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Boletim de Psicologia

Print version ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.66 no.145 São Paulo July 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

O erro médico e o respeito às vítimas

 

Medical malpractice and the respect for victims

 

 

Vitor Silva Mendonça*; Eda Marconi Custódio*

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - SP - Brasil

 

 


RESUMO

O erro médico advém de uma conduta profissional inadequada, capaz de produzir dano à vida ou agravo à saúde de outrem, por ação ou omissão. Essa situação tem se tornado cada vez mais comum no cenário brasileiro e o respeito e consideração às vítimas ficam ignorados. Dessa maneira, este estudo tem objetivo de identificar de que modo os profissionais envolvidos com o erro levam em consideração a pessoa da vítima enquanto ser humano. Foi utilizada entrevista semiestruturada realizada com cada uma das 12 pessoas que passaram pela situação do erro médico. Verificou-se que as vítimas se sentem desrespeitadas e sem direitos, quando acometidas pelo erro. Os médicos responsáveis se mostraram pouco disponíveis a ajudar e, menos ainda, a assumirem que erraram, reforçando uma relação desgastada. O estigma do erro médico no Brasil tem uma forte ligação com os juízos de valores impostos, dificultando sua aceitação para a vítima e profissionais.

Palavras-chave: Erro médico; justiça; respeito; vítima.


ABSTRACT

Medical malpractice results from an inadequate professional conduct leading to damage to somebody´s life or health, due to some action or omission. Such a situation has become more and more common in the Brazilian scenario, and the respect and the concern for the victims are ignored. Thus, this study aims at identifying the ways the professionals involved in malpractice take the victim as a human being into consideration. An individual semi structured interview was performed with twelve individuals who had suffered malpractice. It was found out that the victims feel disrespected and deprived of rights, when they go through such a situation. Doctors didn't show willingness to help, nor they assumed the responsibility for their malpractice, which reinforces a impaired relationship. In Brazil the stigma of malpractice has a strong connection with imposed value judgments, which makes it more difficult to be accepted by both the victim and the professionals.

Key words: Medical malpractice; justice; respect; victim.


 

 

INTRODUÇÃO

A Medicina é uma das profissões mais antigas do mundo e a incidência do erro de quem a pratica também é igualmente antiga. Os povos da Antiguidade e Idade Média já puniam os médicos que cometiam erros. Na Roma antiga, estabeleciam-se alguns delitos específicos dos médicos, como abandono de pacientes e erros, nos quais o médico era obrigado a indenizar por conta desse erro, delineando-se, assim, a responsabilidade civil do médico. Nessa época, também, a responsabilidade já dependia da convicção de culpa e passava por avaliação de um grupo de médicos, que determinavam, se o profissional da Medicina havia tido culpa ou não pelo mal resultado de sua ação (Moraes, 2003; Undelsmann, 2002).

O erro médico pode ser entendido e conceituado como "a conduta profissional inadequada que supõe uma inobservância técnica, capaz de produzir dano à vida ou agravo à saúde de outrem, mediante imperícia, imprudência ou negligência" (Gomes, Drumond & França, 2001, p. 27). Giostri (2002, p. 136) entende o erro médico como "uma falha no exercício da profissão, do que advém um mau resultado ou um resultado adverso, efetivando-se através da ação ou da omissão do profissional". Seguindo uma tradição jurídica, Souza (2006, p. 1) conceitua o erro médico como a "responsabilidade civil do médico, por eventuais danos causados ao paciente". O Código de Ética Médica não traz nenhuma definição a respeito do tema, entretanto, o art. 1º do Capítulo III destaca que é vedado ao médico "causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência" (Brasil, 2009, p. 4).

