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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. n.32 Belo Horizonte nov. 2009
Luto e melancolia versus Distimia1
Mourning and melancholia versus dysthymia
Anchyses Jobim Lopes2
Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
RESUMO
O uso excessivo de remédios psiquiátricos, principalmente nos quadros de depressão. A utilização das classificações internacionais contemporâneas como facilitadoras desse abuso. A simplificação de vários quadros clínicos diferentes sob o rótulo de distimia. A ideologia cognitivo-comportamental e reducionista induzindo à medicalização. A Psicanálise como método terapêutico e visão de mundo opostas às daquelas que embasam o rótulo de distimia. Tempo, finitude e experiência trágica da vida.
Palavras-chave: Tratamento das depressões, Hipermedicalização, Tempo e experiência trágica.
ABSTRACT
Abusive use of psychiatrical drugs, mainly concerning depression diagnosis. Use of the international mental and behavior disorder classifications facilitating this abuse. Over simplification of diverse clinical diagnosis under the label of distimy. Cognitive behavioural ideology inducing over medicalization. Psychoanalysis as an opposite therapeutical method and world view. Time, finitude and tragic experience of the life.
Keywords: Treatment of depressions, Over medication, Time and tragic experience.
Sei lidar com a infelicidade,
Como aceitar notícias ruins.
Posso diminuir a injustiça,
Iluminar a ausência de Deus,
Ou escolher o melhor véu que combine com sua face.
O que está esperando –
Tenha fé em minha compaixão química.
(...) Venda-me sua alma,
Não há outros interessados.
(de ‘Anúncio’, Wislawa Szymborska)
Introdução: ‘vai um Prozac aí?’
Tanto na clínica social do CBP-RJ, quanto no trabalho de consultório e no relato de alunos e colegas, é impressionante a hipermedicalização com a qual chegam quase todos os pacientes. Seja quanto ao número de remédios, seja quanto à dose dos mesmos. O fenômeno não atinge apenas aqueles que poderiam receber o diagnóstico antigo de ‘depressão’, mas a todos os quadros clínicos, mesmo os mais leves.
Já data de várias décadas o fato de que os fármacos psiquiátricos são receitados não apenas por psiquiatras, mas, principalmente, por médicos das mais diversas especialidades e, em grande parte, por neurologistas. A má fama causada pelos abusos do poder psiquiátrico, o medo de procurar médico de maluco, aliados à propaganda pelos meios de comunicação de massa sobre as descobertas da neurociência, tudo somado à leitura de autores de grande popularização, como Oliver Sacks, tudo parece corroborar para que o neurologista seja visto por muitos como um especialista dotado de um saber mais científico e confiável que o psiquiatra.
Mas o fenômeno da hipermedicalização psiquiátrica atinge todas as especialidades. Quem não passou pela experiência, ou conhece algum familiar ou amigo, que saiu da consulta médica, em qualquer especialidade, mas especialmente clínicos gerais, com uma prescrição da droga mais em moda: Lexotan, Prozac, Rivotril?
Nas supervisões coletivas da clínica social e individuais dos candidatos em formação, é constante a procura do tratamento de crianças vindas com diagnóstico de TDA, e sempre medicadas. Igualmente constante é a descoberta de que o problema seja principalmente desarmonia familiar ou outros conflitos ambientais, bem como inútil a medicação.
Nas grandes metrópoles brasileiras e mesmo nas cidades de porte médio, é fácil a constatação visual do número impressionante de farmácias, em sua maioria lojas lindas e pertencentes a grandes redes. Lojas tão reluzentes, belas e cheias de mercadorias desejáveis como quaisquer outras do grande consumo. O que confirma a constatação feita há vários anos por um cidadão inglês, funcionário de uma grande transnacional, pessoa viajada por grande parte do Ocidente e Oriente, de que: “em qualquer grande cidade do mundo há um botequim (pub) em cada esquina, mas no Brasil também há uma farmácia em cada esquina”. Hoje consideramos errada essa afirmação: há pelo menos duas farmácias em cada esquina.
