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Interamerican Journal of Psychology

versão impressa ISSN 0034-9690

Interam. j. psychol. v.42 n.1 Porto Alegre abr. 2008

 

 

O conceito de orientação sexual na encruzilhada entre sexo, gênero e motricidade

 

The concept of sexual orientation at the crossroads between sex, gender, and motricity

 

 

Fernando Luiz Cardoso*, 1

Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo discute algumas contribuições teóricas no campo da sexualidade humana, bem como importantes conceitos e sua articulação como sexo, gênero, motricidade e orientação sexual. Evitei tomar a confortável postura politicamente correta ao tentar discutir essas categorias da sexualidade à luz de uma concepção interativista e fundamentada em dados e evidências. O propósito desta discussão foi o de organizar de forma mais objetiva diferentes concepções acadêmicas sobre esses diferentes fenômenos e orientar futuras pesquisas de cunho mais explicativo. Isto é, futuras pesquisas que produzam dados úteis para comparação e que ajudem a esclarecer algumas dúvidas básicas, como, por exemplo, qual o nível da relação entre sexo, gênero, motricidade e orientação sexual?

Palavras-chave: Sexualidade, Epistmologia, Gênero, Orientação sexual, Orientação motora.


ABSTRACT

This article discusses some theoretical contributions in the field of the human sexuality, as well as, important concepts and their articulation as sex, gender, motricity and sexual orientation. I avoided taking the comfortable posture politically correct when trying to discuss these categories of the sexuality based on new data and evidences. The purpose of this discussion is to reorganize some theories in order to clarify this subject to guide future researches with more explanatory stamp. That is, future researches that would produce useful data for future comparison to help to clarify some of the most basic issues, for instance, what would be the level of the relationship among sex, gender, motricity and sexual orientation in human being?

Keywords: Sexuality, Epistemology, Gender, Sexual orientation, Motor orientation.


 

 

Sexo, gênero e orientação sexual são conceitos estudados por diferentes áreas das ciências humanas e sociais. Logo, nada mais natural do que esperar uma produção acadêmica que não dialogue entre si. O grande objetivo deste artigo é o de trazer para a literatura em português algumas das discussões epistemológicas mais básicas formuladas pelos pioneiros da área - alguns deles ainda desconhecidos ou mal compreendidos no Brasil. Acredito que uma melhor organização teórica desses principais conceitos ajudará a diminuir preconceitos recíprocos entre diferentes áreas ou linhas de pensamento e possibilitará avanços mais direcionados em relação às principais dúvidas teóricas sobre essas questões. Para isso, decidi resgatar importantes conceitos teóricos do passado, bem como suas releituras e críticas, a fim de recordar a sua gênese e as suas posteriores ramificações.

 

Conceitos de sexo e gênero em John Money

A produção teórica de John Money caracteriza-se por uma profunda preocupação em tentar organizar e articular a sexualidade humana a partir de uma ótica interacionista, ou seja, procurando articular a capacidade cultural humana com as origens filogenéticas da espécie. Todo o seu pensamento provém de uma vida inteira dedicada ao tratamento e à pesquisa de pacientes da intersexualidade (hermafroditismo), os quais compara a um laboratório vivo onde as pesquisas experimentais ligadas a questões entre natureza e cultura podem ser contempladas.

 

Sexo versus gênero

Segundo Money (1998), ser macho ou fêmea, ou ainda intersexo, são categorias que se estruturam a partir do critério da genitália com qual o indivíduo nasceu. Já o gênero seria algo singular e não-plural, a medida de masculinidade e feminilidade, com duas dimensões como os dois lados de uma mesma moeda que irão estruturar categorias como masculino, feminino ou andrógino.

Money (1988) propôs o conceito de identidade de gênero/papel (IG/P) como um conceito englobante, que define o ser a partir de categorias como macho/fêmea ou intersexo, masculino/feminino ou andrógino, bissexual ou monossexual (heterossexual ou homossexual), abrangendo um conceito pessoal, social e legal. O autor também incluiu o critério orientação sexual ou o mapa amoroso em seu conceito de identidade de gênero /papel.

Com tal procedimento, Money tentou dar conta de como três critérios em princípio distintos - sexo, gênero e orientação sexual - estruturam-se e articulam-se para formar um conceito sobre um único ser. Com relação ao critério "orientação sexual" na identidade de gênero/papel, um indivíduo pode ser bissexual ou monossexual. No caso monossexual, o sentido do erótico pode ser homossexual ou heterossexual, ao passo que bissexual dimensiona-se para ambos. Money chama a atenção para a multiplicidade de identidades homossexuais e sugere um conceito básico como denominador comum à orientação sexoerótica para pessoas do mesmo sexo, e não para pessoas do sexo oposto. Existem, contudo, muitas discordâncias quanto a esse critério (Cardoso, 1994, 1996, 2002, 2004, 2005; Cardoso & Werner, 2004; Fry & MaCrae, 1983; Parker, 1991; Werner, 1999), por se tratar de uma percepção etnocêntrica da homossexualidade que considera apenas a percepção e os critérios da classe média profissional dominante nos países desenvolvidos.

Outra contribuição conceitual de Money refere-se à denominação de "Love Maps" ou seja, "mapas amorosos", que ajuda em muito a entender o critério "orientação sexual". Money (1998) define "mapas amorosos" como um esquema desenvolvimentista ou um template na mente e no cérebro do amor idealizado, onde está projetada a atividade sexoerótica do indivíduo. Assim como a língua nativa, o "mapa amoroso" não está pronto no momento do nascimento, pois requer influências externas do meio para ser cunhado. O período crítico para o seu desenvolvimento não seria a puberdade, como muitos julgam, mas até por volta dos oitos anos.