A ocorrência dos erros médicos tem tomado grandes proporções, principalmente pela influência da mídia, que desencadeia uma forte pressão para se descobrir o culpado e a causa do erro (Giostri, 2002; Mendonça & Custódio, 2016; Rosa & Perini, 2003), deixando em segundo plano, ou mesmo de lado, a dimensão experiencial da própria vítima do erro médico. Grande parte dos estudos desenvolvidos pelos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) está voltada para a análise e levantamento do perfil profissional do denunciado e para características relacionadas com o erro médico, como as especialidades envolvidas, processos disciplinares julgados e penas aplicadas. Na verdade, esses estudos oferecem algumas interpretações estatísticas e não aprofundam a busca dos determinantes científicos relativos à incidência do erro médico (Gomes, Drumond & França, 2001; Udelsmann, 2002).

Ao se fazer uma análise da relação médico e paciente, é possível perceber que há uma despersonalização nesse processo, haja vista que a Medicina se socializou e ramificou ainda mais suas especialidades na arte médica, desaparecendo a figura cordial do "médico da família", em quem se depositava confiança irrestrita. Não se deve olvidar, entretanto, que a atividade médica é de interesse social, que a proteção da saúde humana se impõe como indispensável e o cidadão, por sua vez, tem o direito de exigir do Estado a adoção de medidas visando à prevenção de doenças e ao tratamento delas (Kfouri Neto, 2010).

No que diz respeito à referência feita pelas pesquisas à condição dos pacientes (Fujita & Santos, 2009; Rosa & Perini, 2003; Udelsmann, 2002), percebe-se claramente que a comunidade médica está se sentindo acuada, devido ao "fortalecimento" da cidadania, visto que despertou nos indivíduos a noção de seus direitos, o que, segundo os autores, tornou o paciente mais contestador e exigente. Essa relação de "poder" permite ao paciente recorrer às ações legais, quando percebe que foi lesado por um erro decorrente da assistência médica (Fujita & Santos, 2009; Rosa & Perini, 2003; Udelsmann, 2002).

Pode ser por essa razão, então, que muitos médicos tendem a não relatar o erro ao paciente. De acordo com Carvalho e Vieira (2002) evitar a diminuição da confiança do paciente, impedir o aumento de ansiedade no paciente e a possibilidade de enfrentar um processo legal são os motivos que levam alguns médicos a não revelarem seus erros. Portanto, argumenta Cernadas (2009) que, para o paciente, deve ser extremamente desconfortável e decepcionante ouvir do próprio médico que foi vítima de um erro. O médico, não obstante, precisa ser sincero para lidar abertamente com esse assunto. Além disso, deve-se ressaltar que é responsabilidade do médico informar o ocorrido ao paciente, incluindo pedido formal de desculpa e, em alguns casos, oferta de recompensa material.

Ao paciente, independente do procedimento médico a ser realizado, são dados alguns direitos e deveres. O principal deles é o direito de recorrer ao Judiciário para pleitear a reparação de quaisquer danos que lhe tenham sido culposamente infligidos por obra do médico. Porém, segundo Kfouri (2010), existem outras prerrogativas que estão à disposição do paciente, como o direito de acesso às informações do seu histórico clínico, contendo todos os dados de exames, laudos, entre outros. O paciente ou seus familiares (cônjuge ou filhos) têm o direito de gravar ou filmar os atos médicos que sobre ele recaiam. Para tanto, a melhor indicação contra um médico negligente, imprudente ou descuidado é um paciente bem informado e conhecedor dos seus direitos e obrigações. Dessa forma, "o paciente deve ter a clara consciência de que não está subordinado ao médico; que o médico é um profissional que recebe compensação econômica para servi-lo" (Kfouri Neto, 2010, p. 34).

