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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482
Estud. psicanal. n.29 Belo Horizonte set. 2006
TEXTOS SELECIONADOS
Perversão: trajetória de um conceito
Perversion: a way towards a concept
Carlos Pinto Corrêa
Psicanalista. Fundador e membro do Círculo Psicanalítico da Bahia – CPBA
RESUMO
O texto revisa o caminho histórico do conceito de perversão desde o Concílio de Latrão até os nossos dias, começando com Cabanis, Esquirol e outros autores pioneiros na pesquisa da sexualidade humana. O autor faz uma revisão da literatura psicanalítica com Freud, Lacan e Serge André.
Palavras-chave: Perversão, Sexualidade, Culpa, Modernidade.
ABSTRACT
The text establishes a historic way of the perversion concept. It explores from the Latrão Council to present days, begining with Cabanis, Esquirol and others sexual researchers pioneers. The author makes a revision inside the psychoanalytical literature with Freud, Lacan and Serge André.
Keywords: Perversion, Sexuality, Guilt, Modernity.
É antiga a inquietação com que a humanidade tem tentado desfrutar da sexualidade. O Concílio de Latrão em 1215, ao regulamentar o sacramento da penitência com ulterior desenvolvimento das técnicas da confissão, demarcava uma prática sexual oculta, desvia-da e que precisava ser confessada. Mas, muito antes, pelo que nos ensina a antropologia, o homem se debateu entre formas permitidas e proibidas de expressão sexual.
Foucaut, na sua História da Sexualidade, considera que até o século XVI existia certa franqueza com as práticas sexuais, exercidas e faladas de modo aberto e espontâneo. Sem dúvida, esta observação que diz respeito principalmente às sociedades ocidentais nos serve também como interessante ponto de partida.
É no século XVII que se inicia uma época de repressão declarada, decorrente das transformações pela ascensão da burguesia e a afirmação da família conjugal como núcleo primordial. Seria esta família a confiscadora da sexualidade que fica comprometida inteiramente com a função de reproduzir. O casal legítimo e procriador dita a lei. Em torno do sexo se cala. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo.
Embora Freud tenha sido bastante explícito sobre as origens da culpabilidade e da repressão sexual em todos os tempos, Foucaut, seguindo uma vertente histórica, lembra que seria legítimo perguntar por que durante tanto tempo associou-se o sexo ao pecado. Suas considerações histórico-teóricas e histórico-políticas não chegam a trazer novas luzes sobre o tema, mas têm efeito provocante para o psicanalista. Temos nossa referência teórica fundada no conhecimento do inconsciente, mas a verificação da persistência dos mecanismos de repressão e culpa, atuando por tantos séculos e de modo universal, extrapola o nosso consultório. Ainda mais quando pensamos sobre a perversão como um conceito anterior a Freud, que expressava uma condenação social contra qualquer forma de ser sexual.
A sexualidade chega ao século XVIII como uma questão de costume e, conseqüentemente, passa a ser regulamentada por um código externo ao sujeito. Na verdade, as práticas sexuais estavam reguladas por três grandes códigos: o Direito Canônico, a Pastoral Cristã e a Lei Civil.
É óbvio que os códigos não visavam privilegiar alguma forma de prazer, mas a regulagem dos pecados graves como o estupro, o adultério, o rapto, o incesto espiritual e carnal e também a sodomia ou carícia recíproca. A sexualidade desvinculada do prazer é tomada por sua finalidade essencial: a reprodução da espécie. “Todo desvio deste objetivo é considerado como uma aberração, ligada a uma degenerescência do instinto sexual natural”. Valas (1990).
A lei aqui ultrapassa o fantasma do pai que interdita e antecede ao sujeito nas suas possíveis fantasias, pois sendo fundamentalmente jurídica, preestabelece a pena, antepondo o temor ao desejo.
Oscilando entre uma sexualidade restrita e tida como natural por atender à finalidade da procriação e de uma outra condenável por seus desvios, chegamos ao século XIX. É a partir do seu meado que a ciência começa a ensaiar teorias sobre a sexualidade humana. As primeiras intervenções ainda estão ligadas à medicina legal e visam fornecer suporte ao julgamento do sujeito que infringe as boas normas.
