Introdução
Este estudo tem por objetivo descrever e discutir as possibilidades de trabalho desenvolvidas no grupo de medidas socioeducativas de liberdade assistida, as quais foram instrumentalizadas por acadêmicas de uma Universidade através do estágio de Psicologia realizado em uma Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI) de Santa Catarina. As estudantes mediaram grupos de trabalho com adolescentes que foram encaminhados compulsoriamente pelo Juizado da Infância e Juventude.
A proposta de estágio se detém a métodos de grupos operativos-reflexivos norteados por princípios freirianos (Freire, 2013) que consideram as experiências e vivências do sujeito centrais para a constituição de novos sentidos em torno do ato que levou a aplicação da medida de liberdade assistida. A motivação para este projeto pautou-se na necessidade de desenvolver, enquanto profissionais da psicologia inseridos num âmbito público, atenção e espaço de escuta a estes sujeitos, construindo e ressignificando junto a eles seus potenciais enquanto cidadãos de direitos e deveres que podem e devem ser respeitados.
Como aporte teórico para pensar a juventude, aproximamo-nos dos estudos de Groppo (2000), que defende a juventude como categoria social construída para dar sentido a uma série de comportamentos. Há a inerente necessidade de pensar o público desta intervenção a partir dos marcadores interseccionais que produzem seus corpos e, portanto, a juventude que aqui mencionamos diz respeito a uma parcela da população que é invisibilizada e silenciada.
Os jovens que chegam a delegacia são produzidos a partir do que Judith Butler (2015) chamou de violência normativa, que para além da violência já sofrida pela norma de gênero, sua posição social/racial/étnica justifica, e por vezes produz, violências secundárias. Como resultado disso, são organizadas estratégias de sistematização dos corpos nos espaços urbanos marcadas, ao longo da história, pela segregação e isolamento das classes mais pobres. Salienta-se que nesse conglomerado estrutural há recortes étnicos, racistas, sexistas e de faixa etária reverberando o pensamento de que esses sujeitos são as causas do perigo e da violência, e, logo, merecedores de extinção, afinal não são reconhecidos como humanos (Butler, 2015).
Estar em conflito com a lei, produzir-se em uma suposta marginalidade, faz desses jovens corpos abjetos atravessados por inúmeras violências. Assim, neste relato, pretendemos apontar as falas e silenciamentos desses sujeitos diante de situações que permeiam suas vidas.
Marcas da violência na juventude: dinâmicas sociais e situações de vulnerabilidade
Para problematizar a existência das juventudes criminalizáveis no Brasil, não podemos deixar de retomar o que consideramos uma das maiores expressões da violência estrutural sofrida por esse grupo. No ano de 2018, 6 em cada 10 crianças e adolescentes brasileiros viviam em situação de pobreza, totalizando 32 milhões (61%) de crianças e adolescentes afetados por alguma forma de pobreza, como renda familiar insuficiente e privação de direitos humanos (falta de saneamento básico, de moradia, de acesso à educação e à informação), assim como pela presença do trabalho infantil (Fundo das Nações Unidas para a infância, 2018a). Segundo a UNICEF (2018a, p. 5), “a pobreza na infância e na adolescência é mais que renda. Além da pobreza monetária, é preciso observar também o conjunto de privações de direitos a que meninas e meninos são submetidos.”.
A este respeito, na área de proteção à criança e ao adolescente, o Brasil enfrenta grandes desafios. Nos últimos 30 anos, observamos o crescimento da violência armada em várias cidades, o que configura um quadro grave de homicídios no país. A cada dia, 32 meninas e meninos, de idade entre 10 e 19 anos, são assassinados no Brasil e só no ano de 2017 foram registradas 11,8 mil mortes. Logo, o país é o primeiro em números absolutos de assassinatos de adolescentes no mundo. Segundo levantamento feito pela Fundo das Nações Unidas para a infância (2019) em 10 capitais do Brasil, 2,6 milhões de crianças vivem em áreas diretamente afetadas pela violência armada. Além disso, grande parte dessa violência está concentrada em bairros onde há falta de serviços básicos de saúde, assistência social, educação, cultura e lazer. Dentre as vítimas de homicídio, a maior parte corresponde a meninos negros e/ou pobres que vivem em periferias e áreas metropolitanas de grandes cidades (UNICEF, 2019).