DSM-IV e CID-10: ou como medicalizar sem fazer esforço
O carro-chefe da antiga psiquiatria, fundada por Emil Kraepelin ([1919, 1921] 1991) e Eugen Bleuler ([1924] 1976) ao final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, possuía por fulcro a esquizofrenia. A partir da década de 60 do século passado, com o movimento da antipsiquiatria e a partir de críticos e pensadores do porte de um Michael Foucault, a denúncia de que o diagnóstico de esquizofrenia servia para toda sorte de controles sociais e atrocidades, obrigou a mudança do eixo da psiquiatria. Pelo Ocidente afora, se difundiu o movimento antimanicomial, que teve como a mais famosa de suas consequências a proposta de desativação dos hospícios, a partir do trabalho de Franco Basaglia, na Itália, e que chegou até o Brasil, tendo seu ápice na Lei Paulo Delgado. Num movimento paralelo de mudança da grande influência cultural, o eixo da Psiquiatria foi transferido da Europa aos Estados Unidos. No Brasil os nomes e tratados europeus – Mayer-Gross (1969), Bleuler (1976), Henry Ey (1974), Alonso-Fernández (1976) – foram substituídos quase que exclusivamente por um único título americano – Kaplan-Saddock (2007) -. Esse compêndio, em um volume, é em si mesmo o resumo de um tratado em três volumes com edições e leitura muito mais restritas, também é utilizado com exclusividade nos cursos de graduação em Psicologia. E, como mudança clínica mais importante, a doença base da psiquiatria transferiu-se da esquizofrenia para a ‘depressão’.
Foram bastante criticadas as modificações ocorridas nas últimas classificações internacionais a CID-10 (1993) e a DSM-IV (2002) (apesar de referir-se à psiquiatria americana, o uso da DSM-IV ultrapassa muito suas fronteiras, de modo que também podemos considerá-la uma classificação internacional). Se, por um lado, em itens como em transtornos somatoformes e transtornos dissociativos, houve a criação de diagnósticos novos e mais precisos, assim como houve um pequeno abrandamento na possibilidade de colocar em qualquer paciente mais grave o rótulo de esquizofrenia, por outro lado o abandono de diagnósticos clássicos, que tivessem alguma origem psicanalítica ou em uma compreensão dinâmica dos transtornos, foi muito recriminado. As mais novas versões das classificações internacionais, além da preocupação obsessiva em se desvencilhar de tudo que pudesse cheirar a Psicanálise, também o fizeram com toda antiga psiquiatria originária da psicopatologia fenomenológica. Psicanálise e Fenomenologia partem de conceitos de sujeito, as classificações atuais tentaram justificar-se por um objetivismo absoluto, logicamente também necessitam de uma psicologia dessubjetivada.
As novas versões das classificações internacionais tiveram por meta a construção de diagnósticos meramente descritivos, seguidos de longas listas de sintomas. A nosologia psiquiátrica tornou-se uma série de listas de sintomas, seguidas de receitas fáceis para a obtenção de rótulos diagnósticos. Listas utilizáveis com simplificação exagerada por qualquer tipo de profissional, novamente conduzindo ao abuso do conhecimento psiquiátrico, desta vez através da excessiva possibilidade de rotulação e, consequentemente, fornecendo um substrato pseudocientífico para a hipermedicalização. Também é apontada a ideologia subjacente a DSM-IV e CID-10, profundamente comprometidas com a teoria cognitivo-comportamental. A psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco (2008, p.187) resume o projeto das classificações internacionais:
(...) abandonar definitivamente a terminologia psicanalítica, psicodinâmica ou fenomenológica – que humanizara a psiquiatria durante 60 anos dotando-a de uma filosofia do sujeito -, para substituí-la por critérios comportamentais dos quais estava excluída qualquer referência à subjetividade.
