As tramas do sentido na vida
Fenomenologicamente a vida e o mundo são horizontes de sentido com muitas conexões que mostram o sentido sempre em tramas ou tecidos que provocam interpretações. Essas interpretações acontecem num espaço aberto que e não uma resposta única; trazem ambiguidades próprias à extensão que elas cobrem e uma certa polissemia das palavras e dos textos. Não temos “uma” hermenêutica. A perspectiva que assumimos aqui aborda a confluência dos primeiros esforços por uma hermenêutica geral com a fenomenologia. A hermenêutica contemporânea se desenvolveu em grande parte como uma derivação da fenomenologia (Heidegger, 2013; Gadamer, 2005; Ricoeur, 1985, 1997). Daí a necessidade de começarmos por essa confluência da hermenêutica com a fenomenologia.
Fenomenologia e hermenêutica
Fenomenologia é uma palavra composta de palavras de origem grega, phainómenon e logos. Phainómenon significa o que é trazido à luz (phôs). É o que se manifesta. E logos é compreendido como “colheita de sentido” (na etimologia mais antiga de légein nos reporta à atividade agrária de produzir e colher, analisada por Heidegger, 2013); o sentido que é produzido é também colhido de muitas formas, mas especialmente pela linguagem e por atribuir ao sentido recortes de significados, por meio de signos linguísticos. Um significado tem sentido mais amplo que significado (diferença que será tratada mais adiante). O sentido abre a possibilidade de significados, o significado é a doação de sentido que damos às coisas.
O ato de colher e reunir o sentido em significados é também indicado no verbo latino ler. A leitura de conexões do real, das tramas da vida, ou a leitura de textos já nos dão a conotação de ler como um indício da tarefa de interpretar. Devemos acrescentar que a recuperação fenomenológica da tarefa interpretativa na vida concreta e intersubjetiva implica a transmissão de sentido pela linguagem, discursos, textos, numa constante elaboração de significados.
“O que se manifesta” na fenomenologia é circunscrito por uma relação de sentido com o mundo. O que aparece é necessariamente correlato de um ato intencional e tudo o que surge desponta como fenômeno de sentido das coisas. Toda revelação de algo é a manifestação de sentido. Nada do que se aponta é sem sentido. A fenomenologia trabalha com experiência do sentido das coisas.
A experiência é uma palavra muito grande. Trazemos conosco muitos saberes os quais não nos damos conta. Trazemos conosco experiência da humanidade e com uma característica de universalidade e particularidades. Nossa prática cotidiana acumula muito significado de modo não reflexivo, isto é, com uma dose de passividade, e muito sentido é antecipado sem que fosse feita uma crítica sobre os mesmos. Formamos uma espécie de camada ideológica de discurso, hábitos, tradições, que são funcionais como doxa no cotidiano, mas que podem se tornar tirânicas, falas mecânicas, formações passivas de ideias, etc.
A doxa, opinião, pode ser verdadeira ou falsa, assentada na maior parte das vezes em generalidades vagas (não examinadas). Em face desse acúmulo não refletido adequadamente a fenomenologia estabelece algumas condições para o retorno à experiência onde o sentido é vivido de modo mais originário (“retorno às coisas mesmas”) e com a possibilidade de uma reflexão atenta sobre o sentido que alimenta o significado. Esse procedimento é denominado de epoché. Na figura literária que vem da antiguidade, vamos à fonte de sentido sedimentada pela humanidade na água que corre, mas vamos beber na nossa própria caneca com água submetida a um filtro. A fenomenologia é nossa caneca de beber agua filtrada1 .
É o mundo semantizado passando por nossa consideração originária do sentido e do sentido significado. O filtro neutraliza toda opinião prévia, toda teoria (mesmo a científica, que não examinou adequadamente seus pressupostos), toda opinião da tradição ou acumulada na história. A fenomenologia quer partir da experiência originária com o sentido das coisas.
O mundo semantizado é significado na existência. Todos nós vivemos uma experiência semântica da existência. A experiência acumulada no tempo de nossa vida significa a acumulação de sentido que constitui nosso fundo sedimentado de sentido que, por meio da linguagem, signos e significados, constitui o discurso latente e a narrativa que nos acompanha.
Esse discurso latente é apropriado em parte (apropriado= incorporado à dinâmica de si) e com a apropriação passa de discurso latente a discurso expresso. Assim a vida vivida é uma vida de existência pelo sentido vivido e pelo sentido que é significado.
