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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.36 Belo Horizonte Dec. 2011

 

 

A metapsicologia do masoquismo em Freud e Laplanche

 

Masochism’s metapsychology: Freud and Laplanche

 

 

Fernando Cézar Bezerra de Andrade

Sociedade Psicanalítica da Paraíba
Universidade Federal da Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do problema relativo à contradição na obtenção de prazer pela dor, discute-se o masoquismo à luz de dois modelos metapsicológicos: o freudiano e o laplancheano. A metapsicologia freudiana sobre o masoquismo caracteriza-se por duas teorias distintas e opostas, cujas formulações sofrem os efeitos da mudança na teoria das pulsões, a partir de 1920. Entendendo ser o masoquismo uma solução narcísica complementar e diametralmente oposta ao enigma da sexualidade inconscientemente formulado por um adulto de traços predominantemente sádicos, retoma-se a revisão sobre o texto freudiano, empreendida por Laplanche, para ressaltar a concepção deste segundo modelo metapsicológico para o masoquismo. Nesse segundo modelo o masoquismo é entendido como característica de uma posição objetal própria à criança, em relação ao adulto dotado de inconsciente sexual, o que, ainda por essa ótica, é próprio à condição passiva inerente à criança, no contexto da situação antropológica fundamental. Com isso, a afirmação freudiana de um masoquismo originário, no segundo tempo de sua obra, só pode fazer sentido se o autoerotismo for entendido, na perspectiva intersubjetiva, por solução que antecipa o narcisismo infantil como defesa em face da ameaça provinda dos desejos inconscientes do adulto.

Palavras-chave: Masoquismo, Metapsicologia, Teoria freudiana, Teoria da sedução generalizada.


ABSTRACT

Considering the contradiction of getting pleasure from pain, the masochism is discussed from the perspective of two metapsychological models, Freud’s and Laplanche’s. The Freudian metapsychology about masochism is characterized by two distinct and opposed theories, whose formulations suffer the effects of the change in the drives’ theory from 1920 on. We follow Laplanche’s review on Freud’s theories, in order to underline the Generalized Seduction Theory’s model. According to this paradigm, masochism is a characteristic of the child’s position in relation with adults: at the beginning, in the anthropological fundamental situation, the dissymmetry between children and their parents puts children in a masochistic position. So, Freud’s assertion about primary masochism has meaning only if the autoerotism is interpreted from the angles of alterity, to explain child’s narcissism originally as a solution to the attack of the adult’s unconscious sexual desires.

Keywords: Masochism, Metapsychology, Freudian theory, Theory of Generalized Seduction.


 

 

Mora na filosofia: pra que rimar amor e dor?
(MENEZES; PASSOS, 1972)

I took you to repair me / and you took me apart
(CHRISTIANOPOULOS apud FRIAR, 1979)

 

Introdução: uma rima estranha

A poesia, tanto a recitada quanto a musicada, revela muito das reentrâncias e vicissitudes do desejo humano, capaz de alimentar a criação humana e de representar diversas subjetividades, cada uma em sua profundeza. Freud a apreciava deveras (por causa dela, até a música chegava a ter alguma atratividade para ele), entendendo na arte de escrever em verso um consistente testemunho do que pretendia explicar do ponto de vista psicanalítico. Aqui, são versos de um sambista carioca e de um poeta grego, que resumem bem as questões relativas a um dos destinos do desejo: o masoquismo, cujo problema, tanto em seu aspecto clínico quanto metapsicológico, interessou desde cedo a Freud e, a partir dele, aos pós-freudianos: como articular, no mesmo psiquismo, prazer e desprazer, regimes aparentemente tão contrários um ao outro? Além disso, como explicar a associação entre dor e amor? Como se beneficiar da repetição para, através da transferência, em análise, ultrapassar o jogo caracterizado pela resistência cooperativa, típica da estrutura masoquista?

No samba de Mansueto de Menezes e Arnaldo Passos, para o eu lírico não faz sentido manter-se numa relação infeliz, com uma mulher que não sabe valorizar sua relação e que trai o amado (Eu vou te dar a decisão / Botei na balança / E você não pesou / Botei na peneira / E você não passou./ Mora na filosofia/ Pra que rimar amor e dor [...] Não vou me preocupar em ver/ Seu caso não é de ver pra crer/ Tá na cara) (MENESES, PASSOS, 1972). Nenhuma submissão do eu lírico (Eu vou te dar a decisão) sugere a compreensão segundo a qual sofrer por amor, nesse contexto, não vale a pena.

E se o samba apresenta o problema e, aparentemente, uma saída nada masoquista, outra é a resposta que aparece na poesia de Dinos Christianopoulos. Nela, o eu lírico, perturbado pelo que há de incontrolável na alteridade — como lembra o minúsculo poema citado na epígrafe (livremente traduzível por “eu te escolhi para consertar-me/ e tu me desconsertaste”) —, organiza-se de um modo masoquista que caracteriza não só o desejo erótico, mas as relações afetivas, marcadas pela ambiguidade entre atividade e passividade, sadismo e masoquismo. No poema “Eros” (aqui também traduzido livremente), o eu lírico revela sua estratégia fantasmática: no jogo amoroso (aparentemente sempre tenso), ganha-se através da submissão.

Deixe que eu lamba tuas mãos, teus pés: / No amor, ganha quem se submete. / Não sei o que significa para ti fazer amor; / [...] Fazer amor é, sobretudo, / A confirmação de nossa solidão, / Quando tratamos de fincar raízes / Num corpo muito difícil de habitar. / És o primeiro que me oferece amor / E tua proposta me deixa confuso: / Não fui feito para tanta ternura, / Estava acostumado a bater / a cabeça contra a parede, / a mendigar migalhas. / Chame a isso masoquismo, chame como quiser, / Mas não fui feito para tanta ternura (CHRISTIANOPOULOS, 1956, disponível em http://users.uoa.gr/~nektar/arts/poetry/ntinos _xristianopoylos_poems.htm#ΕΝΟΣ_ΛΕΠΤΟΥ_ΣΙΓΗ).

A submissão com que o eu lírico parece habituado a reagir (Deixe que eu lamba tuas mãos, teus pés: / No amor, ganha quem se submete), diante da aridez nas relações afetivas (Fazer amor é, sobretudo, / A confirmação de nossa solidão) anterior ao encontro com o amado (Estava acostumado a bater / a cabeça contra a parede, / a mendigar migalhas), não mais funciona (E tua proposta me deixa confuso). O que vem do outro, agora, é ternura (És o primeiro que me oferece amor [...] Mas não fui feito para tanta ternura).

Diante dessa amorosidade, busca manter-se no seu padrão, pelo qual transforma submissão, sofrimento e dor em prazer (Chame a isso masoquismo, chame como quiser), a fim de tentar responder ao enigma que vem desse outro (Não sei o que significa para ti fazer amor) e que, há muito, é também interno, ancorado no corpo (Quando tratamos de fincar raízes / