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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.13 no.1 Porto Alegre  2023  Epub 04-Nov-2024

https://doi.org/10.22456/2238-152x.111288 

Artigo

Indicadores qualitativos de processo e resultado no Acompanhamento Terapêutico

Qualitative indicators of process and outcome in Terapeutic Accompaniment

Indicadores cualitativos de procesos y resultados del Acompañamiento Terapéutico

Ana Carolina Brondani1  , Conceitualização, Redação do manuscrito, Análise dos dados, Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-1865-9367

Bruno Graebin de Farias1  , Conceitualização, Redação do manuscrito, Análise dos dados, Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-7323-8621

Analice de Lima Palombini1  , Conceitualização, Redação do manuscrito, Análise dos dados, Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-8332-8292

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil


Resumo

Este estudo é voltado à construção de indicadores qualitativos de processo e resultado para a prática do Acompanhamento Terapêutico (AT). O artigo inicia apresentando a conceitualização e os fundamentos da prática do Acompanhamento Terapêutico e seu papel na clínica e nas políticas públicas em saúde mental. Revisa a literatura acerca dos métodos de avaliação de processo e resultado de psicoterapias e das metodologias de construção de indicadores qualitativos em saúde. Por fim, discute a possibilidade de formular indicadores qualitativos para a avaliação da prática do Acompanhamento Terapêutico com base no estado da arte do conhecimento sobre este dispositivo e propõe alguns indicadores clinicamente e teoricamente relevantes.

Palavras-chave Acompanhamento Terapêutico; Indicadores de Qualidade; Avaliação em Saúde; Reabilitação Psicossocial; Pesquisa Qualitativa

Abstract

This study is aimed at the construction of qualitative indicators of process and outcome for the practice of Therapeutic Accompaniment (TA). The article begins by presenting the conceptualization and the foundations of the practice of Therapeutic Accompaniment and its role in the clinic and public policies in mental health. It reviews the literature about the methods of evaluating the process and results of psychotherapies and the methodologies for building qualitative health indicators. Finally, it discusses the possibility of formulating qualitative indicators for evaluating the practice of Therapeutic Accompaniment based on the state of the art of knowledge about this device and proposes some clinically and theoretically relevant indicators.

Keywords Therapeutic Accompaniment; Quality Indicators; Health Assessment; Psychosocial Rehabilitation; Qualitative Research

Resumen

Este estudio tiene como objetivo la construcción de indicadores cualitativos de procesos y resultados para la práctica del Acompañamiento Terapéutico (AT). El artículo comienza presentando la conceptualización y los fundamentos de la práctica del Acompañamiento Terapéutico y su rol en la clínica y las políticas públicas en salud mental. Revisa la literatura sobre los métodos de evaluación del proceso y los resultados de las psicoterapias y las metodologías para la construcción de indicadores cualitativos de salud. Finalmente, se discute la posibilidad de formular indicadores cualitativos para evaluar la práctica del Acompañamiento Terapéutico a partir del estado del conocimiento sobre este dispositivo y propone algunos indicadores clínica y teóricamente relevantes.

Palabras clave Acompañamiento Terapéutico; Indicadores de Calidad; Evaluación en Salud; Rehabilitación Psicosocial; Pesquisa Cualitativa

Introdução

O objetivo do presente ensaio é apresentar uma reflexão teórico-metodológica para a construção de indicadores de processo e resultado da prática do Acompanhamento Terapêutico (AT). O estudo aborda a história e aspectos conceituais e técnicos do dispositivo do AT, seus efeitos previstos e documentados e possibilidades de avaliação de processo e resultado a partir da literatura em pesquisa avaliativa em saúde e exemplos de indicadores quantitativos e qualitativos em saúde mental.

Propomos avaliar as possibilidades de construção de indicadores de processo e resultado para a prática do AT que se dá e está vinculada à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), ao Sistema Único de Saúde (SUS) e ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), entendendo que o AT no Brasil se consolida com a criação da rede de serviços substitutivos ao manicômio. Assim, parte importante dos referenciais teóricos do AT são as produções e diretrizes que embasam o trabalho de atenção psicossocial no SUS.

Acompanhamento Terapêutico

O AT tem seu início no Brasil a partir de três iniciativas: o Instituto A Casa em São Paulo, a Clínica Pinel em Porto Alegre (Simões & Kirschbaum, 2005) e a clínica Vila Pinheiros no Rio de Janeiro (Reis Neto, Teixeira Pinto & Oliveira, 2011), durante as décadas de 70 e 80. Destes, cabe destacar a experiência do Instituto A Casa, que deu origem à primeira produção teórica e conceitual sobre a prática do AT, o livro “ A rua como espaço clínico”, trazendo a psicanálise como base teórica para o AT. O surgimento do AT no país é, portanto, anterior à criação do SUS e à implementação da RAPS. Porém, já trazia em sua prática influências da antipsiquiatria e da psiquiatria democrática que vão marcar a reforma psiquiátrica brasileira transformando o seu modelo de atenção hospitalocêntrico e medicocentrado em cuidado territorializado e em liberdade (Gonçalves & Barros, 2013).