Money tornou-se um pioneiro na área da sexologia ao cunhar e denominar conceitos, além de definir critérios taxonômicos sobre o comportamento sexual humano. Para melhor compreender a articulação desses conceitos e critérios, veja abaixo o meu esquema organizacional sobre a estrutura do conceito de identidade de gênero/papel do autor (ver figura 1).

 

 

Utilidade das distinções e denominações propostas por Money

Ao distinguir sexo, gênero e orientação sexual, Money possibilitou a abertura de um campo científico-investigativo que passou a estudar esses fenômenos não mais como o único efeito determinista do processo de diferenciação sexual biológica, até então conhecido como causa de tudo. A partir dessa distinção, viabilizou pesquisas que passaram a estudar como se dá o aprendizado da identidade de gênero/papel em distintos contextos culturais. A grande contribuição de Money foi o de ter distinguido os critérios que constituem a identidade de gênero/papel sem separá-los uns dos outros, ou seja, ele distingue esses critérios para compreendê-los, mas não os considera independentes ou arbitrários. A essa preocupação com a distinção entre os conceitos (sem, no entanto, separá-los), Money chamou de interacionismo teórico.

A preocupação interacionista caracteriza toda a obra de Money. Mesmo quando o autor contribui com as discussões sobre a etiologia da identidade de gênero/papel, nega-se a discutir o velho paradigma natureza versus cultura, preferindo acrescentar a esse paradigma um outro aspecto essencial: o "momento crítico" em que natureza e cultura interagem em importantes momentos, desde a fase intra-uterina. Ao mesmo tempo em que Money admite a gênese da identidade de gênero/papel como algo relacionado ao anthropos humano, evidencia a importância do meio ambiente na estruturação da mesma em crianças pacientes da intersexualidade.

A partir do conceito de identidade de gênero/papel, Money (1998) tenta categorizar alguns comportamentos sociais considerados atípicos em termos de identidade de gênero. Para o autor, algumas pessoas transpõem um ou mais critérios na estruturação de sua identidade de gênero/papel. Por exemplo, nem todos os machos da nossa espécie são masculinos, ou preferem ter sexo com as fêmeas. Nesse caso, poderíamos dizer que o indivíduo transpôs a sua identidade de gênero/papel em dois dos seus critérios básicos: ter um gênero típico e a mesma preferência sexual das fêmeas.

De acordo com o paradigma de Money (1998), em um extremo haveria uma completa transposição em relação ao padrão diferencial de macho/fêmea, que seriam os machos transexuais e homossexuais, por exemplo. Em um outro extremo, haveria uma transposição limitada que, embora seja para sempre, também pode existir apenas com relação a um critério, como, por exemplo, orientação sexual, em que teríamos um macho masculino e homossexual. Para identificar uma orientação sexual não muito clara de alguém nesse paradigma, Money sugere identificar o que ele chama de "critério decisório", isto é, por quem o indivíduo se apaixona: se por homens, ou por mulheres, ou por certas situações.

Com a criação do conceito de "mapas amorosos" por Money (1998), ocorre na literatura uma ampliação do critério orientação sexual, que até então era estruturado por meio da classificação do desejo sexual das pessoas de acordo somente com o sexo do parceiro com quem ele se relaciona sexualmente. A partir do conceito de "mapas amorosos", surge então espaço para diferentes orientações no âmbito do desejo sexual, como o fetiche, o sadismo, o masoquismo, etc. Esse conceito tem evoluído de tal forma que fundamentou a famosa distinção de Money sobre "normofilia" e "parafilia" dos "mapas amorosos" humanos. Parafilia, em termos de "mapas amorosos", significa a mente erótica que não consegue juntar amor e tesão em uma única pessoa, ou seja, alguém que nunca consegue juntar sexo e amor em um mesmo objeto de prazer. Money costuma dizer que parafilia não é uma atipicidade do sexo, mas sim do amor. Segundo o autor, quando quantificamos e qualificamos o comportamento humano, deparamo-nos com a dificuldade de usar categorias. Assim, na Sexologia, ao estudarmos comportamentos sexuais atípicos evitamos, por exemplo, usar definições de cunho moral, como o de normalidade. No entanto, ele nos lembra que o conceito de normalidade pode ter duas interpretações: o de representar a maioria numérica ou representar um julgamento moral. Assim, ao empregar as categorias "normofílico" e "parafílico" para diferenciar os "mapas amorosos" típicos dos não-típicos respectivamente da população em geral, Money empregou o conceito de normalidade no sentido numérico, o que representa a maioria das pessoas, e não no sentido moral de bom ou ruim, saudável ou doente.

Em "Love Maps", Money (1986) realizou um exaustivo estudo sobre práticas sexuais não-típicas - como sadomasoquismo, coprofilia, fetiches por amputação, fetiches por auto-estrangulação e outros comportamentos sexuais denominados por ele não de perversões, mas sim de "parafílias" - em uma tentativa de desestigmatizar e descriminalizar tais práticas. No entanto, pode-se dizer que o autor não foi muito feliz nas nominações de suas categorias, embora tenha deixado claro o seu objetivo metodológico.