Um excelente estudo realizado e publicado no Brasil por um psiquiatra – A psiquiatria no divâ – entre as ciências da vida e a medicalização da existência (AGUIAR 2004) -, confirma, através de um estudo prático, a hipermedicalização e confirma as críticas feitas às classificações internacionais (acreditamos que o título do livro deva ter sido uma escolha comercial, não há conceitos ou interpretações psicanalíticas maiores no texto). Mas, e nisso consideramos o grande mérito do livro, o autor estuda criteriosamente os mecanismos de indução ao consumo de remédios psiquiátricos. Mostra como os diagnósticos e listas da DSM-IV e CID-10 serviram a uma difusão simplificada, mecanicista e nada terapêutica dos diagnósticos psiquiátricos, como essa simplificação foi utilizada pelos grandes laboratórios para propaganda de seus produtos e como essa propaganda é comercialmente difundida não apenas pelas publicações médicas, mas, principalmente, pelos meios de comunicação de massa. O reducionismo nosológico tornou a rotulação psiquiátrica acessível não apenas aos profissionais de outras áreas, mas ao público leigo em geral. Sem ter crítica da manipulação mercadológica, os diagnósticos são vendidos à população, seja em artigos de revistas e jornais ou pela televisão e pela internet. Sempre sob a capa de descobertas científicas novíssimas e revolucionárias, reduzindo uma doença ou traço de comportamento a uma explicação genética, algo do tipo: foi descoberto o gene que torna levadas as crianças, ou por que os homens tendem a ser mais infiéis que as mulheres, ou você pensa que está desanimado com a vida, mas pode ser distimia. Em revistas tais matérias são frequentemente seguidas com listas de perguntas em questionários com o título: veja se você também tem...
A observação corriqueira mostra como os diagnósticos e listas de sintomas possuem difusão em revistas semanais, em publicações para o público feminino e em revistas de divulgação científica popularizada (usualmente todas das mesmas editoras). Aguiar (2004) descreve que, induzidos à crença reducionista de que todo o problema advém do transtorno X ou Y, o público já chega ao consultório ou ambulatório, de qualquer nível social, trazendo seu próprio diagnóstico: doutor eu sou bipolar. Sairia do escopo do atual trabalho uma crítica de como, mais recente que o termo distimia, o termo bipolar tornou-se um modismo, aproveitando-se das variações humanas universais do humor ao longo dos dias. Para quem trabalhou extensa e intensivamente em instituições psiquiátricas, e lidou com pacientes verdadeiramente portadores da antiga psicose maníaco-depressiva, hoje transtorno depressivo maior e transtorno bipolar, a vulgarização do termo bipolar soa ofensiva à gravidade dos sintomas dos reais portadores do transtorno e de seu sofrimento.
Diante de tal certeza autodiagnóstica – eu sou bipolar -, os médicos, principalmente os de emprego público ou que sobrevivem de convênios (isto é, quase todos), profissionais mal remunerados, com poucos minutos para a consulta, são sutilmente, ou não tão sutilmente, obrigados a ceder ao pedido do paciente pela droga que solucionará todos os seus problemas. O pedido terá mais sucesso se o médico já tiver sido bombardeado pela visita de representantes de laboratórios, pela propaganda em revistas médicas, por uma formação precária ou nula em Psiquiatria e, também, pelos mesmos meios de comunicação que atingiram o paciente. Se não atender ao pedido do paciente, e sem tempo e ânimo para contra argumentar, o médico carregará para o resto de sua vida a culpa de não ter dado ao doente o remédio que solucionaria todos os seus problemas.
Distimia: um embrulho só
A mais grave consequência dessa mudança ideológica da criação de novos diagnósticos ocorreu nos transtornos do humor. Nesse item, a DSM-IV e, em um grau quase imperceptivelmente menor na CID-10, sob a capa de uma suposta cientificidade, produziram uma involução diagnóstica. Na fúria para eliminar o termo ‘neurose’, as classificações fundiram os diagnósticos de neurose depressiva e personalidade depressiva em uma única categoria clínica: a distimia. Na psicopatologia geral, a palavra distimia referia-se a um sintoma, o da quebra súbita do controle do humor, como, por analogia, disbulia refere-se à quebra súbita do controle da vontade. Contrariamente a sua origem etimológica, o termo distimia foi elevado de sintoma à categoria de diagnóstico. Ao mesmo tempo, o novo uso do termo distimia o tornou impreciso em relação a sua fronteira com o diagnóstico de transtorno depressivo maior.
