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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.6 no.11 São João del Rei jul./dez. 2017
ARTIGOS
Freud e o real da puberdade: uma leitura do caso Emma
Freud and the real of puberty: a reading of the Emma case
Freud y lo real de la pubertad: una lectura del caso Emma
Freud et le réel de la puberté : une lecture de le cas Emma
Daniela Teixeira Dutra Viola
Doutora em Psicologia (área de concentração Estudos Psicanalíticos) pela UFMG, com período de estágio doutoral na Université Paris 8. Atualmente, é professora substituta no Departamento de Psicologia da UFSJ. É integrante do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais (LEPSI Minas) e do grupo de pesquisa Além da tela: Psicanálise e Cultura Digital, vinculado à UFMG
RESUMO
Este artigo discute a questão da puberdade na obra freudiana a partir da referência lacaniana. Propõe-se investigar o estatuto desse tempo do sujeito na teoria da sexualidade por meio da leitura do "caso Emma", fragmento clínico a que Freud recorre para ilustrar o mecanismo do trauma num trabalho do início de seu percurso teórico. Mesmo situado num ponto ainda muito introdutório da Psicanálise, esse caso traz elementos de importância basilar para todo o devir dessa práxis por permitir a Freud a intuição de elementos que posteriormente Lacan vai abarcar pela noção de real.
Palavras-chave: Psicanálise. Puberdade. Freud. Real. Trauma.
ABSTRACT
This article discusses the question of puberty in the Freudian work from the Lacanian reference. It is proposed to investigate the status of this time of the subject in the theory of sexuality by reading the "Emma case", a clinical fragment that Freud uses to illustrate the mechanism of trauma in a work at the beginning of his theoretical course. Even at a very introductory point in psychoanalysis, this case brings elements of fundamental importance to the whole development of this praxis, since it allows Freud to intuition elements that later Lacan will embrace by the notion of real.
Keywords: Psychoanalysis. Puberty. Freud. Real. Trauma.
RESUMEN
Este artículo aborda el tema de la pubertad en la obra de Freud desde la referencia lacaniana. Se propone investigar el estatuto de este tiempo del sujeto en la teoría de la sexualidad mediante la lectura del "caso Emma", que Freud utiliza para ilustrar el mecanismo del trauma en una obra del comienzo de su recorrido teórico. Aunque está situado en un punto muy introductorio del psicoanálisis, este caso aporta elementos importantes para todo el devenir de esta praxis al permitir a Freud la intuición de elementos que más tarde Lacan abarcará por la noción de real.
Palabras clave: El psicoanálisis. La pubertad. Freud. Real. Trauma.
RÉSUMÉ
Cet article traite de la question de la puberté dans l'œuvre de Freud par la perspective lacanienne. Il est proposé d'enquêter sur le statut de ce temps du sujet dans la théorie de la sexualité en lisant le "cas Emma", fragment clinique dont Freud se réfère à illustrer le mécanisme du trauma dans un travail écrit au début de sa trajectoire théorique. Même situé à un point encore très introductoire de la psychanalyse, ce cas apporte des éléments d'une importance fondamentale pour tout devenir de cette praxis pour permettre à Freud l'intuition des éléments que plus tard Lacan abordera par la notion de réel.
Mots-clés: Psychanalyse. Puberté. Freid. Reel. Trauma.
Introdução
Este artigo discute a questão da puberdade na obra freudiana a partir da referência lacaniana.1 Propõe-se investigar o estatuto desse tempo do sujeito na teoria da sexualidade por meio da leitura do "caso Emma", fragmento clínico a que Freud recorre para ilustrar o mecanismo do trauma num trabalho do início de seu percurso teórico. Mesmo situado num ponto ainda muito introdutório da Psicanálise, esse caso traz elementos de importância basilar para todo o devir dessa práxis.
Por hipótese, consideramos que as reflexões em torno do caso Emma proporcionam a Freud uma aproximação do que, mais tarde, a obra lacaniana vai localizar no âmbito do gozo e abarcar pela noção de real. Lacan (1969-1970/1992, p. 13) afirma que o campo em que o saber e o gozo se resvalam é o "que a palavra de Freud ousa enfrentar", sinalizando, assim, a radicalidade do enfrentamento original da prática freudiana. Nessa perspectiva, Freud se aproxima do limite entre o saber e o gozo ao tratar do pathos por meio do discurso do sujeito no dispositivo analítico. A nosso ver, essa "ousadia" de Freud, insinuada por Lacan, concerne a um lampejo fundamental que advém ao inventor da Psicanálise na experiência clínica a partir do pathos da subjetividade de sua época.
Lacan (1969-1970/1992, p. 13) demonstra inferir essa antecipação do âmbito do gozo por Freud ao abordar a repetição e a noção de pulsão de morte. "Não se trata, na repetição, de qualquer efeito de memória no sentido biológico. A repetição tem certa relação com aquilo que, desse saber, é o limite - e que se chama gozo". Desse modo, pode-se considerar que se prenuncia a conexão radical entre o gozo e o saber na teorização freudiana, como efeito do que se apresenta na experiência clínica desde sua inauguração. Vislumbra-se, na obra de Freud, desde suas primeiras linhas, a intuição de algo que escapa à palavra, que resiste à representação e que excede o sintoma.
