta central deste escrito: o reconhecimento de que os fundamentos teórico-metodológicos do marxismo são ferramentas fundamentais para essa inserção qualificada da Psicologia nas políticas sociais. Importante pontuar a necessidade de articulação deste com outros instrumentais de reflexão e ação (sejam teorias e técnicas vinculadas à própria Psicologia, como em suas vertentes críticas da Psicologia Comunitária latino-americana; sejam recursos de outros campos do conhecimento, do qual destaca-se a Educação Popular) – de modo algum, defende-se que o estudo da teoria social marxiana e da tradição marxista é suficiente para balizar tarefa tão desafiadora. Entretanto, aposta-se que sem tais estudos, as alternativas se anulam.
É neste sentido que se ressalta a necessidade de que o psicólogo avalie, de maneira crítica e fundamentada, as mediações presentes no campo das políticas sociais: qual a sua natureza, o seu papel e seu alcance. Sem esta compreensão, o caminho mais óbvio, mas potencialmente menos efetivo, remete à mera execução de políticas fragmentadas, reprodutoras da ordem, por mais qualificada tecnicamente que seja esta atuação.
De outro modo, se a pretensão é possibilitar ao psicólogo um papel transformador, a estratégia deve passar, necessariamente, pelo reconhecimento de que as políticas sociais não devem figurar como meta de seu trabalho, mas possibilidades de criar condições (estruturais, materiais, políticas, culturais) para a transformação da realidade social, cujo pilar atualmente centra-se na exploração humana (Lacerda Jr., 2016).
Não é desarrazoado propor tal caminho quando se considera o caráter contraditório fundamental do MPC: de acordo com Behring e Boschetti (2011), se grande parte dos direitos sociais concedidos representaram a busca de legitimidade das classes dominantes, por meio da tutela e favor, assim como as intervenções empreendidas pelo Estado cumprem função primordial de manutenção do capitalismo, também não se pode desconsiderar que tais direitos sejam frutos de reivindicações da classe trabalhadora e que as políticas sociais, ao garantir condições básicas de sobrevivência ou melhoria nas condições de vida, possibilitam a superação do quadro que as exige.
Isto significa que, conforme apontado por Cohn (2000), a perspectiva marxista não advoga em favor da paralisia nem da ideia de que não há alternativas viáveis (ou desejáveis) frente ao quadro atual. Ao contrário, considera-se que a história é produto de lutas sociais e, segundo Yamamoto (2007), “o suposto de que as políticas sociais nos remetem sempre e no limite ao antagonismo irreconciliável de classes, não nos impede, todavia, de pensar em diferentes pontos de equilíbrio entre a acumulação e a privação social” (p. 32). Neste sentido, é preciso identificar e construir propostas que conduzam a práticas de caráter universalistas e redistributivas, modalidades de articulação entre desenvolvimento e democracia, possíveis por meio de novos padrões de integração social.
Para tanto, esta busca requer postura ético-política ativa, que lance a Psicologia como corresponsável pela construção de um projeto de sociedade ancorado nos princípios de igualdade e emancipação, debate que já vem se fazendo presente em outros âmbitos da área. Tal postura envolve mudanças em direções diversas: na formação de psicólogos, na produção científica, na prática política da categoria e na articulação com outros segmentos da sociedade.
As críticas em torno da formação do psicólogo têm sido direcionadas à necessidade de os currículos e demais instrumentos do processo formativo incorporarem essa dimensão, despertando os futuros profissionais para a importância de se considerar as demandas do contexto e de ter apropriação a respeito das concepções de ser humano e mundo que orientam as ações.
No que se refere às definições e orientações no âmbito da pesquisa científica da área, a necessidade de qualificação técnica e teórica a respeito deste campo é patente, uma vez que o debate teórico em torno das políticas sociais é ainda tão alheio a Psicologia (Costa, 2014). Assim, no processo de produção de conhecimento, torna-se mister ampliar o entendimento crítico da categoria a respeito da dinâmica social sob a regência do capital. Neste caso, tal aprofundamento onto-epistemológico e teórico-metodológico sobre política social permitiria à Psicologia não mais se referir aos problemas sociais (e suas tentativas de equacionamento) descontextualizados do cenário amplo, como algo naturalizado. A partir disso, torna-se essencial a transformação desses saberes em prática política organizada.
Isto significa que há que se fazer o enfrentamento necessário na defesa intransigente dos direitos sociais, seja por meio da ocupação dos espaços formais de disputas políticas (comissões e conselhos de direitos, por exemplo), no apoio às pautas dos poderes legislativos e executivos progressistas e negação daquelas que representam retrocessos à população, e/ou ainda pelo debate direto com segmentos da população e movimentos sociais organizados, contribuindo a respeito dos temas de seu interesse e suas possibilidades de participação.
Por fim, há de se mencionar a necessidade de os profissionais de Psicologia se reconhecerem como classe trabalhadora e se articularem com as demais categorias profissionais. Afinal, sabe-se que um projeto de transformação social envolve muito mais que propostas de determinado grupo profissional ou disciplina científica. A responsabilidade por este projeto de sociedade precisa ser, em sua essência, compartilhada e articulada pelos diversos complexos sociais que compõem a totalidade: não se pode pensar em um papel ativo exclusivamente para a Psicologia, mas requer debater a sua reorganização de modo a construir, de forma integrada com outros saberes e práticas, alternativas mais efetivas de superação das condições de desigualdade e exploração.