Existir (no sentido de ex-sistir, sair de si) é respirar sentido, o oxigênio do existir humano. O ser humano é um buscador de sentido. Esse caminho do si em busca de si mesmo pode ser visto na música Caçador de Mim cantada por Milton Nascimento:
Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mim.
(Luís Carlos Sá e Sérgio Magrão)
A vida por si mesma é produtora de sentido e reclama sentido. O ser humano não apenas vive. Ele é carente de sentido e desprovido de discurso para viver. O mundo necessita fazer sentido. A existência deve fazer sentido. O si mesmo e o outro devem fazer sentido. Porém, o ser humano sofre quando divaga em abstrações e perde a conexão com o mundo vivido (ou o mundo-da-vida). O ser humano vive, então, a tensão que o acompanha entre o sentido e o sentido da falta de sentido: o ser humano é ameaçado pelo não-sentido e por uma existência esvaziada. A existência revela então sua tarefa contínua de si mesmo como compreensão. Tem sua existência marcada pelo esforço de compreender e desenvolve atividades visando uma contínua elaboração e reelaboração de sentido e de discursos que expressem essa reelaboração.
Embora a fenomenologia tenha o ponto de partida sem pressupostos, parte do mundo-da-vida questionando para trás (Rückgragen, Rückbesinnung), como propõe Husserl (2008) um questionar que recupera a gênese histórica do sentido de modo crítico. O objetivo é chegar à compreensão que une o sentido com a vida. Essa atividade de compreensão (apontada por Schleiermacher, (2014), retomada por Dilthey, (1949); é especificamente uma atividade que gerou a necessidade de uma ciência hermenêutica geral.
A fenomenologia enquanto aproximação do sentido e das significações associadas à necessidade de compreensão gera uma fenomenologia fundada na história e a ser entendida como fenomenologia hermenêutica. A vida interpretada em seu movimento próprio, em sua manifestação de sentido, deve ser apropriada pelo ser humano de modo autêntico e bem fundado. A fenomenologia e hermenêutica são momentos de uma mesma atividade interpretativa do mundo e de si mesmo.
A hermenêutica situa-se como uma continua preocupação humana de compreender (motivação fundamental): a compreensão é uma categoria existencial e fundamental da existência; o ser humano vive num círculo de interpretação que promove a compreensão. Ricoeur (1985, 1997) coloca o ser humano como aquele que se vê no círculo de compreender a si mesmo (com os outros) desdobrando seu modo de ser diante do mundo, por meio de mediações, dentre essas se destacam os textos escritos.
A hermenêutica, no pensamento deste filósofo pode ser resumida como a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação de textos. Desde Schleiermacher trata-se de uma Teoria da Hermenêutica Geral que se se constitui a partir das condições a priori do compreender. As hermenêuticas especiais (jurídica, médica, religiosa, bíblica, das artes, etc.) que existem mais como procedimentos práticos e se conhece desde a antiguidade, carecem da hermenêutica geral da existência e da compreensão no sentido hermenêutico.
A vida humana encontra uma metáfora forte na expressão “texto”, “textura”. Nosso modo de ser humano pode ser entendido como um fundo de sentido que é apropriado como tecido ou redes de significações. Ricoeur (1985, p 114) escreveu: “Que nos é dado a interpretar? Eu responderei: interpretar é explicitar o modo de ser no mundo que se desdobra diante do texto.”2
A compreensão acontece como processo de interpretação essencial da existência. Toda vida humana, em especial a que dá o gosto vital de ser vivida, é vida interpretada. “Uma vida é apenas um fenômeno biológico enquanto não for uma vida interpretada”3 Sócrates, segundo Platão, afirma que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida.
Em resumo, a vida humana é desdobrada em um processo de interpretação no qual o ser humano age como produtor de significados no amplo horizonte de sentido e, por meio das significações, entra no grande diálogo histórico da humanidade onde as vidas se entrelaçam.
Vida e interpretação
A hermenêutica origina-se da trama de sentido na vida; mas, desenvolveu-se especialmente pela interpretação de textos4. A mediação de documentos tornou-se, em nossa cultura, um modo essencial de produção de sentido. Um texto pode ser descrito como uma unidade ou uma coleção de frases formando um todo (formando uma obra). Um texto pertence a uma esfera social de produção dialógica de sentido e assume formas variadas de estilos e gêneros usados numa cultura.
A abordagem de um texto não é totalmente neutra. A escritura é um modo de interpelação e os interessados em sua interpretação são os demandantes. Os textos são portadores de diferentes potenciais de sentido e ‘provocam’ e podem despertar-nos para diferentes aspectos do viver; desde que nos sentimos interpelados pelo potencial de sentido entramos no jogo do texto e no reconhecimento do texto entrelaçado com a vida. O intérprete busca descobrir convergências entre o mundo-da-vida e o sentido que um texto propõe em termos significados.