Em vista disso, este trabalho se propõe a abordar essa espécie de intuição de Freud, extremamente precoce em sua prática e em sua pesquisa, que podemos entrever nos momentos em que ele parece tatear o real. É preciso ressaltar que não se trata de uma antecipação, por Freud, da noção lacaniana de real, mas sim de um elemento que pontua a obra freudiana, que parece propulsioná-la, e que Lacan vai, a posteriori, designar como o real. Tal noção está presente ao longo da produção teórica lacaniana. Na fase ulterior dessa obra, já na década de 1970, encontramos duas definições célebres para essa noção (Vieira, 2009): o real é o que surpreende, é o aparece numa análise como surpresa ou como trauma; e o real é o que volta sempre ao mesmo lugar. Para a presente discussão, destacamos também a maneira como Lacan (1964/1998, p. 159) define o real em relação à proposição freudiana do princípio do prazer: o real é o impossível, é o obstáculo ao princípio do prazer, por constituir o que dessexualiza, o choque que desarranja esse princípio
Nesse cotejamento entre diferentes sistemas conceituas, é oportuno lembrar a advertência de Lacan (1954-1955/2010) sobre o equívoco de querer fazer Freud dizer já na primeira etapa de seu pensamento aquilo que está na última. Não é possível uma sincronização do pensamento freudiano. De modo distinto, Lacan esclarece a orientação de sua leitura dessa obra, que se norteia por uma dificuldade que perpassa todo o pensamento de Freud:
Para nós, não se trata de sincronizar as diferentes etapas do pensamento de Freud, nem sequer de pô-las em concordância. Trata-se de ver a que dificuldade única e constante respondia o progresso deste pensamento, constituído pelas contradições de suas diferentes etapas. Trata-se, através da sucessão de antinomias que este pensamento continua nos apresentando, dentro de cada uma destas etapas e entre si, de defrontarmo-nos com o que constitui, propriamente, o objeto de nossa experiência. (p. 202)
Em nossa leitura, o que Lacan localiza na obra de Freud como sua "dificuldade única e constante" pode ser aproximado da noção de real. Também aqui, contudo, não se trata de uma "sincronização" entre os pensamentos de Freud e de Lacan, muito menos de "pô-los em concordância". Trata-se, isso sim, do reconhecimento da potência que se amplifica, de modo vigoroso, a partir da leitura de Freud efetuada por Lacan, para a apreensão desse "objeto de nossa experiência" na Psicanálise.
Ainda nessa linha de pensamento, é importante evocar um trecho do seminário O sinthoma, em que Lacan (1975-1976/2007, p. 128) fala do real como o seu sintoma: sua "maneira de elevar ao seu grau de simbolismo, ao segundo grau, a elucubração freudiana". Ele afirma que a realidade não tem nada a ver com o que designa como o real, e que a instância do saber renovada por Freud sob a forma do inconsciente não supõe obrigatoriamente o real de que ele, Lacan, se serve. "Cheguei inclusive a intitular uma coisa que escrevi como 'A coisa freudiana'. Mas quanto ao que eu chamo de real, eu inventei, porque se impôs a mim" (p. 128). Essa invenção é atribuída a um nó que é tudo que há de mais figurativo, mas que "é o máximo que podemos figurar ao dizer que, ao imaginário e ao simbólico, isto é, às coisas que são muito estranhas uma para a outra, o real traz o elemento que pode mantê-las juntas" (p. 128). Lacan declara que sua proposição do real é uma reação ao inconsciente freudiano. "É na medida que Freud faz verdadeiramente uma descoberta - supondo-se que essa descoberta seja verdadeira - que podemos dizer que o real é minha resposta sintomática" (p. 128).
Tendo isso em vista, propomos lançar mão dessa invenção de Lacan, bem como da "elevação ao segundo grau" que seu ensino proporciona à elucubração freudiana, para orientar este trabalho, que vai se desdobrar sobre os pontos em que a problemática da puberdade, extraída da obra de Freud, tangencia essa "dificuldade única e constante".
O estatuto da puberdade na obra de Freud
Esse elemento único e constante, perceptível na obra freudiana mais tardia na abordagem da repetição e da pulsão de morte e que posteriormente Lacan vai associar ao real, pôde ser intuído por Freud logo no início de sua práxis, precisamente ao se defrontar com o pathos na adolescência. É preciso ressaltar, com efeito, que a adolescência não é necessariamente patológica. Entretanto, por localizar-se num lugar sintomático nos discursos desde a modernidade, como efeito daquilo que não se normatiza a despeito da severidade da sociedade disciplinar (Foucault, 1975/2011), é pela via do pathos que a adolescência vai se apresentar ao inventor da Psicanálise. O sofrimento psíquico patológico que se manifesta nessa fase da vida é um dos efeitos do mal-estar na cultura (Freud, 1930/2010) e das reconfigurações da sexualidade que ocorrem nesse tempo do sujeito. No ponto de partida de seu rastreio da etiologia das neuroses, Freud (1895 [1950]/1996) constata que a puberdade incide sobre a lógica temporal, o que contribui de maneira decisiva para o deciframento da natureza do trauma e para sua compreensão da constituição radicalmente traumática da subjetividade.