Cabanis em 1843 foi pioneiro, ao tomar a sexualidade não apenas ao nível das funções ontogenéticas, mas como determinante para o estabelecimento de relações interpessoais. O grande peso de se tentar compreender a sexualidade sempre debaixo de juízos morais não deixa grandes alternativas aos primeiros pesquisadores, como até em nossos dias exerce forte influência. Há sempre a questão da norma que restringe uma forma de sexualidade aceitável e o repúdio às que não se enquadram nos cânones. Quando a ciência toma a temática da sexualidade, vai cair na mesma dicotomia: o que não está na norma é doença. A proliferação de rótulos é acompanhada de uma adjetivação suspeita. Fala-se de ninfomania, satiríase e também de sujeitos que cometem atos monstruosos como a necrofilia, pedofilia e assassinatos sádicos. Esquirol fala de “monomanias instintuais” e Morel (1857) vai enquadrá-las nas “loucuras hereditárias”, as “perversões de instintos genésicos”.
Em 1877, Lasègue descreve pela primeira vez o exibicionismo, considerando-o como um ato impulsivo. Quase cinqüenta anos depois, Magnan (1935) retoma a questão das perversões sexuais como ligada a síndromes impulsivas e obsessivas. Ulrichs toma a homossexualidade como uma tendência natural denominada “uranismo”. Wesphall (1870) cunha a expressão “inversão sexual”, que, como as neuroses, seria uma patologia hereditária. Binet (1887) apresenta um trabalho intitulado “Fétichisme dans l’amour”, no qual reconhece o fator hereditário como essencial à constituição das perversões.
É fácil observar o embaraço dos autores dessa época diante das chamadas anomalias da sexualidade e principalmente sua perplexidade para, dentro de um raciocínio médico, descreverem a etiologia de tais problemas. Sem uma teoria válida sobre os fatores psicogênicos, a explicação mais adequada para tais desvios da norma recaía na questão hereditária. Até nossos dias prevalece vulgarmente a questão da tara como um peso capaz de desviar inexoravelmente o indivíduo da norma.
Mas foi sem dúvida Krafft-Ebing (1879) quem mais influenciou o estudo da sexualidade no final do século passado. O seu livro Psicopatia Sexual teve sucessivas edições, tornando-se uma referência obrigatória. Ele dividiu as anomalias do instinto sexual em quatro classes: anestesia, hiperestesia, paradoxia e parestesia. Assim, resumiu de maneira didática todas as alterações instintivas possíveis. No plano etiológico, deixou a teoria da hereditariedade e tomou as perversões como sendo de natureza congênita ou derivada de processos degenerativos cerebrais, em oposição às perversões adquiridas. No mesmo plano, passam as neuroses, a paranóia e os distúrbios de caráter. Ele considerou o canibalismo como uma forma primitiva da sexualidade, que explicaria o sadismo e o masoquismo, tomados não como formas opostas de expressão da sexualidade, mas de uma relação complementar dentro de um mesmo indivíduo. Também a homossexualidade é apresentada como derivada de uma bissexualidade originária. A heterossexualidade se desenvolveria pela repressão e involução da tendência alternativa.
Assim chegamos a Ellis, que publicando seus Estudos de Psicologia Sexual (1897-1910), alcançou nossos dias. Citado, acatado e influenciado por Freud, ele retoma as idéias de Moll e as perversões como se fossem provocadas por uma interrupção nas etapas de desenvolvimento. Além de valorizar as condições do meio como favorecedoras ao surgimento das perversões, trata da questão da sedução de crianças pelos adultos, introduz a noção de auto-erotismo em relação às funções uretrais, anais e orais.
Historicamente Freud encontrou a temática da sexualidade em voga no meio psiquiátrico. Em princípio, adotou a postura clássica do estabelecimento da norma. No manuscrito N de sua carta para Fliess de 31 de maio de 1897 aceita a dicotomia entre uma sanidade relacionada com o espírito de sacrifício pela comunidade em oposição à liberdade perversa. Mais ainda, em Estudos sobre a Histeria (1893-95) vai antepor o cérebro dos degenerados e desequilibrados ao cérebro sadio das histéricas.