Em revisão sistemática das publicações nacionais de pós-graduação sobre AT entre 2000 e 2011 (Santos et al, 2015) foi identificado que a maioria das publicações analisadas estão dentro da área de conhecimento da psicologia (67,5%) e quase metade (48,8%) têm a psicanálise como embasamento teórico. Com efeito, a psicanálise é a principal base teórica para a primeira publicação brasileira sobre AT (Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-dia A Casa , 1991) e segue sendo importante referência e embasamento teórico para a clínica do AT. Para discorrer sobre a prática do AT, trabalhos como os de Barreto (2005) e Mendonça (2017) utilizam-se das conceptualizações de Winnicott; Hermann (2008) vale-se da teorização lacanianas; já Araújo (2007) recorre à esquizoanálise de Deleuze e Guattari. Palombini (2006) aponta Lacan, Winnicott e Deleuze e Guattari como autores que constroem as bases teóricas para a clínica do AT no Brasil. Porém, é preciso considerar que, junto à tradição consolidada com bases na psicanálise, outras vertentes teóricas são utilizadas para orientar a prática do AT, como a análise do comportamento (Zamignani, Kovac & Vermes, 2007) e a teoria reichiana (Pitiá, 2002).

Além das bases teóricas clínicas, a prática do AT junto à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) se fundamenta na Saúde Coletiva e na construção teórica e política que resultou na implementação do SUS e da RAPS no cenário nacional. Nesse contexto, o AT mostrou-se um dispositivo importante da passagem do modelo asilar para o modelo de atenção psicossocial pautado pelo cuidado territorializado e em liberdade (Pitiá & Furegato, 2009). Porém, a mudança do modelo de atenção à saúde mental é um processo gradual e complexo que não se refere apenas a mudanças em leis, diretrizes, modelos de serviços, mas também na capacidade dos profissionais de desconstruir posturas manicomiais. Ainda, há o risco de serviços substitutivos ao manicômio, como os Centros de Atenção Psicossocial, operarem lógicas e éticas manicomiais (Alverga & Dimenstein, 2006), reproduzindo “manicômios mentais” (Pelbart, 1991). O AT, como um dispositivo da RAPS, também não escapa do risco de reproduzir práticas manicomiais e segregadoras, demandando trabalho de avaliação e análise de suas práticas e do que elas produzem na vida das pessoas acompanhadas por um acompanhante terapêutico (at). Nesse sentido, a prática do AT requer também uma avaliação de sua dimensão ética e institucional, como parte importante do processo avaliativo.

Segundo Palombini (2006), para que o AT opere um cuidado alinhado com os preceitos da reforma psiquiátrica, deve seguir alguns passos: 1) o contexto legal, jurídico e a gestão do serviço devem estar afinados aos princípios da reforma psiquiátrica, 2) é preciso garantir espaço de supervisão da clínica do AT, que dê contorno à experiência e possibilite uma relação não subordinada ao serviço ao qual o acompanhante terapêutico (at) é vinculado, 3) a teoria que orienta o trabalho precisa abster-se da ambição de se constituir como a verdade sobre o sujeito, assumindo uma concepção de subjetividade que se constrói em relações de alteridade, não sendo transparente a si mesma e resistindo à apreensão integral por qualquer saber, e for fim, 4) acompanhante e acompanhado precisam estar dispostos ao encontro. Palombini (2006) sinaliza, assim, a consideração à dimensão contextual do trabalho, à disposição das pessoas implicadas no AT, aos conhecimentos que orientam a práxis e aos espaços de acolhimento e formação do acompanhante.

Pitiá e Furegato (2009) consideram que, ao exercer a prática de AT, “os profissionais das diversas categorias devem ser levados a refletirem e agirem, na prática, em consonância com os princípios transformadores da forma clássica dos atendimentos psiquiátricos” (p. 74). Para Pitiá e Furegato (2009), a maneira de cuidado exercida pelos profissionais da Estratégia de Saúde da Família (ESF) em visitas e em atendimento a crises, ao adotar posturas centradas na escuta e ao acompanhar o sujeito em seu cotidiano (fora dos ambientes dos serviços), é compatível com a prática clínica do AT. Quando essa prática ocorre, e a atenção básica (ESF) se responsabiliza pelo cuidado em saúde mental e compõe com os demais serviços da RAPS, pode-se observar resultados positivos: 1) diminuição do número de reinternações psiquiátricas 2) promoção da saúde mental 3) reintegração de pacientes psicóticos. Nesse mesmo caminho, Palombini (2006) e Cabral (2006) propõem pensar o AT como um dispositivo clínico-político de implementação da reforma psiquiátrica.

Acioli Neto e Amarante (2013) fazem o diagnóstico de que o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), principal equipamento da RAPS, tem dificuldades de ofertar o cuidado proposto pela atenção psicossocial e indicam a necessidade de uso de outros dispositivos, como o AT, para possibilitar um cuidado singularizado, que vise a integralidade do sujeito e promova cidadania. Palombini et al (2004) consideram que o AT é capaz de alcançar usuários que dificilmente se vinculam aos dispositivos oferecidos nos CAPS e outros serviços de saúde mental, proporcionando ampliação do acesso, do acolhimento e do cuidado.

