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Saúde & Transformação Social
versão On-line ISSN 2178-7085
Saúde Transform. Soc. vol.5 no.1 Florianopolis 2014
EXPERIÊNCIAS TRANSFORMADORAS
Roda de Arte, Trabalho e Cultura: relato de uma experiência com índios Guarani
Art, Work and Culture Circles: a report about an experience with the indigenous Guarani
Carine VendruscoloI; Letícia de Lima TrindadeI; Caroline Camilo GrisaII; Rita Maria Trindade Rebonatto OltramariIII; Silvana ZanotelliIV
IProfessora Adjunta, Universidade do Estado de Santa Catarina, Chapecó,SC - Brasil
IIEnfermeira, Egressa da Universidade do Estado de Santa Catarina, Chapecó, SC - Brasil
IIIProfessora Colaboradora, Universidade do Estado de Santa Catarina, Chapecó, SC - Brasil
IVProfessora, Universidade do Estado de Santa Catarina, Chapecó, SC - Brasil
RESUMO
O presente relato apresenta potencialidades e desafios de uma prática de extensão realizada pelo Curso de Enfermagem na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), que objetiva provocar o diálogo e aproximação entre Universidade e populações indígenas de um município na Região Oeste de Santa Catarina. Este foi desenvolvido junto a adolescestes e adultos jovens de uma aldeia indígena. As práticas incluíram oficinas sobre arte, qualificação profissional, educação e saúde, com base nas necessidades desses sujeitos e sua cultura. A atividade contou com a participação de docentes e discentes dos Cursos de Enfermagem e de Zootecnia da UDESC, oportunizando o intercâmbio de conhecimentos e práticas, bem como reflexões acerca dessas populações, sua condição de vida e saúde. As ações, desenvolvidas a partir de "Rodas de Conversa", apoiaram-se na proposta dos "Círculos de Cultura" de Paulo Freire e contribuíram para a promoção da saúde e cidadania, para a qualificação profissional desses sujeitos, bem como para a valorização da cultura indígena, considerada um patrimônio social. Nos seis encontros realizados ao longo do ano de 2012, foram problematizados os temas: cultura, sexualidade, abuso de álcool e drogas e apicultura. A experiência revelou obstáculos como a distância geográfica e dificuldade de acesso às terras indígenas, desafios para efetivação de práticas dialógicas, grande aceitabilidade da comunidade Guarani e a necessidade de aproximação entre culturas distintas, bem como potencialidades diversas de propostas dessa natureza para promoção da saúde indígena.
Palavras-chave: Saúde de Populações Indígenas; Trabalho; Cultura; Ensino; Enfermagem em Saúde Comunitária.
ABSTRACT
This report presents the potential and challenges of an extension practice held by the Nursing Course of UDESC (State University of Santa Catarina), which aims at fostering dialogue and rapprochement between the University and indigenous peoples of a municipality in the Western Region of Santa Catarina. This project was developed with adolescents and young adults from an indigenous village. The practices included workshops on art, professional qualification, health and education, based on the needs of these individuals and their culture. The activity was attended by professors and students of the Zootechnics Course of UDESC, creating opportunities to exchange knowledge and practices, as well as reflections on these populations, their living conditions and health. The actions developed from "Conversation Circles", were supported by the proposal of the "Culture Circles" by Paulo Freire and contributed to the promotion of health and citizenship, for the qualification of these individuals, as well as to the appreciation of indigenous culture, considered a social asset. In the six meetings held throughout 2012 the following themes were problematized: culture, sexuality, drug and alcohol abuse and beekeeping. Such experience revealed obstacles as the geographical distance and difficult access to the indigenous lands, challenges for the realization of dialogic practices, wide acceptability of the Guarani and the need for rapprochement between different cultures and various potential proposals for the promotion of indigenous health.
Keywords: Health of Indigenous Peoples; Work; Culture; Teaching; Community Health Nursing.