Outro ponto importante que submete estes sujeitos a privações de direitos é evidenciado no âmbito cotidiano das relações pessoais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define como abuso e maus-tratos contra crianças o tratamento doentio físico ou emocional, o abuso sexual, a negligência ou outro tipo de exploração que resultem em danos reais ou potenciais para a saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder (World Health Organization, 1999).
A violência se manifesta de forma heterogênea na vida desses sujeitos, os quais ora são vitimados por ela, ora usam dela como ferramenta de sobrevivência e subjetivação. A lógica da exclusão social afeta a forma com que os sujeitos pobres se constituem e se veem. Considera-se que o modo como um adolescente, por exemplo, constrói a sua imagem e a do outro, seus valores, seus interesses e suas habilidades está diretamente relacionado ao ambiente social que esse sujeito experiencia ao longo de sua vida. Isto é, se o adolescente cresce em um local com alto nível de violência, provavelmente, será afetado por ela. A experiência de violência constitui-se como um fator significativo especialmente no julgamento que o jovem faz de si e dos outros (Cara & Gauto 2007).
Sob esse viés, a influência do âmbito familiar e social sobre o desenvolvimento das crianças e jovens é peça fundamental para a constituição do sujeito. A violência física, psicológica e/ou sexual dirigida por aqueles de quem tradicionalmente se espera carinho, cuidado e respeito é um fator significativo de prejuízo ao desenvolvimento da autoestima, confiança e do modo como o sujeito constrói suas relações sociais, intensificando um apego a um conceito de si negativo e descrente do mundo (Von Hohendorff, Habigzang & Koller, 2015).
A medida socioeducativa: da violação de direitos a integração social
Os dados acima mencionados revelam que, apesar de a infância e a adolescência serem regidas juridicamente a partir dos princípios de Proteção Integral instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), muitos dos sujeitos que cometem atos infracionais já se veem imersos em situações de violação de direitos. Apesar disso, as medidas socioeducativas instituídas pelo ECA buscam, através de sua aplicação, produzir novos sentidos no que tange à criminalidade e à recuperação de direitos até então violados. Para isso, utiliza de uma gama de dispositivos, dispostos no artigo 90 do ECA, com o objetivo primordial de integração do adolescente ao corpo social (Lei nº 8069, 1990).
Quando necessário, as medidas socioeducativas são aplicadas pelo juiz da Vara da Infância e Juventude aos adolescentes que cometem algum ato infracional. Tais atos recebem diferentes medidas, previstas no art. 112 do ECA (1990), a depender da gravidade da ofensa e também da reincidência do ato infracional. Para situações de menor teor ofensivo, autoridades responsáveis podem aplicar uma advertência ou uma obrigação de reparação de danos, visando obter um comprometimento por parte do adolescente de que o fato não se repita. Em outras situações, pode haver o emprego de prestação de serviço à comunidade, que consiste na realização de tarefas não remuneradas de interesse comum, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas, programas comunitários ou governamentais ((Lei nº 8069, 1990). Nas ocasiões onde a infração for mais grave, medidas como liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade ou internação em estabelecimento educacional podem ser aplicadas.
Com a promulgação do ECA e o estabelecimento das medidas socioeducativas, o Brasil estabeleceu um novo marco para o trabalho do psicólogo na área jurídica, dando ênfase a normatização do atendimento psicossocial da criança e do adolescente (Otaran & Amboni, 2015). Os princípios norteadores do Estatuto expandem a necessidade de intervenção psicológica para além da avaliação desses sujeitos. Além disso, amplia as possibilidades de atuação da própria polícia, subvertendo a tradicional abordagem repressiva (Freire, 2009). Adotando os princípios da segurança cidadã, as medidas socioeducativas têm por objetivo atuar, tanto no controle, como na prevenção, para que novos atos infracionais não ocorram (Freire, 2009). É a partir desses princípios que pensamos e estruturamos os grupos operativos- reflexivos que traremos nesse relato.
