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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.8 no.2 Londrina dez. 2017

 

Artigos

 

Corpo e infertilidade masculina: diálogos a partir da fenomenologia existencial

 

The human body and male infertility: dialogues from existencial phenomenology

 

Cuerpo y la infertilidad masculina: el diálogo con la fenomenología existencial

 

 

Ellen Fernanda Gomes SilvaI i; Carmem BarretoI ii

I Universidade Católica de Pernambuco

 

 

 


Resumo

Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado sobre a experiência de homens inférteis. O foco desta reflexão é apontar as repercussões existenciais dos procedimentos técnicos exercidos sobre o corpo dos homens diagnosticados como inférteis. Como instrumento de acesso à experiência foi utilizada a entrevista narrativa com uma pergunta disparadora, que foi gravada, transcrita e analisada segundo a Hermenêutica Filosófica de Gadamer. Os resultados apontaram para dificuldades vividas durante a submissão aos procedimentos de Reprodução Assistida, os quais levaram a experiências de desconforto, bem como de desesperança frente à burocracia e morosidade dos serviços. Em tal cenário, os interlocutores narraram sua vivência frente aos procedimentos técnicos, experiências que podem ser compreendidas com realce de duas dimensões: o reconhecimento da validade do protocolo adotado para a Reprodução Assistida e a hegemonia do discurso científico e suas repercussões na compreensão do corpo masculino enquanto matéria-prima a ser explorada.

Palavras-chave: Corpo; Fenomenologia Existencial; Infertilidade; Reprodução Assistida.


Abstract

This article is an excerpt of the dissertation on the experience of infertile men. The focus of this reflection is to point out the existential implications of technical procedures exerted on the body of men diagnosed as infertile. As a tool to access the experience was a narrative interview with a starter question, which was recorded, transcribed and analyzed according to Philosophical Hermeneutics of Gadamer. The results pointed to difficulties experienced during submission to assisted reproduction procedures, which led to discomfort experiences and hopelessness against the bureaucracy and lengthy services. In such a scenario, the speakers narrated their experience across the technical procedures, experiences that can be understood in two dimensions highlight: the recognition of the validity of the adopted protocol for Assisted Reproduction and the hegemony of scientific discourse and its impact on the understanding of the male body as a raw material to be exploited.

Keywords: Body; Existential Phenomenology; Infertility; Assisted Reproduction.


Resumen

Este artículo es un extracto de la tesis en la experiencia de los hombres infértiles. El objetivo de esta reflexión es señalar las implicaciones existenciales de procedimientos técnicos ejercidas sobre el cuerpo de los hombres diagnosticados como infértiles. Como una herramienta para tener acceso a la experiencia fue una entrevista narrativa con una pregunta de arranque, que fue grabada, transcrita y analizada de acuerdo a la hermenéutica filosófica de Gadamer. Los resultados apuntan a las dificultades experimentadas durante la presentación a los procedimientos de reproducción asistida, lo que llevó a la incomodidad experiencias y desesperanza contra la burocracia y los servicios largas. En tal escenario, los altavoces narran su experiencia a través de los procedimientos técnicos, las experiencias que se pueden entender en dos dimensiones destacan: el reconocimiento de la validez del protocolo adoptado de Reproducción Asistida y la hegemonía del discurso científico y su impacto en la comprensión del cuerpo masculino como materia prima para ser explotado.

Palabras clave: Cuerpo; La fenomenología existencial; infertilidad; Reproducción Asistida.


 

Introdução

Lá dentro, não do corpo, mas lá dentro-fora
Do coração, no sol, no meu peito eu sinto [...]
Que é mais que a ciência tem?
Borracha pra depois apagar.
(Raul Seixas)

No enfoque acerca da contemporaneidade, Santos (2008) menciona o corpo como questão atual, tornando-se alvo de mecanismos de controle e apropriação médica. Tal perspectiva encontra ressonâncias no campo da Medicina Reprodutiva, contribuindo para uma “despersonalização do corpo”, ou seja, uma objetificação que facilita sua comercialização. Essa reflexão é ressaltada por Ramírez-Gálvez (2003) quando faz uma associação entre as tecnologias reprodutivas e a mercantilização, chamando atenção para como a linguagem comercial vende os procedimentos tecnológicos não enquanto mercadorias, mas vinculados a sonhos e desejos, com alto valor econômico.

As discussões sobre Reprodução Assistida apresentam o corpo como alvo de investimentos no sistema capitalista – matéria-prima ou mercadoria a ser moldada, corrigida, conforme os ditames da Medicina vigente. De acordo com Almeida (2002, p. 103): “a ressignificação capitalista da técnica se faz acompanhar de uma ressignificação do corpo”. Nessa direção, é preciso atentar para o perigo de um pensar técnico e hegemônico a respeito do corpo.

Olhando para essa realidade de predominância técnico-científica, Barbosa (2000) comenta que os procedimentos relacionados às tecnologias reprodutivas implicam o estabelecimento de um controle meticuloso sobre o corpo e seus sinais. Muitos que se valem dessas técnicas percebem o seu corpo como objeto de manipulação médica, fonte de dor e deficiência. A autora acima citada também problematiza a respeito da interferência médica na reprodução e sexualidade, podendo alterar a percepção do corpo e do processo reprodutivo. Nessa direção, para as colaboradoras do estudo realizado por Barbosa, o corpo infértil é visto com culpa, portador de uma doença grave.

Na tentativa de ampliar a compreensão do fenômeno do corpo no âmbito da Reprodução Assistida, as contribuições de Torres (2012) são relevantes quando menciona a experiência dos entrevistados da sua pesquisa. Inicialmente os colaboradores revelaram passar por momentos de ansiedade e frustração frente à chegada do ciclo menstrual de suas companheiras, o qual é tido como falha da gestação. É interessante que Torres (2012) destaca o “silêncio” dos homens com relação a sua experiência corporal – falam de suas esposas, mas pouco narram de si. Tal experiência não é tematizada apesar de o homem aceitar participar do tratamento, optar por ter um filho “em laboratório” e custeá-lo financeiramente. Esse não-dito estaria relacionado à experiência da incapacidade reprodutiva vinculada a um imaginário social de impotência sexual? Colocar seu corpo à disposição para um processo de tratamento de Reprodução Assistida seria expor sua infertilidade e, sobretudo, sua impotência?

