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Boletim de Psicologia
versão impressa ISSN 0006-5943
Bol. psicol vol.63 no.139 São Paulo dez. 2013
ARTIGOS ORIGINAIS
A empresa-mãe protetora (re)vela uma dimensão perversa
The protective mother-company (un)covers a perverse dimension
Antônio Carlos de Barros Júnior*; Marcelo Afonso Ribeiro*
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - USP
RESUMO
O capitalismo da flexibilização produziu mudanças importantes na gestão das organizações, afetando também aquelas consideradas as melhores empresas para trabalhar. Aqui descrevemos resultados de uma pesquisa de pós-graduação sobre a relação inconsciente entre o sujeito e esse capitalismo, numa rede hoteleira multinacional. O método usado foi qualitativo, sendo um estudo de psicanálise aplicada na análise do discurso de documentos da empresa e de entrevistas abertas com seis de seus funcionários, realizadas entre 2007 e 2008. A velha empresa-mãe está sendo substituída pela empresa objetiva na seleção dos que estão aptos e na implementação de mudanças que o imperativo ao lucro exige. Mantém, contudo, a roupagem da mãe-protetora, da eleita mais de 10 vezes como uma das melhores empresas para trabalhar no Brasil. Entretanto, delineiam-se impasses e contradições nos discursos, que parecem oscilar entre o laço social neurótico e o perverso.
Palavras-chave: Laço social; organização do trabalho; comprometimento organizacional; psicanálise aplicada.
ABSTRACT
Flexibilization capitalism has produced important changes into the way that companies are managed, also affecting those considered as the best places to work. Here we describe results of a post-graduate research about the unconscious relationship between the subject and such capitalism in a multinational hotel company. The method adopted was qualitative - a study of applied psychoanalysis through the analysis of discourses from organizational documents and open interviews with six of the company employees, held in 2007 and 2008. The old mother-company head office is being replaced by another one, which is objective when selecting competent people and implementing changes to fulfil profit demands. It keeps the image of a protective mother elected more than 10 times as one of the best companies to work in Brazil. However, some contradictions and impasses are detected in the analysed discourses, which seem to oscillate between the neurotic and perverse social ties.
Key words: Social ties; work organization; organizational commitment; applied psychoanalysis.
INTRODUÇÃO
As empresas capitalistas sempre visaram o lucro, ainda que a maioria possa ter alguma outra função social também. Marx (1867/1980) apontou que, desde os primórdios da Revolução Industrial, para a obtenção de tal lucro, as empresas se valem, sobretudo, da apropriação de algo de seus funcionários, seja do seu tempo, do que produzem, das suas habilidades e assim por diante, de maneira que o que cabe a eles deve ser sempre menos do que o que cabe a elas, aos donos do capital.
Se sempre houve casos em que tal apropriação foi levada ao extremo, isto é, casos de superexploração das pessoas, é verdade também que houve (e há) organizações que ofereciam (oferecem) melhores condições de trabalho, ainda que o objetivo de obtenção de lucro e o princípio de apropriação permanecessem (permanecem) basicamente os mesmos. Elas aparecem, em particular, após a 2ª Guerra Mundial, com o estabelecimento de políticas keynesianas de intervenção e regulação da economia, com a delimitação das lutas de classe, os sindicatos e partidos políticos passando a ser mediadores institucionais e o Estado como elemento de arbítrio (o Estado do bem-estar social) (Antunes, 1999). Em muitas dessas organizações, as pessoas passavam uma vida inteira e identificavam-se enormemente com elas (Sennett, 2005; Pagès et al., 2008).
De fato, segundo Tolfo e Piccinini (2001), a partir de 1950 todo um arcabouço teórico foi desenvolvido para humanizar o trabalho, desenvolver as condições adequadas à sua realização e permitir aos empregados desenvolverem habilidades nas suas atividades laborais. É a abordagem que se denomina, ainda hoje, de qualidade de vida no trabalho.
Com a crise dos anos de 1970, marcada pela diminuição das taxas de lucro, aumento do preço da força de trabalho, esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista, na sua incapacidade de responder à retração do consumo, aliada ao excesso de produção, passou-se a adotar as práticas de gestão do toyotismo (Antunes, 1999). As palavras de ordem, em particular a partir do final do século XX, passaram a ser: otimização dos processos produtivos, da gestão, dos recursos utilizados; imperativo de excelência no que se faz; flexibilização e adaptação às condições que se apresentam; aumento de produtividade; redução de perdas e maximização de ganhos. Processos de reestruturação e enxugamento das organizações passaram a ser muito comuns (Antunes, 1999), a competição entre elas passou a ser extremamente acirrada e a um nível global, e as pessoas começaram a viver o risco de descartabilidade a qualquer momento (Malvezzi, 1999).
Num contexto assim, como ficam as práticas de humanização, de qualidade de vida no trabalho? Há alguma conciliação entre o imperativo de se lucrar cada vez mais, de se competir ferozmente com os concorrentes e condições de trabalho muito boas? Mais precisamente, como fica tal equação numa empresa considerada, há mais de 10 anos, uma das melhores para trabalhar no Brasil, segundo pesquisas publicadas pelo Guia Você s/a Exame - As melhores empresas para você trabalhar e pelo Great Place to Work Institute Brasil? (Ver as edições correspondentes a 2010, por exemplo). Que relação inconsciente existe entre os sujeitos implicados e entre eles e a empresa, nesse laço social?
Este artigo visa elucidar alguns aspectos dessas questões, a partir de um recorte dos resultados de uma pesquisa de pós-graduação, executada no contexto de uma empresa multinacional do ramo hoteleiro. Não serão analisadas as pesquisas realizadas pelo Guia Você s/a Exame ou pelo Instituto Great Place to Work, nem quanto ao método utilizado por eles, nem tampouco com relação aos seus resultados. Interessava aqui somente analisar o que delas aparecia no discurso dos funcionários da empresa, que foram entrevistados, e nas publicações internas da companhia em questão.
MÉTODO
Tratou-se de uma pesquisa qualitativa de psicanálise aplicada sobre a articulação fantasmática e institucional na empresa em questão (articulação que constitui fundamentalmente a relação sujeito - outro). Foi realizada pela análise do discurso produzido em entrevistas abertas com al-guns de seus funcionários, realizadas entre outubro de 2007 e novembro de 2008, e pela análise de material impresso e on-line (revistas de circulação interna e site na internet) referente à organização do trabalho, em particular à visão, aos valores e aos objetivos da empresa e sua relação com o discurso dos seus funcionários.