A utilidade dos conceitos de John Money (1998) como identidade de gênero/papel estruturada em seus três critérios sexo, gênero e orientação, além do conceito de "Love Maps" que amplia o critério orientação, trata-se da possibilidade de se discutir, organizar e analisar também as exceções no comportamento sexual humano.

 

Conceito de sexo e gênero para os críticos de Money

Pensamos ser interessante mobilizar aqui a idéia de outros autores sobre os conceitos de sexo, gênero e orientação. De modo geral, podemos dizer que existe uma unanimidade sobre o que seja sexo como critério para se diferenciar machos, fêmeas e intersexuados. Já os critérios de gênero e orientação são conceitos mais polêmicos e ensejam maiores discussões e melhores detalhamentos.

 

Pontos discordantes sobre gênero

Quanto ao critério gênero, sob uma ótica psicanalítica, Stoller (1993) propõe uma desconexão entre natureza e cultura em uma tentativa de colaborar com a discussão sobre identidade de gênero/papel. Segundo ele, a identidade de gênero refere-se à mescla de masculinidade e feminilidade em um indivíduo, ou seja, tanto a masculinidade quanto a feminilidade são encontradas em todas as pessoas, ainda que em formas e graus diferentes. Além disso, enfatiza a idéia de contínuo para o critério gênero. Nesse sentido, o autor não propõe nada de novo em relação à definição de Money (1998), seu colega e mentor teórico. Para Stoller, identidade de gênero não é igual à qualidade de ser homem ou de ser mulher. Nenhum dos dados tem conotação com a Biologia, já que a identidade de gênero encerra um comportamento psicologicamente motivado. Embora a masculinidade combine com a qualidade de ser homem e a feminilidade com a qualidade de ser mulher, sexo e gênero não estariam necessária e diretamente relacionados, como no caso dos transexuais.

Money (1998) correlacionou sexo e gênero em seu conceito de identidade de gênero/papel para a maioria das pessoas, mas deixou claro que a não-correlação entre esses dois aspectos em uma minoria seria parte da diversidade da espécie humana. O mais importante é salientar que Money não vê nenhum sentido em considerar o gênero como algo externo ao indivíduo, que iria influenciá-lo, pois não concebe o ser humano como dicotômico em mente e corpo, interno e externo, biológico ou cultural.

A partir das idéias de Stoller (1993), a discussão acadêmica ganha mais um conceito - o de papel de gênero - que foi extraído do conceito de identidade de gênero/papel de Money e que se diferencia deste por se referir aos padrões de comportamentos adequados aos dois sexos no convívio social. Em outras palavras, o papel de gênero passa a dar conta das construções sociais acerca do que caracteriza o masculino e o feminino em cada sociedade, enquanto a identidade de gênero passa a dar conta da organização pessoal e intrínseca de cada indivíduo nas relações sociais.

Money e seus colegas, como Stoller (1993), por meio de estudos com crianças intersexuais, defendiam a idéia de que as crianças que nasceram com uma genitália ambígua, como resultado de anormalidades hormonais ocorridas na fase intra-uterina, adotavam qualquer um dos gêneros a que fossem induzidas por meio de tratamento médico e das influências do ambiente nos primeiros anos de vida. Uma vez fixada, a identidade de gênero/papel persistiria por toda a vida. Em síntese, Money (1998) propunha que a autopercepção de ser menino ou menina seria dada por variantes culturais como a cor da roupa, o tipo de brinquedo, etc. Argumentos como estes ainda hoje são muitos populares em alguns setores da academia.

Le Vay (1996) critica o modelo de "imprinte" de Money (1998) para explicar a etiologia da identidade de gênero/papel. De acordo com Le Vay, a idéia de imprint não requer reforço, mas simplesmente exposição. Assim, bebês com menos de dois anos, quando o gênero seria printado, nunca estão próximos dos pais, e sim das mães. Quando o gênero masculino seria então printado? Na realidade, o melhor conceito para a idéia que Money tinha em mente seria o de condicionamento operante através de gratificações e repressões oriundas do meio.

Além de outros críticos, o maior opositor das idéias psicodesenvolvimentistas de Money (1986) é Diamond (1997). Após muitos anos de brigas teóricas e pessoais com Money, Diamond apresentou informações que desestruturaram mais de 30 anos de tradição teórica liderada por Money e seus seguidores, nos Estados Unidos, na área da sexualidade e do gênero. Diamond procurou pacientes que eram comumente usados como exemplo de sucesso no processo de resignação de sexo e gênero pelo grupo de Money em Baltimore. O que ele encontrou não parecia nem de longe o que era relatado nas reuniões acadêmicas e científicas por Money. Em geral, os pacientes que desenvolveram uma posterior orientação sexual divergente da opção de gênero feita na cirurgia de resignação de sexo tiveram muitas dificuldades de aceitar tal decisão, sendo que muitos acabaram por requerer a reversibilidade do processo (Colapinto, 2000; Diamond, 1997).

Esse polêmico confronto entre a autoridade de Money (1986) e o até então desconhecido Diamond (1997) resultou no fechamento de muitos programas de resignação de sexo para os pacientes infantis da intersexualidade, assim como deflagrou um intenso movimento político, por parte dos pacientes da intersexualidade que sofreram tal intervenção ao nascer, contra a mutilação genital dessa minoria sexual que não tem a chance da escolha quando bebês.