Torres (2012) sinaliza também a existência de um processo de medicalização do corpo. Na tecnologia da reprodução, esse corpo pode tomar um caráter técnico/maquinário, no qual o “operário-médico” irá trabalhar, com vistas a um fim específico: o nascimento de um bebê. Nesse contexto de intervenção médica direcionada à infertilidade, visualiza-se também a formulação de significados em volta da sexualidade, da procriação, da concepção e propagação de normas sobre o corpo, a saúde. Diante do exposto, é possível indagar: será que o interesse por trás disso tudo está vinculado ao controle, medicalização e intervenção nos corpos?

Para dar continuidade a essa reflexão, optamos por enveredar por algumas trilhas da Fenomenologia Existencial, na busca de melhor compreender a questão do corpo no momento atual.

De início, importa indicar que, como vimos, a ciência moderna, com o ideal de objetividade, tenta interpretar o enigma da corporeidade, instrumentalizando-o. Nesse âmbito, segundo Gadamer (2011), a corporeidade é comumente tematizada quando se trata do caráter episódico de doença. Os psicofármacos surgem na moderna indústria da saúde como o objetivo de amenizar, superar os sofrimentos que constituem a vida humana.

Para Gadamer (2011), a saúde se torna objeto do conhecimento científico e, ao interrogar a visão técnico-científica do médico enquanto tecnólogo do corpo, chama atenção para o não conhecimento e consentimento do paciente quando submetido a uma infinita gama de procedimentos medicamentosos e técnicos. Tais considerações possibilitam interrogar a técnica mecanizada, a qual pode restringir a compreensão da existência humana à predominância do paradigma metafísico regido pela razão instrumental.

Considerando o contexto apresentado, o diálogo com o pensamento de Heidegger (1954/2012) pode subsidiar o questionamento sobre a técnica instrumental no campo da Reprodução Assistida, a qual pode contribuir para a expansão planetária da tecnologia em um tempo histórico que coloca em risco a existência do humano.

Assim, a partir da perspectiva heideggeriana podemos retomar a relevância do problema da técnica, tema que ocupa um lugar central na segunda fase de seu pensamento. Em seus escritos a partir de 1935, Heidegger inicia uma meditação sobre “a essência não técnica da técnica e sobre o ultrapassamento da metafísica” (Loparic, 1996, p. 13). Uma das consequências desse pensamento foi realçar a relação entre o saber científico (metafísico) tradicional e a técnica, apontando para o risco de tecnificação do saber pelo método. Nessa direção, considera o saber moderno como um saber de dominação, decorrente do pensamento que calcula domínio das ciências da natureza.

Heidegger (1954/2012) enfatizou os riscos de objetivação, ressaltando a possibilidade de tal modo de pensar levar à transformação da Terra em um lugar inabitável e à própria destruição do ser-homem, já que o modo de agir do homem ocidental se tornou predominantemente técnico. Passa, então, a refletir a modernidade como a Era da Técnica, salientando que a técnica é o modo de ser do ente nos dias atuais, determinado pela metafísica. Em tal horizonte histórico, a técnica trata o ente como objeto de consumo, visando à instrumentalização da natureza e dos homens, reduzido a “matéria-prima”. O perigo de tal situação encontra-se no fato de, onde tal modo de pensar domina, distancia-se qualquer outra possibilidade de desencobrimento.

Diferentemente da técnica grega vista como um fazer artesanal, a técnica moderna se constitui como provocação. Nessa perspectiva, toda a natureza é posta como fundo de reserva a ser explorado, armazenado, transformado e distribuído. O homem é visto como algo a ser disposto, possível de ser calculado; é convocado, submetido a corresponder a essa exigência. O que passa a viger é um ritmo frenético ditado pela cadência de uma nova ordem: a ordem da técnica.

Essa lógica de funcionamento é baseada na rapidez, eficiência e eficácia, anunciando a uniformidade, superficialidade das ações humanas. Esse é precisamente o perigo que Heidegger ressalta ao vivermos na Era da Técnica. A ameaça não está somente, nem primariamente, no fato de a humanidade poder ser destruída pelos aparatos tecnológicos. O perigo que paira sobre o homem diz respeito ao esquecimento de si mesmo, de suas possibilidades mais próprias, arrancando-o da terra e desenraizando-o cada vez mais.

Continuando a refletir sobre as contribuições da Fenomenologia Existencial para compreender o “fenômeno-corpo”, passamos agora a apresentar como alguns autores também enfocaram tal fenômeno, tendo Heidegger como interlocutor.

Almeida (2002), Michelazzo (2004), Nascimento (2008) e Gadamer (2011) comungam da ideia de que a tradição filosófica fenomenológica, sobretudo heideggeriana, não se deteve demasiado ao tema do corpo. Contudo, não se pode deixar de salientar que Heidegger buscou romper com a tradição metafísica e apresentou o corpo como fenômeno, o “ser-corpo”.

Nessa direção, Dantas (2011, p. 77) expõe: “o corpo é co-determinado pela condição de sermos-no-mundo, o corporar é o próprio sendo da existência”. Pensar o corpo é refletir a existência; e, no percurso da existência, o corpo é justamente a nossa morada. Em vista disso, ao tratar a questão do corpo, Heidegger (1987/2009) alertou que ele (o corpo), assim como a existência, comumente é tomado como mero ente, aparência simples e evidente.

Seguindo essa linha de reflexão, Michellazo (2004) trilhou um caminho possível de acesso a essa problemática ao resgatar, mesmo que brevemente, a questão do corpo do pensamento metafísico à atualidade.