1. INTRODUÇÃO
Nos anos 1980, na Região Oeste de Santa Catarina, os indígenas passaram a reivindicar seus direitos de terra, fragilizados durante o chamado processo de colonização ocorrido no início daquele século. Esse processo implicou em vendas de terras pelas empresas colonizadoras aos imigrantes italianos e alemães, expulsando indígenas e caboclos, também chamados de posseiros. A colonização gerou muitos conflitos, em especial, entre os próprios indígenas e os colonos imigrantes. Atualmente, a Região é considerada a segunda do país com maior incidência de enfrentamentos/conflitos envolvendo a população indígena. Pesquisadores resgatam que os órgãos governamentais têm atuado de forma incipiente nessas causas, deixando tais populações vulneráveis, vítimas da falta de acesso aos serviços públicos, do preconceito e dos processos de mudanças culturais1.
Historicamente, as populações indígenas vêm sendo expostas a situações que as tornam vulneráveis, como a pobreza extrema, a desigualdade social e as iniquidades, contribuindo para essas condições as características dos próprios indivíduos, como a etnia2. Além disso, embora sejam escassas as referências, estudos revelam que tais comunidades apresentam indicadores de saúde elevados no que diz respeito a maior exposição ao álcool e outras drogas, às doenças infecto-contagiosas, entre outros agravos que colocam em risco sua saúde e qualidade de vida3-4. Em relação aos fatores condicionantes do processo saúde-doença, alguns autores alertam que a maioria das áreas indígenas apresentam falta de saneamento básico e degradação socioambiental, o que agrava as condições de saúde desta população5.
Pesquisas mostram que, gradativamente, a cultura indígena tem se perdido, o que implica em prejuízo para sociedade. É significativa a construção legal e normativa que aponta para a proteção dos conhecimentos indígenas. As políticas públicas brasileiras têm oportunizado a reflexão e o debate da sociedade sobre as práticas excludentes, com vistas a criar alternativas sustentáveis. Na área da saúde, destacam-se as políticas que atuam a partir de um conceito ampliado e integrado, desenvolvendo diversos aspectos para a melhoria da qualidade de vida e a garantia da dignidade humana.
Nessa perspectiva, retoma-se o Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1990, tendo como princípios norteadores a universalidade, a equidade e a integralidade da assistência em saúde, o que prevê o acesso aos serviços públicos a todos os cidadãos brasileiros, valorizando sua singularidade e diferentes necessidades6. No tocante a assistência às populações indígenas, os serviços de saúde têm como desafio criar estratégias e ações condizentes com as necessidades culturais do índio, com valorização da historicidade de suas práticas e conhecimentos. Contudo, persiste uma distância considerável entre os dispositivos legais existentes e a prática cotidiana nas aldeias. Evidencia-se a falta de capacitação para lidar com a diversidade cultural e social dessas populações e predomina a ideia de que "a condição de índio é transitória e que se devem 'modernizar' os seus modos de vida e de pensar, especialmente no que diz respeito a suas formas de produção econômica, tantas vezes qualificadas como 'economias da miséria'"7.
Estudo recente realizado nas aldeias da Região Oeste de Santa Catarina, ressalta a necessidade da equipe de saúde (re)conhecer sua própria cultura profissional, a fim de respeitar as diferenças entre os costumes daqueles a quem cuida, a partir do pressuposto de que a cultura direciona as práticas de saúde. A partir dessa postura, é possível que o índio perceba o interesse dos profissionais pela sua cultura, se sinta respeitado e, por conseguinte, mais confortável para negociar suas práticas de atenção à saúde8.
Nesta direção, os processos de formação de recursos humanos para atuar na área da saúde têm se voltado para a necessidade da formação de profissionais críticos, autônomos e com discernimento para assegurar a integralidade da atenção, comprometidos com a qualidade e humanização do cuidado aos indivíduos e comunidades9. As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) emergem, nesse contexto, como proposta de orientação para formação desses recursos. Essas, em consonância com os dispositivos constitucionais, atribuem ao SUS a responsabilidade pelo ordenamento da formação de seus profissionais. Objetivam fortalecer a formação dirigida a esse Sistema, a partir de competências, habilidades e conteúdos estabelecidos com vistas a possibilitar ao graduado enfrentar as rápidas mudanças do conhecimento e seus reflexos no mundo do trabalho9, 10.