No entanto, antes de seguirmos pela via que qualifica a adolescência como questão determinante na construção da práxis psicanalítica, é preciso considerar um contraponto. Por um ângulo, a puberdade pode ser tomada como estágio que adquire certo status secundário na concepção freudiana do desenvolvimento sexual a partir da consolidação teórica da sexualidade infantil, que se torna preponderante na determinação subjetiva. O movimento que parece relegar a puberdade a um segundo plano pode ser percebido em alguns passos notáveis de Freud, entre os quais está a célebre carta (21 de setembro de 1897/1996) em que confessa ao então amigo Fliess não mais acreditar em sua neurotica. Ou seja, Freud anuncia nessa carta o abandono da teoria do trauma como etiologia das neuroses, teoria tributária da hipótese de uma sedução factual, assim como de uma percepção da puberdade como ponto central do desenvolvimento sexual. São também passos decisivos nessa direção a descoberta do complexo de Édipo, revelada em outra carta a Fliess (15 de outubro de 1897/1996), e o reconhecimento explícito de uma sexualidade na infância (1898/1996). De modo sintético, esses passos demarcam o percurso de Freud rumo à formulação de uma definição inédita, abrangente e radical da sexualidade. Contudo, esse movimento teórico revolucionário tem como efeito colateral a impressão de que a puberdade, de certa forma, perde parte de seu valor em todo esse conjunto de elementos que configuram a teoria da sexualidade. Vejamos se é realmente disso que se trata ou se é possível outra leitura do lugar da adolescência e da puberdade nessa evolução teórica.
O próprio Freud, habituado a declarar com admirável franqueza suas mudanças de opinião e reformulações teóricas, enuncia esse "rebaixamento" do estatuto da puberdade ulteriormente em sua obra, ao realizar algumas reparações ou adendos a seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996) - trabalho em que, originalmente, dedica uma das três partes às "transformações da puberdade", conferindo-lhes papel determinante para as conformações da vida sexual adulta. O trecho a seguir evidencia o teor dos reparos expostos no artigo A organização genital infantil (1923/2011, pp. 170-171).
Agora eu já não me daria por satisfeito com a afirmação de que o primado dos genitais não se realiza, ou o faz muito imperfeitamente, no período da primeira infância. A aproximação da vida sexual infantil àquela dos adultos vai muito adiante, e não se limita ao surgimento da escolha de objeto. Mesmo não chegando a uma autêntica reunião dos instintos parciais sob o primado dos genitais, no auge do desenvolvimento da sexualidade infantil o interesse nos genitais e sua atividade adquirem uma significação preponderante, que pouco fica a dever àquela da maturidade. A principal característica dessa "organização genital infantil" constitui, ao mesmo tempo, o que a diferencia da definitiva organização genital dos adultos. Consiste no fato de que, para ambos os sexos, apenas um genital, o masculino, entra em consideração. Não há, portanto, uma primazia genital, mas uma primazia do falo.
Com isso, Freud parece posicionar a puberdade no ponto de passagem entre a primazia do falo - vinculada, no trecho anterior, à ignorância infantil a propósito da diferença sexual, ou à ausência da subjetivação dessa diferença, que persiste mesmo na fase fálica - e o primado dos genitais, quando já está em vigor um saber sobre essa diferença. Por conseguinte, podemos presumir que a novidade da puberdade - não mais pensada como o apogeu da sexualidade - recai sobre outra coisa: a apreensão de um saber sobre a diferença sexual. E a isso propomos acrescentar, a partir de Lacan (1972-1973/1985), que essa reparação teórica, empreendida por Freud com o objetivo de deslocar, da puberdade à primeira infância, os aspectos centrais do desenvolvimento sexual, propicia localizar na adolescência a apreensão de um saber que diz respeito à impossibilidade de conjunção entre os sexos, por não haver uma equação simétrica que solucione, na linguagem, a relação sexual. Em outras palavras, trata-se de um saber diante de um enigma, ou melhor, um não saber.
Sendo assim, não se trata propriamente de um "rebaixamento" de valor da puberdade como estágio do desenvolvimento sexual, mas sim de um descentramento que tem consequências lógicas. Depreende-se que o movimento teórico, efetuado por Freud com base em sua experiência clínica, de certificação da preponderância da sexualidade infantil enseja a percepção da puberdade como momento lógico de apreensão de um saber sobre o real do sexo.
A propósito dessa reparação teórica, Ouvry (2003) enfatiza o valor epistemológico desse descentramento da sexualidade, da puberdade à infância, pois, com esse movimento, Freud desloca a adolescência dos propósitos defensivos que a caracterizavam e torna possível uma teorização específica dessa fase. Para Ouvry, apesar desse movimento, a puberdade e a adolescência aparecem como foco privilegiado, como sugere a idade das primeiras pacientes de Freud, para as interrogações mobilizadas pela descoberta analítica. Esse autor demonstra como as questões mais caras a essa descoberta em seu momento inaugural são também temas que desenham a adolescência em seus diferentes aspectos: tais como a sexualidade, o objeto, o Édipo, o destino, a repetição, a identificação, a morte, a masturbação e a perversão.