Inicialmente, o autor salienta que o corpo, ao ser apreendido em sua mera entificação, tomou o mesmo rumo do esquecimento do ser. Desde os tempos clássicos da Filosofia grega, o pensamento ocidental, com Sócrates, Platão e Aristóteles, voltou seus olhares para aquilo que dá constância ao real, renunciando o que fica fora do fluxo da impermanência das coisas. Em Platão, o ser do real é o “aspecto”, o qual se mostra em dois âmbitos: o sensível – dimensão concreta, singular – e o suprassensível – a dimensão ideal. Aristóteles, com herança platônica, apresenta o ser do real como “substância”, dividida em substância primeira – dimensão patente do real – e substância segunda, a qual se refere aos universais abstratos.

Assim, a concepção de corpo, testemunhada pela metafísica no pensamento antigo, foi substanciada; tida como um ente não original, o qual não passa de simples aparência. O caráter impermanente desse corpo confere a ele uma conotação subalterna, em contraposição à razão. Na Idade Média, a concepção de corpo permaneceu dicotomizada, tida enquanto existente apenas na condição de coisa criada.

Com a posição ocupada pelo pensamento moderno, a concepção de corpo, a partir da postulação de Descartes, a qual patenteou a fundação do homem como Cogito, tornou-se ob-jectum, dependente da representação do homem. Por essa via, o corpo ganhou um status decrescente – res extensa – ao ser representado a partir de uma etiqueta de identificação a seu respeito (Michellazo, 2004).

Nesse lugar de substância material, o corpo pode ser mensurado, submetido ao crivo da ciência. A esse respeito Heidegger (1987/2009, p. 135) comenta: “o medir só é possível quando a coisa é pensada como objeto, representada em sua objetividade (Gegenstaandlichkeit). Medir é uma maneira pela qual eu posso deixar uma coisa presente por si mesma me confrontar, isto é, em relação à sua extensão”. Sob o caráter da mensurabilidade, ocorreu o desenvolvimento de áreas como Anatomia e Fisiologia.

Ao lado da Ciência e suas especialidades, a Revolução Industrial e o Capitalismo foram dois grandes eventos contribuintes para o crescimento tecnológico numa escala sem precedentes. Conforme Heidegger (1959), o domínio técnico trocou o brilho das coisas pela obscuridade; o homem passou a ser produtor e recurso simultaneamente. Nessa direção, na contemporaneidade, o corpo pode ser compreendido como fruto das inúmeras variações ocorridas ao longo da história: como cópia (na Antiguidade), como criatura (na época medieval), como objeto (na Modernidade) e enquanto mercadoria (na contemporaneidade).

Nesse cenário, Michelazzo (2004) ressalta que apenas podemos falar de uma nova perspectiva de corpo a partir de outra compreensão da natureza originária do homem. E coube a Heidegger propor uma viragem des-substancializando os remotos conceitos de homem e de corpo para tomá-los como fenômeno.

As diversas interpretações da questão do corpo ao longo da história – como cópia, criatura, objeto e mercadoria – foram decorrentes de uma visão entitativa, a qual o apreende como simples substância, tanto em sua natureza material, quanto em seu caráter vivo, dotado de sentimentos. Essa compreensão dicotômica será ultrapassada a partir do pensamento heideggeriano, que vai ressaltar a dimensão ontológica do ser-corpo – corpo como fenômeno.

O verbo “corporar” é criado por Heidegger (1987/2009) para dizer da dimensão temporal e verbal do ser-corpo. O corporar (Leiben) pertence ao ser-no-mundo, mas esse último não se restringe ao corporar. O corporar é um dos modos de ser do Dasein, absolutamente inseparável dele. Nessa direção, corporar contrapõe-se à mensurabilidade, visto ser compreendido como horizonte existencial no qual permanecemos.

Para a Analítica heideggeriana, o fisiológico não é suficiente para estabelecer a “relação” homem-mundo. Nesse sentido, Heidegger (1987/2009, p. 223) faz uma crítica ao modelo biomédico, ao pronunciar:

Para os médicos o fenômeno do corpo como tal está tão encoberto porque eles apenas se ocupam do corpo material, reinterpretando-o como função corporal. O fenômeno corporal é inteiramente singular, irredutível a outra coisa, por exemplo irredutível a mecanismos. É preciso poder aceitar o fenômeno corporal como tal, intacto.

Tal perspectiva propõe a tentativa de superação do dualismo sujeito-objeto. No entanto, importa destacar que essa compreensão impõe um outro modo de pensar o corpo, para além de sua dimensão substancializada e naturalizada, concebendo-o como fenômeno. Por essa via, distanciando-se do pensamento dualista, no qual o corpo do homem só pode ser assumido como pertencente à matéria e afastado do pensamento, Heidegger (1987/2009) compreende a corporeidade enquanto modo de ser. Em linhas gerais, Dasein não tem um corpo – um objeto que lhe pertence –, ele “é” seu corpo. Logo, existir é ser-corporalmente-no-mundo-junto-às-coisas-com-os-outros.

Diante dessas considerações, é oportuno retomar o pensamento de Heidegger (1987/2009) ao ressaltar a questão do corpo, acima de tudo, como um problema do método. O modo de acesso, pela via da previsibilidade, empreendido pelas ciências naturais, restringe o corpo enquanto matéria a ser estudada. Nesse cenário, tudo o que não apresenta o caráter dos objetos passíveis de determinação matemática é tido como incerto e não verdadeiro.

Michelazzo (2004) chama a atenção para o fato de que o ser-corpo não pode ser generalizado, pois apresenta-se como o sempre “meu” singular, com seus gestos e desejos, testemunha os acontecimentos da minha existência, o “estar-aqui”; bem como todos os momentos da vida – infância, juventude, adultidade e velhice – somos “corpo e tempo” porque somos “existência e tempo”.

Diante de tal contexto e trazendo à luz a questão norteadora do presente estudo, pergunta-se: de que maneira o homem infértil lida com seu corpo: como objeto a ser manipulado e que assim pode ser submetido às intervenções prescritas nos protocolos médicos, ou como um modo próprio de estar-no-mundo? Como as inflexões heideggerianas podem ajudar no sentido de apontar para outra compreensão do corpo, não mais como uma substância mensurável e manipulável, mas enquanto dimensão existencial do Dasein? Como essas meditações podem apresentar uma nova compreensão do fenômeno da infertilidade e que repercussões podem ter no modo como os homens participantes deste estudo podem experienciar, “habitar” um corpo infértil?