Caminhos percorridos para formação do grupo
Aqui apresentaremos o relato de experiência de um grupo realizado com jovens em conflito com a lei no interior de uma delegacia de Santa Catarina no ano de 2019. Os jovens participantes em questão foram encaminhados compulsoriamente pelo Juizado da Infância e Juventude, apresentaram-se à unidade policial para a entrevista de “triagem”. Esse encontro tinha como objetivo explicar o funcionamento do grupo e conhecer as características dos adolescentes que ali estavam. Na maioria das vezes, essa entrevista também tratava-se da primeira experiência destes jovens com o setor de Psicologia, portanto, fez-se importante contextualizá-los do papel do psicólogo, principalmente no campo policial. O contato inicial foi realizado via telefone para agendamento do atendimento e as entrevistas de triagem tiveram duração de15 a 30 minutos. Já os encontros deveriam acontecer semanalmente com duração de uma 1 horas e 30 minutos. O grupo era de caráter aberto (presença facultativa), porém foi exigido pelo Tribunal de Justiça o comparecimento de cada adolescente em, no mínimo, dez encontros para considerar cumprida a medida de liberdade assistida. Quanto à modalidade, o grupo foi caracterizado como operativo-reflexivo (Zimerman, 2000), ou seja, a cada encontro, uma série de dinâmicas e/ou tarefas foram apresentadas como disparadores de discussão ou mesmo como facilitadores de formação de vínculo (Zimerman, 2000; Freire, 2013).
Para o primeiro grupo foram encaminhados/as pelo Juizado da Infância e Juventude, ao longo do semestre, um total de 16 adolescentes, sendo que 15 desses se identificavam como homens e 1 como mulher. Esta última não participou do grupo, apenas da entrevista de triagem, devido à necessidade de mudar-se de cidade. Os jovens, com idade entre 15 e 17 anos, eram todos moradores de periferias e apenas 11 participaram das entrevistas de triagem. Dos entrevistados, 8 adolescentes participaram de ao menos um encontro do grupo, e 4 deles concluíram os 10 encontros obrigatórios para o cumprimento da medida socioeducativa. As faltas eram repassadas aos operadores de direito, cabendo a eles a decisão sobre a responsabilização ou não do adolescente por descumprimento da medida socioeducativa. A propósito, esse foi o único dado sobre o processo grupal que foi divulgado ao Sistema de Justiça, o que foi assegurado aos adolescentes já na entrevista citada.
Os principais temas abordados, que foram levantados em conjunto com os participantes no primeiro encontro, foram: família, relacionamentos, drogas e violência. Esses temas norteadores demonstraram uma implicação dos participantes com as atividades.
Resultados e discussão
No primeiro encontro foi utilizado um Baralho das Emoções (Castro, 2019) (quando também se construiu os acordos do grupo e elencou as temáticas de maior interesse) e no encontro seguinte foi solicitado aos participantes que apresentassem músicas que para eles fossem representativas para que juntos elaborássemos um painel. Nesse mesmo encontro, houve a proposta para que os adolescentes inserissem perguntas numa caixa e, posteriormente, cada um deveria sortear uma delas para responder; nessa atividade percebemos que os meninos participaram mais ativamente e pareceram estabelecer uma espécie de vínculo, contando detalhes de sua vida, como lugares que mais frequentam, coisas que lhes deixavam com mais raiva, coisas que mudariam em si, etc. A propósito, após esse encontro, três adolescentes começaram a manter contato fora do grupo e formar uma rede de apoio.