Ainda em relação aos deveres, o profissional médico deve informar, confirmar o esclarecimento e obter autorização do paciente para proceder ao tratamento. Por isso, o médico deve solicitar a autorização da pessoa para a realização de determinada atuação (Callegari & Oliveira, 2010; Kfouri Neto, 2010). O consentimento informado é lei em diversos países. Na Corte de Cassação Italiana, o cirurgião deve obter o consentimento válido do paciente antes de proceder à operação e em palavras acessíveis. Na França, o consentimento é obrigatório, livre e renovado para cada ato médico ulterior, ou seja, o consentimento é um pré-requisito essencial de todo tratamento ou intervenção médica, caso contrário, o médico incorre em responsabilidade, conforme o caso julgado na Corte de Apelação de Rennes no ano de 1994, ao condenar o médico que efetuou colonoscopia para retirada de um pólipo, mas acabou perfurando o intestino, risco do qual a paciente não havia sido previamente informada. Fundamentou-se a condenação na omissão dos dados, pois o profissional tinha a obrigação de informar os riscos do tratamento a ser realizado (Kfouri Neto, 2010).

Somado a isso, aqui no Brasil, tem-se a situação de que o Código de Defesa do Consumidor, que entrou em vigor no início dos anos de 1990, conferiu um caráter mais questionador ao paciente, de modo que garantiu um equilíbrio maior na defesa de seus direitos. Sem contar, também, que na Medicina, a responsabilidade civil do médico é disciplinada por esse código, como também, pelo Código Civil, conferindo ao cidadão brasileiro mais segurança para exigir um serviço de qualidade e mais recursos para que ele procure seus direitos, caso sinta-se lesado (Minossi, 2009; Murr, 2010).

Assim sendo, este artigo procura conhecer e elucidar como os profissionais envolvidos no erro tratam a pessoa vítima do erro médico, a partir do olhar das vítimas. Ou seja, busca-se compreender como os médicos e os agentes que fiscalizam o erro (a justiça e o Conselho de Medicina) levam em consideração a vítima de um erro médico.

 

MÉTODO

Esta pesquisa, de caráter qualitativo, foi realizada com 12 pacientes vítimas de erro médico no Brasil. Sete participantes são do sexo feminino e cinco do masculino. As vítimas têm idades entre 25 e 72 anos. De acordo com a proposta deste trabalho, não houve critério de seleção específico para participação. Porém, um único critério exigido era a comprovação do erro médico pela Justiça comum ou pelo Conselho Regional de Medicina, o que permitiria melhor rigor científico aos dados e à pesquisa. Os participantes foram previamente convidados a participar da pesquisa e informados sobre os objetivos. As entrevistas ocorreram ao longo do ano de 2012, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, em locais apropriados e de livre escolha do entrevistado, principalmente, devido à incapacidade de locomoção de alguns.

Pensando na possibilidade de criar um espaço para que os participantes pudessem relatar suas experiências e expor suas percepções sobre o fenômeno, optou-se pelo recurso metodológico de relato oral. Foi utilizada uma entrevista semiestruturada com a seguinte questão disparadora "Fale-me como foi a sua experiência da descoberta do erro médico até os dias de hoje". Essa questão permitiu um aprofundamento reflexivo do participante, a começar por uma "provocação" que despertava seu depoimento. À medida que o depoimento do participante foi sendo relatado, o pesquisador, por vezes, poderia fazer alguns pequenos questionamentos que pudessem responder a indagações outras sobre o tema que, por razões diversas, o participante poderia não ter relatado num primeiro momento.

Dessa forma, entendeu-se que a situação de entrevista, a partir de um instrumento com enfoque metodológico de relato oral, poderia permitir um aprofundamento do participante em sua experiência como vítima, no intuito de mobilizar seu discurso, segundo análises da vivência relatada. As narrativas das experiências foram registradas com auxílio de um gravador, mediante a autorização dos participantes. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e analisadas como meio de se articularem as possibilidades de compreensão, a partir da busca de sentido. Os conteúdos obtidos foram organizados em núcleos temáticos ou unidades de significação. Dessa maneira, algumas possibilidades do fenômeno puderam ser reveladas, a partir da vivência de cada participante como ser vítima de erro médico (Critelli, 1996).