Mendonça (2017) propõe pensar o trabalho do AT como um manejo clínico-assistencial, no qual os dois pólos — o clínico e o assistencial — sempre estão presentes no trabalho, mas em gradações diferentes, podendo estar mais próximo de um ou de outro. O polo clínico seria relacionado ao manejo da transferência na relação (a partir das formulações de Winnicott) e o pólo assistencial se refere aos cuidados cotidianos que englobam as tarefas domésticas, cuidados com a medicação, moradia, alimentação, etc.

Indicadores em saúde

Nas últimas décadas tem crescido a demanda pela organização e gestão dos sistemas de saúde, informadas por processos avaliativos sobre as necessidades em saúde da população e a qualidade da assistência à saúde. Os avanços na pesquisa avaliativa em saúde produziram diversas estratégias avaliativas, bem como reflexões conceituais sobre modelos teóricos de pesquisa avaliativa em saúde e uma discussão crítica sobre a própria proposta de avaliação em saúde. A pesquisa avaliativa se organiza a partir de indicadores, que são atributos mensuráveis escolhidos por apresentar elementos que possibilitam a avaliação da qualidade da assistência em saúde - qualidade definida como o grau em que os cuidados em saúde aumentam resultados desejados e reduzem resultados indesejados, de modo coerente com o conhecimento científico disponível (Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organization, 1989).

Cabe destacar que as práticas avaliativas são práticas sociais e políticas, nas quais todo o processo decisório é atravessado por relações de poder, sendo necessário ao sujeito avaliador considerar as questões que o atravessam nestas relações e se posicionar de forma crítica, rejeitando a cumplicidade com pressões de ordem administrativa ou tecnocrática (Furtado, 2001). A definição de indicadores é resultado de escolhas teóricas, valores e interesses dos atores sociais implicados na construção ou seleção desses indicadores e reflete suas posições sociais e trajetórias no campo (Silva, 2005). Além disso, requer articulação à revisão de evidências disponíveis na literatura com a produção de consenso em painéis de experts que reúnem diferentes atores sociais (pesquisadores, profissionais, gestores, e usuários). Para Mainz (2003), um bom indicador deve ser (1) baseado em definições consensuais e descrito de forma detalhada e operacional (exclusivo); (2) altamente sensível (incorre em poucos falsos positivos e falsos negativos); (3) válido e confiável; (4) discriminativo; (5) facilmente identificável e com relevância clínica; (6) capaz de possibilitar comparações úteis; e (7) baseado em evidências.

Os indicadores devem ser descritos de forma objetiva e não ambígua, assegurando a consistência de sua aplicação. A descrição do tipo e do método de coleta/observação e registro do indicador deve possibilitar com que diferentes atores sigam os mesmos passos e verifiquem os mesmos aspectos (Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organization, 1989; Tronchin, Melleiro, Kurcgant,Garcia, & Garzin, 2009). Ainda, deve ser explicitada a lógica do indicador construído de modo a possibilitar a compreensão de sua razão e utilidade, bem como a avaliação crítica de seu mérito (Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organization, 1989; Tronchin et al, 2009).

De modo geral, a avaliação da qualidade dos sistemas e intervenções em saúde é analisada a partir de três tipos de indicadores: desfecho, processo e estrutura (Donabedian, 2005). Os indicadores de desfecho mensuram o estado clínico de indivíduos e populações, em especial sobre morbidade e mortalidade. Os indicadores de processo mensuram a adesão e a aplicação de protocolos e diretrizes clínicas reconhecidas como boas práticas. Os indicadores de estrutura mensuram os materiais, logística e infraestrutura fornecidos pelo sistema de saúde (número de leitos, tempo de espera, disponibilidade de insumos e equipamentos).

Quando nos voltamos para as intervenções de ordem psicológica ou psicossocial, estas apresentam maior escassez de indicadores, se comparadas a intervenções em saúde de ordem biológica e aspectos administrativos e econômicos da gestão em saúde. Mesmo em contextos organizacionais nos quais os processos de trabalho contam com maior monitoramento, como Psicologia Hospitalar, é evidente a dificuldade de construção de indicadores qualitativos da assistência, limitando-se a indicadores produtivistas de frequência e duração de atendimentos (Ferrari, Benute, Santos & Lucia, 2013).

Entretanto, indicadores de processo e estrutura também apresentam relevância clínica, a exemplo de uma pesquisa de construção de indicadores para avaliação de CAPS por meio de uma metodologia participativa com trabalhadores e gestores dos serviços (Onocko-Campos, Furtado, Trapé, Emerich & Surjus, 2017) que identificou oito indicadores quantitativos do desempenho dos CAPS III1: atenção à situação de crise; qualificação dos atendimentos grupais; trabalho em rede; gestão dos CAPS; educação permanente; singularização da atenção; atenção às pessoas com deficiência intelectual; e medicação. Indicadores relacionados ao desempenho de serviços de saúde mental a partir de critérios relacionados a princípios e diretrizes do SUS e da Reforma Psiquiátrica contribuem para informar práticas de assistência e gestão de modo coerente em termos éticos e teóricos, para além de indicadores produtivistas ou centrados na patologia.