Sem a possibilidade de uma interpretação única ou de fixar uma verdade do texto, a hermenêutica trata dos desdobramentos possíveis e de trazer à tona camadas de sentido que um texto encarna. Ainda que não adotamos a interpretação única ou a verdadeira, as interpretações seguem possibilidades que obedecem a normas que controlam o sentido, e as interpretações podem ser complementares ou mesmo conflitantes, sem perderem a razoabilidade da discussão.
O intérprete é convidado a entrar num jogo com regras e com possibilidades: não se trata de repetir o texto (não é possível repetir de modo vivo o texto, mesmo o nosso ou de outro), mas de prolongá-lo em perspectivas que o ilumina indo além dele. O texto deve reentrar na esfera dialógica de produção de sentido de onde se originou por processos interpretativos e compreensivos. O texto, de certo modo, não termina quando se prolonga nas interpretações e discussões que provoca. Nesse caso, o texto avança no tempo com suas leituras.
Platão parece ter concebido a filosofia como um grande diálogo do ser humano5. A dialogicidade social do ser humano não significa para a hermenêutica a exclusão do sujeito e da pessoa. O intérprete acolhe o texto num horizonte que lhe é próprio. Mas, o texto vem com regras e se prolonga em forma na qual o tecido novo não seja simplesmente uma ruptura sem os necessários prolongamentos.
A vida pode ser vista numa trama de narrativas (a ação possui analogias com um texto, uma metáfora forte da vida) onde outros (e muitas distintas personagens) parecem dançar a música que nos envolve como pessoa num jogo de si mesmo com os outros. Em certo sentido, a hermenêutica implica sempre uma interpretação de si mesmo.
O si mesmo não só acompanha os atos cognitivos (suppositum cognoscens dos medievais e de Kant, 1950, p. 111 ss), mas é pessoa que busca, seja que por muitos desvios, o sentido de sua própria vida. O si mesmo não é o ego cartesiano; é anes uma tarefa, a tarefa de efetuar-se a si mesmo. Que o hermenêutico passe pela busca de si foi amplamente reconhecido por Ricoeur (1985, 1997), ao mostrar o vínculo da narrativa com a identidade e a constituição de si através dos outros.
Ultrapassar-se e apropriar-se do sentido (através de significados) de modo reflexivo e interpretativo é próprio da vida humana é. A vida, em sua inquietude por sentido, encarna um paradoxo ontológico na produção e apropriação do sentido que nenhuma ciência, nem a filosofia dão conta. A questão do sentido em relação à vida é uma questão ontológica que fica sempre em aberto.
A vida da qual falamos é a vida vivida, ou a vida vivente in vivo actu, é a vida que antecede as ciências naturais ou ciências da cultura: o mundo-da-vida. A ideia do mundo-da-vida (o Lebenswelt de Husserl (2008) é essencial para a hermenêutica. O mundo da vida antecede o trabalho da consciência 6atenta. Ele é o mundo que já está dado e no qual eu me encontro (Heidegger o desenvolveu como nossa presença enquanto ser-nomundo). Há uma antecedência da vida e da existência em relação à reflexão e em relação à ciência. O sentido antecede a consciência e a própria linguagem. O mundo-da-vida não só é o ambiente da existência como é a sua reserva de sentido que supera todas as especializações da linguagem. A linguagem é compreendida aqui como um modo humano de apropriação de sentido através de signos e significações7.
A hermenêutica trata de interpretar a vida em suas archês de humanidade como um caminho possível para responder as perguntas da inquietude humana ao transcender a si mesmo: para onde? Para quê? Como? Ir além de si para morrer? Sempre começamos indiretamente. Dependemos dos textos que nos formam antes de nós. Porém, a vida manifesta-se também originariamente a si mesma numa subjetividade radical e abre a busca sentido em formas que nos tocam originariamente como nos casos da religião, para alguns, ou da arte, ou do sentido pura e simplesmente. O que vem indiretamente dispõe o sentido à uma subjetividade imanente. O foro de uma subjetividade imanente daquilo que nos transcende de algum modo (as coisas, o outro) é uma condição sine qua non de apropriação do sentido. O sentido de algo é sempre alcançado num primeiro momento pela imanência da relação de sentido. Por isso, o processo de apropriação, não é uma forma de subjetivismo, pois o que nos transcende é o que pode ser visto por não pertencer a uma subjetividade, mas antes pertence à universalidade comum a todos.