Em resumo, Diamond (1997) não discorda da organização teórico-conceitual desenvolvida por Money, mas discorda basicamente do seu modelo psicodesenvolvimentista. Sugere ainda que os estudos biológicos com animais possam trazer à perspectiva humana a contextualização da evolução e da diversificação da identidade de gênero/papel a partir de um contínuo evolutivo entre as espécies animais. Na verdade, Diamond concorda com Money que a espécie humana, em relação a outros animais, seria uma das mais influenciáveis pela organização cultural. Entretanto, não admite que sejam desconsideradas as influências biológicas desde a concepção, nas questões de identidade de gênero, e aponta tal contínuo evolutivo entre as espécies, estando o homo sapiens em um dos extremos em relação à independência da natureza, porém ainda vinculado a ela.

 

Pontos discordantes sobre orientação sexual

Werner (1999) não concorda que a orientação sexual humana possa ser classificada em apenas homossexual, bissexual ou heterossexual a partir apenas dos critérios êmicos da sociedade norte-americana percebidos por Kinsey, Pomeroy e Martin (1948) para estudar aquela realidade social. O autor chama nossa atenção para o fato de que as categorias nativas norte-americanas não dão conta de realidades culturais distintas, pois o critério utilizado para diferenciar homossexuais de heterossexuais é o sexo do parceiro, ao passo que na maioria das sociedades no mundo o critério é a posição no ato sexual. Assim, Cardoso (1994, 2002, 2005), que estudou a orientação sexual masculina em uma comunidade pesqueira no Brasil e que usa o critério da posição no ato sexual, relata uma percepção sexual local de apenas dois tipos de homens: os ativos e os passivos. Nesse contexto social, fica claro quem "come" e quem "é comido" (insertor e insertado), mas ainda é muito difícil dizer quem são os heterossexuais e os bissexuais, sendo que os homossexuais apresentam um comportamento sexual e social mais claro e universal.

Nesse ponto, Cardoso (1994, 1996, 2002, 2005) e Werner (1998) concordam em parte com Money, mas sugerem uma ampliação do repertório dos objetos pelos quais alguém se apaixona, como travestis, garotos mais novos, etc. Werner reforça ainda o critério utilizado por Ulrichs (1994) para ajudar a esclarecer o critério orientação sexual ou mapa amoroso de Money, isto é, a preferência por uma posição no ato sexual. Segundo o autor, os homossexuais que se encontrariam no extremo desse contínuo heterossexual/homossexual prefeririam ser passivos nas suas relações sexuais com os outros homens.

 

Utilidades das discordâncias

As discordâncias dos outros autores no tocante ao critério gênero utilizado no conceito de Money de identidade de gênero/papel podem ser classificadas como insignificantes e significantes ao progresso do pensamento acadêmico nessa área. A proposta de Stoller de separar o conceito de identidade de gênero do conceito de papel de gênero, em minha opinião, não acrescentou muito ao conceito de Money (1986), uma vez que a produção teórica deste último já contemplava as influências do meio. Além disso, a separação proposta por Stoller, que só reforça a dualidade corpo/mente, não parece ser viável em tempos de pesquisas multidisciplinares. Considero conveniente chamar a atenção para a sinceridade teórica de Money quando ele admite a quase impossibilidade de separar as influências da relação natureza e cultura no comportamento humano pelo fato de sermos animais culturais, frutos desse amálgama.

O diferencial no conceito de identidade de gênero/papel de Money (1986) - e a desconexão entre gênero e sexo proposta por Stoller - está na possibilidade de ser um conceito que dê conta da complexidade humana com intuito de organizar e, se possível, explicar os porquês da variação, enquanto o conceito de Stoller apóia-se em apenas uma falácia culturalista, sem base empírica para tal suposição e sem uma utilidade explicativa posterior.

Já as críticas apresentadas por Diamond (1997) tiveram um papel importante no destino da produção teórica da área, uma vez que no período entre 1955 e 1965 a percepção psicodesenvolvimentista de Money foi hegemônica na América e no mundo. A partir de Diamond, passou-se a dar mais importância às evidências produzidas pelas ciências biológicas sobre o tema e a aguçar a curiosidade acadêmica a respeito dos efeitos da natureza sobre o gênero.

Quanto à orientação sexual, Werner (1998) e Ulrichs (1994) trazem uma contribuição ao conceito de "mapas amo rosos" de John Money (1998), pois o ampliam ainda mais, passando a abranger outras realidades culturais. Assim, por exemplo, o critério sexo do parceiro funciona muito bem para discriminar os homossexuais dos não-homossexuais em nossa classe média urbana, mas não tem aplicabilidade alguma nas classes populares da maioria dos países em desenvolvimento, que utilizam a posição no ato sexual para fazer essa distinção. No entanto, de acordo com Werner, quando utilizamos o critério preferência pela posição no ato sexual entre homens em qualquer cultura, podemos definir quem está mais nos extremos da homossexualidade em termos de orientação. Por exemplo, nas camadas populares, geralmente o homossexual é aquele que gosta de ser penetrado e de praticar a felação. Nos guetos das camadas médias urbanas freqüentados apenas por homossexuais, encontramos homens com diversas preferências: alguns preferem ser ativos, outros passivos e outros ainda gostam dos dois. Enfim, a sugestão de Werner amplia o conceito de "mapas amorosos" de Money ao propor um critério para a orientação homossexual mais universal, ao mesmo tempo em que se cria uma real possibilidade de fazer estudos transculturais sobre homossexualidade em culturas com critérios distintos para definir tal fenômeno na sexualidade humana.