Cottet (1988) também comenta a redução do interesse dirigido à puberdade a partir da tese da sexualidade infantil. Para ele, a concepção freudiana original da puberdade como "o traumatismo sexual por excelência" (p. 101), vigente nas primeiras hipóteses etiológicas de Freud para a neurose, pressupõe um retardo no sentido sexual - "a diferença entre o pouquíssimo de gozar da infância e o mais-de-gozar da puberdade" (p. 102) - que só é concebido em razão do desconhecimento, nesse contexto teórico, da sexualidade infantil. Não obstante o caráter obsoleto que essa hipótese adquire, esse autor defende que tal "esquema continua válido pelo fato de que ele livra a estrutura da imaturidade sexual do sujeito falante, sujeito sempre tomado de surpresa no seu encontro com o sexual" (p. 102). Dessa forma, Cottet transfere a ênfase numa imaturidade orgânica, etária e cronológica para o acento na imaturidade constitutiva de todo ser falante.
Nesse sentido, consideramos que o valor determinante da puberdade - e, por consequência, da adolescência - para as vicissitudes do sujeito na obra freudiana pode ser resgatado por meio das ferramentas teóricas que o ensino de Lacan fornece, num "só depois". Não escapa a Freud que a temporalidade própria ao trauma, que se dá em dois tempos escandidos, está ligada à passagem adolescente - o que já aparece num trabalho do período ainda embrionário da Psicanálise, o Projeto para uma psicologia científica (1895 [1950]/1996). Como evento do real, o trauma é, em última instância, o trauma da linguagem, o mal-entendido fundamental da sexualidade, que podemos vislumbrar na leitura do fragmento de caso de uma jovem paciente de Freud narrado no Projeto.
Emma e o real do trauma
Freud se empenha em aprimorar as bases conceituais da etiologia sexual das neuroses, com a teoria da sedução em vigor, no primeiro período de sua pesquisa propriamente psicanalítica, na última década do século XIX. Ao mesmo tempo, ele empreende, com rigor e disciplina, seu processo de autoanálise. Como importante pano de fundo desse cenário de descobertas, sobressai a peculiar amizade entre Freud e Fliess, rinolaringologista erudito, confidente atencioso e leitor dedicado dos manuscritos que o amigo lhe envia assiduamente. Essa amizade, porém, encontra nos atos extravagantes e nas ideias disparatadas de Fliess sua barreira intransponível, pois suas teorias acerca de uma conexão entre a função genital e as mucosas nasais, bem como demonstrações de irresponsabilidade na prática médica, acabam por interferir na clínica de Freud (Gay, 2002). Não cabe no presente trabalho entrar nos meandros dessa inusitada relação, mas, de saída, guardemos esses elementos que serão relevantes para o que será discutido logo adiante.
As principais consequências teóricas extraídas por Freud dessa clínica recém-nascida orbitam em torno da noção de defesa por parte do eu, força ativadora do recalcamento, contra ideias incompatíveis com a consciência. Para o psicanalista, a cada ideia ininteligível que assoma ao sujeito na manifestação sintomática corresponde uma ideia irreconciliável, de teor sexual, excluída do pensamento consciente pelo recalque devido a uma intensidade afetiva desprazerosa. E a ligação entre esses diferentes conteúdos ideativos decorre de um evento aleatório, de "uma circunstância incidental" (Freud, 1895 [1950] /1996, p. 403). Progressivamente, essa primeira concepção de defesa evolui mediante a teorização do recalcamento e da concepção do aparelho psíquico, perpassadas pela teoria das pulsões. Esse momento inicial equivale, então, a uma largada fundamental para todo o desenvolvimento subsequente da Psicanálise, momento em que se localizam dois pontos de inflexão determinantes para os rumos que essa práxis vai tomar. Na presente reflexão, vamos examinar esses pontos a partir de duas concisas passagens da obra inicial de Freud, que fazem parte, como veremos, de um mesmo caso clínico.
No esboço Projeto para uma psicologia científica (1895 [1950]/1996), Freud expõe um fragmento clínico a fim de ilustrar suas concepções etiológicas vigentes na época, que convergem para a teoria da sedução. De acordo com essa teoria, a gênese da neurose está, com frequência, numa cena factual, lembrada no contexto analítico, em que o sujeito, ainda criança, sofre passivamente uma investida sexual, geralmente por parte de um adulto. Todavia, o extrato clínico apresentado nesse esboço ultrapassa largamente o propósito de corroborar essa hipótese etiológica, na medida em que permite apreender a natureza do trauma para além da suposição da sedução concreta. Vamos passar, então, a uma leitura do caso Emma, que Freud apresenta sob o título "A Proton Pseudos Histérica".