É pertinente também relatar que no encontro em que foi usado um Baralho das Emoções (Castro, 2019), com perguntas sobre família como disparador, todos relataram um relacionamento melhor com a mãe. Inicialmente disseram que a mãe é ideal, mas posteriormente chegaram a afirmar que elas poderiam ser menos estressadas. Já quanto aos pais, falaram que o relacionamento é mais difícil e que eles são mais bravos. Sobre eles próprios, descreveram-se como não sendo filhos ideais e um deles chegou a relatar que isso se dá porque “incomoda demais”. Neste mesmo encontro, visando o fortalecimento do vínculo que havia se estabelecido, foi organizado um lanche coletivo, no qual cada um trouxe um alimento/bebida.
Em outro encontro, foi realizada uma dinâmica para tratar de temáticas de discriminação e preconceito. Na discussão, surgiu a ideia de que quem deve estar armado e “proteger” os demais são os homens, e que das mulheres espera-se o cuidado com as crianças e o preparo das comidas. Foi indagado se os homens não poderiam fazer tais tarefas também, mas a resposta foi de que é melhor as mulheres fazerem, pois são mais “pacientes e cuidadosas”.
Na mesma data, recorreu-se à linguagem cinematográfica para abordar a temática dos direitos por meio da exibição do vídeo “Direitos Humanos”. Todos afirmaram que desconheciam a Declaração dos Direitos Humanos e isso parece ter se revelado ao deixarem em branco a folha na qual foi solicitado que elencassem seus direitos. Entretanto, os participantes falaram que os seus direitos não são respeitados.
No encontro seguinte, igualmente, recorreu-se à linguagem cinematográfica, exibindo e discutindo alguns vídeos sobre violência. Abordou-se os tipos de violência, a hegemonia da noção de que violência é apenas física e os atravessamentos de gênero nas modalidades de violências. Também neste dia foi aplicada a dinâmica do extraterrestre, que partia da seguinte orientação: uma pessoa do grupo era escolhida pra ser o extraterrestre, e pedia para restante do grupo descrevia à pessoa que representava esta criatura que desconhecia nosso mundo o que é ser homem/mulher na terra. Basicamente, o grupo explicava ao extraterrestre porque uma mulher/homem deveria se comportar de um modo ou outro na nossa sociedade.
Em outro encontro, foi exibido e discutido o documentário “O silêncio dos homens”, mas os adolescentes se recusaram a conversar a respeito. Na semana seguinte, foram propostas duas dinâmicas: a primeira, com o propósito de autoconhecimento, pedimos que os adolescentes respondessem a perguntas que incluíam como eles se viam e como achavam que eram vistos; a segunda consistia em uma lista de diversas profissões para que eles marcassem as que interessavam ou não. Tal atividade tinha como objetivo propor novos horizontes de possibilidades para eles.
Em outra data, promoveu-se uma roda de conversa com um psicólogo que atua num Centro de Atenção Psicossocial, o qual explicou o funcionamento das drogas no organismo e seus diferentes efeitos nas pessoas e as disfunções sexuais que podem ser desencadeadas pelo uso constante, sendo que a esse respeito os adolescentes se interessaram significativamente, chegando a ilustrar as falas do profissional.
Foi neste momento que se legitimou a impressão de que as masculinidades são pontos difíceis e, ao mesmo tempo, necessários de serem por eles falados. Houve dois momentos, em encontros anteriores em que os adolescentes silenciaram frente as discussões de gênero. E, em outros, explicitaram uma concepção bastante hegemônica das funções masculina e feminina (ao falarem dos pais).
No último encontro, foi exibido um vídeo de um jornalista entrevistando um médico sobre o impacto da legalização das drogas, apontando aspectos favoráveis e contrários. Também foram mostradas algumas notícias sobre drogas/crimes na adolescência usadas como disparador. Os adolescentes falaram sobre o impacto da guerra às drogas no cotidiano deles e de como não são atendidos pelas políticas desta área. Uma das manchetes analisadas tratava de um pé de maconha plantado em uma câmara dos vereadores; outra, de uma notícia de um adolescente portando maconha. Em ambas, as respostas frente aos vídeos revelaram uma postura de reprovação ao uso de drogas, ao lado de uma reprovação também de sua repressão estatal.