 

Orientação Sexual

Uma categoria útil de análise

O conceito de orientação sexual pode variar muito de área para área e de autor para autor. Na maioria das vezes, esse conceito está relacionado ao sentido do desejo sexual: se para pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo ou para ambos. Aqui se considera a natureza da fantasia sexual de cada indivíduo como um critério mais eficiente para detectar a orientação sexual. No entanto, segundo Bozman e Becker (1991), deve-se considerar que tem sido dada pouca atenção à separabilidade de dois aspectos interativos das fantasias sexuais: a natureza dos desejos e a excitação fisiológica. Assim, teoricamente, o desejo sexual é visto como determinado por aspectos intrapsíquicos, intrapessoais e sociais, assumindo a presença de um funcionamento físico típico e avaliável pelos tipos de parceiros sexuais, de práticas sexuais, etc. Já a excitação física, em contraste, é caracterizada por respostas físicas, como a intumescência do pênis para os homens e a lubrificação da vagina para as mulheres. Nessa perspectiva, o desejo sexual difere da excitação sexual, embora sejam interagentes, pois o primeiro é um estado subjetivo e a segunda é uma resposta fisiológica.

Desse modo, torna-se mais fácil compreender algumas situações consideradas bizarras. Por exemplo, algumas pessoas que se autodenominam homossexuais alegam que, quando tiveram práticas heterossexuais, fantasiaram que o parceiro sexual era do mesmo sexo. Ou, então, alguns heterossexuais tiveram experiências homossexuais oportunistas em decorrência de uma excitação física advinda de uma massagem ou de um toque prazeroso.

Bozman e Becker (1991) investigaram como se dá a relação entre desejo sexual e excitação sexual em uma situação experimental de controle. Eles puderam distinguir a atuação diferenciada dos dois aspectos nas fantasias sexuais sob três condições controladas -normalidade, ansiedade e raiva - administradas em três momentos nas três etapas de um videoteipe com três níveis de erotização. Os autores descobriram que, em condições atípicas de raiva, reduzia-se o desejo sexual e o nível de excitabilidade da amostragem espectadora. Em condições de ansiedade, havia uma redução apenas dos desejos, e não do nível de intumescência do pênis. Já em condições normais, havia uma grande correlação entre desejo e excitação. Esses dados sustentam a idéia da importância do meio como mediador na correlação entre esses dois aspectos das fantasias sexuais.

Medidas da orientação sexual

Nos últimos 130 anos, surgiram no mundo acadêmico várias propostas para se avaliar a orientação sexual a partir de diferentes critérios e definições. Uma das primeiras classificações para a orientação sexual foi proposta por Ulrichs (1994) e publicada nos idos de 1860 (Randall, 1997). Segundo a taxonomia de Ulrichs (1994), que só descreve a orientação sexual dos homens, existem três categorias básicas, como ilustra a figura abaixo (ver figura 2).

Como se pode observar, essas três categorias são comparáveis às modernas categorias científicas: heterossexual, homossexual e bissexual, respectivamente. No entanto, fica evidente a percepção naturalizada do autor sobre a sexualidade em relação aos papéis de gênero no sexo, em que o homem sempre adota a posição ativa como insertor e a mulher adota a posição passiva de penetrada. Ulrichs (1994) usou esses mesmos referenciais ao diferenciar os homens homossexuais. Assim, surge a primeira referência na literatura sobre como diferenciar os homossexuais em relação aos papéis sexuais adotados nas relações com parceiros do mesmo sexo, isto é, ativo ou passivo.

Ulrichs (1994) também separou os tipos de "urnings": "mannling" um tipo de urning masculino (gênero), "weibling" um tipo de um urning afeminado (gênero), "zwischen" um urning mais andrógino (gênero), e "virilised" um urning que sexualmente se comporta como um "dioning" (prática sexual). Ao distinguir os tipos de "urnings", Ulrichs (1994) utilizou-se também da categoria de gênero e, assim, juntou dois fenômenos diferentes - prática sexual e identidade de gênero - em relação a um contínuo entre a masculinidade e a feminilidade, sendo que os homossexuais masculinos estariam no meio.

Hoje em dia, as categorias heterossexual, homossexual e bissexual são comumente usadas pelos investigadores para diferenciar a orientação sexual humana. Apesar de o conceito orientação sexual ter uma grande variedade de definições na literatura, geralmente inclui um ou ambos dos seguintes componentes: o psicológico e o comportamental (Randall, 1997). Definições mais recentes incluem freqüentemente ambos os componentes, como a de Le Vay (1993): "a direção da preferência ou comportamento sexual para indivíduos do sexo oposto (heterossexualidade), do mesmo sexo (homossexualidade) ou para ambos (bissexualidade)". Posteriores à colaboração de Ulrichs (1994), podemos citar três importantes contribuições científicas que tentam medir a orientação sexual: Kinsey, Pomeroy e Martin (1948), Shively e DeCecco (1977), Klein, Sepekoffet e Wolf (1985).

 

 

A escala mais importante criada nos últimos anos foi proposta por Kinsey e colaboradores (1948) em seus famosos relatórios sobre o comportamento sexual do homem e da mulher. Os autores propuseram uma escala bipolar que permite uma graduação contínua entre pessoas "exclusivamente heterossexuais" e "exclusivamente homossexuais", considerando ambos os aspectos de orientação sexual: comportamento sexual (prática sexual) e fantasia sexual (orientação sexual), como ilustra a Tabela 1. Segundo eles, essa escala deve ser usada em dois momentos, acompanhada das seguintes perguntas: Quais são os seus comportamentos sexuais? Quais são as suas fantasias sexuais?