A imanência intencional do sentido transcendente (fora de nós) permite que sentido seja apropriado como significado, sem perder suas características teóricas de validade. Mas a apropriação é importante porque nos dá um núcleo pessoal de ação8. A rede social, a memória social, não significa a destruição do foro íntimo, do reduto de elaboração “apropriada” (no sentido já mencionado e, repetido aqui, de tornar própria a significação incluindo-a no movimento compreensivo de si mesmo. Apropriação no sentido de incluir no ‘próprio’ do si próprio). Um sistema, uma estrutura, mesmo os mais necessários à vida, precisam ser vistos com sentido. Assim uma tradição cumpre sua melhor função quando é ‘apropriada’ pela reflexão; não apenas imposta ou incorporada de modo totalmente irreflexivo.
A vida é tratada como uma manifestação que ultrapassa suas próprias estruturas e como manifestação originária de si mesma. A fenomenologia hermenêutica pensa o sentido que foi dado no fenômeno como a forma mais íntima e interior à vida. A vida vivida do sentido é invisível como ideação mesmo no signo (a visibilidade do signo arbitrário não é a visibilidade sentido ou significado). Entretanto a vida do sentido não seria possível sem uma primeira forma de materialidade vivida do sentido. Esse ponto é fundamental e voltaremos a ele nas outras partes que seguem esse texto.
A excedência da vida é o lugar mesmo de sua manifestação e do modo de ser como busca incessante de sentido, além das estruturas sejam elas existenciais ou ontológicas. Essa excedência existencial nos obriga a ir contra o subjetivismo, mas isso não é postar-se contra a subjetividade; ir contra o absolutismo do ego é de algum modo a restauração mais adequada do sujeito; a divergência com o estruturalismo visa o reconhecimento do sentido como maior que o recorte estrutural das significações. Corpo e sujeito estão implicados na existência e não podem ser desimplicados como pretendem aqueles que visam suprimir o sujeito da leitura. Podemos incorporar a estrutura do texto na hermenêutica, mas não podemos acompanhar uma semiótica que se fecha no código (e seu contexto) se não estiver aberta aos prolongamentos de sentido aportados por uma subjetividade que interpreta; o texto se encontra também nos prolongamentos de suas interpretações. Por outro lado, ir contra a linguística formal (sem o vivo do mundo da vida) visa incorporá-la na trama da vida compreensiva, não se ater a uma semântica “puramente” sistêmica, mas levar a semântica linguística até uma semântica filosófica. Onde o mundo da vida foi excluído trata-se de retomá-lo no esforço compreensivo-hermenêutico. Em resumo, a hermenêutica, além de todos os métodos e epistemologias, trata de aproximar vida e texto na produção de sentido.
Hermenêutica e o mundo-da-vida
A hermenêutica tem seu primeiro lugar no mundo-da-vida. Narrativas, mundos, e personagens, começam e terminam no mundo vivido por mais que tragam sistemas e estruturas com eles. Na hermenêutica acontece um jogo de si mesmo com os outros mediado socialmente nos diálogos e nos textos. Os gêneros narrativos não são criações abstratas. Eles respondem a modos sociais de vida e de interação. Muitas personagens são modeladas, algumas típicas, com as quais interatuamos na formação de pessoas. O mundo-da-vida é o nosso solo onde de fato vivemos e onde toda ciência empírica nasce e onde a ciência deve responder, isto é, revelar sua reponsabilidade pelo sentido. A hermenêutica olha para o texto para responder suas demandas e interpelações regradas sem perder a primazia da vida no entrelaço com a linguagem.
A hermenêutica faz corresponder o “aprender a ler” com o “aprender a ver”, uma correspondência que fenomenologia desenvolve. Ambos pressupõem a admiração e o encantamento do fenômeno (ou o inaugural do fenômeno). A hermenêutica dedica-se especialmente, segundo Ricoeur (1985), a aprender a ler textos escritos como porta para a leitura de outras formas de textos.
Não é uma técnica. Não é exegese. Uma das preocupações de Ricoeur (1985) é a de ler o texto, escutar o texto devolvendo-lhe a dinâmica, sua força dialógica de produzir sentido nas relações com vida (antes do texto, vida no texto, o texto na vida, ou mimese um, mimese dois, mimese três, na expressão do filósofo). A formação de sentido é um desdobramento próprio da vida e o texto entra como um modo fundamental desta formação.