Outras intervenções em saúde de ordem psicológica, como as psicoterapias, levantam indicadores qualitativos e quantitativos que são relevantes para as práticas, mas de demorada verificação e difícil registro. A avaliação de processo e resultado em psicoterapias aborda indicadores relativos à qualidade do vínculo e da aliança terapêutica, ao processo de mudança e à evolução na intensidade dos sintomas, a partir de técnicas observacionais, instrumentos psicométricos e autorrelato do paciente (Peuker, Habigzang, Koller, & Araújo, 2009). Os instrumentos psicométricos possibilitam o acesso a medidas objetivas de intensidade e frequência de sintomas e outros construtos psicológicos mensuráveis, mas dependem de instrumentos complexos que demandam tempo e de aplicação individual. A avaliação de processo e resultado em psicoterapia também conta com procedimentos de triangulação de fontes, integrando medidas fornecidas pelo paciente (grau de intensidade dos sintomas, processo de mudança autopercebido, satisfação com o atendimento e adequação das práticas do terapeuta), pelo terapeuta e por juízes independentes (Yoshida, 1998). Por conta desse cenário, indicadores de processo e resultado sobre intervenções de ordem psicológica ou psicossocial têm maior aplicabilidade como indicadores locais e contextualizados em vez de globais e padronizados.

Indicadores qualitativos

Os indicadores de processo e resultado são predominantemente de natureza quantitativa – entretanto, há iniciativas de construção de indicadores qualitativos, fundamentados na análise hermenêutica (Minayo, 2009). Diferentemente das escalas de mensuração, os indicadores qualitativos não podem ser generalizados e replicados, pois são contexto-dependentes e precisam ser construídos com os próprios participantes da pesquisa avaliativa (Minayo, 2009). Os métodos mais utilizados para a construção de indicadores qualitativos são: 1) Grupo Focal; 2) Técnica Delphi; e 3) Grupo Nominal (Minayo, 2009). O grupo focal é uma técnica de entrevista grupal no qual os participantes compartilham suas concepções sobre um determinado tema, mediado pelo pesquisador. A Técnica Delphi consiste na análise coletiva de um determinado material por um grupo de especialistas que devem compartilhar críticas, reflexões, correções e propostas. O Grupo Nominal consiste na designação de tarefas individualizadas a cada participante do grupo, que deve trabalhar sobre o tema designado e posteriormente compartilhar suas produções e reflexões com o coletivo, possibilitando a sistematização e o aprofundamento dos conteúdos compartilhados.

A participação dos usuários do sistema de saúde é essencial no processo de construção de indicadores qualitativos, possibilitando uma compreensão mais aprofundada dos processos em questão. Em especial, a construção participativa de indicadores qualitativos se configura como um mecanismo de participação política e afirmação de cidadania que possibilita a expressão da criatividade e da autodeterminação dos sujeitos (Demo, 2002). Já a participação dos profissionais e gestores de serviços de saúde contribui para a implementação e uso de indicadores no cotidiano dos serviços (Onocko-Campos et al, 2017). A participação destes agentes também permite que os indicadores estejam mais próximos da realidade dos serviços e suas mudanças, o que não seria possível sem a participação destes trabalhadores (Onocko-Campos et al, 2017). Nesse sentido, a construção conjunta de indicadores qualitativos em saúde se beneficia da aplicação de metodologias participativas, promovendo a criação de espaços coletivos para a construção do conhecimento, em um processo dialético que possibilita a coparticipação nos processos de gestão e validação das categorias, a exemplo do Método de Roda (Furlan & Campos, 2014).

Os dados qualitativos situam-se no campo da intersubjetividade e da reflexividade e sua validação envolve representantes dos diversos segmentos de atores sociais interessados – pesquisadores, profissionais, gestores, usuários, familiares (Minayo, 2009). Um dado ou indicador qualitativo é considerado válido quando tem seus significados compartilhados e sua veracidade reconhecida entre os atores sociais interessados.

Quanto à tarefa de construção de indicadores em saúde mental, esta tem desafios específicos, sendo os principais: 1) menor tradição de indicadores quando comparada a áreas como a atenção básica e a atenção hospitalar; 2) dificuldade de produção de consenso devido a perspectivas políticas distintas e da forte dimensão ética e política da reforma psiquiátrica na orientação à atenção à saúde mental; 3) complexidade do objeto de estudo, cujas dimensões subjetivas tornam difícil estabelecer critérios objetivos e sistematizações numéricas para indicadores quantitativos (Onocko-Campos et al, 2017). Além destes desafios, há entraves no processo de construção de indicadores pela falta de parâmetros e referências conceituais comuns quanto ao que se tratava de avaliar, por exemplo, o que define “crise” (Onocko-Campos et al, 2017).