A jovem Emma encontra-se tomada pela compulsão de não conseguir entrar em lojas sozinha. Na análise, essa paciente associa tal sintoma à memória de uma cena "da época em que tinha 12 anos (pouco depois da puberdade). Ela entrou numa loja para comprar algo, viu dois vendedores (de um dos quais ainda se lembra) rindo juntos e saiu correndo, tomada de uma espécie de afeto de susto" (p. 407). Ela recorda que os rapazes estavam rindo de suas roupas e que um deles havia lhe interessado sexualmente. Freud pontua esse relato, que chama de Cena I, com um comentário sobre sua ininteligibilidade e sobre a relação também incompreensível entre essa lembrança e o sintoma. Novas investigações ocasionadas pelo rumo desse tratamento revelam uma segunda lembrança, a Cena II, da qual Emma nega ter consciência na ocasião do episódio lembrado anteriormente. Ela se recorda de ter oito anos e de ir duas vezes comprar doces em certa confeitaria. Na primeira ocasião, o proprietário agarrou suas partes genitais por cima da roupa. Mesmo após essa experiência, ela retornou ao local uma segunda vez. Essa reminiscência gera, na análise, um estado de "consciência pesada e opressiva" por se recriminar pelo retorno ao local do assédio, "como se com isso tivesse querido provocar a investida" (p. 408).
Na discussão do caso, Freud estabelece o riso como vínculo associativo entre as cenas I e II. O riso dos vendedores da loja, no episódio mais recente, evoca o riso do proprietário da confeitaria no assédio sexual até então esquecido. Em ambas as situações, Emma está sozinha, outro elo associativo. O autor realça o fato de que, entre um evento e outro, "ela alcançara a puberdade" (p. 408). E que "a lembrança despertou o que ela certamente não era capaz na ocasião, uma liberação sexual, que se transformou em angústia" (p. 408). Freud conclui que se trata de um "processo patológico interpolado" (p. 410), "em que uma lembrança desperta um afeto que não pôde suscitar quando ocorreu como experiência, porque, nesse entretempo, as mudanças (trazidas) pela puberdade tornaram possível uma compreensão diferente do que era lembrado" (p. 410).
É importante notar que as conexões se formam por meio de elementos contingentes e que as intensidades afetivas em jogo têm um papel preponderante em relação à significação evocada. Percebe-se também que Freud atribui à puberdade a aquisição da capacidade de "liberação sexual". Ele ainda não conta com a concepção da sexualidade infantil, logo, entende que todo o teor sexual só pode ser atribuído de modo retroativo. Ainda que esse exemplo se insira no estágio teórico em que a hipótese etiológica da sedução está em seu auge (Laplanche & Pontalis, 1996), deduz-se que essa teoria não é uma referência categórica para Freud nessa análise, na medida em que ele afirma, a propósito da "experiência" rememorada por Emma, não haver "nada que a comprove" (Freud, 1895 [1950]/1996, p. 408). Para além da explicação causal fundamentada numa experiência concretamente vivida, o que se avulta nessa reflexão é a dedução de uma causalidade psíquica que se dá em dois tempos interpolados pela puberdade. Portanto, o evento efetivamente em questão no caso Emma é a puberdade, e não a cena concreta de sedução.
Dessa maneira, Freud, em seu enfrentamento original do sintoma histérico, deslinda o mecanismo do trauma. "Constatamos invariavelmente que se recalcam lembranças que só se tornaram traumáticas por ação retardada. A causa desse estado de coisas é o retardamento da puberdade em comparação com o resto do desenvolvimento do indivíduo" (p. 410). O autor explica:
Embora, em geral, não se vê na vida psíquica a situação de uma lembrança despertar um afeto que não existiu por ocasião da experiência, tal é, no entanto, uma ocorrência muito comum no caso das ideias sexuais, precisamente porque o retardamento da puberdade constitui uma característica geral da organização. Cada indivíduo adolescente, portanto, traz dentro de si o germe da histeria. (p. 411)
Como se vê, a ênfase é dada ao retardamento da puberdade, à particularidade do processo de formação do sintoma neurótico que se desdobra em dois tempos separados, e não à materialidade de um suposto evento traumático numa infância à qual ainda não se imputa uma sexualidade própria. Independentemente da querela em torno da legitimidade ou não da cena de sedução - e, consequentemente, da teoria da sedução como explicação etiológica -, o que mais interessa nessa análise é a verificação de um movimento retroativo via repetição significante, entre a puberdade e um ponto anterior desprovido de sentido, que se pode remeter ao real. Com a descoberta da sexualidade infantil, essa concepção de um "só depois" do trauma vai se estender ao esquema da constituição bifásica da sexualidade humana, escandida por um intervalo, o período de latência.
Também no Projeto para uma psicologia científica, como figuração do mecanismo do trauma, Freud (1895 [1950]/1996, p. 409) expõe um desenho esquemático desse caso clínico. Nessa figura, ele aponta os elementos conscientes, incluindo o interesse sexual que Emma admite por um dos vendedores, e o que é "rememorado" no processo analítico. O autor destaca as falsas conexões e o recalcamento acompanhado da formação de símbolos na constituição do sintoma. Vale frisar o vértice no fundo inferior do desenho, uma espécie de umbigo (André, 1998) que condiz com o sintoma, para onde convergem os sedimentos das duas cenas e de onde parte a descarga sexual. Essa imagem parece representar um ponto de voragem que constitui, ao mesmo tempo, a causa do sintoma e a fonte da liberação sexual - dimensão que aproximamos, com a perspectiva lacaniana, do campo do gozo. Vislumbra-se, assim, a complexidade do trauma, que se forma por camadas sobrepostas numa temporalidade lógica, distinta da cronologia acionada por uma presumida cena de sedução.