Para alguns autores, comportamento sexual e fantasias sexuais sugeridas por Kinsey não são as únicas dimensões da orientação sexual. Klein e colaboradores (1985) propõem a Grade de Orientação Sexual de Klein, que avalia sete dimensões da orientação sexual, as quais incluem: atração sexual (orientação sexual), comportamento sexual (prática sexual), fantasia sexual (orientação sexual), preferência emocional (orientação afetiva), preferência social (orientação social), auto-identificação (identidade sexual) e estilo de vida heterossexual/homossexual (identidade sexual). A Tabela 2 ilustra esses dados.

Alguns autores acreditam que, quando a homossexualidade e a heterossexualidade são medidas independentemente, em vez de se utilizar uma escala contínua, tais medidas podem ser mais bem avaliadas. Assim, evita-se que a amostragem avalie a orientação sexual simplesmente procurando por um equilíbrio entre os extremos, tal como determina a escala Kinsey. Essa idéia foi inicialmente proposta por Shively e DeCecco (1977), que sugerem uma escala de cinco pontos na qual seriam medidas independentemente a heterossexualidade e a homossexualidade, como demonstram a Tabela 3. Conforme os autores, o uso dessa escala permite avaliar duas dimensões da orientação sexual: uma física (orientação sexual) e uma afetiva (orientação afetiva). Temos, assim, a impressão de que já se considerava algo similar ao conceito de fantasia sexual proposto por Bozman e Becker (1991).

Esta breve revisão de literatura sobre instrumentos para avaliar orientação sexual tem o objetivo de indicar que, embora a orientação sexual esteja na mente das pessoas, não faltam esforços científicos para tentar apreendê-la e mensurá-la. Tais esforços começaram com Kinsey e colaboradores, que ao longo destes anos têm recebido muitas críticas; contudo, além de pequenos ajustes ou ampliações, nada de muito mais inovador foi proposto.

Para melhor avaliar as sugestões dos autores sobre a orientação sexual, salientei em azul o significado útil dos diferentes critérios usados por eles. Parece-me que os únicos a sugerirem uma escala que não confunde prática e fantasia sexual com identidade sexual no processo de mensurar a orientação sexual foram Kinsey e colaboradores. Considerando as limitações da escala Kinsey, trata-se, a meu ver (Cardoso, 1996, 2004), do melhor instrumento para avaliar orientação sexual, porque pode medir diferentes critérios separadamente da sexualidade sem o risco de confundir prática (o que se faz no sexo), orientação (o que se prefere fazer) e identidade sexual (como se autodefine ou se é definido socialmente). Normalmente, esses três aspectos convergem, mas também devemos considerar que divergências ou exceções são bastante comuns em nossa espécie.

 

Orientação Motora

Caso a posterior orientação homossexual tenha relação com a identidade de gênero cruzada na infância, talvez possamos começar a falar sobre um outro critério que estaria atrelado à identidade de gênero/papel: a orientação motora. Por orientação motora, entendo a tendência em termos de potencialidade e preferência que as pessoas têm para determinados tipos de atividades.

 

 

 

 

As atividades físicas podem assumir diferentes naturezas, sendo que algumas delas apresentam características únicas, enquanto outras apresentam características mais diversificadas. De qualquer modo, quase todas podem ser descritas e classificadas a partir de alguns detalhes básicos, como, por exemplo, quanto à natureza das atividades (mais ou menos organizadas e complexas) e quanto ao tipo de interação (com um grupo ou consigo mesmo). Assim, as pessoas têm diferentes preferências por atividades físicas e jogos de forma geral. Algumas preferem atividades de alta organização, como a natação e o ciclismo, ao passo que outras preferem atividades de alta complexidade, como o futebol e a ginástica. Algumas preferem atividades coletivas, como o basquete e o vôlei, enquanto outras preferem atividades individuais, como saltos ornamentais ou esportes de combate.

No aspecto educacional, os professores de educação física têm um contato íntimo com muitas dessas diferentes expressões corporais das identidades de gênero e também com os conflitos decorrentes de tais relações. Em geral, esses profissionais não têm dificuldade para identificar a orientação motora de seus alunos, uma vez que contam com uma ampla formação sobre motricidade humana e atividades esportivas típicas da modernidade (Cardoso, Felipe, & Hedegaard, 2005). No entanto, esses mesmos professores deixam de perceber os seus próprios pré-conceitos ao avaliarem alguns problemas de comportamento como o transtorno de dèficit de atenção/hiperatividade entre meninos e meninas ao subdiagnosticarem as meninas por possuírem mais sintomas de desatenção que hiperatividade (Cardoso, Beltrame, & Sabbag, 2007).

Como qualquer manifestação social, as atividades esportivas surgiram e evoluíram respeitando as supostas diferenças biológicas entre homens e mulheres. Conseqüentemente, há esportes que surgiram como práticas eminentemente masculinas ou femininas. O que se percebe nesse contexto, apesar de as mulheres estarem cada vez mais tomando parte em esportes considerados mais masculinos, é que em média homens e mulheres diferem em termos de preferência e habilidade nas atividades esportivas.