Para além da possibilidade de análise específica de alguns dos dados acima descritos (gênero, criminalização do comércio de drogas, violência policial), essas categorias de análise podem ser integradas em certa medida na reflexão sobre a vulnerabilidade que recai sobre determinadas adolescências. Uma vulnerabilidade estrutural e especialmente na relação com o Estado.
Adolescência e vulnerabilidade
Como mencionado, no Brasil as populações mais afetadas pela violência e violações de direitos são aquelas expostas a condições de vida precárias, frequentemente moradores da periferia. Dentro desse cenário de exclusão social, os adolescentes ocupam um lugar de destaque. Devido à fragilidade dessa etapa do desenvolvimento, perpassada por transformações biopsicossociais, de crises e conflitos (Brasil, Almeida, Amparo & Pereira, 2015), bem como de necessidade de pertença grupal, esses adolescentes podem ser vulneráveis às promessas de vida luxuosa oferecidas pelo tráfico, buscando, assim, inclusão e lugar social ofertados pelo mundo do crime.
A exclusão social e falta de acesso aos direitos básicos foi evidenciada na fala de João1: “Os moradores da favela são apenas números e ninguém olha para isso...”. Para esses adolescentes, o início de uma vida em conflito com a lei se explica na violência social, observada na precarização das condições mínimas de desenvolvimento e sobrevivência. Em um dos encontros Pedro disse: “vi meu melhor amigo morrer com tiros na cara na minha frente por causa do tráfico… isso deixa o cara mal né… podia ter sido comigo (sic)”.
Nesse ponto, vemos se delinear a abjeção dos corpos. A marginalidade social e as intersecções que recaem sobre esses sujeitos fazem com que suas vidas não sejam consideradas vidas (Butler, 2015). A medida em que são entendidos como ameaças aos sujeitos “de bem”, eles se tornam invisíveis, e, como menciona João, passam a ser apenas números. A abjeção dos corpos funciona ainda como estratégia biopolítica (Foucault, 2018) de controle por parte do Estado. A ausência de políticas públicas efetivas nesses espaços de conflito, favorece as mortes oriundas do tráfico de drogas, ou seja, deixa esses sujeitos à mercê de sua própria sorte, o que, por vezes, significa facilitar a sua morte.
Os adolescentes também mencionam que sofrem rotulações constantes por morarem em determinado local e que são, continuamente, resumidos ao ato infracional. “Os professores me viam como maluco…”, ou ainda, “... eles achavam que eu não ia ser ninguém na vida (sic).” É muito difícil reconhecer o sujeito existente por trás do autor de ato infracional. O ato é visto isoladamente como definidor, um rótulo, sobre o qual todas as demais características são invisibilizadas. Ele descarta a história e as circunstâncias de vida do adolescente e o emoldura em enquadramentos abjetos. Passam a ser vidas desimportantes, excluídas e periféricas (Butler, 2015).
A violência policial também é retratada. Sobre isso, Júlio afirmou: “Às vezes o cara tá com os amigos num role na rua conversando e chega a polícia atirando com bala de borracha na gente, ou então, o cara tá andando na rua e vem a polícia e enquadra a gente, começa a bater na gente sem a gente ter feito nada… isso dá muita raiva (sic)”. Falas como essa também se fizeram presentes no estudo de Nobrega, Siqueira, Turra, Beiras & Gomes (2018), no qual os jovens manifestaram seu desprezo a abordagens policiais que julgavam sem justificativa.
A exclusão social dos/as jovens periféricos/as também se dá pela expulsão, como chamou Freire (2013) em uma crítica ao termo evasão, das instituições formais de educação, em especial as escolas. A maioria dos adolescentes membros do grupo estavam fora da escola no momento, mas manifestaram desejo de retornar. Quanto a isso, os participantes afirmaram que a relação com professores e diretores era conflituosa, pois não realizavam as tarefas, atrapalhavam a aula e tiravam notas baixas.
A UNICEF alerta que 3,5 milhões de estudantes brasileiros foram reprovados ou abandonaram a escola no ano de 2018 (Fundo das Nações Unidas para a infância, 2018b). Um ponto que merece destaque é que grande parte das vítimas de homicídio são crianças e adolescentes que deixaram a escola, ou estão no caminho de deixá-la.