A pesquisa foi registrada e aprovada no Comitê de Ética da Universidade de São Paulo, onde pôde ser apreciado o compromisso ético e científico a que se propôs. Este estudo também obedeceu à Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde ((Brasil, 1996), que regulamenta as pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil, visando a assegurar os direitos em respeito aos participantes da pesquisa, como também a anuência de cada um deles ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual se encontravam explicitados os objetivos, procedimentos e benefícios da pesquisa. Cabe lembrar que a pesquisa foi iniciada no ano de 2011, por isso foi registrada de acordo com a resolução vigente à época.

Os verdadeiros nomes das pessoas e das instituições, envolvidos nos casos descritos nesta pesquisa foram alterados para assegurar a privacidade de cada um, o respeito ao participante e às normas de pesquisa com seres humanos no país. Os nomes fictícios dos participantes fazem referência às personalidades laureadas com o Prêmio Nobel da Paz.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dados da Tabela 1 fazem referência à caracterização das vítimas neste estudo e auxiliam na identificação de cada caso estudado neste trabalho, na tentativa de melhor visualização e compreensão.

A partir da Tabela 1 pode ser observada a variabilidade dos tipos de erros médicos na amostra, bem como os quatro últimos casos ainda estavam ainda tramitando na justiça na época das entrevistas. Também se constata que três delas se referiram a cirurgias no membro ou órgão errado e duas a colocação incorreta de próteses, o que pode estar relacionado à atitude clínica do médico em relação aos pacientes.

A atitude clínica se refere à capacidade de ver, ouvir, captar, sintonizar e responder ao paciente a partir de sua perspectiva, de modo que as condições de vida, o meio em que se insere, as relações familiares, as crenças e convicções estão presentes nas duas pontas da relação. A partir dessa fundamentação de Mello Filho e Burd (2010), é possível afirmar que o médico tem um jeito de olhar, conduzir e reagir às situações mais diversas que ocorrem no ambiente de trabalho. Ou seja, cada profissional tem uma atitude clínica e as reações em relação ao erro médico também são particulares.

Cada profissional tem um modo de se comportar ao se deparar com o erro médico, porém não é de se estranhar que, em geral, os profissionais médicos tenham dificuldades em assumir um erro. E isso está presente nas reações dos médicos aqui envolvidos, segundo as vítimas. A seguir serão apresentados alguns trechos dos depoimentos das vítimas para ilustrar melhor essas reações.

"A doutora V [médica residente R1] adulterou. Olha, eu não estou te contando a décima parte do caso. Abriram a sala do S [médico que cuidou do caso após o erro] e roubaram o processo da sala dele. E adulteraram as páginas do prontuário, inclusive ela. O que ela escreveu no prontuário, depois do ocorrido, foi uma folha enorme com todo o ocorrido. Mas, para ela não colocar as pessoas em risco, eles roubaram da sala do S e adulteraram.

O médico que fez o parto veio discutir comigo, porque ele soube que eu ia levar o caso adiante. Aí, ele me pegou e levou para uma sala só, fechou a porta para conversar comigo, achando que eu fosse dar uma de bobinha. E eu falei: ‘Meu amigo, você não me conhece. Você não vai me intimidar jamais. Você, para mim, é um zero à esquerda. Você não conhece a minha família e não sabe de onde eu venho. Você não sabe quem eu sou'. E ele falou: ‘Ah, mais é porque eu sou médico, mas sou gente também. Eu tenho irmão e tenho uma tia que vive assim...'. Eu falei: ‘Olha só, você que procure saber de direito a quem responsabilizar. Cada um que procure cuidar do seu caso. Eu estou vendo o meu caso. Deus te deu o direito de nascer em uma família, de ter educação e ter estudo, Deus não te deu o direito de tirar a vida de ninguém' ... Ele me encontrou várias vezes para tentar abafar o caso. Ele me procurava na rua, minha vontade era partir para cima dele. Ele estava desesperado, já preocupado que fosse ter a carteira cassada." (Jane)

O relacionamento entre o paciente e o profissional da saúde é a base de todo o tratamento e procedimento médico. A comunicação, fatores psicológicos e comportamentais fazem parte desse processo e qualquer dificuldade interfere diretamente nessa relação.

