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Estudos de Psicanálise
versión impresa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. n.32 Belo Horizonte nov. 2009
Transamérica: na encruzilhada da sexuação
Transamerica: on the crossroads to sexuation
Marli Piva Monteiro1
Círculo Psicanalítico da Bahia
RESUMO
O conflito que envolve a decisão de um transexual entre realizar a cirurgia para mudar de sexo ou cuidar de um filho recém-descoberto é o ponto principal do trabalho. O diagnóstico diferencial e os problemas do transexualismo são abordados nos aspectos psicanalíticos tomando como pano de fundo o filme Transamérica.
Palavras-chave: Transexualismo, Travestismo, Homossexualismo, Nome-do-Pai, Pênis, Castração, Falo.
ABSTRACT
The conflicts involved in the decision of a transexual between his decision to submit to a surgery to change sex or taking care of a son is focused in this work. The differential diagnosis and the problems concerning the surgery are considered on a psychoanalitic point of view with the background of the film Transamerica.
Keywords: Transsexualism, Travestism, Homosexualism, Name-of-the-father, Penis, Castration, Phallus.
A condição para que alguma coisa seja considerada cômica é que haja duas pessoas envolvidas – uma, a que constata o cômico, e a outra, na qual o cômico é constatado.
Há formas variadas do cômico desde o ingênuo, que é quase natural porque há uma inibição inexistente no indivíduo no qual é constatado, o non sense, o absurdo e nas relações humanas nos movimentos, gestos, modos, atitudes e traços de caráter. Por isso é possível tornar a si próprio cômico em relação a outras pessoas, para diverti-las e divertir-se, em situações como disfarces, caricaturas, desmascaramentos, paródias, imitações e o travestismo. Mas pode-se utilizar também o cômico para tornar uma pessoa ou situação desprezível, privá-la de reivindicações e autoridade.
No entanto a própria comicidade tem sempre seu aspecto trágico como bem assinalou o compositor Billy Blanco quando disse em uma de suas canções: “O que dá pra rir dá pra chorar, questão só de pesos e medidas...”
Acho que com este prólogo já vai justificada a escolha do filme Transamérica, sua ligação com esta jornada e, de quebra, um sinal de que a nossa música pode ser veículo para estudar psicanálise.
O filme surgiu no mesmo período em que outros filmes com temas bem próximos começaram a ser explorados como O segredo de Brokeback Mountain e Capote.
Duncan Tucker (2005), diretor e roteirista estreante foi instigado a fazer o filme após uma conversa com a atriz transexual, Katherine Cornella com a qual dividiu uma casa durante quatro meses sem perceber que se tratava de um transexual.
Aparece a película como despretensiosa comédia que, no entanto, revelou Felicity Huffman como uma grande estrela, que convence no papel e foi indicada ao prêmio máximo de Hollywood. Aliás, outra indicação para o Oscar tornou o filme famoso, a de melhor música.
Bree (Sabrine Bree Osbourne) seria uma pálida caricatura não fosse a excelente performance de Felicity. Dado curioso dos bastidores é que Huffman apelidou de “Andy” a prótese peniana que usou durantes as filmagens.
O transexualismo, tema principal do filme, foi assim designado por um americano chamado Harry Benjamin nos anos 50, mas suas origens remontam tempos mais antigos.
Antes do Império Romano, não há referências registradas sobre homens que viviam como mulheres ou vice-versa. O filósofo judeu, Filo, morador de Alexandria no século I d.C. é o primeiro a destacar homens travestidos e vivendo como mulheres, os quais eram emasculados, tiravam-lhes o pênis. Esses homens eram escravos e depois utilizados como guardiões dos leitos de seus senhores – eram os famosos eunucos. O mesmo procedimento foi também usado, anos mais tarde, para que se produzissem cantores líricos a exemplo do famigerado Farinelli, que foi por sua vez tema de um filme.