Kimura (1993), ao realizar testes com ambos os sexos, constatou que as mulheres diferem dos homens por apresentar maior precisão nas tarefas que requerem coordenação motora fina. Já os homens destacam-se em certas tarefas que exigem maior organização espacial, como lançamento direcionado.

Thomas e Thomas (1988) avaliaram as diferenças de sexo comparando desempenho motor, atividades motoras, atividade física e saúde em relação à aptidão física. A diferença de sexo no desempenho motor foi percebida entre idade e 12 das 20 tarefas testadas, o que resultou em três diferentes tipos de curvas. A maior parte das diferenças é vista como sendo ambientalmente induzida antes da puberdade, sendo as outras de influência interativa entre biologia e ambiente depois da puberdade. O nível de atividade motora é mais alto em meninos mesmo na infância, e as diferenças entre os sexos aumentaram da infância até a adolescência. Garotos de vários países foram observados como sendo mais fisicamente ativos do que as meninas, provavelmente devido ao seu melhor desempenho em testes de aptidão física.

Thomas e French (1985) acreditam que as diferenças de sexo anteriores à puberdade em 15 das 20 tarefas estudadas (agilidade, tempo de antecipação, queda de braço, equilíbrio, colisão, força de aperto, coordenação visuomotora, flexibilidade, salto à distância, perseguição, tempo de reação, transporte em corrida, sentar-levantar, bater, salto vertical) seriam ambientalmente induzidas. Se existe um fator diferencial nesse aspecto entre meninos e meninas é que os meninos são envolvidos em jogos mais competitivos do que as meninas e geralmente participam de jogos de maior duração.

O que se está sugerindo aqui é que pessoas com orientações sexuais semelhantes também tenham orientações motoras ou esportivas semelhantes. Tal abordagem ainda é muito recente e necessita de mais dados sobre essa possível correlação, porém alguns estudos apontam nessa direção. Blanchard, Dickey e Jones (1995) compararam a desordem de gênero entre homossexuais e não-homossexuais homens e descobriram que os homossexuais eram mais baixos e leves em relação ao peso.

Saghir e Eli (1973) observaram que a maioria dos homossexuais estudada não tinha interesse em acompanhar os esportes nacionais ou participar deles, como o futebol e o beisebol, além de demonstrar maior interesse por esportes sem contato corporal, como natação, esqui ou tênis. Dois terços dos homens heterossexuais manifestavam interesse pelos esportes coletivos, enquanto apenas 10% dos homossexuais manifestaram tal interesse. Os homossexuais também declararam maior interesse pelas modalidades esportivas mais artísticas do que os heterossexuais.

Bell, Weinberg e Hammersmith (1981) analisaram uma amostragem de 575 homens homossexuais brancos em relação a um grupo controle de 284 heterossexuais brancos em São Francisco (Estados Unidos). Eles perceberam várias diferenças entre os dois grupos em relação às suas preferências por atividades na infância, por exemplo, poucos homossexuais relataram gostar de atividades esportivas como futebol e beisebol. Harry (1982), em um estudo realizado em Chicago, usou uma amostragem maior do que a de Bell e colaboradores, encontrando diferenças similares entre homossexuais e heterossexuais em relação à orientação esportiva.

Whitam e Mathy (1986), que realizaram uma pesquisa transcultural entre Brasil, Filipinas e Estados Unidos, observaram as mesmas correlações entre ser homossexual e preferir atividades esportivas leves, assim como ser heterossexual e preferir atividades esportivas pesadas nessas três realidades culturais. Como já dissemos anteriormente, embora existam dados que indiquem haver uma certa relação entre orientação esportiva ou motora e orientação sexual, ainda são necessários mais estudos específicos que apontem correlações mais precisas em outras sociedades.

 

Compatibilidade de Diferentes Conceitos

Conceitos não têm muita utilidade na ciência sexológica quando não dão conta da diversidade de comportamentos sexuais humanos. O grande valor do trabalho de Money reside no fato de ter como principal meta organizar e denominar fenômenos que são objetos de estudos da Sexologia. Segundo Money (1998), a Sexologia ainda se encontra em um estágio fenomenológico e descritivo. Em muitas situações, as variáveis na pesquisa sexual representam ainda julgamento de valores, que é uma das funções da filosofia do sexo, ou seja, a Sexofia. Segundo ele, a Sexologia ainda não viveu a sua crise epistemológica, e muitos sexologistas não sabem separar metodologicamente conceitos de fenômenos. Além disso, como toda ciência, a Sexologia deveria pautar seus pressupostos teóricos em fundamentos da metafísica da causalidade, o que viabilizaria possíveis explicações sobre o comportamento e sobre o imaginário sexual humano.

O que são conceitos e para que servem?

Conceitos são construções artificiais ou constructos mentais criados pelo ser humano para expressar uma idéia ou um conjunto de idéias inter-relacionadas. Os conceitos são sempre criados a partir da percepção humana; por isso, podemos ter diferentes conceitos para fenômenos similares ou um mesmo conceito para fenômenos diferentes. Por exemplo, em culturas nas quais existe estreito convívio com um clima frio e rigoroso, comumente são usados vários conceitos ou denominações para os diferentes estados de transição da água (chuva, geada, nevasca, neve, etc.), ao passo que em sociedades distantes dessa realidade pode haver apenas uma - ou nenhuma - palavra para descrever tais diferentes fenômenos.