A pergunta inicial feita aos funcionários entrevistados foi "fale o que lhe vier à cabeça sobre a sua relação com a empresa, com este hotel". A partir do que iam dizendo, sem uma definição prévia, novas questões foram formuladas, notadamente exploratórias.
Em relação às revistas da empresa e ao material on-line, foi feito um levantamento dos temas abordados nos artigos, entrevistas e notícias publicadas. Desses temas, procurou-se verificar quais se referiam a questões abordadas pelos sujeitos nas entrevistas realizadas. O intuito da análise documental como um todo era verificar, se havia ressonância ou divergência entre o discurso institucional e o dos sujeitos e pensar, em que medida um constituía o outro e dele era constituído.
A escolha de sujeitos para o projeto foi intencional, oposta à amostragem estatística, interessada na representatividade da amostra em relação à população total (Turato, 2003). Um primeiro sujeito foi selecionado, pelo critério de trabalhar numa empresa multinacional do setor hoteleiro. Uma teoria "frouxa" sobre o material coletado com esse primeiro sujeito foi desenvolvida (Turato, 2003), pela análise do discurso produzido na entrevista. Em seguida, cinco outros sujeitos foram entrevistados e as interpretações desenvolvidas anteriormente foram revisadas, com a análise dos dados coletados nessas entrevistas. Esses sujeitos foram indicados uns pelos outros, exceto um deles, que, como o primeiro, foi uma indicação externa ao grupo dos participantes da pesquisa. No total, pois, foram seis entrevistados, funcionários de 4 hotéis da rede, no estado de São Paulo. Dos indivíduos, três exerciam funções gerenciais nos respectivos hotéis onde trabalhavam, dois ocupavam cargo de chefia de times, e um era recepcionista. A realização de novas entrevistas foi interrompida, quando a interpretação do material coletado começou a se repetir, em grande medida, quanto às configurações institucionais em jogo.
Ontologicamente, o sujeito aqui considerado comporta em si uma dimensão inconsciente, constituída na relação com o outro, na própria condição de seres falantes, o que inclui aquilo que escapa no uso da língua e nos atos de fala (o que é implícito, pressuposto sem que os sujeitos se deem conta) (Maingueneau, 2000), mas também no que se refere às interdições sexuais [recalque (Freud, 1923/1981b)], aos limites impostos pela vida em sociedade (Freud, 1929/1981d) e às relações institucionais.
Na análise realizada na pesquisa não foi feita distinção entre Outro e outro, tal como Lacan (1954-1955/1985) o postulou. Foi usado outro indistintamente, quer quando se tratava (prioritariamente) da sua dimensão simbólica ou real, quer quando se tratava do outro imaginário (imagem especular do eu). Tomou-se, pois, o outro como sendo, ao mesmo tempo, em alguma medida, de ordem real, simbólica e imaginária, para usar os registros lacanianos.
O aspecto simbólico da relação sujeito-outro foi abordado pela sua dimensão institucional. A referência indireta ao Simbólico é, portanto, aqui feita de maneira a tomá-lo nem tanto como estrutura de linguagem apenas, mas como aquilo que é da ordem do institucional, de relações e convenções sociais, ditas ou não ditas, legitimadas na sua repetição (Guirado, 2007). Quer dizer, que a própria condição de sermos seres falantes de uma determinada língua estruture, sim, de certo modo, a realidade tal como a vemos, não nos parece que essa estruturação advenha apenas da forma da linguagem e dos atos de fala nela inseridos. Aqui partimos da hipótese de que o conteúdo institucionalizado também está em jogo e, mais do que isso, que está inextricavelmente ligado à forma e vice-versa.
Partiu-se, além disso, da noção de gozo:
implica a ideia de uma transgressão da lei: desafio, submissão ou escárnio. O gozo, portanto, participa da perversão, teorizada por Lacan como um dos componentes estruturais do funcionamento psíquico, distinto das perversões sexuais. ... Lacan estabelece então uma distinção essencial entre o prazer e o gozo, residindo este na tentativa permanente de ultrapassar os limites do princípio do prazer. Esse movimento ... é causa de sofrimento; mas tal sofrimento nunca erradica por completo a busca do gozo (Roudinesco & Plon, 1998, p.299-300).
Instituído pelo outro, notadamente institucional, na e pela linguagem, o gozo aqui é tomado na satisfação de ultrapassar o limite, a lei, na busca de um para-além do prazer, na relação com o outro, o que também gera sofrimento. Está, pois, ligado à perversão ou à fantasia perversa na neurose. Perversão que é, segundo Roudinesco e Plon (1998, p. 585-586), "um grande componente do funcionamento psíquico do homem em geral, uma espécie de provocação ou desafio permanente à lei", "aparece como uma renegação ou um desmentido da castração" - esta aqui entendida no sentido de limite do outro. Portanto nos referimos a uma noção ampla e geral do funcionamento psíquico humano, ainda que em forma de fantasia (como no caso dos neuróticos).
Se um gozo absoluto é impossível, por definição, já que o outro e o limite imposto por ele sempre existirão e porque é tal limite que estrutura, que funda o gozo, há, por outro lado, outras modalidades de gozo possíveis, estando associadas, de um jeito ou de outro, à interdição ou à impossibilidade. O gozo, então, passa a ser a vivência em que o outro, embora imprescindível para a sua efetivação, é colocado no lugar de resto, de puro objeto, ou de inexistente (na sua condição de alteridade); ou a lei é ignorada ou burlada, de alguma forma, ainda que imaginariamente pelo sujeito. Ou ainda o próprio sujeito coloca-se no lugar de puro objeto para o outro real (Lacan, 1962-1963/2004).
A análise e a interpretação dos dados coletados nas entrevistas levaram em conta a forma como o discurso foi enunciado, o que mostra no dizer além do que foi dito em si; a busca por legitimação, por reconhecimento no que se diz, no como se diz; os lugares a partir dos quais os enunciados são proferidos (Maingueneau, 2000); os lapsos, as hesitações, as contradições, as repetições, as denegações (Freud, 1925/1981c e 1901/1981a). Mas levou em conta também o conteúdo do discurso, o que foi dito, o sentido manifesto veiculado, e também a possibilidade de outros sentidos, dada a dimensão inconsciente aqui assumida.