A hermenêutica trata do sentido que assumiu forma de texto para mostrar não apenas as características textuais, mas a sua mensagem ou a elaboração de sentido que faz e suas ramificações com a vida. O texto aparece, pois, em sua textura com a vida antes de sua formação, tecido com vida implícita no texto, e com a textura com a vida depois do texto lido. Em última instancia, na ampliação máxima do horizonte hermenêutico, a hermenêutica é também uma interpretação de si nas mediações.
O intérprete é também o interpretado. O movimento de transcender não é uma operação só sobre o texto, mas o transcender de si por si mesmo. A hermenêutica não fica refém da exterioridade embora seja uma relação com ela. A hermenêutica faz uma passagem pela subjetividade. O mundo-da-vida se forma sem que possamos nos dar conta reflexivamente de sua inteireza. O mundo-da-vida é a fonte de sentido da fenomenologia e onde a nossa intencionalidade é dirigida transformando o grande acúmulo de sentido em produções culturais de significações que nos dão o que pensar e o que interpretar. O mundo vivido é transmitido numa dialética de passividade e de apropriação enquanto subjetividade e intersubjetividade. Nos encontramos no mundo vivido como intérprete.
O mundo-da-vida se torna, muito parcialmente, nosso mundo próprio, i.e., entra na dinâmica de nossa subjetividade. Posso pensá-lo, refletir e descobrir relações que o constitui como mundo de nossa ação. Aquilo que foi passivamente e indiretamente dado pode ser objeto de alguns modos de reflexão. Nossa vida de partilhar o sentido, mediada e indireta desde o começo, por obras, paradoxalmente, encontra subjetivamente a possibilidade de análise e interpretação.
Essa relação com a subjetividade é a fonte de grandes discussões sobre a fenomenologia hermenêutica. A hermenêutica pioneira de Schleiermacher (2014) (teoria universal da compreensão e interpretação )9, por exemplo, é classificada de romântica e psicologista, subjetivista. A hermenêutica no século XX tomou sobre si o encargo de superação do subjetivismo. Começando com Dilthey (1949) e depois com Heidegger (2013). Dois caminhos se destacaram: 1) um por reconhecer o aspecto veritativo do momento de imanência da apropriação (fenomenologia); 2) outro, por descobrir na textualização uma lógica viva do sentido, ou o texto submetido a regras da linguagem e do discurso (hermenêutica) retomados pelo intérprete.
Além dessas tentativas temos que considerar também os positivismos formais do estruturalismo e do formalismo linguístico e poético, afora as preciosas contribuições da semiótica. Nós vamos nos concentrar no caminho hermenêutico do texto. Algumas questões centrais que estruturam o que hoje nós entendemos por hermenêutica e mundo da vida:
Reflexão – não é um consenso hermenêutico. Para Ricoeur (1985) é um componente hermenêutico incontornável. Procede de certa tradição francesa que remonta a Descartes das Méditations Métaphysiques (1946) e Maine de Biran em sua Mémoire sur la décomposition de la pensée (1952) . Fortalece a função do sujeito como si mesmo (em oposição aos projetos de desconstrução do sujeito e da consciência como foro de imanência). Abre o caminho para um personalismo do sujeito na ação.
A reflexão e a reflexividade possuem um ritmo de formação e de recepção, de um lado, e o de elaboração do foro subjetivo, de outro. Na recepção pelo sujeito a operação reflexiva visa relações normativas do texto, como, por exemplo, as relações internas e contextuais (objetivação na própria rede textual); na elaboração de foro subjetivo o sentido é examinado sob o regime da epoché e como reflexão eidética (imanência da consciência e intuição eidética). Uma é preparatória para a outra em momentos diferentes. Essa operação se prolonga na interpretação do texto projetado na vida como fonte de sentido e onde o texto encontra prolongamentos propostos pelo sujeito intérprete. O processo de apropriação desde as condições ‘antes do texto’, passando pelas relações estabelecidas pelo ‘próprio texto’, desemboca na ampliação de sentido dos significados no ‘encontro do mundo do texto com o mundo do leitor’.
Compreensão – A compreensão pode ser vista, em um primeiro momento em contraste com a explicação. A compreensão tem em vista uma totalidade que inclui a vida das pessoas, a vida concretamente vivida, que mantém a tensão do sentido com o vivido. A explicação é indiferente à totalidade vivida na medida em que se limita a elucidar os termos e relações de um processo específico. A compreensão é essencial para que se visualize o círculo hermenêutico entre sentido e vida (há várias formas de conceber essa circularidade). A compreensão é o pressuposto mais geral da hermenêutica ou o seu núcleo de expansão do sentido.