Na neurose depressiva ou depressão neurótica, temos um quadro de hipotimia, surgido a partir de um tempo preciso ou não, mas que nitidamente não existia antes, pelo menos em gravidade. Um quadro clínico que, em sua maioria, não é incapacitante para a vida social e para o trabalho. Na neurose, a ‘depressão’ surgiu há um tempo determinado, incomoda seu portador, muitas vezes com a mescla de ansiedade e depressão ansiosa, e o paciente procura pelo tratamento. As pessoas à volta do paciente podem ou não sofrer com seu transtorno, mas é bem claro que ele sofre muito mais. Certamente trata-se mais de um sintoma subjetivo do que de um sintoma social (aqui nos referimos aos sintomas sociais como transtornos socialmente desagregadores, desde os conflitos intersubjetivos até legais, e não ao conceito psicanalítico de laço social). A experiência clínica mostra como tais pacientes não reagem ou reagem mal aos antidepressivos. Entre pesquisas que classificam taxas altíssimas de incidência e prevalência da ‘depressão’, os pacientes com neurose depressiva constituem um dos grandes mercados para tratamentos psicoterápicos de todos os tipos. Até a CID-9 o diagnóstico de depressão neurótica fora mantido.
Em paralelo, na mesma classificação anterior, entre os transtornos de personalidade, era incluído o transtorno afetivo de personalidade, no qual podiam ser englobados, também, os diagnósticos de personalidade depressiva e de personalidade ciclotímica. Ainda existia em tratados de psiquiatria um termo mais remoto: a personalidade hipomaníaca. Em todos esses diagnósticos, o sintoma é muito mais social que subjetivo. O paciente sofre menos que os outros a sua volta ou, então, simplesmente não sofre. Raramente o portador de um transtorno de personalidade busca tratamento. E, como em todos os outros transtornos de personalidade, aqueles associados com a afetividade também não respondem à medicação. Caricaturalmente, a personalidade depressiva é rotulada por muitos de síndrome da hiena, em referência a um antigo desenho animado infantil, em que a personagem, eternamente queixosa e pessimista, sempre repetia: ó vida, ó azar! Quando associado a queixas hipocondríacas, o diagnóstico é facilmente identificável para o leigo: aquelas pessoas que você se arrepende de perguntar – como vai?
A distinção de neurose e transtorno de personalidade é equivalente na obra de Freud à distinção entre neurose transferencial e neurose de caráter, que culminou possuindo por fulcro a distinção psicanalítica entre ego-distônico e ego-sintônico, diferença estrutural básica para a clínica. Curiosamente, os mentores do DSM-IV, em sua ojeriza à Psicanálise, esqueceram de retirar esse conceito, revelando como mesmo a mais descritiva das classificações torna-se incompreensível sem alguma compreensão dinâmica. Na DSM-IV, lemos (2002, p. 642): “(...) as características que definem um Transtorno de Personalidade podem não ser consideradas problemáticas pelo indivíduo (i.e., os traços são ego-sintônicos)”.
A classificação atual manteve a categoria genérica dos transtornos de personalidade, mas retirou qualquer diagnóstico referente aos transtornos afetivos de personalidade. Além do transtorno depressivo de personalidade, também foram suprimidos os transtornos de personalidade ciclotímico e hipomaníaco. Tratou-se de uma exclusão específica e notória, uma vez que todos os outros transtornos de personalidade antigos foram mantidos: obsessivo-compulsivo, histriônico, paranoide, esquizoide, antissocial. Sendo assim, todo e qualquer transtorno do humor foi considerado ego-distônico, portanto sempre necessitando de tratamento, medicamentoso, é claro.
Neurose depressiva e personalidade depressiva foram fundidas sob a égide da distimia. E nessa um pequeno item, se considerados todos os outros diagnósticos da seção de transtornos do humor, antigamente considerados ‘psicóticos’. Qualquer leigo com acesso à internet ou médico de formação precária em Psiquiatria irá ler hoje a distimia não entre as neuroses e os transtornos de ansiedade – ‘mais leves’ –, mas ao lado da antiga psicose maníaco-depressiva e dos atuais transtornos bipolar e depressivo maior – ‘muito mais graves e sérios’.