ANÁLISE E COMENTÁRIO DOS RESULTADOS
A imagem da empresa-mãe que é uma das melhores para trabalhar
A empresa, cujos funcionários foram ouvidos na pesquisa aqui apresentada, aparece, no discurso deles, sobretudo como um pai ou uma mãe, figura que parece estar em vias de transformação, mas que, ainda assim, se mostra com uma faceta de proteção em relação aos seus. Tal faceta aparece sob as insígnias da "empresa-mãe", do "paternalismo" e da "família". Pedro (nome fictício), gerente de um dos hotéis da rede aqui em questão, denomina-a de "empresa-mãe", falando da preocupação dela em agregar as suas diversas unidades, em manter uma unidade, em formar os seus funcionários (ou "colaboradores", como os chama). Waldemar (nome fictício), recepcionista, diz que admira a empresa porque "ela dá valor ao colaborador ... (e) isso incentiva", mas também pela sua parte social, pelo trabalho com asilos e crianças. Débora (nome fictício), gerente de uma outra unidade da rede, cita o "paternalismo" em relação a antigos funcionários e o chefe "paizão". Marcela e Wanda (nomes fictícios), também funcionárias da organização (ambas chefes de serviços dos hotéis onde trabalham), veem-na como uma "família". Wanda menciona que "as pessoas ... são unidas, demonstram ... amizade por você, aconchego ... Na hora da correria um ... ajuda o outro, a gente não se sente desamparado."
Nas palavras de Pedro: "esta empresa não é como as outras, ela olha para os colaboradores de uma forma bastante importante, ela se preocupa, a gerência se preocupa." Arremata ele, dizendo que há 10 anos a empresa é eleita uma das 10 ou 20 melhores empresas para trabalhar no Brasil. Aqui há uma identificação com esse lugar da mãe protetora, que se preocupa com os seus filhos-colaboradores, mas também da que os mantém ligados em torno dela. Pedro, ele próprio sendo gerente, afirma que a gerência do hotel está muito mais "dentro da empresa-mãe ... que o resto dos colaboradores" e que "é utilizada para fazer a captação das outras pessoas para dentro da empresa."
Como os diversos hotéis da rede funcionam como unidades separadas e, até certo ponto, independentes, criam certa distância entre aqueles e a "empresa-mãe". Para que a prole não se perca, ao que parece, é atribuído à gerência esse papel de "veículo para chegar aos colaboradores", para "captá-los para dentro da empresa-mãe". As dezenas de unidades e os milhares de funcionários espalhados por elas poderiam tomar caminhos diversos, imprevisíveis, indesejáveis, talvez. É preciso, pois, um veículo que os faça trabalhar com "mais ou menos a mesma mentalidade" e que os traga para dentro da empresa-mãe, que os mantenha tão próximos quanto possível nessa rede de proteção. Rede que oferece muitos benefícios e atividades sociais diversas, citados por seus funcionários: assistência funerária, previdência privada, aulas de preparação para supletivo dadas pelos próprios funcionários (os graduados) aos que não completaram o ensino fundamental ou o ensino médio, curso de inglês durante o horário de expediente, etc. Mas o aspecto mais ressaltado foi o de a empresa oferecer muitas oportunidades de carreira - "quem tem juízo, ... interesse, vai fundo, vai longe", nas palavras de Waldemar. Na mesma linha, Wanda diz: "é uma empresa boa, que dá oportunidade. É só você aproveitar ... e estar buscando sempre" (grifo nosso).
Tudo isso é fortemente veiculado pela empresa, segundo Pedro, através da gerência, mas também através de treinamentos institucionais, de publicações internas distribuídas aos funcionários, do site da organização e assim por diante. A imagem maciçamente construída é a da empresa-mãe que se preocupa com todos, 10 vezes eleita, até 2008, como uma das melhores empresas para trabalhar (algumas vezes figurando entre as 10 melhores), e que dá oportunidades a quem quiser se juntar ao coro, ou, como bem traduziu Waldemar, recepcionista: "a empresa tá aí pra quem tiver coragem, não for preguiçoso. ... Se a pessoa não crescer na empresa é por comodismo."
A título de exemplo, em 3 revistas de circulação interna na empresa, a que se teve acesso, publicadas entre junho e outubro de 2007, é ressaltada a preocupação com os funcionários - prêmios, vantagens, treinamentos, palestras e eventos oferecidos a eles, bem como agradecimentos por contribuições diversas ou metas atingidas - num total de 23% dos tópicos abordados. Além disso, havia matérias sobre os prêmios que a rede recebeu (11% do total delas) e nelas ressaltava-se a 10ª conquista de ser uma das melhores empresas para trabalhar no Brasil, de acordo com pesquisa anual das revistas Exame e Você s/a (numa das revistas internas da empresa, foi o tema da capa e ocupou 25% das páginas da publicação). Também aparecia o prêmio de ser uma das 25 melhores empresas para trabalhar pela pesquisa do Great Place to Work Institute e o de rede hoteleira do ano de 2007, pelo Guia 4 Rodas.
Um outro tema muito explorado é o da responsabilidade social da empresa (14% do total de matérias das revistas analisadas), com a menção aos inúmeros projetos nesse sentido, incluindo eventos beneficentes para angariar fundos para entidades diversas, programas de educação solidária, reciclagem de lixo, doações a asilos e retiros de idosos, inclusão de portadores de deficiência e assim por diante.
Os impasses do discurso institucional oficial
Os valores da empresa, outro tema também bastante explorado, ficam também publicados no site da empresa na internet (acesso em dezembro de 2008). São eles:
• Confiança: nós criamos, a priori, um clima e uma relação de confiança entre todos;
• Espírito de conquista: assumimos riscos e combinamos audácia, iniciativa e espírito de equipe para nos desenvolvermos;
• Inovação: devemos olhar a diante, nos antecipando e agindo de forma a criar novas soluções que contribuam para o progresso;
• Performance: impomos-nos, a cada dia, altos níveis de exigência individual e coletiva buscando o melhor de nós mesmos para obter o melhor resultado;
• Respeito: consideramos e valorizamos homens e mulheres, em todo o mundo, com toda a sua diversidade, tanto dentro quanto fora do Grupo.