Essa mesma analogia pode ser transposta para a sexualidade humana. Em um trabalho de campo realizado em uma comunidade pesqueira de classe popular (Cardoso, 2002, 2005), verifiquei apenas dois conceitos de homens: os homens e os paneleiros (aqueles que gostam de ser passivos e de praticar a felação). Já no convívio com a classe média profissional, pode-se perceber uma maior diversidade de conceitos de homens: heterossexuais, bissexuais, homossexuais (que ainda podem ser classificados como bicha, veado, entendido, etc). Assim, pode-se perceber que a grande utilidade dos conceitos consiste em expressar uma realidade percebida pelos seres humanos em diferentes contextos.

Harris (1968) lembra-nos que existem duas naturezas básicas nos conceitos: aqueles produzidos pelos outros, denominados por ele de "êmicos", e aqueles produzidos por nós mesmos, denominados por ele de "éticos". Logo, "homens" e "paneleiros" são conceitos êmicos da comunidade por mim estudada, assim como heterossexuais, homossexuais e bissexuais são conceitos êmicos das classes medias urbanas. Em minha pesquisa de campo, realizada com os pescadores, é evidente que também tinha os meus próprios conceitos sobre homem, isto é, conceitos éticos de como eu percebia aquela realidade desconhecida (homens que faziam sexo apenas com mulheres, homens que faziam sexo apenas com homens e homens que faziam sexo com os dois sexos).

Esta discussão aponta para o fato de que, mesmo no meio acadêmico, não produzimos conceitos mais certos ou verdadeiros do que aqueles percebidos pelo senso comum. No entanto, na academia devemos ter a obrigação de construir e organizar conceitos que expressem um fenômeno, ao mesmo tempo em que possibilitem a sua comparação em diferentes meios sociais. Algo que Money, apesar de algumas percepções distorcidas, tentou realizar.

Fatos versus dados

Werner (1999) concorda com Money no que diz respeito à dificuldade filosófica de muitos estudiosos em separar conceitos de "fenômenos". Werner sugere que, no momento de proceder a uma pesquisa, o investigador deva tentar entender a distinção entre fenômenos e dados. Embora alguns estudiosos não tenham problemas em usar a palavra "fato", devemos ser mais cautelosos quanto ao seu uso. A diferença entre essas duas posições é que alguns estudiosos acreditam que os seres humanos têm a capacidade de chegar às categorias "reais" da natureza humana, ao passo que outros desconfiam dessa capacidade. Enfim, Werner afirma que de modo geral nossos conceitos são construídos, sem ser, no entanto, totalmente arbitrários ou desconexos daquilo que observamos criteriosamente.

 

Considerações finais

Frente à dificuldade de se realizar pesquisas com amostras probabilísticas na área da sexualidade e gênero, uma vez que necessitamos da boa vontade e da disposição de todas as pessoas em falar de sua intimidade, talvez devêssemos concentrar mais energia em outros aspectos da metodologia da pesquisa que pudessem iluminar o caminho na solução de algumas das nossas principais dúvidas. Por exemplo, independentemente de se tratar de uma pesquisa qualitativa ou quantitativa, é importante que nos preocupemos em enfatizar a comparação entre pessoas com três diferentes tipos de práticas sexuais: parceiros do mesmo sexo, parceiros do sexo oposto ou ambos. Com tal procedimento, poderemos obter mais dados sobre as similaridades e diferenças em termos de prática, orientação e identidade sexual, bem como outros aspectos como motricidade, orientação social, personalidade, etc., em várias etapas da vida (infância, adolescência e maturidade).

Comparações transculturais também são de extrema importância para podermos compreender melhor as influências culturais, como classe social, religião, mitos e educação sobre as manifestações da orientação sexual. Por exemplo, como pessoas com orientações sexuais similares comportam-se em termos de prática e identidade sexual em diferentes "ethos sociais". Pelo fato de trabalharmos com aspectos bastante difíceis de serem medidos e avaliados, podemos utilizar instrumentos que coletem a percepção do fenômeno que queremos investigar de forma êmica e também ética para posterior comparação. Sendo assim, poderíamos comparar diferentes percepções sobre um mesmo fenômeno com o objetivo de identificar algo percebido universalmente.

Assim, por exemplo, para avaliar a motricidade humana, poderíamos convidar um professor de educação física especialista na área para nos ajudar a avaliar por meio de testes ou observação, ou pedir que a própria amostra avalie os seus pares ou, ainda, pedir às pessoas que interajam com a amostragem para fazer tal avaliação e diferenciação.

Fazer pesquisa não se trata de uma atividade simples e barata. Por vezes, realizamos aquilo que é possível de acordo com a nossa disponibilidade de tempo, dinheiro e alcance teórico. Contudo, por mais simples que seja a contribuição acadêmica, até mesmo um estudo de caso de um indivíduo ou grupo de indivíduos tem grande utilidade, desde que se deixe bem clara a diferença entre o que se faz, o que se prefere e como se percebe sexualmente, além de informações contextuais claras sobre a metodologia e a amostragem, como idade, classe social, nível de escolaridade, etc., que possam melhor caracterizar o campo de onde os dados provêm. Portanto, para qualquer futura pesquisa bibliográfica que busque dados de campo para comparações de maior escala, será de grande importância a utilização desses dados.

 

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Received: 09/05/2006
Accepted: 06/06/2007

 

 

* Fernando Luiz Cardoso. Professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
1 Endereço: Núcleo de Estudos da Sexualidade - NES, Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Benevenuta Bartlet James, 69, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 88.015-630. E-mail: d2flc@udesc.br