A base da comunicação adequada é a empatia, pois permite se colocar na posição do outro, sentir o que sentiria, caso estivesse nessa situação e, assim, sintonizar e cooperar com o paciente, independente da verticalidade técnica do relacionamento. Mas é sabido que, na prática, isso é quase imperceptível ou posto em ação. A fala de Jane retrata essa falta de empatia que os profissionais da saúde não deveriam ter. E mais, muitos deles usam jargões extremamente técnicos que os pacientes não conseguem entender ou, então, deixam o tecnicismo prevalecer sobre o aspecto humano, o que causa dor desnecessária ao transmitir uma má notícia, por exemplo, demonstrando a dificuldade na relação médico e paciente (Mello Filho & Burd, 2010; Straub, 2005).

As reações dos médicos demonstram, de certa forma, como as relações estavam estabelecidas. No caso de Jane, foi possível perceber a capacidade do médico de adulterar um prontuário e do outro profissional em recorrer à piedade da vítima, para que o caso não fosse levado à Justiça. Os relatos a seguir são mais provas do cenário envolvendo a relação entre médico e paciente nos casos em que o erro é descoberto ou causado.

"O senhor não ia operar a perna direita da minha filha? O senhor operou a perna errada! O que aconteceu?'. Aí ele falou: ‘Não, mãe, não é assim. Eu operei a perna certa. A perna dela que estava com problema era essa'. Aí ele chegou em mim, eu tava deitada na cama ainda e falou assim: ‘Ai, Betty, não, desse jeito não. Assim você está me deixando sem chão. Assim, você está me deixando sem saber o que fazer. Porque eu operei sua perna certa. Você falou para mim que era a perna esquerda'. Eu falei assim: ‘Doutor, isso não existe. Quanto tempo tem que a gente... Já tem um ano que eu tô me tratando com o senhor da perna direita'. Ele respondeu: ‘Não, mas, você mandou! Você falou que era para mim operar essa perna'. Aí, eu falei assim: ‘Ah, o senhor, como profissional, aceitaria se eu, como paciente, não tivesse em sã consciência, falasse que o senhor me operasse a cabeça, o senhor ia operar? Quer dizer, o que aconteceu?'. ‘Não, pelo amor de Deus... Que num sei o que' [diz o médico]. Foi quando ele... sabe? ‘E você, você tem problemas nas duas pernas. Seu problema é um problema bilateral. Nós operamos a esquerda agora, porque achamos que ela tava mais danificada. Daqui a um mês, um mês e meio, você retorna que a gente opera a direita' [disse o médico], querendo desconversar. Eu falei: ‘Como é que é?' Não, olha o que o cara tinha em mente... O médico, depois, chamou meu esposo na sala e falou que daria todo o atendimento e assistência que precisasse, e que eu não precisava me preocupar com nada, que ia me dar todo o acompanhamento, toda a fisioterapia, tudo o que fosse necessário." (Betty)

"Segundo o médico, a culpa foi da equipe de Enfermagem. Quando ele chegou no centro cirúrgico, a perna já estava preparada, ele só fez a cirurgia. Mas, meu pai falou: ‘Você era o chefe da cirurgia. Você tinha que ter conferido tudo, a responsabilidade não é sua?'. Mas ele botou a culpa na equipe. E, logo em seguida, ele demitiu a equipe inteira. Mas eu acho que mais para não ter ninguém que a gente pudesse procurar para questionar sobre a cirurgia. E a gente não conseguiu mesmo, não conseguiu encontrar enfermeiro, instrumentador, nem pro processo, meu pai não conseguiu encontrar ninguém, ninguém." (Shirin)