Ainda, Onocko-Campos et al (2017) apontam que a dificuldade de construir indicadores de avaliação em saúde mental não se deve necessariamente ao uso de metodologias qualitativas e participativas, pois estudos da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial de Saúde (Opas/OMS) que desenvolveram pesquisas e instrumentos com metodologias diversas - ou seja, não qualitativas ou participativas - tampouco obtiveram sucesso em implementar o uso dos indicadores propostos em suas pesquisas. Ainda, dentro da gestão do SUS no Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde (IDSUS), não existem indicadores sobre saúde mental e, no Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção – Atenção Básica (PMAQ-AB), há somente quatro indicadores, voltados ao uso de substâncias psicoativas (Onocko-Campos et al, 2017).

Método

A construção de indicadores de processo e resultado no AT aqui apresentada envolveu a conversa entre a literatura clínica do AT com seus indicativos de resultado e os achados empíricos de uma pesquisa da avaliação conduzida sobre um programa de AT. A pesquisa utilizou metodologia participativa para avaliar o dispositivo do AT junto a pessoas que o acessavam a partir de um projeto de extensão de Universidade Pública. Participaram da pesquisa cinco pessoas que estavam com acompanhamento ativo no projeto e uma que havia encerrado seu acompanhamento antes do início da pesquisa. Os critérios de inclusão foram: 1) ter feito AT entre 2012 e 2018 e encerrado o acompanhamento ou estar em acompanhamento ativo no projeto no ano de 2019 e 2) ter termo de ciência da sua vinculação a um projeto de extensão e ter autorizado o uso de dados para pesquisa.

Nessa pesquisa, os usuários foram convidados a relatar seu processo de acompanhamento e tecer uma avaliação a partir da sua experiência. Foram utilizadas entrevistas e rodas de conversa para promoção dessa avaliação, as quais foram audiogravadas, sendo o material transcrito e transformado em narrativas, em adaptação ao proposto por Furtado e Campos (2008), e reapresentado aos participantes para validação e aprofundamento da reflexão. Os indicadores aqui propostos partem dos dados encontrados nessa pesquisa de avaliação do atendimento ofertado por um projeto de AT junto a seus usuários e complementados por meio de um apanhado da literatura científica sobre o dispositivo do AT. Nosso objetivo foi elencar indicadores que auxiliem no percurso do AT, focados no processo terapêutico da pessoa acompanhada.

Discussão

Pensar indicadores para o AT exige localizar esse dispositivo dentro dos seus objetivos, ética e contexto. Como apontado anteriormente, o AT é um dispositivo versátil e vem sendo utilizado em diversos contextos com seus objetivos específicos. Dessa forma, deve-se considerar que os indicadores (principalmente de resultados) mudem conforme o contexto imponha objetivos específicos diversos. Um AT com pessoas que viveram asiladas em hospitais psiquiátricos com longos períodos de institucionalização tem objetivos comumente ligados a questões de vinculação comunitária, moradia, autonomia do cotidiano e processo de desinstitucionalização. Por outro lado, um AT escolar visa auxiliar os processos de aprendizagem, vinculação com a comunidade escolar e questões de desenvolvimento. Entendemos que, mesmo em diferentes contextos, a prática do AT alinhada com os princípios da reforma psiquiátrica guarda questões comuns no andamento do trabalho, sobre as quais propusemos a construção de indicadores, relacionados à qualidade do processo e do resultado do AT como dispositivo no contexto de atenção psicossocial.

Os indicadores que propomos, levantados a partir dos achados da presente pesquisa em diálogo com a literatura, foram: 1) vínculo; 2) acesso a direitos; 3) autonomia; 4) rede afetiva; e 5) bem-estar.

Vínculo

O primeiro indicador que queremos propor é sumariamente um indicador de processo e já vem sendo bastante indicado na bibliografia: diz da qualidade do vínculo entre acompanhante e acompanhado. Vínculo é um conceito que aparece em várias normativas de Saúde das políticas do SUS. Sua definição pode ser observada, por exemplo, na Política Nacional de Atenção Básica, que afirma que vínculo é a “construção de relações afetivas e de confiança entre o usuário e o trabalhador” (Brasil, 2012, p.21). O estabelecimento do vínculo é tarefa importante no início do acompanhamento e condição para que o AT possa ter frutos em termos terapêuticos e assistenciais (Mendonça 2017). Não foi por acaso que um dos primeiros nomes dados ao at no passado foi o de amigo qualificado. Essa presença ativa e continuada, partilhando o cotidiano e testemunhando a vida da pessoa, é o que permite em grande medida o fazer terapêutico no AT. Como já apontava Merhy (1998), ao falar da dimensão cuidadora das práticas em saúde, os atos de ouvir, construir relação de vínculo e aceitação fazem parte de todo trabalho em saúde e não podem estar submetidos a protocolos, procedimentos e equipamentos - sob risco de perder a resolutividade do cuidado. A realização da clínica do AT tem como condição a construção de um tipo especial de relação intersubjetiva, que é fundamentada por diversos autores como uma política da amizade (Araújo, 2007; Palombini, 2009; Silveira, 2006).