Na busca de responder a tais questões, desenvolveu-se uma pesquisa cujo objetivo foi, de um modo geral, compreender a experiência de homens que vivenciam a infertilidade. Diante da abrangência de tal temática e da multiplicidade desvelada nas experiências dos colaboradores, delinearemos como foco de atenção, no presente artigo, apenas reflexões a respeito do fenômeno do corpo no campo da Reprodução Assistida.

 

Método

A fim de descrever os caminhos metodológicos adotados, cabe ressaltar que a presente pesquisa se configura qualitativa, de caráter fenomenológico existencial; privilegiando a compreensão interpretativa fundada na Hermenêutica Filosófica de Gadamer. Importa situar, segundo Schwandt (2006), o reconhecimento da Hermenêutica Filosófica como proposta epistemológica de natureza qualitativa, a qual surgiu como um movimento acadêmico em reação à filosofia positivista.

A presente pesquisa é um recorte da dissertação de mestrado da pesquisadora principal realizada entre os anos de 2012 e 2013, a qual foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, protocolo número 08870312.0.0000.5206, segundo os procedimentos básicos e éticos de respeito aos voluntários e à instituição. Todos os colaboradores assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de sua participação, o qual contém, de maneira clara, o objetivo da pesquisa, procedimentos, riscos, desconfortos e benefícios.

O cenário no qual a pesquisa aconteceu foi o ambulatório de Reprodução Assistida de um hospital público, situado na cidade do Recife-PE. Esse serviço é composto por uma equipe de médicos, enfermeiros e uma psicóloga, cuja finalidade é buscar soluções para os efeitos da esterilidade e infertilidade conjugal, por meio de técnicas reprodutivas. A escolha por tal ambiente de pesquisa se deu por razão do citado hospital ser referência na região Nordeste no âmbito da Reprodução Humana, bem como por se revelar um hospital-escola, em que a presença de pesquisadores e estagiários é comum.

A inserção no campo empírico ocorreu três meses antes do início das entrevistas. Participando do cotidiano institucional, a pesquisadora-principal teve contato com diversos integrantes da equipe, bem como se aproximou de pessoas que buscavam os serviços prestados naquele local. A pesquisadora teve acesso, mediante autorização, aos prontuários dos pacientes, bem como a grupos terapêuticos coordenados pela psiquiatra do serviço.

Participantes

No tocante aos colaboradores da pesquisa, considerados narradores da experiência, foram 05 (cinco) homens, entre 39 e 50 anos de idade, frequentadores do ambulatório de Reprodução Assistida. O critério de inclusão de participação utilizado foi estar infértil e ser cadastrado no referido serviço. Foram excluídos da presente pesquisa homens que não são inférteis ou que o são, mas não são cadastrados no serviço de Reprodução Assistida escolhido como campo de pesquisa. Importa situar que os entrevistados foram contatados inicialmente na sala de espera; na ocasião, a temática foi explicitada e o convite para participarem da pesquisa foi feito.

Instrumentos

Para ter acesso à experiência dos homens submetidos ao tratamento de Reprodução Assistida, foi utilizada a entrevista narrativa. Tal instrumento é tido como pertinente para pesquisas qualitativas visto ter como características a não estruturação do fenômeno estudado em categorias e o foco na elaboração da experiência.

Conforme Flick (2009), o elemento central desse tipo de narrativa é o acesso à experiência dos entrevistados. Para tanto, é realizada uma pergunta de abertura que visa a estimular uma narrativa sobre a área escolhida como interesse do entrevistador. Sob tal ótica, os homens narraram espontaneamente as situações que acreditavam ser relacionadas ao fenômeno que estava sendo investigado, mediante uma pergunta provocadora: “como é vivenciar a infertilidade?”.

Narrar, na presente pesquisa, parte da compreensão de Benjamin (1994). E pode ser considerada como via de acesso à experiência de homens inférteis. Narrando os depoimentos contados a partir da questão provocadora, é possível refletir, desvelar sentidos e abrir horizontes para um dizer/pensar não teorético, mas que se dá a partir da experiência de quem vive e escuta.

Procedimento de coleta e análise dos dados

Mediante aceitação voluntária, os interlocutores foram entrevistados individualmente numa sala reservada do ambulatório de Reprodução Assistida. As entrevistas foram gravadas com a autorização dos participantes e, posteriormente, transcritas. Prontamente após as entrevistas, foram registradas observações da pesquisadora, as quais se mostraram relevantes, tais como expressões dos entrevistados, afetação da pesquisadora e intervenções externas.

Para análise dos dados encontrados, a Hermenêutica Filosófica (Gadamer, 1986/2012) foi adotada enquanto possibilidade compreensiva das narrativas. A Hermenêutica Filosófica constitui-se numa epistemologia de pesquisa que privilegia a análise compreensiva da ação humana. Cabe mencionar que, tal qual Heidegger, Gadamer atribui à compreensão uma dimensão originária, direcionando seu interesse para o movimento da compreensão e a situação hermenêutica em sua especificidade. Para Gadamer (1986/2012), a noção de horizonte compreensivo ressalta a dinâmica constituinte da compreensão como interpenetração de dois horizontes, os quais obedecem às condições particulares de cada um dos que se interpenetram no jogo compreensivo.

A interpretação, nesse sentido, afasta-se de um regramento metodológico e se dá na fusão de horizontes. Relacionando tal compreensão à pesquisa, é possível dizer que o horizonte do pesquisador entra em contato com o dos narradores da experiência de tal forma a serem afetados pelo encontro ocorrido na conversação, através da linguagem, possibilitando uma fusão de horizontes. Em tal fusão, não há posição neutra de isolamento das sensações e emoções. Desse modo, considera-se que o conhecimento, nas palavras de Critelli (2007), é sempre emocionado.