Não há porque estranhar que Freud tenha tomado de início concepções tão valorativas que dominavam a opinião de escritores, médicos e juristas da época. Ele parte da observação fenomenológica dos usos e costumes, notando que a sexualidade humana situava-se entre as concepções religiosas, com o julgamento dentro de rigores de uma ética asceta e por outro lado a punição aos infratores pretendida pelos legisladores.
Em sua origem, a palavra perversão está carregada de juízo de valor. O substantivo perverso já nomeia adjetivando, pois este Verso é de verter, verter para o caminho errado. Sair do que é direito e bom. Literalmente, o perverso é contrário aos padrões aceitos, ou, o que é ainda mais forte, contrário à direção do juízo, ou à lei.
O tema é atraente e aparece de algum modo nos Estudos sobre a Histeria (1895) e nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Valas (1990) fala do pouco interesse inicial do mestre sobre o assunto. Mas, precisamos acompanhar Freud na sua pesquisa sobre a etiologia das neuroses. Na verdade, até chegar à Interpretação dos Sonhos, Freud dispõe de genialidade e de uma metodologia que utiliza com maestria, mas falta-lhe o essencial que seria a noção de inconsciente. Estudando seus próprios sonhos e os de seus clientes é que sua concepção de normalidade psíquica toma nova forma.
A antiga concepção médica de oposição entre saúde e doença, ou de normal e perverso, dividindo os homens em dois grupos distintos, é desfeita à medida que o inconsciente se revela. Nos sonhos ele encontra a perversão dos não perversos, o crime do inocente, a confissão do inconfessável. Tirada a máscara da resistência, a sexualidade angelical se revela mais tributária à condenação do que parecia salva.
É um longo e intrincado caminho de buscas e revisões que Freud percorreu, para estudar as perversões. Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) é um trabalho didático, onde uma série de conceitos é ordenada e reordenada nos sucessivos acréscimos e notas.
É fundamental sua consideração de que a pulsão sexual existe independente de seu objeto, já que no estudo da homossexualidade ele nos mostra que distúrbios internos modificam a pulsão, que por sua vez há de promover substituições na escolha do objeto.
Se o objeto é secundário e a pulsão é primordial, a questão da perversão passa para a troca de objeto ou sua parcialização. Isto fica claro no caso do fetichismo quando o objeto do investimento libidinal é claramente substituído. Mas, no que tange ao sadismo e ao masoquismo a pulsão teria uma excessiva carga do seu componente agressivo. No masoquismo haveria um retorno do sadismo sobre o sujeito que toma o lugar do objeto sexual.
Quanto à economia psíquica, existiria uma idealização no próprio núcleo da pulsão, ou seja, a idealização incidiria sobre a própria pulsão e não sobre o objeto. Essa idealização da pulsão na perversão fala por si de uma sexualidade simbólica (não real), o que torna inválida a idéia de uma satisfação imediata da pulsão.
A questão da clivagem reaparece de forma mais definida em Fetichismo, quando Freud (1927) descreve seus caminhos e mostra ser ela realizada quando existem duas representações inconciliáveis entre si. A existência da clivagem do Eu já aparecia como condição essencial na psicose. Agora Freud mostra como a recusa da castração no fetichismo não esgota a questão. Permanece de um lado a castração pela descoberta do não falo da mãe (falta) e de outro a proposta de um pênis substituto. Assim, o perverso não consegue liberar totalmente o seu eu da realidade exterior, persistindo as duas representações psíquicas concomitantes e conflitantes.
Aceita a clivagem, Freud nos ensina que a pulsão sexual é “formada por diversos componentes que se dissociam nos quadros das perversões”. Esta alteração pulsional leva Freud a estabelecer uma distinção entre a perversão e a neurose. Encontraremos sempre na neurose um componente recalcado que se mantém afastado da consciência. Nas perversões não achamos o elemento recalcado, mas uma recusa da realidade. É por isso que Freud, na fórmula já expressa no caso Dora, afirma que “a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão”.