Essas atitudes só confirmam que, além de todo o desconforto emocional que a vítima passa a ter, o seu sofrimento é agravado pela falta de apoio, compreensão, respeito e ética por parte do profissional responsável pelo seu tratamento. Dessa maneira, precisamos concordar com Mello Filho e Burd (2010) que afirmam que as relações médico e paciente apresentam formas típicas, como ordens e ameaças, lições de moral e também ignorar o problema do paciente, atender de modo impessoal e técnico, entre outras. Mas, negar percepções é a que mais se adapta à situação do erro médico, haja vista que seria ignorar um quadro clínico com complicações que envolvam claramente o erro.

Ao contrário das reações dos médicos envolvidos nos casos aqui narrados, um estudo desenvolvido na Universidade da Filadélfia, com a finalidade de explorar o impacto emocional de um erro na vida de um médico, mostrou que, de 40 médicos entrevistados 23 admitiram que já cometeram pelo menos um erro, e cinco não tinham certeza se cometeram. A pesquisa afirma que os erros podem acontecer para todos, mas nem todos conseguem admiti-los, o que corrobora negativamente o aspecto emocional do profissional da Medicina (Newman, 1996).

Ainda sobre a relação entre o médico e o seu paciente, Shirin e Barack trazem no discurso a sensação de desrespeito e falta do compromisso profissional com a pessoa atendida.

"Eu entendo, como um profissional, que você pode cometer um equívoco, você pode cometer um erro, mas o que eu acho que vale muito mais é sua honestidade com o seu paciente. Então, você sentar e ‘Oh, olha só, aconteceu isso assim, eu posso resolver assim'. O profissional, ele tem que criar pelo menos um vínculo de absoluto respeito com o paciente, porque ninguém procura nenhum profissional, se realmente não tiver absolutamente necessitado daquilo. Então, você tem que ter pelo menos um compromisso de respeito com aquele paciente." (Shirin)

"Eu sei que ali está um ser humano, passível de erro. Todo mundo tem o direito de errar, todo mundo erra, né? Acho que nem por isso ele vai deixar de ser médico. Talvez, se ele errou, ele oferecesse o acolhimento certo, talvez eu estaria com ele até hoje. Talvez ele estaria... Tentar consertar o erro, não. Mas dá uma amenizada. É você admitir e reparar. Talvez você não vai consertar um erro desse, principalmente emocionalmente, mas você pode amenizar, coisa que ele não fez". (Barack)

Para Miranda-Sá Junior (2013), o aperfeiçoamento técnico tem provocado uma desumanização na Medicina, de modo que a sua adoção não privilegia médicos, pacientes e nem a sociedade. A competência técnica é tão almejada e colocada em prática que sobressai sobre as competências ética e humana, porém essa última precisa prevalecer. A vinculação humanitária deve ser a tônica da relação médico e paciente, mesmo sabendo que o desenvolvimento tecnológico acentua o compromisso com a técnica e a ciência.

Com o advento da Bioética, na década de 1970, a relação médico e paciente passou a ser mais estudada e a autonomia individual do paciente mais valorizada. Nesse contexto, os profissionais da saúde não podem deduzir cientificamente qual tratamento é mais adequado para um paciente baseado somente em fatos médicos. O corpo, a dor, a doença e o sofrimento são próprios de cada pessoa e violar a sua autonomia significa tratá-la como meios e não como fins em si mesma. A partir disso, o consentimento livre e esclarecido surge como rompimento com o tradicional poder decisório do médico (Guz, 2010).

O Consentimento Livre e Esclarecido foi introduzido no Brasil pela Bioética, na década de 1990, e não pelo Direito, como aconteceu nos Estados Unidos. O Estado de São Paulo apresenta legislação pioneira no que se refere à autonomia do paciente como direito do usuário nos serviços e ações de saúde (Lei Estadual nº. 10.241, de 1999). Ele pode ser compreendido como um processo compartilhado de tomada de decisão, no qual a informação é transmitida ao paciente, certificando-se o médico de que foi bem entendida e discutida para melhor alternativa do tratamento e diagnóstico, o que representa mudança e transformação de paradigma na relação médico e paciente (Callegari & Oliveira, 2010; Guz, 2010).