Na pesquisa que embasa este artigo, o principal fator relatado pelos participantes em relação ao AT que lhes era ofertado pelo projeto de extensão foi em relação ao vínculo com o(a) at. Nos relatos, a temática do vínculo foi trazida a partir da valorização da presença e da postura de escuta e paciência atribuída aos(as) acompanhantes terapêuticos(as), sendo a presença destas pessoas em suas vidas o que mais valorizavam no AT. Em alguns casos, o(a) at foi descrito como um confidente para quem a pessoa podia falar dos seus conflitos sem se sentir julgada. Esses relatos apontam para os benefícios/consequências positivas do cuidado continuado em saúde mental possibilitado pelo AT.

Dessa forma, avaliar a qualidade e as características do vínculo é condição para constituição de uma aliança terapêutica e seguimento do trabalho. Mendonça (2017) aponta para a necessidade de quem acompanha se vincular, em um primeiro momento, ao sintoma familiar (ou institucional), a fim de não parecer um completo estranho, um alienígena, para só quando estabelecida uma relação de confiança poder questionar tais processos e apresentar algo diferente – pois a relação estabelecida dá continência à angústia ou a possíveis conflitos. Mesmo que no AT não esteja colocado o setting institucional dos serviços de saúde mental, a análise da relação transferencial é uma ferramenta teórica potente para trabalhar as questões concernentes ao vínculo e para como intervir a partir dele na cena do AT (Marsillac et al., 2018). Contudo, ao utilizar a psicanálise como fundamento à conduta clínica deve-se atentar para não transpor mecanicamente o enquadre do consultório, recriando a dinâmica da escuta sobre o vivido, as fantasias e dilemas do sujeito de forma a prescindir do deslocamento pelo espaço público (Reis Neto et al., 2011).

Acesso a direitos

O segundo indicador proposto é o acesso a direitos sociais. Uma das principais funções do AT relatada na literatura e na prática clínica consiste em operar como dispositivo mediador do acesso a direitos sociais para pessoas em situação de vulnerabilidade social e afetadas por processos de estigma, discriminação e exclusão social advindos do modelo manicomial. Ainda, o AT é frequentemente oferecido para pessoas sistematicamente privadas de direitos sociais e do usufruto da cidadania, seja em função de longos períodos de institucionalização ou outras dinâmicas de exclusão social, violação de direitos ou restrições à autonomia - como limitações de mobilidade e/ou sofrimentos psíquicos graves. Para isso, conta com recursos como a escuta qualificada, a possibilidades de circulação pelo território, o fortalecimento de redes afetivas e de convivência e a mediação com serviços públicos e instituições.

As experiências de livre circulação pelo território e acompanhamento do cotidiano colocam em evidência as barreiras à inclusão social e ao usufruto da cidadania e possibilitam a construção conjunta de estratégias e percursos singulares para o acesso a direitos sociais a partir do AT. Nessas situações, o próprio acompanhar a travessia de tais barreiras se constitui como uma intervenção clínica e social e produz efeitos terapêuticos. Em comparação a um setting terapêutico tradicional, no qual as intervenções clínicas ocorrem no espaço intersubjetivo da relação terapêutica, o AT como dispositivo clínico estende suas intervenções à cena cotidiana e não apenas aos relatos destas. Ao participar da vida social de quem se acompanha, a clínica do AT se constitui em uma clínica em ato e faz destas situações matéria de sua intervenção (Godinho e Peixoto, 2019). Tais situações, por fazerem parte da experiência social, estão atravessadas pelas dinâmicas de segregação, discriminação, privação, alienação e exclusão, as quais devem se tornar alvo de análise e intervenção clínica do AT, sob o risco de reforçá-las caso não se atue criticamente. Assim, o AT se constitui como poderoso dispositivo que possibilita a construção de caminhos para o acesso a direitos sociais e a ampliação das experiências de liberdade.

Seja em função de longos períodos de institucionalização ou de exclusão social fora destas instituições, as experiências concretas de sofrimento psíquico intenso agravado pela privação social e pelo estigma da loucura resultam em barreiras significativas para o usufruto da cidadania - como dificuldades para acessar o mundo do trabalho, ter condições econômicas para gerir sua vida, contar com poucos vínculos sociais e comunitários e enfrentar grande estigma social.

Os e as participantes da pesquisa relataram que, com o AT, puderam realizar mais atividades prazerosas e acessar espaços de lazer e cultura da cidade, como parques, praças e exposições de arte. Também relataram que a partir do AT conseguem exercer maior circulação pela cidade, tanto pelo fato de a presença do(a) at possibilitar essa circulação, quanto por permitir aprender e se apropriar da dinâmica necessária para seus deslocamentos de modo a poder fazê-los sozinho(a). Por fim, foi relatado que o AT possibilitou acesso a serviço da rede de inclusão no mundo do trabalho para pessoa adulta que até então não havia trabalhado, por meio de acesso a serviço de geração de renda.