Numa elaboração acerca desse extrato clínico, André (1998) chama a atenção para a repetição significante que ocorre entre as duas cenas, visto que o "riso" dos vendedores e o elemento "roupas" evocam a cena da confeitaria. Ele avalia que é somente com essa repetição - capaz de designar retroativamente na primeira cena um real inassimilável pelo significante, atribuindo a ela um sentido sexual até então ausente - que uma excitação sexual irrompe em forma de angústia.
Para André (1998), o notável esquema que Freud desenha avança mais em suas consequências que o comentário que o acompanha no Projeto, em que não se explica o elemento ilustrado na parte inferior: o núcleo ou umbigo da formação em cadeia ali representada. André informa:
O esquema mostra que do atentado, da sedução para a qual converge todo o encadeamento, parte uma flecha em cuja extremidade não há nenhum significante inscrito: ali só há um branco, mas é deste branco, desta lacuna, que parte uma outra flecha, que atinge a descarga sexual ao término da repetição. O que quer dizer isto? Em primeiro lugar, que o real está lá "só-depois", na medida em que, em nível de inconsciente, a repetição significante produz literalmente o real em sua função de causa. Mas, além disso, essa dupla flecha ilustra que o efeito do recalque, passando pela repetição e pelo retorno do recalcado, consiste em sexualizar aquilo que primitivamente não estava sexualizado pelo sujeito. O recalque, em suma, tem por função fazer do real uma realidade sexual. (p. 79)
Com isso, pode-se inferir que o trauma diz respeito à convocação do real do corpo em sua função orgânica, o real da carne. Esse corpo fora da sexualidade é também fora do significante, logo, inacessível e inassimilável pelo sujeito, mas que advém ao ser convocado pela repetição, movimento detonador da angústia. Segundo André, trata-se do "corpo que não caiu sob o primado do falo" (p. 81).
É importante realçar o lugar crucial que a puberdade ocupa nesse modelo, visto que é justamente na puberdade que sobrevém, conforme o entendimento de Freud (1923/2011), o saber sobre a diferença sexual, como desfecho ulterior da primazia do falo. Há, portanto, uma proximidade básica entre a puberdade e o trauma que se compreende melhor por meio de uma linha de pensamento que Freud constrói.
Ora, se a validade epistemológica e clínica do trauma perdura mesmo após a revogação da hipótese etiológica da sedução e os subsequentes avanços conceituais da teoria do recalcamento, é porque o valor traumático de um evento não depende somente da realidade material, mas também, e sobretudo, da realidade psíquica. Dito de outro modo, ainda que as cenas factuais de assédio sexual na infância permaneçam como importante fator patogênico, bem como outros tantos eventos da realidade material humana, esses fatos só se tornam traumáticos mediante um mecanismo psíquico, que Freud vai explicar em termos energéticos, com base em sua teoria da economia psíquica e no princípio de constância.
É importante considerar que a descrição energética do trauma perpassa toda a obra freudiana. Tanto é que a encontramos 25 anos depois do Projeto, na obra Além do princípio do prazer, ocasião em que Freud (1920/2010) examina o problema das neuroses traumáticas e da compulsão à repetição. Nesse trabalho, ele desenvolve a ideia de que o aparelho psíquico é suscetível às excitações provenientes do mundo externo - da realidade material - e de seu interior - as sensações de prazer e desprazer que podem se originar tanto no mundo externo quanto na realidade psíquica. O autor propõe a imagem de um limite defensivo contra os estímulos, um envoltório contra o qual vão se chocar as excitações. São traumáticas as excitações suficientemente fortes para romper essa barreira, ou seja, aquelas com força superior ao quantum que o aparelho psíquico é capaz de suportar.
Acho que o conceito de trauma exige essa referência a uma defesa contra estímulos que normalmente é eficaz. Um evento como o trauma externo vai gerar uma enorme perturbação no gerenciamento de energia do organismo e pôr em movimento todos os meios de defesa. Mas o princípio do prazer é inicialmente posto fora de ação. Já não se pode evitar que o aparelho psíquico seja inundado por grandes quantidades de estímulo; surge, isto sim, outra tarefa, a de controlar o estímulo, de ligar psicologicamente as quantidades de estímulo que irromperam, para conduzi-las à eliminação. (p. 192)
Nesse contexto teórico, notamos que se trata de um modelo análogo ao traumatismo mecânico, em que uma enorme perturbação física se impõe ao sujeito. A partir dessa leitura, pode-se vincular o mecanismo de convocação pela repetição significante de um excesso que está fora da linguagem, desprovido de sentido, tal como destacado por André (1998) no caso Emma, à tarefa de "ligar psicologicamente" os estímulos externos excessivos. A compulsão à repetição pode ser compreendida como essa tentativa perpétua de assimilar, pelo significante, algo inassimilável, uma espécie de quisto de real que impulsiona a repetição (conforme Fajnwaks, 2014).