A interpretação revela-se, pois, em uma fusão, que não poderá ser obtida em sua totalidade, nem completamente finalizada. Constitui-se na realização particular de uma fusão de horizontes em meio a sua circularidade, o que, por sua vez, implica que uma interpretação jamais esgotará todas as possibilidades pertencentes ao fenômeno que se busca compreender.

Para Gadamer (2011, p. 492), a fusão de horizontes “[...] é o genuíno desempenho e produção da linguagem” (grifo do autor). A interpretação da coisa com a qual nos confrontamos, no processo de compreensão, acontece necessariamente na formulação da linguagem, haja vista que “a realização da compreensão se dá justamente nesse vir-à-fala da própria coisa em pauta” (p. 493). Todavia, importa lembrar que, apesar do ouvinte/interlocutor intervir no discurso, ele não dita o caminho que este assume, não podendo, de antemão, conhecer aquilo que chegará ao final.

Nessa direção, esta pesquisa, afinada aos pressupostos da Hermenêutica Filosófica gadameriana, não tem pretensões de esgotar o fenômeno interrogado, ou mesmo, finalizar a temática de problematização. Busca-se, pois, por meio da linguagem, ampliar as discussões sobre o fenômeno estudado e “des-cobrir” possibilidades compreensivas. Possibilidades estas que, antes mesmo de pôr um ponto, abre outras perguntas, inquietações.

No que se refere à análise dos depoimentos, foi adotada uma atitude hermenêutica, a qual caracteriza-se por um diálogo entre colaboradores da pesquisa (considerando suas tradições), pesquisadores (considerando seu horizonte histórico e as perspectivas teóricas que fundamentam suas compreensões) e o fio teórico que foi sendo desenvolvido desde o início da pesquisa. De acordo com Schmidt (1990, p. 70), nesse modo de pesquisar “cabe ao pesquisador colocar-se, então, mais como um recolhedor da experiência, inspirado pela vontade de compreender, do que como um analisador à cata de explicações”.

Por fim, cabe situar que a linguagem adotada pela Hermenêutica Filosófica não caminha pela via hegemônica da explicação causal, mas pela via da compreensão de sentido, a qual surge no contato do pesquisador com a narrativa colhida. Desse modo, a linguagem fenomenológica não é uma tarefa controlada por procedimentos metodológicos, ela, enquanto indicativo-formal, aponta, revela, reflete, apresenta possibilidades compreensivas.

 

Resultados e discussão das narrativas

“[...] Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras [...]”
(Alberto Caeiro)

Encaminhando a compreensão pelas veredas das narrativas dos colaboradores em cena, inicialmente, trazemos a experiência de Paulo e o realce que dá à dimensão existencial vivida durante os procedimentos técnicos:

“Eu tenho quarenta anos de idade e já sofri acidente de caminhão, carreta, moto, mas nunca tive uma lesão, nem tenho cicatriz no corpo...! Nunca tive problema com nada de saúde e de repente eu me vejo passando por uma bateria de exames! Apesar de achar horrível tive que tirar umas dez ampolas para realizar os exames. [...] Eu fico constrangido! Quando a gente quer se submete a tantas coisas... deixa o orgulho de lado, a vergonha!"

A narrativa de Paulo desvela um corpo sofrido, machucado e manipulado por procedimentos invasivos. Também fala da experiência de um corpo “constrangido”, que perdeu o “orgulho” em prol do projeto de ser pai. Aqui expomos a dificuldade que alguns homens apresentam em serem pacientes, especialmente no caso de procedimentos que violam fronteiras do seu corpo. A busca por serviços de Reprodução Assistida faz com que alguns homens sejam vistos pela primeira vez como expostos ao ritmo e à lógica do serviço médico.

Para Paulo, os acidentes que sofrera não deixaram marcas no corpo, mas a infertilidade (ao se mostrar também como um acidente) parece deixar uma marca em seu corpo. Que corpo é este que vivo? Que corpo é este que estou em vias de assumir e viver?

Esse lamento não é escutado pela equipe e é somente sussurrado por ele, pois não se atreve a questionar sobre os procedimentos, submete-se apesar de sofrer. Questionar sobre as técnicas e manejos em seu corpo seria distanciar-se de um projeto que pretende assumir? Projeto esse que tem a técnica por sustentação. Ao nos aproximarmos da experiência de homens inférteis percebemos o quanto os fluidos corporais estão constantemente sob supervisão e diagnóstico: é feita a contagem e a medição dos folículos, o controle ou o estímulo dos hormônios a partir da dose adequada de medicação. O homem, por exemplo, precisa submeter o seu sêmen à análise, através do espermograma. Antes da realização desse exame, o casal é instruído a não ter relações sexuais por três a cinco dias, no intuito de garantir uma padronização para se avaliar a qualidade do sêmen.

Tal situação circulava entre os homens nos corredores do serviço de Reprodução Assistida do hospital, mas não havia indicação de reconhecimento e apropriação do sentido da experiência (existia apenas incômodo) pelos homens de como o corpo deles estava sendo manipulado pela técnica. O diálogo com a narrativa de Paulo ajuda a compreender o quanto foi doloroso e humilhante sua experiência, bem como suscita questões: será que o processo não poderia ser vivido de outro modo, caso esses homens tivessem um espaço de escuta e até de esclarecimento sobre os procedimentos, com a abertura da possibilidade de assumir o tratamento, podendo decidir sobre o tempo e o modo como os procedimentos técnicos poderiam ser aplicados?

Fica a marca da dor no “corpo” expressa na narrativa de Paulo:

“Eu conheço pessoas que desistiram no meio do tratamento, começando pela realização do espermograma que, para mim, foi algo novo. Tive que fazer dois, a pulso, mas fiz! Quando voltei da sala do exame eu peguei as minhas coisas e sai correndo pela escada! Depois tive que ser submetido a um ultrassom da bolsa escrotal... foi quando ele detectou a correção de varicocele e marcou essa cirurgia!”.

Ao longo da nossa conversa, quase sem se dar conta da importância maior disso, Paulo foi construindo um sentido, a partir da revisitação de vivências no ambulatório de Reprodução Assistida. Vivências que puderam ser elaboradas e assumidas enquanto experiência, com realce para a dimensão existencial do processo vivido. Tal possibilidade foi aberta pelo modo como nos colocamos, possibilitando que algo acontecesse na direção de elaboração/apropriação do vivido.

Continuando com Paulo e, mais uma vez, escutando a dor da “invasão” sofrida no corpo, ele narra:

“Vim fazer alguns exames e quando cheguei na sala o médico pediu para eu tirar a roupa na frente da médica residente!”

Tal narrativa pode indicar que o corpo, para muitos profissionais de saúde, constitui extensão da tecnologia. A exposição do corpo parece torná-lo vulnerável, mas repercute como um modo de invasão, a partir da qual o corpo é calado e convidado a se evadir. Interessante mencionar que o corpo para as “ciências naturais” é compreendido pela sua função e desenvoltura. Ocupam-se do corpo material, afastado da existência, não considerando o modo como cada um experiencia a situação ou procedimento. A partir da hegemonia do paradigma médico, podemos indagar: de que modo se cuida?

Heitor, ao expressar sua experiência frente aos procedimentos da Reprodução Assistida, fala de como percebe seu corpo:

“Eu sinto o meu corpo normal! Fora a minha fraca quantidade de espermatozoide, é normal! Só esse problema mesmo que espero que seja resolvido”.

Vivência semelhante é relatada por Carlos:

“Eu acho tranquilo os procedimentos que fazem no meu corpo. Já passei por uma cirurgia de varicocele porque as veias dos meus testículos são dilatadas. Já fiz no lado esquerdo e provavelmente vou fazer no direito”.

Heitor e Carlos falam do modo como experienciam seus corpos fazendo referência à dimensão meramente biológica. Apesar de a infertilidade repercutir como estranheza e/ou como um “erro” funcional do corpo, parece que o modo como lidam com seus corpos nem sempre é pelos caminhos da indigência – um corpo que precisa de uma “correção”, necessariamente, para ser vivido como normal. Ou seja, apesar de existirem essas possibilidades de correção, para Heitor e Carlos, não há um “distanciamento” do corpo que lhes é próprio, o que parece revelar que, a despeito do “erro” biofisiológico, o corpo é capaz de ser fecundo.

Somos levadas também a refletir quando as intervenções médicas falhas, quando não apresentam o resultado previsto: a produção de um corpo grávido. Essa analogia do corpo grávido é bastante significativa nessas experiências, isso porque participar das técnicas de “correção de infertilidade” já é estar em contato, mesmo distante, com um processo de reprodução. Sendo inférteis, não podem reproduzir e, desse modo, são aprisionados pelo pensamento das ciências naturais, no qual os seres vivos nascem, crescem, reproduzem e morrem (Greil, 1999; Anderson, Sharpe, Rattray, Irvine, 2003).

Tal limitação da técnica foi vivida por Paulo como decepção e frustação:

“O mês passado a médica detectou uma coisa positiva no útero da minha esposa... foi um momento de animação dentro da sala! Passaram-se cinco dias e quando estava marcado para fazer o exame de gravidez a menstruação veio! Foi um balde de água fria nas nossas expectativas!”

Para Paulo, deparar-se novamente com o diagnóstico de infertilidade causou uma sensação de estranhamento “um balde de água fria”! Seus projetos parentais foram mais uma vez ameaçados pela angústia de não ter o controle sobre a situação. Nesse sentido, Paulo sinaliza que a chegada da menstruação de sua esposa expressa, metaforicamente, um aborto de um filho que não estava em seu corpo, mas que fazia parte de seu projeto existencial.

Dentro desse contexto, a infertilidade pode ganhar um caráter estigmatizante, ao passo que se atribuem aspectos negativos a tal experiência e suas privações. A metáfora da secura é bastante utilizada, em oposição à representação de umidade para a fertilidade. Assim, são comuns expressões como: fonte seca, árvore sem frutos, terra árida, as quais se amparam sobre uma natureza improdutiva, a qual não cumpre a norma social e natural da procriação no tempo estabelecido.

O anúncio dessas considerações dialoga com o exemplo, trazido por Heidegger (1987/2009, p. 85), da flor do açafrão chamada “Zitelosa”. Esse nome carrega o significado de flor que não floresce no tempo certo, diferente da época habitual das demais. A “Zitelosa” da primavera floresce antes do tempo previsto; já a “Zitelosa” do outono, floresce tempos depois. Esse “sem tempo”, tanto da flor quanto da infertilidade, vai na contramão dos procedimentos e das condições de mensurabilidade técnica, as quais definem a hora do “engravidar”, metamorfoseada em flor.

Continuando na trilha da Reprodução Assistida, o avanço das técnicas abriu caminhos para uma possível substituição das relações sexuais por intervenções médicas. Sob esse ângulo, a fecundidade atualmente pode acontecer em clínicas, com a mediação da tecnologia e do saber científico, retirando o termo “reprodução humana” do seu sentido habitual. Focados no produto final, a saber, o nascimento de um bebê, aparenta tirar a vontade e potência do corpo do lugar e deslocam-nas para um distanciamento do “humano”.

Nessa direção, a experiência narrada por Paulo já aponta para a possibilidade de “inspeção” das relações sexuais, revelando o incômodo diante de tal procedimento:

“Já fizeram monitoramento da nossa relação sexual. A médica dizia as datas, por exemplo, três dias seguidos no final de semana e na segunda-feira minha esposa vinha ao hospital para o monitoramento médico! Ela via se minha esposa estava ovulando... como o útero estava! A gente até se resguardava alguns dias antes da data marcada para se preparar... era como se fosse uma lua de mel forçada!”