Movida por uma ideologia declaradamente antipsicanalítica, a redução de todos os quadros de depressão não psicótica no diagnóstico de distimia, embasa a idéia de que todas as depressões são medicalizáveis. A aliança da psiquiatria organicista com a terapia comportamental, que também se expressa com grande intensidade no Brasil, reflete a luta pelo mercado do tratamento das depressões diante de todas as outras formas de psicoterapia, principalmente a psicanalítica. A crítica de que a maioria das depressões neuróticas e das personalidades depressivas não reage ou reage mal à medicação ficou obscurecida pela criação do diagnóstico atual de distimia.
O excesso do uso de antidepressivos tem conduzido a uma revisão crescente de sua eficácia e de seus efeitos colaterais (bem compreensíveis, se considerarmos a psicodinâmica dos transtornos de humor), como o aumento de suicídios, assim como os estudos sobre a cessação de seus efeitos após certo tempo. As críticas se tornaram ainda mais agudas nos últimos anos. Se forem reais as hipóteses do aumento da incidência dos quadros de esclerose múltipla e de doença de Alzheimer nos países industrializados do Ocidente, além de causas ambientais como a poluição, o uso excessivo e continuado de medicações psiquiátricas terá de ser pesquisado seriamente como uma das possíveis causas. Mas a ‘era do Prozac’ baseia-se em mais do que em um conflito de interesses de mercado.
Vinheta clínica: curta as perdas e deixe de curtir os sofrimentos
Apresentaremos um breve caso clínico. Homem de 54 anos, natural da capital de um estado do Brasil, de onde veio para cursar a universidade no Rio de Janeiro, com formação em área tecnológica, casado, pai de duas filhas, apresentando na primeira entrevista hipotimia, ansiedade, irritação e queixas de insônia e fadiga. Os sintomas relatados tinham surgido há pouco mais de dois anos e vinham se agravando. Mudara de clínico geral e, depois, procurara um psiquiatra. Fora medicado com fluoxetina pelo segundo clínico e com imipramina pelo psiquiatra. No primeiro caso, relatara melhora, mas o alívio dos sintomas teria cessado após “uns seis meses”; no segundo caso, relatava que o remédio “descera quadrado” (sic). Nos últimos seis meses, também apresentara dores precordiais. Procurou um cardiologista e fez uma série de exames, inclusive um acompanhamento cardiológico de 24 horas. Foi constatado sofrimento cardíaco, mas a cineangiocoronariografia não revelava obstruções significativas, sem haver indicação para uma angioplastia nem, muito menos, uma intervenção cirúrgica. O próprio cardiologista apontou causas predominantemente psíquicas e, por muita insistência de sua filha mais velha, o paciente acabou procurando tratamento psicanalítico.
Com duas sessões semanais, após um início de tratamento em que se atinha a problemas cotidianos, descobrimos uma conjugação de três fatos principais. Casado desde que se formara na universidade, aos 23 anos, há mais de quinze anos seu relacionamento com a mulher vinha se deteriorando e nos últimos anos fora reduzido a quase nada. Sua esposa iniciara uma profissão quando as filhas eram pré-adolescentes; tinha sido muito bem sucedida, tornando-se financeiramente independente. Os dados do casamento eram relatados com indiferença: “(...) é o destino natural dos casamentos, que nem o de meus pais”.
O paciente tivera uma ascensão profissional contínua desde sua formatura e trabalhara por dezesseis anos em uma grande multinacional. Há quatro anos fora demitido e iniciara uma pequena empresa. Tinha ciência de que nunca mais galgaria o status profissional anterior e, embora menor, a renda atual era suficiente, mas não trabalhava mais na área profissional em que se formara. Também se sentia solitário e inseguro por ser o único responsável pela firma atual.
E, em terceiro lugar, o paciente falava sempre de suas filhas como se fossem duas adolescentes incapazes e, por falha na primeira entrevista, eu não havíamos indagado a idade exata delas. Foi com mais de dois meses de tratamento que fomos surpreendido com o fato de que tinham 25 e 27 anos, já formadas e com pós-graduação, sendo que a mais velha se preparava para um pós-doutorado nos Estados Unidos, e a mais nova planejava brevemente morar com o namorado.