Freud (1920/2010) garante que esse estremecimento mecânico, que se dá no corpo, "deve ser reconhecido como uma das fontes de excitação sexual" (p. 197), assim como a dor e a febre, que têm "poderosa influência na distribuição da libido" (p, 197). Ele defende que "a violência mecânica do trauma libera o quantum de excitação sexual que, devido à falta de preparação para a angústia, tem efeito traumático" (p. 197). Embora essa elaboração tenha como referência os efeitos traumáticos dos fatores externos que impactam violentamente o sujeito, ela é de grande importância para a compreensão do trauma como uma perturbação no corpo, como um excesso pulsional que sobrevém e contra o qual não há barreira ou defesa efetiva.
Voltamos, então, ao caso Emma. Pois bem, independentemente de haver sofrido, de fato, o assédio sexual - que, como o próprio Freud (1895 [1950]/1996) sugere, não há nada que comprove -, Emma realmente vivencia um evento que ocorre no período entre as cenas I e II: a puberdade. A sexualidade infantil é atualizada no corpo de forma radicalmente nova, como excesso desmedido que perturba o corpo, constituindo, a posteriori, o trauma. Por conseguinte, a "liberação sexual" que se transforma em angústia é algo novo, distinto da sexualidade infantil por contar com uma novidade essencial: a diferença sexual é subjetivada e desponta como um saber sobre o enigma do sexo. Portanto, o que irrompe no real com o despertar pubertário é o impossível da relação sexual. Eis aí a proximidade entre o mecanismo traumático e a puberdade.
Irma-Emma e o sonho dos sonhos
Tendo isso em vista, concordamos com Teixeira (2010, pp.1-2), para quem a história clínica de Emma, "a despeito de sua brevidade descritiva, mereceria ser tomada como um caso à parte, comparável, talvez, às cinco grandes psicanálises, se considerarmos a transformação que sua evolução veio produzir sobre a própria construção da teoria psicanalítica". Esse autor sustenta a atribuição de tamanha relevância a tão breve fragmento clínico a partir de sua repercussão em outro ponto marcante da obra de Freud, que constitui a outra face desse caso. Teixeira reporta que a Sra. Emma Eckstein, a jovem Emma cujo caso é explorado no Projeto para uma psicologia científica, é ninguém menos que Irma, paciente que aparece no consagrado sonho da injeção, de julho de 1895 (Schur, 1982, conforme citado por Teixeira, 2010). Esse sonho é narrado e analisado com destaque na obra A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1996). A problemática que levanta consiste em outro ponto de inflexão determinante para os rumos da práxis psicanalítica.
Teixeira (2010) propõe-se a sondar, nos bastidores do caso Irma-Emma, o reposicionamento subjetivo de Freud, que promove, ao mesmo tempo, seu afastamento de Fliess e uma assunção epistemológica essencial à constituição da Psicanálise. Trata-se da percepção freudiana da questão sexual fora do discurso provedor de sentido, perspectiva original, subversiva e específica da Psicanálise. Para compreender esse movimento, é necessário relembrar alguns aspectos do sonho e das circunstâncias que o envolvem.
O sonho, da noite entre 23 e 24 de julho de 1895, gira em torno de uma cena em que Freud examina Irma, paciente que se queixa de fortes dores que a estão sufocando. Após alguma relutância, ela abre a boca e lhe mostra a garganta, onde Freud visualiza uma grande placa branca e "extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos turbinados do nariz" (Freud, 1900/1996, p. 141-142). O sonho desemboca na conclusão da origem da infecção. Um amigo de Freud, uma das três figuras masculinas que ali aparecem, havia aplicado uma injeção de trimetilamina, cuja seringa provavelmente não estava limpa e cuja fórmula Freud via "impressa em grossos caracteres" (p. 142).
É importante localizar o estatuto dessa formação do inconsciente na obra de Freud. Ela é convocada em diversos trechos do livro A interpretação dos sonhos para esclarecer os processos oníricos, em virtude de seu caráter de "sonho modelo", como define o autor. É em função desse lugar privilegiado que ocupa em meio a tantos outros sonhos descritos nesse trabalho que Lacan (1954-1955/2010, p. 201) vai chamá-lo de "o sonho dos sonhos", definição que certamente implica o valor paradigmático que representa para o pensamento freudiano. Freud (1900/1996) nos informa que se trata do primeiro sonho que é submetido a uma interpretação pormenorizada, que, por motivos óbvios de discrição, não é inteiramente revelada aos leitores. Nesse contexto, esse autor alude à dimensão insondável que todo sonho comporta, "um umbigo, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o desconhecido" (p. 145).
Quanto às circunstâncias que envolvem o sonho, Teixeira (2010) lança mão de alguns dados biográficos importantes. Lembra que o tratamento de Irma transcorre no período em que a amizade entre Freud e Fliess está em seu auge. Fliess desenvolve sua teoria delirante sobre a conexão entre a sexualidade e as mucosas nasais. Freud, então, encaminha sua paciente para uma consulta com o amigo rinolaringologista, que decide operá-la. A cirurgia é um fracasso e Irma fica em estado crítico em razão de uma grave infecção, cuja causa é o esquecimento por parte do cirurgião de 50 centímetros de gaze em sua cavidade nasal. Esse grave incidente propulsiona o gradual afastamento de Freud desse amigo.