No cenário apresentado, o Curso de Enfermagem da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), orientado pelas DCN e comprometido com a formação de enfermeiros para atuar nos diversos contextos do SUS, no decorrer do ano de 2012, direcionou parte de suas atividades de extensão para o fomento do diálogo e aproximação entre a Universidade e as populações indígenas do Oeste do Estado. Nos arredores do município de Chapecó estão concentradas duas Aldeias Indígenas: a Condá (etnia Kaingang) e a Toldo Chimbangue (etnia Guarani). As ações aqui relatadas foram realizadas juntamente com os adolescestes e os adultos jovens da Aldeia Indígena Toldo Chimbangue e contemplaram oficinas sobre arte, qualificação profissional, educação e saúde, com base nas necessidade desses sujeitos sociais e na valorização de sua cultura.
O relato a seguir tem como objetivo apresentar essa experiência e sinalizar possibilidades e desafios oriundos das ações e vivências realizadas na Aldeia Indígena de etnia Guarani.
2. RODAS, REFLEXÕES E AÇÕES: CRIANDO CULTURA
Foram realizados no ano de 2012 seis encontros/oficinas com os índios de etnia Guarani, nas terras indígenas da Aldeia Toldo Chimbangue. Estes contaram com a participação dos membros da comunidade indígena, que auxiliaram na construção da proposta, bem como na avaliação de cada oficina, conforme os interesses dos adolescentes e adultos jovens, mesclando os temas arte, educação, saúde e qualificação profissional. Além dos estudantes e docentes do Curso de Enfermagem da UDESC, participaram das atividades estudantes e docentes do Curso de Zootecnia, da mesma Instituição e a enfermeira responsável pela Unidade de Saúde local.
Os índios Guaranis são um povo que migrou para a América do Sul na época da invasão européia em meados do ano de 1520. As mudanças mais profundas e violentas na cultura Guarani foram sentidas logo após a chegada das primeiras caravelas, que desestruturaram sua organização socioeconômica e religiosa. Para o Guarani, a educação tem a ver com a palavra, mas não no sentido de decorar textos, mas no sentido de escutar as "palavras do alto", inclusive, por meio dos sonhos. "A palavra nutre as ações da comunidade, interligando todo o sistema social. Para um chefe Guarani, a palavra é praticamente seu único poder, e para que ela se torne efetivamente poder deve ser antes um dever"11:46.
Durante os encontros entre acadêmicos e Guaranis, os participantes se dispunham em "Rodas de Conversa", dinâmica ancorada na proposta dos "Círculos de Cultura" de Paulo Freire, em que buscava-se conciliar a troca de conhecimentos, a confraternização e a reflexão, com exposição, para cada tema proposto, de vivências de membros da comunidade. Os "Círculos de Cultura" propostos por Paulo Freire12 favorecem essas trocas de experiências e de saberes. São apresentados como uma unidade de aprendizagem, na qual o sujeito social participante é um ser humano livre, autônomo, com diferentes experiências culturais de vida que devem ser respeitadas. Esse sujeito-cidadão, por meio do diálogo, interage e se relaciona com outros seres humanos, tendo a capacidade de ensinar e aprender, fortalecer e ser fortalecido, raciocinar, refletir e decidir pelo bem-estar pessoal e coletivo no contexto de suas vivências e experiências13.
Em março de 2012 foi realizado o primeiro encontro com o grupo nas terras do Toldo Chimbangue. Após o reconhecimento do cenário, criou-se a "Roda" na terra e ao ar livre com objetivo de apresentar os participantes. O povo Guarani estabelece uma relação profunda com a terra, sendo esta um espaço de produção mítica e um lugar de vivência cultural e religiosa, para além do simples espaço de residência e cultivo11.
A professora do Curso de Enfermagem conduziu exercícios de alongamento e respiração, com base em um ritual indígena de fortalecimento do estado de espírito e boas vibrações. Cada participante revelou seu nome, em português e em Guarani (língua nativa), seguido de saudação coletiva do grupo. Os Guarani associam o batismo à colheita e o realizam nos primeiros meses do ano. O nome tem um significado muito importante, como se fizesse parte da pessoa e está relacionado com a sobrevivência – a palavra encarnada11.
No centro da roda foi disposto um tecido em forma de círculo, com desenhos dos símbolos dos Guaranis, onde foram colocados objetos musicais como tambores e chocalhos, flores, sementes, uma miniatura de canoa, entre outros. Esses objetos carregam significados na cultura indígena, pois a música é muito presente no seu cotidiano e as sementes, além de serem utilizadas para fabricação de adornos, simbolizam o alimento. Foi realizada uma "auto-massagem" ao som de flautas e da natureza e, após esse relaxamento, foram dispostas cartas no centro da roda, cada uma com o desenho e o nome de um animal. As cartas representam os "animais de poder", importante simbologia nas tradições nativas. Os integrantes da roda escolheram uma carta e receberam um objeto chamado "Bastão da Fala" , o qual foi passado de mão em mão e cada participante que o recebia anunciava seu nome e o nome do animal que continha sua carta de escolha, gesto seguido de saudação de todo o grupo. As figuras foram utilizadas na confecção de crachás que identificariam o grupo, em todos os encontros posteriores.
A primeira atividade foi extremamente enriquecedora para o grupo, na medida em que permitiu a aproximação dos estudantes e professores com a realidade dos jovens da aldeia e vice-versa. Nesse dia, ainda, foram propostas temáticas e atividades a serem realizadas nos próximos encontros. Cumpre destacar que, considerando a "promoção cultural indígena" no sentido de valorização das manifestações culturais, foi imprescindível a participação direta dos índios. Para que sejam desenvolvidas e assumidas como "bens próprios" pelas comunidades indígenas, as diferentes etapas de um processo de conscientização e valorização de expressões e práticas culturais precisam ser, necessariamente, mais lentas e delicadas7.
O segundo encontro acorreu em abril de 2012 e foi desenvolvido a partir do tema sugerido pelo grupo indígena: sexualidade. O círculo de participantes, após atividade de boas vindas, se desfez em pequenos círculos e foi solicitado aos adolescentes que desenhassem seus corpos e sinalizassem significações relacionadas a cada detalhe retratado. Uma docente do Curso de Enfermagem problematizou as produções, explicando o processo de evolução do corpo humano na puberdade, a importância de reconhecer o próprio corpo, a reprodução e a constituição da família. Neste sentido, considerou-se a importância da família na organização social da cultura Guarany. Como na maioria dos povos de tradição Tupy, a família extensa representa papel fundamental nesta organização, sendo sua base, tanto que o indivíduo se identifica por pertencer a determinado grupo familiar11.
Foi evidenciado pelos estudantes o fato de que, em alguns desenhos dos meninos, apareceu a figura de um índio forte – "Xondaro" – que segundo o grupo significa "Guerreiro". A figura de rosto pintado, vestes e adornos indígenas contrastava com os desenhos elaborados no grupo em que haviam mais adolescentes do sexo feminino, nos quais predominaram aspectos da vaidade feminina, como cabelos bem penteados, maquiagem, unhas pintadas e os contornos femininos bem delineados. A professora/facilitadora utilizou-se de tais características para discutir as especificidades dos sexos e também o autocuidado, considerando vários fatores, desde a higiene corporal, alimentos consumidos, até o uso destrutivo de drogas lícitas e ilícitas.
A terceira oficina, em maio de 2012, teve como foco as atividades de apicultura, com vistas à qualificação profissional dos participantes. Considerou-se que no sistema econômico adotado pelos Guarani, a produção se orienta no sentido de atender as necessidades de subsistência da comunidade e não visando o lucro. Além disso, as relações de produção são vinculadas às relações de parentesco, religiosas, sociais ou políticas, com vistas à interação familiar ou à troca de favores entre as famílias.
Esta ação contou com o auxílio dos estudantes e docentes do Curso de Zootecnia, além da participação de moradores e lideranças da Aldeia (Caciques), os quais demonstraram interesse pela temática. Conforme discutido anteriormente em relação ao poder da palavra para o índio Guarani, considerou-se o fato de que o prestígio de uma liderança dessa etnia é determinado pelo seu carisma e está ancorado na sua palavra. O saber comunicar-se com a comunidade é o atributo que confere a liderança a um indivíduo. O cacique, geralmente escolhido pela comunidade, é quase sempre um chefe autoritário, porém, é o sujeito que tem maior facilidade de comunicar-se com os não-índios11. Com vistas à promoção cultural, optou-se pelo incentivo à participação direta do cacique, além dos outros índios da comunidade.
Nesta vivência, foi demonstrada a confecção de caixas para abelhas sem ferrão produtoras de mel, além de orientar os índios sobre cuidados e formas adequadas de manutenção das mesmas e esclarecer possíveis dúvidas dos participantes. Após o reconhecimento e preparação do cenário e materiais para a prática, procedeu-se à formação da roda e um dos integrantes ressaltou a importância da produção do mel na comunidade, sobretudo, porque os indígenas, historicamente, têm o costume/tradição de consumir esse alimento. Utilizando-se de garrafas pet, o estudante de zootecnia demonstrou a confecção das caixas e "iscas para abelhas" e, após, todos realizaram a edificação.
O quarto encontro foi realizado no final do mês de julho, com a presença de todas as professoras/facilitadoras envolvidas no projeto, dos estudantes, além dos participantes índios. Teve como objetivo realizar uma avaliação processual do desenvolvimento das atividades, até então. Felizmente, houve manifestação positiva dos participantes e das lideranças (Cacique e professora da Aldeia) sobre os encontros, a partir da verbalização de benefícios, como o conhecimento e experiências inovadoras para o grupo de jovens e demais membros da comunidade.
Na quinta oficina, realizada no mês de agosto de 2012, foi retomado o sentido e objetivo da atividade e a seguir deu-se início à confecção de mais "iscas para abelhas". Num segundo momento, foi realizada uma caminhada ecológica pela mata ao redor da Aldeia, a fim de definir os locais mais propícios para a colocação das iscas. Foram seguidas, rigorosamente, as orientações do docente/facilitador do Curso de Zootecnia sobre os cuidados durante a vivência, apesar de serem utilizados materiais próprios para atrair abelhas sem ferrão. Os índios foram orientados a acompanhar suas iscas uma vez por semana, até que haja produção de mel de abelhas, para seu próprio consumo.
Por opção dos participantes, o sexto encontro, também no mês de agosto de 2012, teve como tema o uso/abuso de álcool e drogas e foi facilitado por uma professora do Curso de Enfermagem. Além do reconhecimento dos tipos e riscos oferecidos pelas drogas, abordou-se a relação drogas - doenças infecciosas, pois o uso comum de seringas para a injeção de drogas é um dos principais meios de transmissão dos vírus da Aids e das Hepatites B e C. Nesta atividade, a facilitadora resgatou a cultura indígena, ao compartilhar com o grupo lendas sobre antigos rituais, em que os índios faziam uso do álcool para estabelecer contato espiritual com seus antepassados ou familiares mortos. Problematizou com o grupo a banalização dessa manifestação cultural e o uso excessivo e indevido da bebida, na atualidade.
De maneira convergente com tais elucidações, com base em um diagnóstico elaborado pela FUNASA (2000), destaca-se o alcoolismo como uma das enfermidades mais comuns nos grupos indígenas brasileiros, sobretudo, nas Regiões Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul4. Esse fato pode ser explicado, principalmente, porque nestas regiões os grupos indígenas mantém uma longa história de contato com a sociedade não-índia regional. Cabe destacar que os condicionantes da situação de saúde das populações indígenas são orientados pelo padrão de contato com a sociedade local. Além disso, observa-se o aparecimento de novos agravos de saúde ligados às mudanças introduzidas no modo de vida indígena, como a Hipertensão Arterial Sistêmica, o Diabetes Mellitus, a Depressão, o Câncer e até mesmo o Suicídio.
Este encontro marcou o encerramento das atividades, no contexto da elaboração deste relato. Contudo, o grupo de docentes e estudantes bolsistas já iniciou a reedição do projeto, pensando ações para o próximo ano. Cumpre destacar, ainda, que ao término de cada encontro, foi oferecido aos participantes um lanche, a fim de confraternizar com o grupo.