A descrição dos valores na primeira pessoa do plural parece denotar algo da pertença à grande família - "nós todos" e há algo de imperativo neles - "nos impomos", "devemos". Além disso, ficam algumas questões: por que o "a priori" na descrição de Confiança? Quer dizer, pode ser que a confiança seja quebrada em alguma situação? A Performance e o assumir riscos não se chocam, vez ou outra, com a diversidade, considerada e valorizada? Ou seja, o que fazer com uma ou outra pessoa - diversa - que não gosta muito de se arriscar ou cujos resultados não se enquadram mais nos altos níveis de exigência?
Numa outra revista que circula em toda a rede mundial da empresa (edição de maio de 2007), o Diretor Geral de finanças, compras e sistemas de informação do Grupo dá uma entrevista. Responde ele, ao ser questionado sobre quais são as forças e os trunfos da empresa:
A empresa encontra sua principal força em suas colaboradoras e seus colaboradores, ... sua capacidade de adaptação, sua aptidão em "inovar no seu trabalho": estas são as características de uma cultura de assumir riscos! A empresa oferece oportunidades aos que as merecerem e demonstram sua vontade de vencer.
Ou seja, a empresa-mãe é muito boa e qualquer problema que haja é porque o filho não foi bom, não mereceu - acomodou-se, não teve coragem, não estava preparado, não se adaptou, não se arriscou ou foi preguiçoso. Problema que pode incluir oportunidades de promoção dadas a outros, ou mesmo demissão. Evidentemente que existem casos de pessoas que, sintomaticamente ou não, de fato acomodam-se, não estão preparadas e nem motivadas a se preparar, mas certamente há muitas outras variáveis envolvidas nessa dinâmica, que não só a implicação dos sujeitos ditos não merecedores.
Marcela, que vê a empresa como uma família, quando perguntada sobre como vê o fato de que, ainda que seja uma família, às vezes expulsa alguns de seus membros, responde:
Isso é um processo natural também, não tem como. Famílias também têm suas desavenças, as brigas... E isso é uma coisa também que eu acho natural, não é que a gente vai viver aqui para sempre. ... Um dia isso vai acontecer ... Lógico que ... Acho que parte mais dos colaboradores assim, do que da empresa. Eu acho que isso não é responsabilidade ou culpa do, da empresa e sim dos colaboradores. ... Nem todo mundo está preparado.
Para ela, é muito mais o filho que não se prepara e que resolve partir, do que a família que decide mandá-lo embora. Mas o vacilo na menção à culpa de quem seria - "do, da..." - parece indicar certa divisão subjetiva entre o que deveria pensar e dizer e o que pensa de fato a respeito ou, pelo menos, indica que a responsabilidade ou a culpa aludidas não são tão definitivamente estabelecidas. Acrescenta que um aspecto que admira muito na empresa é justamente a preocupação com os funcionários, se estão trabalhando bem; preocupação com o clima nas unidades, com a saúde das pessoas, entender que ficam doentes, que têm problemas; atenção com a sua formação. Ela mesma participou das aulas dadas pelas chefias de seu hotel, o que possibilitou a ela passar na prova do supletivo virtual. Arremata: "para quem realmente quer trabalhar e quer seguir carreira, é só se esforçar." Entretanto, menciona que "é natural", quando entra um novo gerente-geral, que haja muitas mudanças na equipe - funcionários saindo, outros sendo promovidos e outros, ainda, sendo mandados embora. Ou seja, deduz-se que o que está em jogo não é só o esforço das pessoas, mas também uma avaliação de cada gerente que assume, entre outras questões.
Para Débora, o cuidado e a preocupação com os funcionários são vistos como sendo paternalismo, sobretudo do outro. Cuidado que é visto como indevido, às vezes, quando "não importa se ela (a pessoa que o recebeu) é apta ou não apta" e ainda assim o recebe. Cuidado que não "é por livre e espontânea vontade, coisa de coração". A empresa, que "é muito paternalista", surge como a que cuida dos seus por conveniência e por isso esse tipo de paternalismo é rejeitado, porque amanhã ou depois a verdadeira face dele pode aparecer: a "rasteira", como diz ela. "Em momentos que você tem uma expectativa" e é o outro quem se beneficia ou ainda, quando deveria ser demitido, na lógica das empresas serem "voltadas para o resultado", não o é.
O paternalismo surge também com o próprio sujeito sendo beneficiado. Numa situação em que se ausentou por uns dias, a ex-gerente de Débora quis demiti-la, mas "a empresa não deixou que ela me demitisse", "me arranjaram um outro cargo (ela diz rindo), ... numa outra função que não tinha absolutamente nada do que eu fazia." Apesar de ter sido protegida "foi bom", há uma tentativa de separar os casos em geral do próprio caso. Neste, o sujeito coloca-se como merecedor da proteção: "foi uma situação muito diferente. Eu sabia do meu trabalho ali." - o que pode bem ser verdade - ao contrário do caso de outras pessoas, não merecedoras da proteção, por não estarem aptas às funções atribuídas. Mas o que está em jogo, de fato, parece ser a questão do ser ou não escolhido, para além de qualquer critério subjetivo ou objetivo de escolha. Há, ao que parece, certa ambivalência em relação a esse lugar de protegida, de escolhida. Quando perguntada como foi para ela sentir-se protegida, na ocasião em que a gerente dela quis demiti-la, mas a empresa não permitiu:
Envaidecida, claro, né? Fortalecida... de saber que, tipo, tentaram, mas não conseguiram (riso), né? ...‘quem se ferrou foi você, não fui eu!' (risos) ... Assim, me senti bem, assim ... confortável, mas ao mesmo tempo com ..., como se você abrisse ... uma porta, né, que você tivesse a visão daquele jardim lindo e maravilhoso, né, mas ao mesmo tempo se eu desse um passo tinha um buraco ... muito grande, porque eu estava indo para o desconhecido ... Para uma nova atividade, que eu... não entendia ... entendia o que ia fazer ali.