Muitos imperadores romanos tinham características efeminadas e se travestiam. O mais célebre caso dentre eles é o de Nero, que, após chutar a esposa, Pompéia, que estava grávida, acabou matando-a e depois, movido pelos remorsos, resolveu procurar alguém igual a ela para redimir-se. Encontrou a semelhança num escravo, Sporus e contratou seus cirurgiões para transformá-lo em mulher e casou-se com ele vestido de noiva e com direito a enxoval. Um outro imperador romano, Heliogábalo, casou-se formalmente com um escravo de avantajado físico e adotou perante ele o papel de esposa, oferecendo grandes somas em dinheiro ao cirurgião que o equipasse com uma genitália feminina.
Há histórias, não confirmadas, de que o papa João VIII, nomeado em 885, era mulher travestida de homem e que seu nome de origem era Giliberta que depois mudou para “John Anglicus” e foi papa por dois anos.
Existem também referências (Vieira 2000) de que, no meio médico medieval, havia uma mulher formada na Escola de Medicina de Salerno, chamada Trotula, que teria escrito tratados de cosmetologia. Cogita-se que Trotula era homem e se travestia para poder tratar das mulheres, ofício proibido aos homens de então.
Em épocas posteriores, encontramos o célebre caso de Chevalier d`Eon, que vivia na França e ninguém sabia se era homem ou mulher; considerado rival de Madame Pompadour, acabou como espião de Luis XV na corte da Rússia. Em alguns períodos parecia mulher em outros era homem e só no dia de sua morte descobriu-se que era um homem. No século XV, num povoado de Champignon, surgiu uma mulher que se apresentou como homem, chegando a casar-se duas vezes porque sua primeira mulher morrera. O estranho é que nenhuma das duas esposas jamais se queixou do seu desempenho sexual. Ela possuía um pênis artificial que ela mesma fabricara e com o qual praticava o coito com as mulheres.
Millot (1988) chama a atenção para a importância do diagnóstico diferencial. O diagnóstico diferencial do transexualismo é com o travestismo e o homossexualismo. O travestismo constitui o uso de roupas do sexo contrário. O travesti, porém, experimenta prazer erótico ao vestir-se dessa forma enquanto o transexual sente-se como se fosse de um sexo diferente anatomicamente do seu. Não há nenhum prazer erótico nisso. O homossexual tampouco se confunde com o transexual porque a questão para o homossexual é a atração por pessoas do seu mesmo sexo – existe um componente erótico aí também. Mas o transexual sente-se mulher num corpo de homem. Para um homem transexual vestir-se de mulher é vestir-se conforme sua identidade, nada tem de prazer erótico ou sexual. O transexual revela seu desinteresse pela coisa sexual e pela relação com o órgão macho. O órgão sexual é desinvestido sexualmente e não tem significação psíquica.
Para o travesti o pênis é o representante do falo materno e adota valor de fetiche.
Para Stoller apud Millot(1998), que é um dos maiores estudiosos do assunto, a questão do transexual é de identidade de gênero e não de identidade sexual.
De acordo com esse autor, há, para os dois sexos, uma “camada primária fundamental” que corresponde à identificação com a mãe originária. Para ele, os dois sexos se identificam primeiro com a mãe. Para Freud originalmente os dois sexos estão do lado macho, a questão é saber como a menina depois se torna mulher. Para Stoller apud Millot(1988), é o contrário, o problema é definir como um ser no início feminino torna-se homem. Em seguida a esta camada primordial, há uma outra, a de “impregnação do meio” quando há a designação simbólica – você é menino ou menina. Além disso, há um “care taking” especial para cada um dos sexos. É isto que vai dar a identidade de gênero.
O terceiro nível de identificação é o Édipo que só vem confirmar a posição anterior. Para Stoller apud Millot(1988), é a relação com a mãe que define o transexual. As mães de transexuais são mulheres vazias, habitadas pela ausência de desejo e com acentuados traços depressivos. Na adolescência, teriam desejado ser meninos, fizeram casamentos de conveniência e acomodaram-se.