Passamos dois anos e meio elaborando essas três grandes perdas. O paciente acabou considerando que seu casamento estava “falido” (sic), experimentou fases de grande raiva e ressentimento com a mulher, fazendo extensos relatos de todos os problemas ocorridos durante trinta anos. Apesar de não seguir uma religião, vimos como sua sólida formação em colégios católicos do interior, bem como sua imagem de uma família patriarcal grande na infância alimentavam uma idealização sobre casamento e filhos, de cuja importância ele mesmo não tinha consciência. Também teve de ser feito o luto quanto à perda de sua posição profissional, pelo fato de que seu conhecimento profissional se tornara obsoleto, e pela aceitação da perda da ilusão sobre a falsa segurança, dada por trabalhar para uma grande empresa, da qual “vestira a camisa” (sic) e que subitamente o descartara. Luto para o qual foi mobilizada tanta raiva quanto o do casamento. Quanto às filhas, das quais sempre fora muito próximo, o paciente passava pela popular síndrome do ninho vazio, tendo inclusive fantasias de que o insucesso delas as mantivesse morando consigo. Tanto quanto ao casamento, quanto à profissão e às filhas, era perceptível o investimento narcísico, o sentimento de falha em todas as suas reparações de objetos infantis por meio da família e trabalho e um excessivo eu ideal, que julgava com severidade seu “fracasso na vida” (sic).
Após dois anos de tratamento, todos os sintomas iniciais tinham desaparecido. Os sintomas cardíacos foram os primeiros, em menos de seis meses. O paciente divorciou-se, o que, para sua grande surpresa, foi muito bem aceito pela ex-esposa. Depois de dois breves relacionamentos, o paciente passou a ter um “namoro firme” (sic) com uma mulher alguns anos mais jovem, divorciada e com filhos, companheira com a qual começou a realizar seu antigo sonho de viajar mais nas férias. Também passou a aceitar com maior segurança sua situação profissional e o afastamento das filhas, com as quais mantinha contato bastante próximo e, para exaspero delas, passou, em conjunto com sua ex-esposa, “a pedir netos” (sic).
Consideramos esse paciente como paradigmático, por ter tido perdas simultâneas nas três grandes áreas mais significativas da vida para a maioria das pessoas. Mas não consideramos que tenha sido uma Psicanálise no sentido tradicional do termo. Além do tratamento apenas com duas sessões semanais, a neurose infantil e a constelação edípica foram trabalhadas, com o reconhecimento dos ataques aos objetos infantis, para tornar parte do eu ideal em ideal do eu, permitindo que o paciente pudesse sentir seus lutos. Porém não se tratou de um trabalho tão extenso e maciço como havíamos idealizado. Em palavras do paciente, que iniciara o tratamento se dirigindo a mim como você, mas depois, durante mais de dois anos, sempre se dirigia a mim como “senhor” e “doutor”, que “reencarnava” (sic) seu falecido pai. A alta foi solicitada pelo próprio paciente, e não consideramos que a transferência tenha sido desfeita tanto quanto desejaríamos. Mas o paciente já não precisava tanto de seu grande pai da infância e de todo seu julgamento severo (inclusive do analista com seu eu ideal em busca da meta de uma análise ideal).
Nas três áreas mais importantes para a maioria das pessoas, sob o peso do eu ideal e de um considerável grau de agressividade recalcada, inconscientemente o paciente traíra sua via e a si mesmo, “o que chamo ceder de seu desejo” (LACAN, 1997, p. 285). Traíra seu coração, no sentido figurado do termo, agora este lhe cobrava, em sentido concreto, uma libra de carne do coração (SHAKESPEARE, 1990). Hoje a possibilidade de traição é universal, tanto pela transformação de qualquer um ao longo da vida, que tem se tornado cada vez mais longa, quanto do mundo, de transformações cada vez mais rápidas. O que há de comum entre os 20 anos e os 50? Há de se metamorfosear o desejo, no que apelidamos: “hoje se passa por várias reencarnações na própria vida”. Ao final do tratamento, o paciente relatava que sua vida tinha sido “novamente colocada em movimento”, que acabara a “estagnação” (sic). Dentre os sintomas da depressão, o sentimento de estancamento do presente, sem perspectivas nem fantasia, cessara.