Outros impasses e entrecruzamentos entre questões fantasmáticas singulares e o discurso institucional
Em vários momentos Débora faz alusão às pessoas estarem ou não aptas e isso ser motivo para demissão, dado que "agora ... as pessoas têm que apresentar ... um resultado, um número, ... sendo (pois) mais cobradas e mais exigidas." O "agora" dá a entender que antes não era assim, na "antiga hotelaria". Neste sentido, o paternalismo, como cuidado e proteção, parece se chocar com a nova ordem do dia, que, em nome do resultado, deve poder excluir aqueles que não estiverem aptos. Caso contrário, tornam-se "um entrave muito grande para a ... empresa", que assim parece entrar na ideologia da competência: a de ter indivíduos que não só possuem saberes (savoir-faire), mas que os mobilizam para o resultado, que se readaptam permanentemente frente aos imprevistos e às mudanças que surgem (Roche, 2004). Tal discurso aparece também na fala de Pedro e Waldemar. Este coloca:
Você que tá aí achando que seus 10 anos de empresa te seguram na empresa? Não, não seguram, não. ... Chega uma pessoa com seu um ano de empresa, ... mais nova, com mais experiência e com vontade de estudar ... e ela sobe. ... Por que ela subiu? Porque ela tem francês, espanhol, árabe, faculdade, ... está carregada de informações e sabe usar as informações que ela tem.
Já Pedro menciona que
A forma de classificação das pessoas dentro do hotel sempre foi por tempo de casa. (Antes) Um cozinheiro de tantos anos sabia mais que um cozinheiro de menos anos .... (Hoje) tem uma garotada ..., pessoas que estudaram, que têm a possibilidade de entrar num nível já mais graduado dentro da equipe, mesmo sem ter 15 anos de experiência.
Diz também que a empresa tem passado por um processo de profissionalização das áreas e funcionários. As pessoas, por serem mais bem treinadas, podem ser menos numerosas nas equipes e fazer mais. No hotel que gerencia, cita, antes havia 0,7 funcionário/apartamento e hoje existe cerca de 0,37, dado o melhor preparo das pessoas contratadas. Que isso possa ser verdade, é fato também que, com menos funcionários agora, os que estão na empresa têm de trabalhar mais e provavelmente podem ficar sobrecarregados. O próprio Pedro diz que não é possível "espremer mais".
O discurso da aptidão, da competência não deixa de ser a expressão de certo jogo de poder, de gozo entre o sujeito e o outro. Tal discurso parece ser um colocar em ato um mecanismo de seleção de gozo: o apto será, ainda que momentaneamente, o escolhido para gozar (perversamente) e os outros, os excluídos (objetos desse gozo). Tanto melhor será, se os outros forem os não aptos e, portanto, possivelmente não terão acesso às promoções de carreira, por exemplo, sendo, em última instância, merecedores de demissão.
Por outro lado, a aptidão não servirá só como fator de exclusão dos outros, mas também talvez como possível fator gerador de angústia no sujeito, seja pela possibilidade de não estar apto o suficiente - e, assim, ser ele próprio excluído, demitido - seja pelos momentos em que se sente o escolhido, mas ainda assim vislumbra "um buraco" diante de si. Seria tal buraco dar-se conta do ilusório e passageiro desses momentos de gozo? ("quem se ferrou foi você, não fui eu!"). Dar-se conta da insustentabilidade do lugar, da impossibilidade de controlar o que vem pela frente, da não plenitude do "jardim lindo e maravilhoso" vivido, em vias de ser perdido? Íntima ligação entre gozo e angústia (Lacan, 1962-1963/2004).
No caso de Débora, o aspecto paternalista, de proteção da empresa, parece estar numa clara associação com o que se passa no âmbito pessoal, familiar, com o ser carinhoso e afetuoso, "paizão", nas palavras dela; com a maneira como foi criada, com a forma como vê a função paterna e como se vê em relação a ela, em casa e na empresa. O ser "paizão" para ela é "fazer cafuné", "dar beijinhos", "abraçar", "ficar alisando", "passar a mão na cabeça ... (quando) você está errado", não ver "as coisas erradas que os filhos fazem". Ser paizão, no aumentativo, é ser alguém muito presente no toque, no carinho, no afeto e, também, um pouco permissivo, relevando os erros.
No caso dos outros indivíduos entrevistados, não foi possível um delineamento de questões fantasmáticas propriamente ditas, mas a dimensão do ser ou não ser escolhido (para cargos e oportunidades de carreira, em particular), do ser ou não ser excluído, aparece na fala de quase todos eles. Também aparece a questão de que, se é o próprio sujeito o favorecido ou o outro, bem como, se a responsabilidade é do próprio sujeito (que não é apto o suficiente, que pode ser preguiçoso ou acomodado, por exemplo) ou, se é da empresa (por ser paternalista ou por outra razão qualquer). Isso remete a discursos institucionais (da aptidão, da competência, da produtividade), mas possivelmente também a questões fantasmáticas de cada sujeito, ao lugar que ocupa na relação com o outro.
Agora que a empresa constitui-se, mais e mais, como sendo "voltada para o resultado", o paternalismo, o "paizão" ou a mãe protetora tem que se transformar: "necessidade de adaptação a uma nova realidade", nas palavras de Pedro.
Segundo uma das revistas de circulação interna consultada (edição de junho de 2007) e o site da empresa no Brasil, existe mesmo um programa em andamento de projeto da empresa na América Latina, cujos eixos são Pessoas ("um ótimo lugar para se trabalhar, o colaborador no centro das atenções"), Serviços ("a excelência em servir é que faz a diferença", "o jeito da empresa de servir") e Lucro ("rentabilidade crescente", "ganhando junto com a empresa"). O presidente da rede no Brasil diz que
Na empresa aqui no Brasil, crescer significa conquistar continuamente a excelência em serviços e um sorriso de satisfação do cliente. ... A empresa vive um momento de profundas transformações, no âmbito de uma revolução da cultura empresarial. ... Trabalhamos nesse momento com o foco no papel das pessoas dentro da empresa. ... Queremos que a empresa no Brasil continue como uma empresa diferente. Todo esse trabalho é baseado em processos amplos de comunicação, que envolvem as pessoas que fazem a empresa viver. ... O Projeto de Empresa é o guia de orientação de todos os colaboradores da empresa e a fonte de inspiração dos profissionais da empresa no Brasil. ... É o ponto de convergência das pessoas em torno de nossas crenças e da importância do nosso papel na sociedade brasileira. (Site da empresa, consultado em 31 de dezembro de 2008).
Nessa fala vê-se algumas palavras-chave evocadas no capitalismo deste início de século: excelência, satisfação do cliente, profundas transformações na cultura empresarial, foco no papel das pessoas, processos amplos de comunicação, colaboradores. Ecoam na fala de todos os que foram entrevistados. Não fosse pelos impasses desse discurso, pelas denegações ou contradições na fala dos sujeitos quanto a uma dimensão de sofrimento e de gozo envolvido, poderíamos pensar que estamos diante de um coro uníssono de vozes enunciando um laço social em perfeita harmonia. Mas não estamos.