Frente ao testemunho de Paulo, por um tempo, percebemos que sua experiência assinala o corpo enquanto materialidade, objeto de manipulação médica com data estabelecida para ter relações sexuais e dia para verificação do resultado da sua “lua de mel forçada”. Tal monitoramento não é somente sexual, mas também do modo como o casal experienciava seu corpo. A “lua de mel forçada” sinaliza a utilização de um corpo para um fim: a reprodução. Em outros termos, superar a ausência indesejada de filhos biológicos, a despeito das causas da infertilidade e das implicações decorrentes dos usos das técnicas reprodutivas. Nessa perspectiva de que o saber científico indica o que “pode ou não ser feito”, realçamos que a experiência não é contemplada, visto que o paciente não é escutado e seu corpo compreendido como algo disposto, passível de ser calculado e convocado a corresponder às exigências médicas.

Esse depoimento nos direciona para a pesquisa de Barbosa (2000), ao discorrer sobre a provocação dos sofisticados procedimentos de Reprodução Assistida no corpo, podendo separar a sexualidade da reprodução e introduzir outros atores sociais na relação sexual. A concepção deixa de ser vista como um encontro erótico, transformando-se num evento mecânico.

Tanto a narrativa de Paulo quanto a pesquisa de Barbosa nos levam a refletir acerca da ciência e seu lugar de destaque na “resolução” de problemas, que, ao assumir a direção do processo, naturaliza e explica as dimensões da vida. No caso das experiências narradas pelos colaboradores do presente estudo, o preço cobrado pelo controle e promessas científicas ressoa particularmente no campo do parentesco e na patologização da existência – tendência em explicar possibilidades humanas a partir de parâmetros unicamente biomédicos.

Nessa linguagem técnica, a existência, submetida à investigação metodológica, é provocada a revelar-se numa objetividade calculável, e o calculável não é exclusivamente produzido como também multiplicado, desmembrado, adaptado e domesticado. O que tencionamos apontar é o predomínio de uma perspectiva que patologiza e, concomitantemente, oferece a cura. Como todo discurso científico, este também possui o estatuto da verdade. Tal verdade, que pretende normatizar a existência e restringir seus campos de possibilidades, interessa aos sistemas de poder/saber constituídos, dentre eles a Medicina e a Psicologia.

As inovações tecnológicas, de um modo geral, estão também ligadas à ideia de bem-estar, a importância do desejo de reprodução e à demarcação de limites à manipulação da vida humana. Tal modo de pensar, apresenta-se conforme a lógica de consumo biotecnológico e de mercantilização da produção da vida, apoiada na noção de progresso científico como um valor em si mesmo, ideia discutida por Ramírez-Gálvez (2003).

Em tal lógica, o controle técnico-científico sobre o corpo é exercido em um tempo biológico determinado e linear. Nessa direção, as narrativas de Jan e Carlos revelam a dimensão do tempo de duração do processo, que, em algumas situações, tornava-se mais um complicador a ser vencido. Assim, o tempo cronológico é experienciado como um limite real, em descompasso com o tempo vivido no projeto de ser pai:

“Tenho 39 anos e minha esposa diz que os nossos filhos serão nossos netos e eu digo que não tem problema” (Jan).

“O sonho de todo mundo é ser pai. Eu já tive esse sonho grande, mas hoje eu estou com 45 anos e fico desesperançoso” (Carlos).

As possibilidades de “não dar certo” revelam tanto a dimensão biológica do corpo que envelhece como a experiência de um projeto que se torna cada vez mais distante enquanto possibilidade existencial. A questão do tempo atravessa as experiências do corpo desses homens, trazendo a marca de uma infertilidade regida pelo arcabouço de funcionalidade da fisiologia, como também trazem repercussões no projeto de ser pai.

Nesse ínterim, a “desesperança” e, de certo modo, a “cobrança” de outrem revelam que o tempo cronológico começa a interferir no projeto de vida, vivido como dimensão importante na existência de cada um desses homens. O projeto de ser pai, quando o corpo se mostra infértil, requer não somente uma concretude do que é possível ser feito, mas deve provocar uma atenção para a dimensão existencial do corpo vivido.

 

Considerações finais

O presente estudo objetivou apontar as repercussões existenciais dos procedimentos técnicos exercidos sobre o corpo dos homens diagnosticados como inférteis. A partir das narrativas colhidas, os entrevistados sinalizaram que seus corpos eram tomados, pela equipe médica, como mercadoria, objeto do saber técnico, matéria-prima supervisionada, diagnosticada e aperfeiçoada. Esse modo de pensar sinaliza a tentativa de dissociação corporeidade/existência e lança luz para a desvalorização da experiência humana, propagada na época atual.

O desvelamento das narrativas revelou também que as técnicas de Reprodução Assistida, aqui destacadas, consideram como objeto de interesse e investigação predominantemente a infertilidade e buscam modos de “curar” tal situação, não priorizando a experiência do homem que vive a infertilidade no seu corpo. Também realçaram, de um lado, o corpo “esquecido” no decorrer do tempo e, de outro, confirmaram o corpo meramente como substância refletida apenas na carne (ou melhor, ao “Ed.anismo sexual”) de quem o vive enquanto “improdutivo”.

Pensar o corpo numa perspectiva técnica/objetificante não tem ressonância com algumas experiências relatadas pelos colaboradores, as quais revelaram corpos sofridos, afetados pela exposição e manipulação dos procedimentos (muitas vezes invasivos) de reprodução humana assistida. Alguns homens chegaram também a questionar a noção de corpo como extensão da tecnologia, ressaltando que seus corpos estão para além de mecanismos de controle e apropriação médica. O enfoque central das narrativas é um constante apelo dos corpos/da existência para serem vistos e acolhidos não apenas como uma junção de membros, como matéria adequada ou inadequada às necessidades de reprodução sexual. São corpos enquanto morada da existência, vividos, habitados, que podem dizer “sim” e “não” às técnicas de reprodução assistida.

Interessante observar que as experiências dos colaboradores se aproximam do breve diálogo que realizamos acerca do pensamento de Heidegger, no que se refere ao corpo/corporar, realçando sua dimensão existencial. Embora, a partir da Fenomenologia Existencial, não tenhamos a pretensão de propor outras teorias explicativas sobre o corpo no campo da Reprodução Assistida, faz-se oportuno salientar horizontes de abertura para um novo modo de cuidar, que acolha a dimensão existencial da experiência de homens inférteis.