A criança transexual é produto de um nascimento esperado por muito tempo e desejado como menino, recebe nome de menino e, até de herói, muitas vezes, e representa o que preenche a mãe (o falo) e geralmente são crianças belas.
Para Stoller apud Millot(1988), é comum a presença de doenças precoces nessas crianças, o que facilita um tempo demorado de contato corpo a corpo com a mãe, como se fosse seu prolongamento. Às vezes se desenha como prolongamento do braço da mãe, o pai não tem lugar neste relacionamento – forclusão do Nome-do-Pai – o que impede a significação fálica do pênis.
O que continua intrigando os pesquisadores é por que querer livrar-se do pênis.A operação é para eles questão de vida ou morte, e a decisão ocorre às vezes após uma situação de luto.
Mas há um aspecto curioso que é o desejo de perfeição embutido na perspectiva desta cirurgia – com a ablação do pênis, o transexual quer ser uma mulher perfeita. Um transexual inglês chegou mesmo a dizer que queria ser uma mulher na menopausa. Outros dizem que querem ser “deliciosamente limpos”, “purificados” da protuberância e tornar-se normais. É a fantasia do gozo absoluto.
O transexual precisa extirpar o órgão sexual macho para se realizar como falo da mãe – o pedacinho de carne a mais sobra em relação à identificação fálica.
O falo não é de um sexo nem de outro, é a massa da sexuação, e a marca é excessiva para a identificação fálica.
Segundo Lacan apud Dör (1991), o transexual confunde o órgão com o significante, ou seja, confunde o pênis com o falo, com a idealização imaginária.
Assim, de um lado, o transexual tenta livrar-se da sexuação, mas, de outro, realiza o ser fálico (aquele que pode ter o falo) – o Outro completo, não barrado. É como se tentassem fazer existir A Mulher inteira, escapando à posição fálica, mortífera. Desejam na verdade um mais além do sexo.
Situação com características próprias é a do transexualismo feminino. Para Stoller apud Dör(1991), sendo a primeira identificação materna para ambos os sexos, é preciso que haja uma influência paterna preponderante para neutralizar precocemente a feminilidade primordial. Stoller apud Dör(1991) considera que os transexuais femininos não tiveram existência simbólica satisfatória, pois foi muito cedo neutralizada. As transexuais femininas inserem-se mais facilmente em comunidades masculinas quando procuram vestir-se e comportar-se como homens, casam-se com mulheres e têm filhos por inseminação artificial.
Há prevalência da simbiose com o pai e efeitos de condicionamento que encorajam a criança precocemente na via das estereotipias da masculinidade.
O curioso é que com as mulheres acontece uma situação diferente da dos homens – mulheres travestidas de homens quer sejam travestis quer homossexuais não referem ter prazer erótico com isso. Seriam então todas transexuais?
Conforme Dör (1991), a cirurgia apenas dissipa o temor de serem desmascarados como mulheres, mas às vezes catalisa a descompensação do sujeito.
A intervenção cirúrgica é a realização de uma ideia delirante. A maioria declara, depois, viver uma existência infernal marcada pela insatisfação, as drogas, culminando com o suicídio.
A situação jurídica é ambígua. Seria desejável uma medida consistente que pudesse conter a atividade descontrolada dos cirurgiões. A questão tem características mais complexas para decidir se deveria ser autorizada ou não a troca de sexo por via jurídica. Os juristas respaldam-se na apreciação dos terapeutas e tentam avaliar os efeitos a longa distância, procurando informações de como ficam os pacientes operados e os outros.
A cirurgia aparece como medida paliativa, não curativa para um problema que é de origem psicopatológica, conclui Dör (1991).
No Brasil existe uma Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) de no. 1.481, datada de 1997, autorizando, em caráter experimental, em hospitais universitários e públicos, a cirurgia de transgenitalização. Posteriormente, em 2002, uma nova resolução, de no. 1.652, autorizou a neocolpovulvoplastia – a construção da vagina, no caso dos homens, reconhecendo o bom resultado cirúrgico para a transformação do fenótipo masculino para o feminino e as dificuldades técnicas das neofaloplastias – a construção de um pênis, no caso da transformação do fenótipo feminino para o masculino.
A seleção de pacientes deve ser feita por uma equipe multidisciplinar; o paciente deve ter:
1.mais de 21 anos
2.desconforto com o sexo anatômico atual
3.desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo
4.permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente, por no mínimo, dois anos
5.ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia
6.ausência de outros transtornos mentais.
É exigido também o consentimento livre e esclarecido (documentado).
Os aspectos legais, como a necessidade de alteração do Registro Civil com mudança de prenome e sexo, ainda são aspectos controversos.
Em São Paulo, um juiz permitiu a um transexual operado, chamar-se João e colocar adiante da designação de sexo – transexual. Fatos como esses são questionados pelos transexuais como discriminatórios.
Além disso, o paciente adaptado ao novo sexo tem o direito de contrair matrimônio por ter adquirido os direitos do novo sexo.
Por envolver problemática sociofamiliar, no Brasil, pelo menos até agora, só se tem permitido cirurgia de solteiros e viúvos. Também não fica o transexual isento de prover pensão alimentar.
Como vimos no início, o cômico encerra um aspecto trágico (FREUD, 1905) e a tragicidade no filme está expressa pela convocação do lugar de pai no mesmo momento em que outra convocação poderosa surge claramente – a mudança de sexo. Todos nós, acostumados ao estilo americano de fazer filmes, não nos surpreendemos com a maneira superficial e quase inconsequente de tratar de tão grave questão. Se, por um lado, como vimos, é possível a um transexual psicotizar após a cirurgia ao tentar colocar-se fora da sexuação – condição precípua para o ingresso na comunidade dos neuróticos, de outro, há a injunção. Assim, podemos falar aos psicanalistas: essa demanda decisiva para a função paterna, por si só, já poderia determinar o ingresso no surto psicótico.
Incapaz de assumir a função paterna, Bree tenta atribuí-la aos próprios pais, tarefa na qual fracassa como já era previsto, pois não é de um pai real que se trata no caso, mas de um pai simbólico, aquele que se reconhecendo faltante (um ser incompleto), portanto, castrado, pode simbolicamente representar a lei e apresentar-se como guardião do falo, mas não seu possuidor. No entanto, sendo ele mesmo o próprio falo, não há como prover o filho dessa dádiva imaginária ocupando o lugar da metáfora paterna, do Nome-do-Pai, enfim.
Este realmente é o grande drama de Bree, que provavelmente não se concluiria com a solução de realização de um delírio.
Referências
DÖR, J. Estrutura e Perversão. Porto Alegre:Artes Médicas,1991. [ Links ]
FREUD, S. Os chistes e sua relação com o Inconsciente (1905). ESB Vol. VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1977. [ Links ]
MILLOT, C; POMMMIER, G. Transexualismo/ Identidade Feminina. Transcrição 1. Salvador: Fator. 1988. [ Links ]
VIEIRA, R. T. Aspectos psicológicos, médicos e jurídicos do Transexualismo. Psicologia InFormação. Ano 4 No. 4. jan/dez 2000. [ Links ]
TUCKER, D. Transamérica. Filme americano. Duração: 103m. 2005. [ Links ]
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM nº 1.652/2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.482/97. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm. Acessado em 21 de agosto de 2009. [ Links ]
Endereço para correspondência
Av. ACM 1034 sl 121c – Itaigara
41825–000 – Salvador/BA
Fone: + 55 71 3248-8541 / 3359-2555
E-mail:marlipiva@compos.com.br
Recebido: 04/06/2009
Aprovado: 29/08/2009
1 Médica graduada pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Pós- graduada em Tradução pela UFBA. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico da Bahia.