O sentido da compreensão implica não só a vivência, mas ainda o reconhecimento que a vida como fonte de sentido não pode ser explicada por nenhuma ciência empírica. Pretensões como encontramos hoje em algumas correntes da neurociência, de explicar tudo por disparos neuronais, representam um falso salto lógico da explicação de um processo empírico para a dimensão mais abrangente e compreensiva da vida.
A compreensão é quase o movimento d a própria interpretação. Para Heidegger (2013) é uma dimensão ontológica do Dasein. Surgiu entre os românticos alemães como uma disposição humana para a síntese de sentido e adquiriu caráter gnosiológico no pensamento de Dilthey (1949), a ponto de servir para distinguir as ciências humanas compreensivas (Geisteswissenchaften) das ciências explicativas da natureza (Naturwissenschaften). Foi essencial distingui-la de um processo apenas psicológico e descartar o psicologismo na interpretação ou mostrar que as expressões de sentido do espírito humano não pertencem apenas à esfera psicológica. Apresentam estruturas de inteligência e de compreensão que permitem integrar essas expressões às vivências humanas como um diálogo dinâmico em torno das possibilidades de sentido. Em razão dessas estruturas próprias de manifestação as expressões permitem em diferentes graus a apropriação do sentido: são compreendidas num todo de sentido. Gestos, linguagens, artes, são tomados como manifestações de sentido retomados em processos hermenêuticos.
A compreensão em sua dimensão ontológica é um desdobramento do evento onto-semântico ou o evento do sentido com sua carga ontológica. Nessa dimensão, para muitos autores, como Gabriel Marcel (1951), entramos na fronteira entre o sentido e o mistério. Essa dimensão que inclui o mistério como parte do sentido será essencial para o entendimento do que é um texto religioso e da experiência religiosa. O sentido inclui a dimensão mal compreendida da profundidade e do infinito (em oposição a tudo fica reduzido à finitude humana, sem lugar para a experiência humana do mistério).
Linguagem - Desde Schleiermacher (2014) a linguagem ocupa o centro das preocupações hermenêuticas. A questão é colocada em termos da relação da compreensão com a linguagem e o horizonte de mundo ou de mundos que se formam. Um mundo e muitos mundos: as narrativas e outras tessituras são documentos dessa pluralidade com unidade.
A linguagem vista in vivo actu não é primeiramente um sistema ou uma estrutura de uma determinada língua. A linguagem significa, como vimos, o modo de apropriação do sentido pelo ser humano em termos de signos e significações e sua forma entramada de produção/inovação de sentido e aberta a possibilidades interpretativas. As estruturas da língua estão a serviço do sentido e da significação, e estas a serviço da vida.
A circularidade hermenêutica não deve inverter a ordem. A vida não pode ser reduzida aos limites da linguagem e o saber não é puramente linguístico. Há saber no sentimento, na dor e sofrimento, por exemplo, que não são plenamente expressos em linguagem. Linguagem é uma relação ontológica, mas não a exime de ser também, embora especial, mediação entre sentido e significado, entre existência e mundo, entre pessoas, entre tempos, entre interpretações enfim. Trata-se de uma mediação, ainda que uma interposição decisiva e constitutiva do processo hermenêutico.
Sentido é mais que língua e linguagem. Mas, toda atividade espiritual do ser humano envolve direta ou indiretamente a linguagem. Todo real está impregnado de sentido. A linguagem recorta e organiza o mundo em sua trama sem nunca o esgotar. Embora mantenha a característica de mediação finita, trata-se de uma mediação que acontece no horizonte do ser.10 O ser humano se sabe como ser no mundo pela linguagem. Os textos e as palavras encarnam uma ambiguidade produtiva que abre possibilidades de inovação semântica e de interpretações em uma diversidade coerente.
Distinção entre significado e sentido – A abertura da vida às interpretações tem sua fonte no dado de que as sedimentações de sentido no discurso linguístico entrelaçam determinações com indeterminações. Um “termo” (terminus, limite fronteira, i. e., uma determinação do sentido no significado, é um recorte que sempre tem fronteira com indeterminações. Não são possíveis, na linguagem, determinações absolutas. Todo termo pode ter suas determinações estudadas em relação com margens de indeterminação. Tal situação é semelhante à proposta de Ortega e de J. Marías, citado em Lauand (2007) quando se referem ao aspecto “confundente” das expressões linguísticas11).
Sentido é mais que significado. Os saberes extralinguísticos que colaboram com a semântica se afunilam em função da determinação dos significados como recorte linguístico. A nossa experiência de sentido não cabe toda na linguagem. Os aspectos não racionais de nosso saber não são, muitas vezes, expressos linguisticamente. O sentido se encontra no significado, mas o significado não abarca todo o sentido (Josgrilberg, 2015, p.341ss). É a identidade parcial do sentido com o significado que induz ao equívoco de simples identificação de um com o outro. O sentido precede e acompanha o conhecimento na significação como o ar precede e acompanha a respiração.