Seja como for, a necessidade de redução de custos e despesas tem gerado, de acordo com Pedro, uma mudança na estrutura organizacional dos hotéis, que passou a ser caracterizada por: 1) uma profissionalização e um nivelamento das pessoas - contratação de pessoas graduadas ou com no mínimo ensino médio; criação de critérios de qualificação que as pessoas passam a absorver, segundo Carina; treinamentos para os já contratados; homogeneização das formas de trabalho nas diferentes unidades, tendo a gerência como maior veículo; 2) processos de gestão muito mais eficientes e informatizados, de acordo com Carina; 3) corte de serviços oferecidos pelos hotéis, mas também corte de pessoas em termos relativos por apartamento de cada hotel.
A exigência de pelo menos ensino médio para qualquer função exercida nos hotéis dá-se pela mudança de perfil dos que trabalham na hotelaria, pela necessidade de profissionalização das equipes e dos serviços oferecidos, segundo Carina. Neste sentido, alguns dos itens que ela menciona incluem, por exemplo, a utilização da informática, a conduta adequada ao entrar num apartamento para arrumação; a forma correta de dobrar um lençol; o uso de produtos químicos de limpeza especiais; o trato com o cliente, que pode ser estrangeiro e assim por diante. Arremata dizendo que, conviver com pessoas com melhor qualificação, é "diferente", elas têm mais vontade de crescer, questionam mais, o resultado é "diferente", subentende-se, melhor.
Mas na medida em que as pessoas são niveladas pelos mesmos critérios de qualificação e adequação ao discurso da empresa, o ser diferente em questão, no fundo, é ser o mesmo, igual. Espera-se um resultado sempre bom, igual, diferentemente de possíveis oscilações, quando não se adotavam tais critérios. Isto é, se alguém for, de fato, diferente nesses critérios, não serve, ou precisa ser "lapidado", "formado", nas palavras de Carina.
O questionamento dos funcionários, a sua vontade de crescer é enaltecida. Wanda diz que gosta de trazer coisas novas para a sua equipe de arrumadeiras e faxineiras, para que trabalhem mais satisfeitas, tenham "uma visão diferente da coisa, não só ficar parado aí, empurrando carrinho e arrumando quarto." A "coisa" parece ser o empurrar carrinho e arrumar quarto, ficar parado, sem ter perspectivas outras. Ter uma outra visão disso seria pensar em fazer alguma outra coisa ou fazer o mesmo, mas com outros olhos?
Nesse sentido, quando Carina é perguntada sobre o que aconteceria se todas as faxineiras resolvessem crescer, já que afinal alguém vai ter de continuar fazendo a faxina, a resposta vem sem desfazer o nó do impasse que a questão levanta. Argumenta ela que é bom que uma faxineira queira crescer, mas que procura passar a mensagem a todas as pessoas de que, independentemente do tipo de trabalho que fazem, ela é importante. Ou seja, alguém tem de continuar querendo fazer faxina ("a coisa?") e, mais do que isso, é óbvio que não há espaço para crescimento hierárquico para todo mundo na empresa.
Com isso, a mensagem, que parece ser institucional e paradoxalmente veiculada, é a de que é desejável querer crescer, de que é preciso sair do "mundinho" próprio em que as pessoas vivem, mas também de que é preciso continuar fazendo o trabalho que se faz, pois ele é importante. É como se houvesse uma promessa da empresa dizendo "Nós queremos que você cresça. Se você não for preguiçoso, entregar-se, produzir muito, arriscar-se, estiver comprometido e alinhado com o que esperamos de você, ou seja, se for colaborador (se colaborar) e se você desejar, vai crescer." O que fica elidido é o fato de que o que importa mais é que todos produzam muito, o mais possível. Também fica elidido que nem todo mundo pode querer crescer; primeiro porque muitos ainda vão ter de continuar fazendo a faxina, por exemplo; segundo, porque não há vagas nos níveis superiores para todos. No fundo, há uma competição e uma seleção envolvida, que não diz respeito só a cada sujeito ou só às suas aptidões, qualificações e comprometimento. Há questões outras, além dessa ligada ao número limitado de vagas de chefia ou de gerência, tais como as dos jogos políticos envolvidos, como cita Débora, as de como a gerência avalia uma equipe, como indiretamente menciona Marcela, e assim por diante. Além disso, ao promover tal corrida para o crescimento na carreira, a tendência é a de que a empresa se beneficie e apresente, de fato, maior produtividade, melhores números.
Está em vias um processo de transformação na empresa em que o discurso da melhor empresa para se trabalhar, dos inúmeros benefícios e oportunidades, das possibilidades de formação e treinamentos oferecidos, permanece e é fortemente instituído, mas que é preciso trabalhar bem, não ser preguiçoso, não se acomodar para poder dele usufruir. A proteção, que parecia existir para os que tinham tempo de casa, tende a desaparecer, na lógica do "espremer o negócio" (redução do número relativo de funcionários), a que Pedro faz alusão. A organização, que ao que parece, até então tinha esse aspecto de supostamente preocupar-se com todas as pessoas, de manter mesmo as consideradas não aptas, agora surge como a do pai rígido, um pouco perverso, já que elide suas verdadeiras motivações e meios, que deve cobrar em nome do resultado, que tenta formar e profissionalizar aqueles que não estiverem aptos, mas que, no limite, pode demiti-los. O detalhe é que esse pai, que "espreme" e manda embora, permanece vestindo a roupa da mãe protetora, dentro da saia de quem todos os funcionários devem estar, se assim o merecerem - o que reforça ainda mais sua outra faceta: a perversa. Perversa no sentido do imperativo à lucratividade crescente e à eficiência máxima, que supera qualquer preocupação com os funcionários, ainda que isto seja denegado. Perversa na "lapidação" das pessoas, depois de terem suas aptidões avaliadas, a fim de que se tornem "profissionais" e que também estejam alinhadas com o discurso da empresa, ainda que se apregoe uma valorização da diversidade. Perversa na possibilidade de eliminação dos que não forem merecedores, não estiverem aptos ou alinhados com o discurso da empresa, não forem colaboradores - não colaborarem naquilo que se espera deles, eliminação feita em nome da falta de aptidão ou da necessidade de aumento de produtividade ou de redução de custos.