Nesse sentido, torna-se inevitável o questionamento do modelo de educação oferecido pelas escolas. Paulo Freire (2013), ao problematizar a diferença entre estender conhecimento e produzir conhecimento na dialogicidade, afirma que qualquer conhecimento que não seja pautado na transformação da realidade, na criação e reinvenção de modelos metodológicos, não passa de um instrumento de domesticação dos corpos.
Ademais, o preconceito e a indisposição social podem impulsionar à reincidência criminal. Uma postura social integradora e não punitiva pode ser fundamental para nos aproximar de uma construção sociocultural que resgate os adolescentes em situação de risco. Em um dos encontros do grupo realizaram-se problematizações sobre o clamor social pela punição. Júlio afirmou que é a favor da pena de morte para adultos e adolescentes. “Dependendo do crime eu acho certo...”. De maneira relacionada, quando foi conversado sobre as fases de desenvolvimento e sobre o ECA (1990), que afirma que o adolescente deve cumprir medidas socioeducativas e não ser preso, Jorge disse que “o adolescente sabe mais que uma criança né (sic), mas ainda não é adulto...”. Ou seja, há aqui uma divergência de pensamentos entre os jovens.
O apelo social à repressão através da pena de morte se faz inteligível também entre os jovens em conflito com a Lei, afinal, os conflitos entre facções também operam a partir desse sistema punitivista (ou seriam ambos sistemas de vingança?). O sujeito “criminoso” é designado como inimigo de todos e por isso merece a morte (Foucault, 2018). Mas quais paradigmas definem o que é um crime? Parafraseando Judith Butler (2015), quem decide e assegura os direitos de proteção o faz a partir do contexto social que enquadra a tomada de decisão, logo, decidir sobre quais sujeitos devem morrer está profundamente atrelado a nossa capacidade de reconhecer esses corpos como vidas dignas de serem vividas.
Apesar de a medida socioeducativa almejar, através do processo educativo que o adolescente alcance uma “vida restaurada”, face ao que lhe foi negado ou mesmo violado, boa parte desses adolescentes já passaram por um “processo de esgarçamento do laço social, comunitário, institucional e familiar” (Guerra, 2017, p. 261). Ou seja, sofreram algum tipo de violação ou negação de direitos em pelo menos um desses âmbitos supracitados, principalmente se comparado a adolescentes de mesma idade inseridos em contextos socioeconômicos mais favorecidos.
Apesar da ênfase nos relatos de violências social e institucional, também se encontram menções à violência familiar, conforme ilustrado na fala de João: “Comecei a pensar no meu futuro quando percebi que minha família me desprezava… (sic)”. O conflito familiar também foi mostrado na fala de João em outro momento quando afirma: “Meu pai e minha mãe me veem… eles me veem como um drogado… a gente briga muito (sic)”. A fala do participante demonstra a ausência de direitos, que supostamente são garantidos pelo ECA, na vida desses sujeitos. Além da morte iminente pelo tráfico, da violência policial e da expulsão escolar, esses jovens têm seus vínculos familiares rompidos, e com isso ainda menos possibilidade de não reincidir na criminalidade.
As garantias de dignidade são compreendidas pelos participantes como possibilidades de ascensão financeira. Em um dos encontros, Luiz afirmou: “Meu sonho era ser jogador de futebol, só que mais pelo dinheiro... não gosto tanto do esporte (sic)”. E outro adolescente: “O cara ganha muito dinheiro com os corre né… tinha uma época que o cara conseguia comprar um celular novo, uma TV nova… o cara até ajudava a mãe (sic)”. Guerra, Cunha, Costa e Silva (2014) mencionam que esses sujeitos, ao saírem da fase infantil, são levados precocemente à inscrição ao mundo do crime, que é baseado em um ideal de ostentação e luxo, e que se apresenta como uma via alternativa de solução e preenchimento de faltas materiais e afetivas.