Autonomia

Autonomia é o terceiro indicador que queremos propor para avaliar o processo e resultados do AT. Ela passa por conquistas materiais relacionadas a acesso a direitos, como moradia, transporte, renda, mas também por mudanças subjetivas diante dessas conquistas, diante das pessoas e situações de sua vida. Na pesquisa, uma das participantes relata que com o AT está aprendendo a sair sozinha para fazer suas atividades. Nesse “sair sozinha”, o at está incluído, sendo uma situação de estar “sozinha, porém acompanhada” até que essa presença possa ser dispensada.

Na pesquisa, as e os participantes relataram terem mais autonomia a partir do AT, referindo-se a poder sair mais à rua, conhecer lugares novos, lidar com o próprio dinheiro e possibilitar inserção no mundo do trabalho. A autonomia foi um elemento central no relato das pessoas que experienciavam maiores restrições em suas vidas, principalmente as institucionalizadas. Para aquelas que, no seu cotidiano, tinham mais possibilidades de fazer por conta própria suas tarefas e encarregar-se de si mesmas, o tema da autonomia não apareceu com tanta força para descrever o trabalho do AT e os benefícios que enxergam nesse dispositivo.

Como Mendonça (2017) aponta, as dimensões assistencial e clínica sempre se mesclam no manejo no AT, podendo uma ter mais ênfase que outra — seja a dimensão assistencial, que diz respeito às tarefas domésticas e cotidianas, seja a dimensão clínica, referida ao “manejo clínico da relação transferencial” (p.101). Na relação entre essas dimensões, Mendonça aponta a importância de que o desejo do sujeito oriente o trabalho e seja ponto de partida para as atividades de reinserção social e busca de autonomia. Nesse mesmo sentido, Caetano e Teixeira (2021) apontam que no AT perpassam ações educativas e pedagógicas, porém é necessária a leitura da transferência colocada na relação para saber quando exercer tais ações é produtivo e quando não. Portanto, a clínica deve estar implicada na assistência e indica que postura se deve adotar perante as situações mais assistenciais.

A relação de interação entre a abordagem clínica e a abordagem assistencial não se apresenta de forma linear e harmônica, mas consiste em um campo de tensionamentos. O tensionamento se apresenta entre, por um lado, o imperativo da inclusão do sujeito na ordem social e nos processos produtivos, e por outro, a centralidade da vida psíquica do sujeito (Dunker & Kyrillos-Neto, 2015). Nesse cenário se apresenta o desafio da formulação de sínteses em resposta a tal tensionamento, de modo a considerar tanto o sujeito de direitos como o sujeito do inconsciente, e possibilitar que se diferencie e se opere simultaneamente sobre os processos subjetivos e sobre os processos sociais de exclusão produzidos em diferentes contextos (Furtado & Campos, 2005). O AT, como dispositivo clínico-político da Reforma Psiquiátrica, se insere neste campo de tensionamentos, sendo atravessado tanto pela lógica da clínica como pela lógica da assistência. Nesse tensionamento, o AT busca contribuir para a superação de processos de exclusão e para a construção da autonomia do sujeito, operando com intervenções clínicas e assistenciais. Podemos entender autonomia em um primeiro plano como a capacidade de desempenhar tarefas cotidianas e domésticas sem muitas necessidades de assistência, mas existe um segundo plano que diz respeito à postura do sujeito diante dessas situações e das pessoas. A autonomia do sujeito se refere à ampliação da rede com a qual este pode contar, sendo uma autonomia que se faz suficiente à medida que o sujeito encontra pontos de apoio nessa rede (Zambillo & Palombini, 2017). A autonomia, nesse sentido, não significa autossuficiência nem negação da dependência — autonomia é a que se faz possível no contexto e nas redes do sujeito.

Dessa forma, ao avaliar a dimensão da autonomia no AT, deve-se considerar a aquisição de habilidades juntamente com a ampliação da rede de apoio que pode contribuir para esse processo de autonomização. Existem contextos que possibilitam mais autonomia e outros que restringem que ela seja exercida. É parte do trabalho do at fazer a mediação no contexto da pessoa para buscar condições mais favoráveis para o exercício da autonomia.

Rede Afetiva (vínculos familiares e comunitários)

O quarto indicador para avaliação de processo e resultado no AT recai sobre a rede afetiva da pessoa acompanhada. Seja pela institucionalização prolongada ou pela exclusão social, pessoas com questões de saúde mental costumam ter vínculos afetivos fragilizados e, devido à estigmatização relacionada à loucura, enfrentam dificuldades de inserção social e comunitária. A família costuma ser a principal rede afetiva e de cuidados, com tendência a sobrecarregar os familiares.

Nesse contexto, o AT se torna um importante mediador dessas relações, por vezes bastante desgastadas.

O AT pode ainda ser articulado a outras intervenções voltadas para a construção e fortalecimento de redes sociais e afetivas de usuários e usuárias da RAPS. Uma investigação etnográfica do processo de articulação do AT com a técnica da Intervenção em Rede - que promove reuniões de mediação e aproximação entre a pessoa central e sua rede social primária - identificou que esses dois dispositivos contribuem para mudanças positivas na qualidade de suas relações afetivas e de convivência (Prado et al., 2020). O AT e a Intervenção em Rede contribuem para mudanças nas relações estabelecidas pela pessoa com sua rede afetiva, promovendo aproximações e possibilitando uma identificação mais concreta do nível de proximidade com cada pessoa ou círculo social, bem como facilitando a inclusão da pessoa em atividades comunitárias (Prado et al., 2020).