O evento onto-semântico de sentido não se esgota em nenhuma expressão linguística do significado. No evento onto-semântico o mundo nos é dado em posição de linguagem, mas essa fica aberta aos prolongamentos hermenêuticos.12 O sentido apropriado pelo ser humano e disposto à esfera reflexiva devem sofrer as determinações, estruturas, e relações que formam o sistema de uma língua.
A hermenêutica faz e refaz continuamente a tarefa de ligar e religar sentidos significações.13 O sentido nos remete à fonte experiencial com a ontogênese do mundo que alimenta os significados; os significados filtram o sentido que vem da fonte e os sedimentam em um sistema e em um estoque de frases. O significado funcionando na língua tende a ocultar a latência do sentido.
No confronto e interação entre os significados e a fonte maior de sentido acontece a necessidade hermenêutica. Uma leitura que não seja apenas o de compreender um conjunto de significados se prolonga numa leitura dos significados na vizinhança de sentidos que fazem o texto se dilatarem com a leitura. Esse é o movimento hermenêutico de compreender os sentidos pelos significados e os significados pelos sentidos. A hermenêutica não é apenas uma leitura; é também uma escuta: a escuta do ser dado na experiência perceptiva mediada por um texto.
Sentido é uma relação com o horizonte de sentido e o modo de ser das coisas (essentia = modo de ser). O significado na hermenêutica funciona como fio condutor que carrega com ele a estrutura da frase, do discurso e da língua para a reflexão hermenêutica. A hermenêutica faz o caminho inverso da gênese espontânea do sentido e da significação questionando para trás (Rückfragen)14.
A experiência é uma symploké (síntese de nós no mundo, e do mundo em nós) com o mundo e possui camadas pré-predicativas de sentido que fazem parte de nossa experiência, constituem fontes de sentido. Mas, necessitamos da linguagem para acessá-lo produtivamente. O retorno à fonte experiencial de sentido e seu manancial pré-predicativo é a condição de todo trabalho hermenêutico que envolve a linguagem. O manancial pré-predicativo de sentido é dado na materialidade vivida do sentido que forma o mundo vivido. Esse retorno à gênese do sentido permite o enriquecimento e a renovação de sentido dados nos significados de um texto. A hermenêutica vai muito além do trabalho semântico interno da língua e se constitui como semântica filosófica.
A inversão do caminho feito pela expressão natural (este que vai do sentido à significação) para o caminho hermenêutico (que vai da significação ao sentido) é um processo que envolve muitos riscos. Nós nos movemos da determinação de significados conjugados na língua (condição para “leitura” que “recolhe” esses significados) para a indeterminação do sentido o que torna a hermenêutica um processo de leitura criador. A experiência da polissemia na língua se amplia com a indeterminação ontológica do sentido. Como visto acima, todo significado tem sentido; mas, sentido é mais que significado; o significado é um recorte linguístico do sentido.
Cabe à hermenêutica a determinação do sentido que não se limita à determinação do sentido numa coleção de significados da frase. Põe-se em questão o “esse”, o ser do sentido, o modo de ser das coisas latentes nos significados, a ousia ou a essentia das coisas. É na fonte do evento onto-semântico que a hermenêutica atinge a profundidade da tarefa. Mas, a tarefa hermenêutica só se completa pelo retorno ao texto, aos significados e seu sentido para a vida. A hermenêutica trabalha com a polissemia na língua e um pouco mais; ela sai em busca do sentido onto-semântico latente.
Podemos sintetizar o que foi dito na seguinte expressão: “o sentido se encontra no recorte ou significado dos termos e nas frases, mas o significado de um termo ou frase sugere possibilidades de um fundo mais amplo de sentido. Todo texto apresenta possibilidades novas de interpretação.
Narrativa e tempo – Narrativa é um modo privilegiado da linguagem se entrelaçar com a vida e entrelaçar a vida com o tempo. Uma das grandes contribuições de Ricoeur (1985) é mostrar com clareza que a gênese da consciência do tempo acontece por arranjos narrativos. Sua importante obra Tempo e Narrativa15, mostra que a carne concreta do tempo de nossa experiência não é vista no tempo cosmológico (tempo da natureza) ou no tempo fenomenológico (fluir temporal, êxtases de passado presente e futuro), mas está na trama temporal da narrativa que nos desperta para o tempo concretamente vivido.