Psicanálise: apologia do luto e do trágico
A Psicanálise foi construída a partir de uma visão trágica da natureza humana. Freud era um notório pessimista, e todos os fatos sócio-políticos da primeira metade do século vinte reforçaram sua visão de mundo e da natureza humana. A Psicanálise possui centrais conceitos como trauma, castração, objeto, falta, finitude e, principalmente, o conceito de pulsão, cuja satisfação integral ou permanente, em obediência ao princípio de prazer, seria a morte. Mais recentemente, os termos desamparo e ressentimento apareceram tanto na literatura psicanalítica como em outras áreas do conhecimento sobre o sujeito (KEHL, 2004). É atribuído a Freud o dito de que “o estado natural da humanidade é um estado de branda infelicidade”. Em parte, porque o conceito freudiano de felicidade não é o de uma satisfação exclusivamente individualista, mas o de realização limitada dentro das possibilidades reais. Satisfação que é fruto de um pacto que visa à continuidade e produtividade do sujeito e da sociedade.
A ideologia freudiana está na contramão da ideologia da sociedade de consumo globalizada, do consumismo desenfreado e lucrativo, para alguns. Coloca-se contra o imediatismo do gozo absoluto e mortífero, promessa do consumismo imediato e irrefreado, e da ilusão de um eu absoluto. A Psicanálise defende a satisfação parcial ao longo do tempo finito do eu e da cultura, procurando aumentar o mais e melhor possível a vida e o pouco deste tempo de que realmente dispomos, o que só possível se temos diante de nós o outro.
Mesmo essa possibilidade de felicidade e satisfação bastante limitadas, defendida por Freud e desvirtuada por aqueles seus seguidores que se tornaram apóstolos do adaptacionismo, foi criticada por Lacan, que aprofundou o suporte do trágico na Psicanálise. Uma satisfação, mesmo que dentro dos limites do princípio de realidade, calcada na sublimação e na genitalidade, Lacan a rotulou como “o serviço dos bens”.
A ética da análise não é uma especulação, que incide sobre a ordenação, a arrumação, do que chamo serviço dos bens. (...) se expressa no que se chama de experiência trágica da vida. (...) a relação da ação com o desejo que habita a dimensão trágica se exerce no sentido de um triunfo da morte (LACAN, 1997, p.375-376).
A sedução do gozo do consumo parte da ilusão de que, preenchendo toda falta, o tempo presente torne-se absoluto, logo a morte não exista. Uma vez que o gozo nunca acontece, só resta repetir cada vez mais rapidamente a tentativa. Do engodo de um presente absoluto, cai-se no outro extremo, uma aceleração maníaca do tempo, através do vício pela busca da novidade, como se ela também nos tornasse sempre novos e imortais. Ambos os extremos unem-se por uma ideologia de uniformização e massificação do tempo; afinal, quem faz o tempo do consumo não é em realidade o consumidor, mas o produtor. E se a negação do tempo e do trágico por um instante parar de funcionar: o consumo de mais um produto de solução imediata, por exemplo, fluoxetina ou cocaína.
O trágico tem em um de seus pilares o tempo como sempre se escoando, e finito, o Ser-para-a-morte heideggeriano. Não por menos no Seminário 7, em sua análise do trágico, Lacan cita nominalmente o pensador alemão (HEIDEGGER apud LACAN, 1997, p. 356). Tal como Hamlet, segurando o crânio de Yorick e voltando-o para a plateia, diz: “vá ao quarto de minha senhora e diga-lhe – deixe-a passar mais de um dedo de maquiagem – que ela acabará assim”. Mas o escoar do tempo trágico, se é inexorável, também é mais lento e viscoso, coloca o ser humano diante do dilema de não ceder de seu desejo, mas de ao menos iludir-se com a idéia de perpetuá-lo em outro, seja por meio de filhos ou de objetos culturais. O tempo do deprimido, sendo também um tempo mais lento, não serve ao tempo do consumismo, pelo contrário, o denuncia. Acusação inconsciente, mas estéril, se o tempo não for novamente posto em movimento, pela elaboração do luto e pelo apropriar-se da sabedoria de que cada um e cada desejo possuem seu próprio tempo. Em O Tempo e o Cão (KEHL, 2009), além de várias críticas ao abuso da medicalização e da negação da depressão, há uma extensa análise da temporalidade do deprimido, objeto no passado de estudos e brilhantes descrições, não da Psicanálise, mas da psiquiatria fenomenológica.