3. A FORMAÇÃO A PARTIR DA PRÁXIS: MOVIMENTOS DE "AÇÃO-REFLEXÃO"
Acredita-se que a extensão de ações à comunidade contribuiu com os indígenas Guarani nos seguintes aspectos: construção da cidadania, expressão da arte e promoção da cultura, construção coletiva de possibilidades práticas de qualificação profissional e promoção da saúde. Aos estudantes, a vivência oportunizou conhecer os modos e as condições de vida dos indígenas, conhecer o serviço de saúde local, realizar atividades de educação, atenção e cuidado em saúde e atuar interdisciplinarmente, a partir da aproximação com profissionais da Aldeia e com estudantes de outro curso. Aos docentes, a atividade de extensão promoveu o exercício de metodologias ativas de ensino, a partir de movimentos de "ação-reflexão" quanto a condição da população indígena do Oeste Catarinense e ao permitir a vivência dos estudantes em um cenário de práticas diversificado.
Os processos educativos desenvolvidos nas "rodas/círculos" dialógicos, favoreceram a conscientização a partir do conhecimento crítico e da tomada de posse da realidade12,15,16. Para tanto, todos os encontros foram problematizados a partir de temáticas do cotidiano indígena e mediados por recursos lúdicos e artísticos presentes na sua cultura, como: instrumentos musicais, canções, danças, desenhos e recortes, os quais favoreceram o diálogo e a troca constante de ideias, sentimentos e impressões.
A comunicação foi elemento fundamental nesse processo. Pesquisadores ressaltam que há um complexo sistema de normas e de códigos que orienta a comunicação na direção do cumprimento de sua função, qual seja, estabelecer o canal através do qual os padrões da vida cultural são transmitidos. É por meio da comunicação que se aprende a ser parte de uma sociedade, pois ela possibilita "que as pessoas se relacionem entre si, transformando-se mutuamente e a realidade que as rodeia"17:36. Instrumento da comunicação, a língua é uma das marcas mais reconhecíveis da singularidade de um grupo humano e demonstra a criatividade humana e a diversidade cultural de um povo16. Nesta mesma direção, Paulo Freire afirma que o diálogo se dá na comunicação entre os sujeitos, a partir de um encontro que se realiza na práxis, na ação com reflexão, e que se fundamenta no compromisso com a transformação social12,19.
Como discutido, anteriormente, a palavra se constitui em elemento fundamental na cultura Guarani. As oficinas favoreceram, por meio do diálogo nas rodas de conversa, a construção da cidadania, pois esta requer atitudes de respeito, abertura, compartilhamento e troca de experiências, vivências, sentimentos e pensamentos. Implica em comprometimento e, por conseguinte, na transformação social20.
Considera-se que a participação ativa nas rodas de conversa corroborou para a criação de uma identidade entre os participantes, que passaram a se reconhecer como parte da sociedade e a se preocupar com as questões sociais e não apenas com as questões individuais do seu contexto. Para Freire16, identificando-se como cidadãos, os homens se sentem motivados a trabalhar em prol da melhoria das condições de vida de toda a população, pois se comprometem com a realidade que os cerca. "O homem, porque é homem, é capaz igualmente de reconhecer que não vive num eterno presente, e sim num tempo feito de ontem, de hoje, de amanhã. Essa tomada de consciência de sua temporalidade permite-lhe tomar consciência de sua historicidade...". Finalmente, integrado ao seu contexto, o homem reflete sobre suas condições e cria cultura – "resultado da atividade humana, do esforço criador e recriador do homem, de seu trabalho por transformar e estabelecer relações de diálogo com outros homens"15:43.
Os índios foram incentivados a expressar sua arte e a sentir orgulho de suas tradições, inclusive a reconhecer alguns aspectos culturais indígenas que haviam se perdido ao longo do tempo. Por meio das suas manifestações culturais, foram estimulados a projetar sua vocação enquanto comunidade, como potencial fonte de consumo. Nas rodas, compartilharam conhecimentos musicais, habilidades profissionais (artesanato, confecção das caixas para a criação de abelhas) e práticas de cuidado e saúde, sendo notória a contribuição para o despertar da consciência da sua importância social. Os estudantes, de outro lado, refletiram e compreenderam que esses povos possuem cultura diferenciada da população não-índia e também entre si, a qual expressa sua identidade e os caracteriza enquanto indivíduos e também, quanto aos modos de vida em comunidade.