É com a narrativa que aprendemos a dizer o tempo desde criança como o ontem, o passado, o depois, à espera do tempo da festa ou da colheita, o tempo que se aproxima. Torna concreto o que Agostinho chama a “distensão da alma” (distentio animi), na tentativa de compreender o tempo. As narrativas apresentam o tempo concretamente vivido e expresso. A linguagem, pela narrativa, está na gênese da consciência do tempo e da consciência de mundo. É na linguagem tramada como narrativa que se projetam o mundo e os mundos.
É importante observar que “narrar” tem sua origem etimológica no verbo latino narrare, que que deriva de gnarus, o que conhece (ignarus ignorante, o que desconhece) que remonta à raiz grega gna ou gno, de conhecer, como em gnose). Isso é importante para que possamos reconhecer o aspecto cognoscitivo e veritativo de narrar. Narrar é um modo de conhecer.
Os gêneros narrativos cumprem funções que unem o sujeito aos desdobramentos sociais da linguagem o que torna os textos o lugar privilegiado da preocupação hermenêutica. A mediação do texto mantém uma relação estreita entre a interpretação e a práxis pelas analogias existentes entre a ação e a textualidade.
Ricoeur (1985) recorre a Aristóteles (1944), especialmente nos pequenos tratados da hermenêutica, retórica e, especialmente o Sobre a poética16, apropriando-se dos conceitos de mythós e mímesis. Nesses tratados o significado de mythós é de trama, intriga, a armação temporal de um relato. Já o termo mímesis é traduzido por Ricoeur como imitação criadora, recriadora, refiguradora de uma trama. A mimese é tratada por Ricoeur, junto com a metáfora, componentes essenciais do tratamento do texto (mimética textual) junto com a imaginação, síntese criadora (ficção, fantasia).
Um dos aspectos mais importantes da obra de Ricoeur está em repensar o sujeito e a subjetividade. A subjetividade é valorizada como si, mas o eu não é um centro absoluto, pelo contrário vive de um descentramento que implica o outro. A identidade é um caminho que se faz como uma trama narrativa (identidade narrativa) e o outro é parte efetiva desta identidade. Quem somos nós e quem é o outro são indagações respondidas de forma narrativa em que um está implicado no outro. Fazemos nosso caminho como uma trama implícita que pode ser narrada como história, biografia ou autobiografia assim nossa identidade é uma conjugação de tempo e eventos, de linguagem e narrativa, de um si mesmo que é pelos outros que estão presentes em nós.
A hermenêutica nasce não da subjetividade fechada sobre si, mas da capacidade de descentramento de si, de se encontrar nas narrativas e de compreender os outros no âmbito do sair de si para se encontrar. A interpretação não é perder-se no subjetivismo, mas compreender o mundo do outro como um mundo do texto e entender o outro na narratividade da vida apropriada no mundo do leitor. A dialética de nossa pré-compreensão e o encontro do outro num mundo configurado narrativamente faz da interpretação um encontro entre mundos e si mesmos, encontro esse delimitado e mediado pela narração. Estamos imersos no “grande diálogo”17 onde somos formados e onde nos apropriamos de uma voz e onde deixamos nossa palavra.
Nossa compreensão dos outros que o passado guarda não nos chega por nenhuma função psicológica de congenialidade (cairíamos no subjetivismo) com as personagens históricas. Também não temos acesso ao outro pelas estruturas genéticas ou por formalidades conceituais ou linguísticas; seria o formalismo positivista que exclui a subjetividade. Nosso acesso às personagens que o passado nos guarda se dá pela mediação referencial dos textos aos outros e ao mundo e mundos que os textos desdobram. Um texto é um pedaço de um mundo (e um momento do grande diálogo) que podemos reconstruir em parte. “Um texto tem uma significação distinta da qual a análise estrutural tomada da linguística lhe reconhece; é uma mediação entre o homem e o mundo, é o que se chama referencialidade, a mediação entre o homem e o homem, e a comunicabilidade; a mediação entre o homem e si mesmo, é a compreensão de si. Uma obra literária implica estas três dimensões de referencialidade, comunicabilidade, e compreensão de si. Assim, o problema hermenêutico começa ali onde termina a linguística.”
Pelo que já expusemos creio que fica claro que a hermenêutica entrelaça a interpretação de si mesmo com a interpretação do mundo, do outro, mediante textos. A hermenêutica é assim uma prática dialógica no “grande diálogo” mediado por narrativas. Entramos no tecido do grande diálogo e vamos tecendo a nossa vida numa narrativa com muitas dobras.