Na verdade, os sintomas perversos não se desenvolvem em detrimento da pulsão sexual normal, até porque os sintomas são formados em parte a expensas da sexualidade normal. Freud fala de uma conversão das pulsões que poderia ser chamada de perversa. Essa conversão se dá por expressão no ato imaginário ou real. Para os neuróticos os desvios da sexualidade estão também presentes, mas em representações inconciliáveis entre o Eu e o Isso.
Esta questão será melhor abordada em Esboço da Psicanálise (1939) quando Freud restabelece a diferença entre a neurose e a perversão como uma questão de ordem tópica estrutural. “Na neurose, estamos no seio de uma tópica intersistêmica, já que as representações inconciliáveis situam-se entre o Eu e o Isso. Com o fetichismo, ou demais perversões, situamo-nos em uma tópica intra-sistêmica, já que as representações inconciliáveis coabitam no interior de um mesmo sistema. No primeiro caso, o processo de defesa em operação é portanto o recalcamento. No segundo, trata-se da recusa. Tanto em um caso como no outro, somos levados à estratégia do ‘Eu sei... mas assim mesmo’, tão sutilmente analisada por Octave Mannoni em Chaves para o Imaginário ou a Outra Cena”. Dor (1987).
Saber e recusar o que já é consciente são uma forma de preparação ao ato. O neurótico pelo ato tenta sustentar o desejo enfraquecido, enquanto que o perverso finge, encena para realizar o desejo previamente determinado, obtendo assim um gozo inconfessável.
A questão da castração está no cerne de toda problemática da perversão e só poderá ser compreendida a partir de uma lógica fálica. A identificação pré-genital é essencialmente fálica, na medida em que a criança está identificada como objeto do gozo da mãe. Em outras palavras, a criança é dependente do universo semântico da mãe, já que sua vida segue os ditames do desejo dela. A mãe é onipotente na medida em que a submissão da criança é absoluta, o que a torna sujeita ao desejo do outro. Negando este desejo do outro a criança passa à convicção ilusória de ser ela mesma o objeto que pode preencher esta falta. Freud acreditava que tal mecanismo seria decorrente da descoberta feita pela criança da falta do pênis da mãe, ocorrida pela descoberta das diferenças anatômicas.
A recusa da percepção da falta fálica na mulher remete a criança ao SIM-NÃO, que produz a clivagem do eu. Em Freud esta antinomia nos leva à questão edipiana. Com Lacan esta questão da castração se torna um fator estruturante. Assim, a idéia de denegação (Verneignung) de Freud é substituída por desmentido (Dementi). Na verdade, a castração corresponde à incapacidade do sujeito de obter do Outro a garantia do gozo e constitui, portanto, a representação simbólica de uma emasculação que incide sobre um objeto imaginário: o falo absoluto e onipotente do pai. Lacan (1972) completará a questão lógica da castração no seminário “Mais, ainda”, tratando da inviabilidade da relação sexual. Serge André (1993), dando continuidade ao estudo das perversões, vai retirá-las da condição de entidade clínica. A perversão seria um modo de pensar, uma forma de relação com a fantasia e com a lei. Sua diferença da neurose se faria segundo a incorporação do campo privado. À vergonha do neurótico diante de sua fantasia se opõe a fantasia do perverso como cena pública, daí sua passagem ao ato.
Hoje, aos olhos do psicanalista, a posição do perverso perdeu seu rótulo de patologia e conseqüentemente o espaço como indicação clínica. “É que a perversão é algo totalmente diferente de uma entidade clínica: ela é um certo modo de pensar” André (1993). A perversão ficou liberta de uma condenação social e legal, tornando-se um estilo objeto do desejo, tema para literatura e cinema, vista até como opção. Decorrente das exigências cada vez mais desumanas do discurso das ciências e da globalização, mercê da permissividade pós-moderna é regulada por uma nova ética, chamada por ANDRÉ de Ética Perversa. Resumindo, uma trajetória que vai da execração até o desejo.
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Endereço para correspondência:
Rua Ademar de Barros, 1156/202
40170–110 – Salvador – BA
Enviado em março de 2006
Aceito em 10/05/2006