Débora clama, manifestamente, por menos proteção, cuidado, afeto, subjetividade, brasilidade e mais aptidão, resultados, números, objetividade: "brasileiro tem isso, tudo é sofrido, eles não ... nós não somos muito objetivos ... eles (os que vêm da matriz no exterior) são muito mais profissionais, mais secos." Segundo o que se delineia nessa lógica, com isso haverá menos protecionismo injusto, indevido do outro; mas será que haverá menos risco de "rasteira"? Ou seja, na medida em que todos estarão inseridos nesse processo de crivo da aptidão e dos resultados, não só os outros, mas também o próprio sujeito poderá ser considerado não apto e ser demitido, sem segunda chance, como antes. Estão, pois, os sujeitos numa ordem institucional de verificação das aptidões ("somos cobrados") que parece quase inexorável? Seja como for, os sujeitos, com o seu discurso e atos, inserem-se nela e revalidam-na, repetem-na, reverberam-na.
A hesitação entre o "eles (brasileiros) não..." e o "nós (brasileiros) não somos muito objetivos" reflete bem as questões que devem estar em causa: será que eu, como sujeito brasileiro, estou fora desse jogo em que me insiro e ajudo a criar, a repetir? Será que é possível instaurar uma objetividade, um olhar meu, de fora, para o outro, do qual eu esteja excluído? Será que posso eliminar esse "sofrido" do ser (humano?), do ser brasileiro?
Numa outra passagem Débora diz "eu falo que eu vou morrer pela língua, né? ... Se um dia me ... Se eu sair da empresa vai ser, porque eu acho que eu vou ... (cortando) acho que eu falo demais, né?". Ainda que a questão da aptidão não apareça com todas as letras nesse trecho, o "se um dia me ...", que foi interrompido e seguido de "se eu sair da empresa vai ser porque ... falo demais", parece remeter a um "se um dia me demitirem" que não pôde ser dito. Supomos, pois, que falar o que é adequado ou falar na medida certa deve encaixar-se no esperado pela empresa, no quadro de aptidões a serem verificadas. Mas falar "demais" pode ser motivo para sair da empresa. Deduz-se, então, que haverá os momentos em que "quem se ferrou foi você, não fui eu!", mas também o oposto; haverá os momentos da "visão do jardim lindo e maravilhoso", mas o "buraco" do desconhecido estará logo à frente. Em outras palavras, nessa configuração de empresa, a possibilidade de gozo, em certo sentido perverso, parece aumentar, mas com ela a de angústia (Lacan, 1962-1963/2004).
Em suma, certa modalidade da instituição empresa parece delinear-se como sendo constituída nesse jogo de poder, gozo e provavelmente, no limite, de angústia em torno da aptidão, da produtividade, do resultado, sendo a imagem da melhor empresa para trabalhar, das inúmeras oportunidades de carreira, da preocupação com o funcionário a sua face aparente. Mesmo o paternalismo de outrora, a proteção em relação a uns e outros não aptos, que antes parecia ser a tônica da empresa, só representava a tensão presente nesse jogo e sendo dele constituinte, permanecendo, de qualquer forma, na supostamente nova configuração de empresa, com sua faceta perversa, vestida de mãe-protetora.
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
A instituição empresa comercial sempre teve por objetivo o lucro, advindo da diferença entre o valor cobrado pelos produtos ou serviços oferecidos e os custos e despesas para produzi-los ou fornecê-los. Nessa dinâmica, uma parcela significativa do lucro advém da apropriação de mais-valia (Marx, 1980). Tal objetivo permanece o mesmo, ainda que, ao longo do século passado, diferentes práticas para atingi-lo tenham sido empregadas e diferentes discursos tenham sido veiculados com esse intuito. Vimos, pois, a passagem do taylorismo/fordismo, das políticas keynesianas e do Estado do bem-estar social, até chegarmos ao toyotismo, às práticas e aos discursos do capitalismo deste início de século XXI. Aí se incluem as reestruturações e as reengenharias nas empresas e nas políticas de gestão; a flexibilização nos modos de produção e nos vínculos trabalhistas; o imperativo à excelência e à produtividade; a ideologia da competência e da prerrogativa do indivíduo no desenvolvimento de sua carreira; os discursos de valorização dos funcionários, supostamente considerados o maior recur-so das organizações, e assim por diante. Se a base, os fundamentos do que é uma empresa comercial permanecem os mesmos e continuam a ter a mesma faceta perversa de sempre, agora entidades abstratas externas - a globalização, a competitividade atroz, o mercado - são usadas para justificar a intensificação da apropriação do que era originalmente do outro. O que mudou foi, sobretudo, o discurso adotado para justificar certo tipo de gozo perverso.
Na situação da organização analisada nesta pesquisa, a velha empresa-mãe protetora, que supostamente demonstrava cuidado pelas pessoas, independentemente de serem ou não aptas, cuidado nem sempre desinteressado, às vezes realizado de forma indevida, frustrando, essa precisa ser eliminada - e está sendo, ao que parece. A velha empresa-mãe, subjetiva nas escolhas, lenta nas decisões, está sendo substituída pela nova empresa voltada para o resultado, objetiva nas escolhas dos que estão aptos a realizarem as funções; profissional, rápida na implementação de mudanças e reestruturações que os números exigem. Mas isso tem sido feito, mantendo-se a velha roupagem da mãe-protetora, da eleita mais de 10 vezes como uma das melhores empresas para trabalhar no Brasil, da que se preocupa com os filhos-funcionários, que quer vê-los crescer; que oferece a eles muitas oportunidades de carreira, que ganharão, se se esforçarem, se produzirem muito, se demonstrarem excelência nos serviços prestados, se forem colaboradores - colaborarem naquilo que é esperado deles.
Assim, há, aparentemente, um discurso quase uníssono sobre um laço social em grande harmonia, tanto na documentação oficial da empresa, quanto na fala de seus funcionários. Entretanto, no fundo, tanto aquela quanto esta denunciam certo impasse e contradições entre as práticas visando aumento de performance, produtividade, lucratividade, aquelas que estimulam o alinhamento das pessoas com o discurso da empresa, a competição denegada dos empregados pela promoção a cargos de gestão e aquelas de preocupação com as pessoas em geral, de valorização da diversidade, da dita responsabilidade social. Impasse e contradições que ficam, em geral, elididos.