Teixeira (2010) sublinha como esse incidente e o consequente término dessa amizade são decisivos para a evolução da práxis psicanalítica. De acordo com ele, o que está em questão no sonho tem a ver com a culpa do próprio Freud em relação a sua transferência dirigida a Fliess. Tal culpa remonta à angústia, atenuada por essa transferência, "de se haver com a questão do sexual segundo uma perspectiva que a Psicanálise, então nascente, nesse momento inaugura, mas para a qual o seu próprio criador não estava preparado" (p. 2). Teixeira avalia que essa perspectiva inaugural da Psicanálise aparece na associação entre "o espetáculo assustador da carne informe, que surge no fundo da garganta de Irma quando Freud a examina, à fórmula que posteriormente emerge, em sua visibilidade literal, da trimetilamina" (pp. 2-3). Quanto a esse aspecto do sonho, Lacan (1954-1955/2010, pp. 223-224) observa:
Da imagem aterradora, angustiante, nesta verdadeira cabeça de Medusa, na revelação deste algo de inominável propriamente falando, o fundo desta garganta, cuja forma complexa, insituável, faz dela tanto o objeto primitivo por excelência, o abismo do órgão feminino, de onde sai toda vida, quanto o vórtice da boca, onde tudo é tragado, como ainda a imagem da morte onde tudo vem-se acabar [...]. Aparecimento angustiante de uma imagem que resume o que podemos chamar de revelação do real naquilo que tem de menos penetrável, do real sem nenhuma mediação possível, do real derradeiro, do objeto essencial que não é mais um objeto, porém este algo diante do que todas as palavras estacam e todas as categorias fracassam, o objeto de angústia por excelência.
Não se trata, para a Psicanálise, de um saber sobre o sentido da sexualidade, algo que as teorias de Fliess defendem e que Freud não pode mais acompanhar. Ao se deparar com a imagem informe da carne na garganta de Irma, Freud se dá conta de um inominável que se refere à sexualidade e à feminilidade, o real da carne para o qual não há significação, daí a fórmula da trimetilamina como literalidade matemática que não se presta à produção de sentido (Teixeira, 2010). Teixeira afirma:
No lugar de estabelecer-se como um saber sobre o sentido do sexual, a psicanálise coloca em evidência a questão do sexual, em sua dimensão de enigma, como uma função de suspensão do sentido. Desse ponto de vista, o caso Irma-Emma nos parece particularmente relevante para pensar a constituição do saber psicanalítico: sua evolução nos permite acompanhar, com especial nitidez, o abandono determinante da perspectiva referida ao sentido do sexual. É ela que permite a Freud, finalmente, chegar a uma "literalização" manifestamente "assemântica" do sexual, representada pela fórmula da trimetilamina, no lugar em que a teoria de Fliess estabelecia o conhecimento do seu sentido numa verdadeira copulação discursiva. (p. 4).
A própria escrita do Projeto já configura, conforme Teixeira, uma tentativa, decerto ficcional, de recorrer a uma concepção mecânica e "literalizada" do sexual, o que evidenciam os termos, extraídos do jargão da física e da neurologia, utilizados nesse esboço. É nesse sentido que, segundo Lacan (1954-1955/2010, p. 221), Freud vivencia, com esse sonho, o "momento decisivo em que a função do inconsciente era descoberta" - função de cifra, depurada da profusão imaginária de sentido (Teixeira, 2010).
É importante lembrar que Freud (1900/1996) informa, no preâmbulo do relato, que havia escrito o caso clínico, o caso Emma, na noite anterior ao sonho. Sabemos também que é o sonho que aciona a escrita do Projeto (Teixeira, 2010), incluindo o recorte do caso. Portanto, há uma intrincada interconexão entre o caso Emma, sua construção e "o sonho dos sonhos", que parece contornar a dimensão inominável que a prática psicanalítica expõe a Freud já nesse momento inicial.
Considerações finais
Sabemos que Emma já é uma jovem adulta ao ser atendida por Freud. Mas é preciso destacar a escolha do psicanalista pelo foco num recorte do caso que tem como elemento principal a puberdade para ilustrar a teoria do trauma. Se, no extrato clínico em questão, o efeito traumático provém de uma contingência que remete ao real sem sentido de uma experiência, isso se deve a um evento que acontece no corpo - a excitação sexual experimentada por Emma na cena I - e que está relacionado ao despertar pubertário. As conexões estabelecidas a partir dessa contingência devem-se à intensidade afetiva ligada às representações, e não à significação a elas atribuídas. Ou seja, é a intensidade libidinal perturbadora do corpo da menina que configura o elemento contingencial capaz de desencadear a significação traumática da cena anterior, originalmente desprovida de sentido.
A nosso ver, essa via de leitura da obra freudiana corrobora a hipótese de que a puberdade subsiste, apesar de toda a evolução da teoria da sexualidade, num lugar de grande importância para a compreensão da constituição subjetiva. Se após o caso Emma - e outros trabalhos do período inicial dessa obra que trazem o mesmo referencial etiológico - há certa desvalorização da puberdade em meio à introdução da sexualidade infantil, a noção lacaniana de real vem resgatá-la, a posteriori, conferindo-lhe todo seu valor.
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1 Trata-se de um desenvolvimento teórico baseado na tese de doutorado XXX, defendida na XXX, do(a) autor(a) do presente artigo.