A Psicanálise também é brutalmente contra a tendência atual de busca por resultados rápidos, da propagação do happy end como ideal de vida e da ideia de que todo sofrimento é patológico. De européia para americana, da ênfase na esquizofrenia para as ‘depressões’, do psicanalítico e fenomenológico ao comportamental, não por acaso a mudança do eixo da psiquiatria foi acentuada pela globalização e difusão pela indústria cultural de massa americanizada, com seu ideal de competitividade e sucesso. Tornou-se fato corriqueiro na áreas psi e social que as drogas alucinógenas idealizadas pela contracultura dos anos 60 e 70 do século passado foram substituídas pelas que fornecem a ilusão de poder e sucesso, drogas que mascaram todo sentimento de perda e de desamparo: cocaína e fluoxetina.
Como processo terapêutico, a Psicanálise não oferece ilusões de satisfação plena e felicidade permanente. A revivência e a elaboração das perdas, antigas e recentes, constituem-se em pilares do processo psicanalítico. Mas as perdas só podem ser revividas e elaboradas se a agressividade e a ambivalência, constitutivas de todo ser humano, tiverem espaço e tempo para serem manifestadas em uma terapia: a diferença entre luto e melancolia. Sem dúvida, a tomada de conhecimento limitada do lado escuro de nós mesmos é algo de que todos gostaríamos de ser poupados, se fosse possível. Claro que a Psicanálise é um tratamento caro, mesmo que as sessões sejam o mais baratas possível em uma clínica social, por causa da frequência e duração do tratamento, e torna-se ainda mais dispendioso em termos de investimento afetivo e comprometimento pessoal. Se a fluoxetina funcionasse o tempo todo e para todos, seria perfeita.
Conclusão: a vantagem em se ser sempre do contra
Cabe ao psicanalista defender a antiga neurose depressiva, muitas vezes seu principal ganha-pão, na certeza de que só a Psicanálise pode ajudar eficaz e duradouramente o paciente. A transmissão da Psicanálise em instituições à margem do poder público lhe dá o dom da liberdade diante dos modismos diagnósticos, mesmo sob a capa de sistemas globalizantes e mais científicos de nosologia.
Só nos resta repetir e estender tanto para o psicanalista enquanto terapeuta, como para Psicanálise enquanto terapia, o que já escrevemos em outro texto sobre as próprias instituições que formam esse terapeuta e transmitem essa forma de terapia:
Apesar de todos os narcisismos e querelas históricas, ficou claro o quanto as sociedades psicanalíticas são, ou tentam ser, entidades democráticas nas quais os próprios membros são os donos. Autogestão, propriedade dos meios de produção, participação direta nas Assembleias: termos que os arúspices da globalização vaticinam como ultrapassados, antieconômicos e impeditivos para a competição. Ainda bem que no mundo das cadeias do fast – fast-food, fast-religion e fast-university – a Psicanálise está onde sempre esteve: na contramão (LOPES, 2005, p. 12).
Referências
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Endereço para correspondência
Rua Marechal Mascarenhas de Morais, 132/308
22030-040 – Rio de Janeiro/RJ
Fone: + 55 21 2549-5298
E-mail: anchyses@terra.com.br
Site: www.anchyses.pro.br
Recebido: 02/07/2009
Aprovado: 14/09/2009
1 Trabalho parcialmente apresentado em versão mais breve no XVII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise/VII Jornada Sergipana de Psiquiatria – Interfaces entre a Psicanálise e a Psiquiatria, Aracaju, SE, 30/10 a 1/11 2008.
2 Médico pela UFRJ, residência médica e mestre em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Bacharel, mestre e doutor em Filosofia pelo Instituto de Filosofia da UFRJ. Professor adjunto de Psicopatologia Geral e Especial de graduação e especialização em Psicologia da UNESA. Membro efetivo e psicanalista do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro 2000-04 e 2008-10. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise 2004-06.