Talvez neste sentido, se pudesse pensar com Kaës (1991), que haja um pacto denegativo das pessoas em relação a isso que fica elidido. Cala-se em nome de um prazer obtido, de uma evitação de sofrimento [se se pensar com Dejours (2006)], ou de uma promessa de gozo perverso, que sustenta o vínculo, o laço social em questão, se for pensado mais em termos lacanianos. Pacto, pois, que leva adiante, e de forma contundente, a imagem da empresa, que é uma das melhores para trabalhar no Brasil, que se preocupa com todos os que forem merecedores, e que a eles dará as oportunidades de crescimento, mas que elide, vela a sua faceta perversa. Faceta perversa em termos de fantasia e vontade de gozo, na relação com o outro, no caso dos sujeitos, e dos objetivos de lucratividade acima de qualquer preocupação com funcionários, de qualquer responsabilidade social ou de diversidade supostamente valorizada, por exemplo, no caso da empresa. Na mesma direção, é também possível pensar que haja um contrato narcísico (Kaës, 1991) que reconhece e investe o lugar daqueles que "abraçam" o discurso da empresa, que "vestem a camisa", que "se entregam" com a promessa da proteção, da preocupação com todos, e também do crescimento na carreira, desde que sejam merecedores. E, no sentido oposto, um investimento dos funcionários na imagem da boa empresa para trabalhar.
Ou bem estamos diante de uma configuração perversa de sujeitos perversos - o que nos parece improvável, ainda que, evidentemente, deva haver sujeitos perversos na organização, ou bem estamos diante de uma configuração um tanto quanto perversa, mas que hesita - ainda, pelo menos - em sê-lo, mantendo características de um laço social neurótico, constituído e constituinte de sujeitos neuróticos, com fantasias perversas, o que nos parece mais plausível. Daí o impasse, a ambivalência e as contradições que surgem na documentação oficial da empresa e na fala dos sujeitos. É como se manter a imagem da boa empresa e obter lucro aos moldes do capitalismo da flexibilização fosse a realização da fantasia perversa, mantendo a ligação neurótica de ser amado, de ser reconhecido pelo outro.
Ou seja, se pudéssemos extrapolar e pensar a empresa como se fosse um sujeito, seria aquele que quer ser reconhecido e amado pela preocupação que mostra ter pelo outro, pela responsabilidade social que apresenta, mas que esconde, no fundo, que o que está em jogo mesmo são seus próprios interesses, o lucro maior que quer colher e que, se precisar escolher entre o outro ou ele próprio, o outro já está fora, eliminado. Vontade de gozo, poderíamos dizer. E a razão alegada não é outra senão "faz parte do jogo: é ele ou eu" ou então "ele não foi merecedor". Mas o fato é que o gozo advém justamente desse jogo com o outro, por isso é preciso mantê-lo presente, vivo, e motivado, já que assim produz mais.
No entanto, assim como no caso dos sujeitos de carne e osso, em que algo os transcende num nível institucional, há algo que transcende a empresa, que a aliena nesse processo todo, se assim podemos dizer em se tratando de uma entidade "abstrata": a ordem capitalista. Quer dizer, há algo dela que é instituído para além de qualquer empresa individual ou de seus funcionários, e do qual nenhuma empresa consegue escapar completamente. Não há como escapar totalmente à competição, ao jogo de lucratividade que está em andamento; não é possível que uma organização exista sem que esteja submetida, em alguma medida, às regras do mercado.
Quer dizer, a configuração de laço social que se vislumbra na situação analisada parece ser a de verso e reverso, ou mais precisamente dizendo, de uma malha inextricável de questões institucionais e fantasmáticas dos sujeitos nela implicados. O discurso que aí emerge revela uma instituição empresa com uma faceta perversa, ainda que tente ser "amada" e "reconhecida" pela preocupação que demonstra pelos seus membros colaboradores, porque os sujeitos que enunciam tal discurso também assim o são, pelo menos em sua fantasia.
As questões pessoais de todos os sujeitos ouvidos, em maior ou menor escala, pela afirmação ou pela (de) negação, estão ligadas às questões centrais que permeiam a instituição - a preocupação com as pessoas, as oportunidades de carreira, a lapidação dos funcionários, sua profissionalização, a ideologia da competência e da qualificação, a excelência dos serviços, os resultados apresentados, as demissões, o porvir e assim por diante. Questões todas que basicamente se referem a ser ou não ser escolhido, ou, mais precisamente, ao lugar que cada um ocupa para o outro. Isso implica, em termos práticos, ser ou não ser promovido, ser ou não ser demitido, ver ou não ver o outro ganhar uma oportunidade de carreira, ser ou não reconhecido como competente, como produtivo, como aquele que se preocupa com o outro, como o que tem responsabilidade social e por aí afora. Enquanto a promessa de ter esses tipos de gozo realizados puder ser sustentada, a empresa continua a ser uma das melhores para se trabalhar e os seus funcionários continuam a ser colaboradores, supostamente sentindo-se amparados, numa família, pela empresa-mãe. Nas situações em que a tensão entre os sujeitos vem à tona, em que a competição pelas oportunidades de carreira, por exemplo, aparece, sobretudo quando é o outro o beneficiário, ou seja, quando a promessa parece que não se cumprirá, então o desalinhamento emerge.
A empresa se encontrava, por ocasião da pesquisa, numa fase de grande prosperidade, como apontam alguns de seus funcionários e a própria documentação pesquisada da empresa, com crescimento acentuado no número de hotéis e apartamentos oferecidos nos últimos anos (Lima, 2003). Num momento assim, omitir o impasse da configuração do laço social é relativamente mais fácil. Pensando com Kaës (1991), a manutenção de um pacto denegativo e de um contrato narcísico elidindo a tensão presente no jogo em questão e a impossibilidade de cumprimento da promessa, que os sujeitos tentam manter ativa, fica facilitada nessas condições. Resta saber se tal configuração de laço poderá ser sustentada, especialmente numa crise - mas não só - dados os seus impasses e as suas contradições intrínsecas.
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Recebido em 28/11/10
Revisto em 27/10/12
Aceito em 30/10/12
* Endereço para correspondência: Antônio: Av. Lins de Vasconcelos, 2999, apto 24B, Vila Mariana. São Paulo - SP. CEP: 04112-011. Fone: (11) 2738-4684. E-mail: acbj@yahoo.com Marcelo: Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Bloco A, sala 137. Cidade Universitária. São Paulo - SP. CEP: 05508-030. Fone: (11) 30914184. E-mail: marcelopsi@usp.br