Considera-se aqui, que para muitos destes, essa falta é dada como estrutural, ou seja, gerada a partir de uma legitimidade estatal que os mantém em condição de vulnerabilidade. Além disso, mostram-se carentes de figuras de referência fora do mundo do crime. Assim, esses sujeitos fantasiam que estas figuras poderiam estar encarnadas nos chefes do tráfico e suas promessas. Além disso, as falas do adolescente deixam transparecer que o acesso ao tráfico de drogas tem a função de pertencimento social o que pode ser observado na fala de Pedro: “todos os amigos do cara fazem corre também né… (sic)”. A identidade social é peça chave nessa socialização, pois possibilita determinar pontos de identificação e pertencimento aos membros do grupo, como também diferenças entre si e dos sujeitos de outros grupos (Risk & Romanelli, 2008).
Nesse sentido, observa-se que um dos requisitos identitários importantes e em comum desses grupos de jovens, que é colocado em questão rotineiramente, é a masculinidade e a afirmação da violência, vista através de condutas que desafiam não só a própria vida como também a vida de outros, a fim de afirmarem-se enquanto "homens" e "viris" (Risk & Romanelli, 2008). Sendo assim, entender-se como homem neste contexto pode estar atrelado ao poder, social e financeiro, que o tráfico de drogas representa para esses jovens.
Impasses do grupo de adolescentes em conflito com a lei
As delegacias não são, historicamente, instituições responsáveis pelo cumprimento de medida socioeducativas. Segundo o relatório da Pesquisa Nacional das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, 2018), as medidas socioeducativas são realizadas pela rede de assistência social no caso das medidas em meio aberto (em especial o CREAS - Centro de Referência Especializado em Assistência Social), por organizações de Terceiro Setor em relação à semiliberdade e internamento provisório e por unidades do estado quando da medida de internamento2.
O ambiente foi considerado pelas facilitadoras um dificultador da vinculação ao grupo e, talvez, motivador do alto número de desistências. Uma delegacia de polícia é, muitas vezes, a representação social da violência institucional e violação de Direitos (Nobrega et al., 2018). Alguns dos participantes do grupo relataram já terem passado algumas horas detidos na cela desta instituição, quando cometeram os atos infracionais, como afirmou Luiz: “É, eu já vim aqui na delegacia várias vezes, já fiquei algemado mó tempão... Os bicho nem dão água pro cara (sic.)”. Uma hipótese este desconforto é de que, além das representações que possuíam sobre a polícia, o fato de estavam no grupo de maneira compulsória pode ter gerado desmotivação. Quanto a isso, Jorge afirmou ser “uma palhaçada” a obrigatoriedade de participação. Já João disse “É um saco… Não o grupo, nem vocês, mas ter que vir aqui toda a semana obrigado… (sic)”.
Apesar de o grupo compulsório poder ser benéfico ao proporcionar um espaço para se olhar para as demandas psíquicas, que não seria procurado de forma voluntária em determinadas situações e por determinados sujeitos (Gomes, Guimarães & Bento, 2007), a obrigatoriedade pode também atuar como fator negativo. Segundo Nobrega et al. (2018), a participação forçada, involuntária, aumenta a resistência dos membros ao processo grupal, sendo um dificultador para a vinculação e, consequentemente, para as reflexões acerca dos temas propostos.
O caráter aberto do grupo também pode ter sido um desafio a formação de vínculos. A inserção constante de novos membros ao grupo e a rotatividade das participações provocavam desconfortos nos integrantes. Segundo Beiras e Bronz. (2016), o grupo fechado proporciona que todos os membros participem igualmente de todos às etapas do grupo. Já o grupo aberto, por possibilitar a entrada tardia de novos membros, pode dificultar a identificação com o processo e com o grupo. Além disso, os retardatários perdem momentos de discussão importantes” (Casas, 2005).