É comum que pessoas em sofrimento psíquico desistam de construir laços afetivos após várias tentativas frustradas, assumindo uma postura de auto-exclusão. Quando, no AT, é possível estabelecer uma relação afetiva significativa, essa experiência pode criar novamente disponibilidade subjetiva para a pessoa buscar (re)estabelecer novas relações afetivas.

“Bem-estar”

Um desfecho declarado por pessoas que foram acompanhadas na modalidade de AT foi relacionado a experiências de bem-estar subjetivo, felicidade pessoal e maior qualidade de vida, representada por experiências positivas no cotidiano e maior satisfação pessoal. Tais desfechos são ilustrados por declarações como “hoje sou mais feliz”; “não fico me criticando tanto”, etc. Neste sentido, os relatos de pessoas que foram acompanhadas sugerem que a “terapêutica” do AT possa ser abordada por indicadores relacionados ao aumento de “bem-estar”, à redução do sofrimento psíquico ou a uma melhora na forma do sujeito conviver consigo mesmo, a partir do binômio sofrimento/bem-estar. Considerando que indicadores “clássicos” de desfechos de intervenções em saúde mental baseados na remissão de sintoma, fundamentados na psicopatologia nosológica, não são compatíveis com a teoria e a prática do AT, indicadores relacionados ao binômio bem-estar/sofrimento apresentam melhores perspectivas de avaliação do AT a partir dos relatos das próprias pessoas acompanhadas no AT. Entretanto, embora os relatos dos participantes coloquem em evidência mudanças subjetivas relacionadas ao AT, ainda se faz necessário identificar os elementos que compõem tais processos de mudança e articulá-los com a teoria, de modo a avançar na construção de indicadores da prática do AT que produzam evidências para os aspectos terapêuticos do AT.

Como dispositivo clínico em uma estratégia de promoção da saúde mental, o AT propõe-se ao acolhimento e cuidado em saúde mental, voltado às pessoas em sofrimento psíquico grave. Pelo AT, a experiência da de sofrimento é acolhida e escutada como experiência legítima de um sujeito desejante, rompendo com a dinâmica de segregação que tradicionalmente objetifica/desumaniza a loucura - relegada a um não-lugar.

Considerações finais

A utilização de indicadores de processo e resultado das intervenções em AT pode contribuir para a autoavaliação da prática, a identificação de desafios e barreiras, a afirmação dos pressupostos ético-clínicos do AT, bem como colaborar para a construção do conhecimento. O uso de indicadores também pode desempenhar uma função de transparência e construção de legitimidade, ao organizar informações sobre as potencialidades do dispositivo para apresentar a gestores e beneficiários dos serviços.

A construção de indicadores qualitativos de processo e resultado das intervenções em AT permite informar sobre os efeitos da prática, os quais podem passar despercebidos por métodos mais “duros” de avaliação – que são restritos ao diretamente observável. Também possibilita a compreensão dos efeitos do AT para outros atores sociais não diretamente familiarizados com essa prática clínica.

A proposta de indicadores aqui apresentada tomou como base os dados obtidos a partir do relato dos participantes da pesquisa sobre suas experiências de AT. Os indicadores de processo e resultado do AT refletem as características interdisciplinares e transversais da prática do AT, expressando uma compreensão de “terapêutica” que aborda tanto fenômenos subjetivos como intersubjetivos e mesmo institucionais – por conta da intervenção do AT nas redes de apoio, no acesso a direitos e nas dinâmicas de segregação. Tais indicadores, assim, podem contribuir para a demonstração das próprias capacidades e desfechos esperados de intervenções em AT, facilitando a comunicação entre diferentes atores bem como as solicitações e pactuações relacionadas ao acionamento do AT nas estratégias de promoção e democratização da saúde. O presente estudo limitou-se a elaborar uma proposta inicial de indicadores qualitativos para a avaliação da prática do AT a partir de dados primários e do diálogo com a literatura, sendo ainda necessário novos estudos para verificar sua validade.

Notas

1CAPS III é uma modalidade do equipamento que prevê funcionamento de 24 horas, inclusive aos fins de semana, já o CAPS I funciona das 8h às 18h em cinco dias da semana. Mais informações sobre os tipos de CAPS podem ser acessadas na Portaria de Consolidação nº 3, de 28 de setembro de 2017 (https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0003_03_10_2017.html).

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2021; Revisado: 03 de Novembro de 2021; Aceito: 13 de Julho de 2023

Ana Carolina Brondani. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ORCID:https://orcid.org/0000-0003-1865-9367E-mail: ana.brondani@gmail.com

Bruno Graebin de Farias. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ORCID:https://orcid.org/0000-0002-7323-8621E-mail:brunograebin@gmail.com

Analice de Lima Palombini. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ORCID:https://orcid.org/0000-0002-8332-8292E-mail:analice.palombini@ufrgs.br

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