Toda essa conjuntura que contempla uma prática médica ruim favorece a abertura de processos e denúncias nos competentes legais, aqui, leia-se Judiciário e Conselhos de Medicina, respectivamente. Nos casos aqui estudados não foi diferente. Todos eles deram entrada no julgamento de seus processos e/ou denúncias para apuração do erro.

Contudo, a morosidade do processo, o desconforto das discussões e embates nas audiências, e o resultado do julgamento - advertências pública - só reforçam a sensação de impunidade e desrespeito às vítimas. Para elas a necessidade de ver algo na condenação que de fato "saísse do bolso" do médico condenado, serviria como uma possibilidade de reflexão e aprendizado, e claro, como maneira de recompensa ao que foi perdido, não só materialmente falando.

Responsabilizar um profissional que infringiu as regras fundamentais da sua profissão é um direito da sociedade e dever do Estado. E como acontece com os médicos? Em suas atividades profissionais, os médicos estão sujeitos a três esferas de responsabilidade: civil, penal e ético-profissional. Essas esferas têm plena independência de atuação, embora o resultado de uma possa influir nas demais. O erro médico, fundamentado no contrato entre paciente e médico, estaria restrito à jurisdição civil. Os atos ilícitos e dolorosos, por exemplo, a omissão de socorro, estariam ligados à jurisdição penal, e as infrações éticas e disciplinares cometidas pelos médicos são de responsabilidade dos Conselhos de Medicina, à luz do Código de Ética Médica (Correia-Lima, 2012; Marques Filho & Hossne, 2009).

É preciso deixar claro que a obrigação médica é, em geral, de meio e não de resultado. Assegurar prévio resultado não é possível, porque os fatores que envolvem o exercício da Medicina o tornam incerto. E essa incerteza faz com que o médico não possa garantir o resultado de forma efetiva (Correia-Lima, 2012). Por isso, deve-se tomar cuidado ao afirmar que um médico cometeu um erro ou se, de fato, o resultado final não estava dentro das expectativas do paciente, mas era uma possibilidade dentro das probabilidades futuras do tratamento ou procedimento.

A realidade francesa, no que diz respeito às leis e ao contexto do erro médico, difere um pouco do sistema brasileiro. Na França, no dia 4 de março de 2002, foi publicada a lei intitulada Os direitos dos pacientes e a qualidade de sistema de saúde. Essa lei aparece como um texto maior do direito francês relativo à saúde, tanto no plano qualitativo quanto no quantitativo. Entre outros assuntos, a lei destaca dispositivos relativos à informação do paciente, como as normas e condições de acesso à informação médica e seu estado de saúde. Enfatiza também disposições essenciais na responsabilidade médica e na indenização dos acidentes sanitários (França, 2002).

A atuação, fiscalização e julgamento dos Conselhos dividem as opiniões das vítimas, principalmente no quesito julgamento, pois elas não percebem punições severas para os médicos. Alguns destacam até o fato de serem corporativistas demais. Segundo Marques Filho e Hossne (2009), uma punição do médico que comete um erro com a exclusão da atividade profissional é necessária para a proteção da sociedade, porém os erros e danos já cometidos antes do processo que levou à cassação vão permanecer, do ponto de vista bioético. Contudo, não podemos esquecer que os danos e erros de médicos que não tiveram o registro cassado, como a grande maioria dos casos aqui estudados, também permanecem nas memórias e lembranças das vítimas e seus familiares.