Havia ainda implícito o fator de aprendizado “passivo” instituído naquele espaço. Os adolescentes esperavam do grupo um modelo pedagógico/educativo semelhante ao que conheceram na escola. Em alguns momentos os adolescentes se referiam aos encontros do grupo como “aulas”, e nos chamavam de “professoras”. Entende-se que o processo de desconstrução destas ideias é obtido através do desenvolvimento em conjunto dos adolescentes e da mediação do grupo. Por isso a importância de um olhar atento, inventivo e qualificado do psicólogo elaborando junto aos usuários condições para fazer emergir novos sentidos e significados na busca de um resgate ao laço social (Souza & Moreira, 2017).
Outro desafio observado foi em relação aos recortes sociais, étnicos e de gênero quando em comparação as mediadoras do grupo e aos adolescentes. O fato dessas serem mulheres, brancas e de classe média pareceu dificultar a formação de vínculo e principalmente, a identificação com os adolescentes que eram todos do sexo masculino. Em alguns momentos eles demonstraram receio de falar o que pensavam, sintetizando as respostas em “sei lá” ou “não sei”. Além disso, faziam o uso de algumas gírias pouco habituais para as mediadoras, o que por vezes dificultava o entendimento e o fluxo das dinâmicas.
Esses desafios que atravessam questões de identificação com as mediadoras do grupo, da instituição da delegacia e da dificuldade de se expor com um grupo de desconhecidos, apresentaram- se como os principais impasses para um funcionamento mais efetivo do propósito do grupo.
Considerações Finais
Pensar a criminalidade na juventude nos obriga a pensar também a heterogeneidade das manifestações violentas. Os adolescentes participantes desse grupo nos mostraram, assim como os dados teóricos que a criminalização tem cor e classe social, para além da singularidade de cada sujeito. A discussão dos resultados mostrou que seus corpos são invisibilizados por uma violência normativa que deixa de os considerar como sujeitos dignos de vida. Os grupos operativos-reflexivos, portanto, tem o potencial de desnaturalizar verdades que permeiam suas experiências e os levam ao mundo do crime.
A elaboração e facilitação do grupo de adolescentes com prática infracional proporcionou um entendimento sobre possibilidade de trabalho do psicólogo no ambiente da delegacia. Apontamos, no entanto, que as potencialidades podem ser ampliadas caso o trabalho seja desenvolvido em parceria entre a instituição Policial e os Centros de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS). Este último funciona no sentido de resgate de vínculos e possui uma relação privilegiada com a comunidade, diferente da estabelecida com as delegacias; logo, pode servir como importante espaço de instrumentalização para os grupos socioeducativos. Desse modo, os CREAS poderiam, por exemplo, fazer interlocução com a Polícia oferecendo espaço físico e acolhimento, enquanto a Polícia disponibilizaria profissionais da psicologia para a facilitação dos grupos.
Ao voltar o olhar e a escuta para crianças e adolescentes, cabe ao psicólogo uma atuação crítica e ética frente à realidade social, pois sua ação deve contribuir para o enfrentamento da desigualdade social, tanto nas temáticas que envolvam a violação dos direitos, quanto em contextos de violência - situações de rua, família e escola. Ressalta-se a importância da postura do profissional psicólogo, enquanto escuta qualificada, conduta ética e empática e reconhecimento de vulnerabilidades estruturais.
Através da dialética obtida pelas áreas da Psicologia Social Comunitária e da Psicologia Social Jurídica, observa-se que o trabalho do psicólogo em contextos de assistência à violência deve ser realizado junto aos sujeitos e às suas relações, de modo a estimular as diferentes subjetividades e modos particulares de funcionamento do ser. Também deve viabilizar maneiras de ressignificar as vivências violentas. O compromisso social e ético deve perceber as opressões e exclusões sociais que se constituem e assimilar formas de superação. Infere-se, portanto, que, o psicólogo deve ser um facilitador de mudanças, intervindo frente às desigualdades e violências, promovendo e contribuindo para o desenvolvimento e a autonomia dos sujeitos. Ele também busca agir e transformar a realidade da população infanto-juvenil, direcionando seu trabalho para a consolidação dos direitos humanos tanto na efetivação quanto no resgate da cidadania de adolescentes