A racionalidade que garante a existência humana, conforme anunciou Descartes, separa o corpo da mente e fundamenta o paradigma biomédico, que desconsidera o conhecimento popular como válido para intervenção no processo saúde-doença bem como, compreende a cultura como um entrave para a restauração da saúde. Na contramão dessa lógica, os estudantes contribuíram para a promoção da saúde dos indígenas, ao resgatar sua cultura e problematizar estilos e modos de vida, a partir da consciência ambiental e dos seus saberes próprios21.
Considerou-se como potencialidade da atividade, ainda, os movimentos de "ação-reflexão-ação", favorecidos pela inserção dos acadêmicos no cenário indígena, onde estes desenvolvem seu cotidiano e onde afloram suas perspectivas e seus problemas. Além do modo de vida daquela comunidade, incluindo todas as consequências advindas da condição de vulnerabilidade dos sujeitos, foi possível conhecer o serviço público da saúde e refletir sobre o papel do enfermeiro e da equipe de saúde, naquele contexto. As problemáticas visualizadas pelos estudantes, dentre as quais, o alcoolismo e a ocorrência de alguns agravos à saúde oriundos da falta de informação e das precárias condições e hábitos de vida dos indígenas. Este causou indignação ao grupo e oportunizou a prática de ações educativas, de prevenção e cuidado à saúde daquela população.
A aproximação da teoria com a prática foi favorecida ao se propor ultrapassar a esfera da apreensão da realidade para uma esfera crítica, de tomada de consciência. Na concepção freireana, "a conscientização não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens"15:30. Para o educador Paulo Freire, não há como o homem não participar ativamente da história, da sociedade e dessa transformação da realidade, se não alcançar a tomada de consciência da realidade e de sua própria capacidade de transformá-la.
A partir de um olhar abrangente, os estudantes sugeriram possibilidades para o enfrentamento dos problemas, considerando a participação de todos os atores envolvidos, o que configurou-se como um desafio para os sujeitos envolvidos, gerando outras discussões em momentos de "sala de aula", na Universidade, além de ideias para projetos futuros. Nesta direção, Vendruscolo, et al.22, apontam que uma das possibilidades de transformação do modelo de atenção à saúde vigente – ainda, predominantemente, hospitalocêntrico e biologicista – é incentivar a formação de profissionais com perspectiva inovadora e com abordagem crítico-reflexiva.
A partir desta iniciativa de docentes e discentes da UDESC, a aproximação entre os cursos foi fundamental para criar outras possibilidades de atividades interdisciplinares. As políticas de integração do ensino e do serviço atentam para esta iniciativa ao proporem cenários de ensino diversificados, associando-se ao processo equipamentos de saúde, educacionais e comunitários23. As DCN ressaltam o emprego de metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação dos profissionais, as quais desafiem os estudantes a superar suas dificuldades, o que lhes garante a atitude de sujeitos na construção do conhecimento. Neste cenário, o professor assume o papel de facilitador e orientador do processo9. Essa atitude reflexiva e crítica favorece o compromisso e a responsabilização dos estudantes com a realidade assistida, e contribuiu para a formação docente, à medida que estes se apoiaram na problematização da situação vivenciada. Contudo, essa precisa ser uma prática contínua, fazer parte da realidade concreta dos estudantes a fim de reduzir o estranhamento e promover o encontro, amenizando as possíveis dificuldades.
De maneira convergente com tal consideração, a aproximação entre a formação e o mundo das práticas, fortalecida pela compreensão acerca do processo de trabalho e da realidade social, fomenta aos sujeitos envolvidos sair da passividade e da atitude contemplativa, possibilitando experiências de aprendizagem em grupos multiprofissionais e o exercício da interdisciplinariedade20.