Por fim, destacamos duas situações frequentes nos casos aqui estudados. Primeiro, diz respeito à relação de hierarquia médica, pois um médico é pouco questionado ou indagado pela equipe, sobre uma atitude incorreta sua. Se o médico que conduz o procedimento está errado em suas atitudes, o que impede que outros profissionais, como o técnico de Enfermagem, sinalize o equívoco? Será que, dentro de uma sala de cirurgia, todos são tomados pelo erro? É uma indagação que fica pertinente nos dias de hoje, principalmente quando vemos cirurgias de troca de membros, por exemplo.

O segundo ponto, que vem como consequência do anterior, se refere ao fato de o profissional ser conivente com o erro do outro. Quanto vale ficar quieto, saber que o seu colega de trabalho está errado e você não falar nada? São situações que trazem indagações, mas respostas para todas essas perguntas são difíceis, haja vista que, por questões éticas e de sigilo, muitas informações que acontecem dentro de um centro cirúrgico permanecem por lá.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O erro médico pode ser consequência de uma série de situações, mas não há dúvida de que o estabelecimento da boa relação médico e paciente baseada no respeito à pessoa da vítima, poderia evitar sua ocorrência e a maioria dos processos judiciais. A concretização de uma relação empática, que permite a confiança não só entre médicos e seus pacientes, mas também com suas famílias, pode ser o caminho para evitar situações inseguras e o aumento das ocorrências de erros médicos.

Oferecer ajuda e não dar satisfação após o ocorrido, dizer que o paciente foi o responsável por indicar o membro a ser operado e negar a percepção do que aconteceu na sala de cirurgia são os exemplos aqui trazidos que indicam a deficiência nas relações. O médico que está no comando de uma cirurgia corre, evidentemente, riscos. No entanto, a ilusão de onipotência pode provocar a negação da percepção de um quadro clínico adverso. E ao médico também, cabe o respeito e consideração com seu paciente, independente de se houver erro ou não.

O fato de tornar a decisão um caráter menos individualizado no médico e mais autônomo para o paciente, durante o tratamento, provoca no profissional o saber lidar com algo inesperado, uma vez que o paciente pode recusar a realização de determinado procedimento ou consentir no tratamento alternativo e não naquele que o médico previa ser o principal. No entanto, isso não aconteceu nos casos relatados.

O aumento do número de casos de erros médicos pode ser entendido como uma consequência da grave situação do serviço de saúde no país. As relações sociais se massificaram, distanciando o médico do seu paciente. Tudo isso sob a ótica de uma sociedade de consumo, cada vez mais consciente de seus direitos e mais exigente quanto aos resultados.

Contudo, há uma grande dificuldade em assumir o erro, o que impede a ação de tomada de consciência em relação ao problema. No Brasil, o erro precisa ser encarado como um fato intrínseco à realidade médica, para que a sua forma de aceitação, tratamento e conduta tenham um peso e culpa menores. Erros sempre vão acontecer, porém minimizá-los requer, primeiramente, a aceitação de sua existência. Para isso, os profissionais da Medicina precisam acatar sua responsabilidade no erro, pois, cada vez mais, existe a busca desenfreada de procedimentos médicos, que marcam uma geração de grande medicalização da vida.

Uma das limitações do estudo diz respeito à amostra da pesquisa, que representou uma pequena parte de todos os muitos erros médicos ocorridos no Brasil. Desta forma, não são representativos de todos os casos do país. Mas, este estudo representou um progresso na ciência brasileira, porque nenhuma pesquisa tinha enquanto sujeito de estudo, as vítimas de erros médicos e suas narrativas, o que reforça a necessidade de mais pesquisas na área para melhor difusão do assunto.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 30/05/15
Revisto em 15/09/16
Aceito em 25/09/16

 

 

* Endereço para correspondência: Av. Prof. Mello Moraes, 1721. Cidade Universitária, São Paulo - SP. CEP: 05508-030. E-mail: Eda: edamc@cebinet.com.br ; Vitor: vitorpsi@yahoo.com.br

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