As experiências dos colaboradores também salientaram a crítica ao saber médico/científico. Isso pôde ser percebido, por exemplo, no incômodo frente ao monitoramento das relações sexuais, na percepção que as promessas científicas nem sempre têm êxito. Importa mencionar que esse modo de pensar no qual predomina o cálculo, a experimentação e a busca de resultados imediatos, fundamenta a nossa época. Ao resgatar as entrevistas realizadas, visualizamos um distanciamento da valorização dos mistérios do viver, bem como do questionamento acerca das repercussões dos procedimentos técnicos na existência do ser humano. Nesta perspectiva, predomina a compreensão da técnica como um produto disponível no mercado. Tal lógica faz-se notar nos anúncios de Reprodução Assistida, os quais proclamam e vendem promessas de realização do projeto de parentalidade.

A geração tecnológica de um filho é, muitas vezes, considerada um milagre, um dos grandes empreendimentos da ciência contemporânea, colocando o médico na posição de gestor da vida do “bebê prodígio”. Em tal contexto vigora a necessidade de a tecnologia oferecer uma “mãozinha” à natureza. Se há algum erro na procriação dita “natural”, ela é solucionada pela assistência médico-tecnológica. A imagem da cegonha, explorada pelas clínicas de Reprodução Assistida, representa bem essa realidade de fabricação da vida. A história que antes era contada às crianças para omitir a sexualidade dos pais, tornou-se real no contexto da Reprodução Assistida: os filhos podem ser encomendados à “cegonha tecnológica”, num serviço especializado e com facilidade de pagamento.

No que concerne às limitações (ou poderíamos nomear de especificidade?) do presente estudo, ressaltamos que o objetivo foi compreender a experiência de homens inférteis – amostra intencional/reduzida –, os quais frequentavam um serviço de Reprodução Humana de um hospital público. Não tendo como proposta apresentar generalizações, outros estudos podem contribuir para ampliação da questão norteadora da presente pesquisa. De tal forma, a partir das demandas surgidas nesta investigação, sugerimos que outros trabalhos sejam realizados de maneira que possam investigar a experiência de casais frente à infertilidade ou as implicações do diagnóstico da infertilidade no contexto familiar; pesquisar também tal fenômeno em uma instituição particular e em outras regiões do Brasil.

Apontamos para a necessidade de ampliar estudos no campo da busca pela parentalidade no ambiente da Reprodução Assistida, a fim de oferecer outros caminhos para pensar o “lugar dos homens” na reprodução e no projeto parental. Realçamos também a importância de intervenções profissionais e programas de saúde com a finalidade de proporcionar aos pacientes e familiares maiores informações/esclarecimentos acerca da infertilidade, seus modos de apresentação e tratamento disponíveis em cada caso.

Cabe enfatizar a relevância da temática em pauta para a saúde pública. Pouco se fala na responsabilidade que os serviços de saúde têm em ofertar auxílio ao planejamento reprodutivo (Ministério da Saúde, 2010). Em casos de infertilidade, dentre outras questões, é oportuno buscar soluções acerca do acesso a tratamentos em Reprodução Humana Assistida. Atualmente, são restritos os âmbitos públicos de saúde no Brasil que disponibilizam esse serviço e, por não comportar a demanda, são marcados por longas filas de espera. Colocar em debate tais questões pode sensibilizar a opinião pública a respeito da infertilidade, fenômeno que atinge milhares de brasileiros com dificuldades para gerar um filho.

Esperamos que os resultados desta pesquisa sejam esclarecedores para a comunidade científica e os demais interessados no tema. Proporcionem reflexões para os profissionais que atuam no campo da Reprodução Humana e, especificamente, para os psicólogos que buscam acolher as demandas que se apresentam nesse contexto. Também importa ressaltar a sensibilização da equipe médica que possa considerar no planejamento da intervenção, o projeto de vida que foi construído por aquele que procura ter um filho.

Por fim, com base em tais reflexões e na experiência no campo de pesquisa, é possível pensar a participação do psicólogo enquanto membro da equipe de Reprodução Assistida. Sugerimos que o psicólogo tenha uma função mais efetiva, de acolhimento das demandas apresentadas durante todo o processo de tratamento. Como foi exposto, as narrativas dos colaboradores ao revelarem sofrimento, angústia frente a exposição demasiada do corpo e aos insucessos dos procedimentos, justificam a necessidade de um acompanhamento psicológico sistemático.

A partir das compreensões e necessidades de intervenção reveladas na pesquisa, cabe destacar que a ação clínica do psicólogo pode estender-se também ao casal e para os familiares daqueles que procuram pelo serviço de Reprodução Assistida. Além de acompanhar o casal, pode lançar mão de atendimento e acompanhamento na modalidade de grupos, com a finalidade clínica de partilhar experiências, refletir a respeito das decisões que deverão tomar em relação aos tratamentos e, quem sabe juntos, encontrarem sentidos diferentes dos que já são oferecidos irrefletidamente acerca da infertilidade – como doença, mal a ser curado.

Desse modo, acreditamos que uma escuta clínica – seja individual, de casal ou grupal diferente da atitude médico-científica, pode acolher as demandas, as angústias, as dúvidas, os desejos, acompanhando os pacientes do serviço para uma possível apropriação do seu projeto parental, podendo questionar o modo e o tempo das intervenções técnicas.

 

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Endereço para correspondência
Ellen Fernanda Gomes da Silva

e-mail: ellenfernanda1@hotmail.com

Endereço para correspondência
Carmem Lucia Brito Tavares Barreto

e-mail: carmembarreto@hotmail.com

 

Recebido em: 14/06/2016
Revisado em: 31/10/2016

Aceito em: 18/03/2017

 

 

 

i Psicóloga, Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco. Membro participante do Laboratório de Clínica Fenomenológica Existencial (LACLIFE).

ii Doutora em Psicologia Clínica. Professora adjunta da Universidade Católica de Pernambuco e Coordenadora da Linha de Pesquisa de "Práticas Psicológicas em Instituições" do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica.

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