São muitos e variados os determinantes das condições de saúde e cidadania da população indígena. A dignidade e a preservação da sua cultura receberam influência de elementos históricos, políticos, econômicos e sociais. Nesta ótica, considera-se que a atividade de extensão na Aldeia indígena Toldo Chimbangue representou uma oportunidade impar de propor a promoção da cultura indígena, o despertar a criticidade e a responsabilização dos sujeitos envolvidos, minimizando situações de vulnerabilidade e fortalecendo o seu protagonismo como co-autores dos movimentos de mudança, na direção da valorização e preservação das tradições indígenas e da sua melhor qualidade de vida e saúde.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Para o meio acadêmico a presente proposta oportunizou a vivência e a reflexão sobre a práxis, a quebra de tabus e a maior aproximação dos membros da academia com a realidade social das populações indígenas da Aldeia Toldo Chimbangue. Ainda, fomentou a integração entre os cursos de Enfermagem e Zootecnia da UDESC.
Para a comunidade indígena, a metodologia proposta favoreceu o seu reconhecimento e participação como parte da sociedade e como cidadãos, contribuindo para a motivação dos índios em atuar na direção da melhoria das suas condições de vida, comprometidos com a realidade da qual fazem parte.
Acredita-se que a proposta pode nortear futuras intervenções, de acordo com os anseios dos adolescentes e adultos jovens da aldeia, os quais, historicamente, vêm sendo esquecidos pelas políticas públicas, que ainda se mostram tímidas frente a situações de risco dessa população. Também ressalta o papel da Universidade em romper com a ideia de que essas populações são atrasadas, desprovidas de conhecimentos e retrogradas, resgatando sua cultura e identidade social, e oportunizando o seu convívio com acadêmicos. Nesse sentido, os encontros valorizaram um dialogo que, por vezes tem sido esporádico e desigual, o que certamente, fomenta a paz e o respeito entre os diferentes costumes e oportuniza o conhecimento da cultura indígena, ou seja, um patrimônio intangível e de valor imensurável.
Algumas limitações para a prática tem a ver com o tempo transcorrido entre as idas do grupo a aldeia, o que interrompe o vínculo com os adolescentes, jovens e lideranças da comunidade; e também com a falta de referencias bibliográficas para subsidiar e instrumentalizar os estudantes para a aproximação cultural proporcionada. Neste sentido, recomenda-se estudos relacionados às etnias indígenas e suas condições de vida e cultura.
A proposta fomentou interesse e debate entre profissionais, professores e estudantes, suscitando reflexões críticas sobre seus conhecimentos e suas práticas. Persistem, contudo, desafios na efetivação de práticas dialógicas necessárias à aproximação desses mundos culturalmente diversos, o da academia e o das populações indígenas vulneráveis. Considerando a aceitabilidade e envolvimento dos índios com relação à proposta, apesar da distância geográfica e da dificuldade de acesso à aldeia de etnia Guarani, pretende-se dar continuidade ao trabalho a partir de edições futuras do projeto de extensão.
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Carine Vendruscolo
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Rua Beloni Trombeta Zanin, Bairro Santo Antônio
Chapecó, SC, CEP: 89815-630
Telefone: (49) 99203222
Email: carine.vendruscolo@udesc.br
Artigo encaminhado 09/10/2012
Aceito para publicação em 30/03/2014
NOTAS
i. O Bastão que Fala é um instrumento utilizado por tribos indígenas toda vez que uma região ou conselho é convocado. Ele permite que cada pessoa apresente seu sagrado ponto de vista. O Bastão que Fala passa para todos os membros do conselho à medida que a reunião se processa. Somente a pessoa que está segurando o bastão tem o direito de falar naquele momento14.
ii. Situação existencial percebida como um desafio que exige respostas do ser humano, ligadas à ação, à reflexão e à tomada de decisão. É por meio da problematização que emerge a conscientização que empodera o homem para transformar as relações sociais de dominação, na direção da libertação. A educação problematizadora, segundo Freire, orienta o educador para uma posição onde ele não é o que apenas educa, mas o que, ao passo que educa, é educado em constante diálogo com o educando. Este, por usa vez, ao ser educado, também educa12,24.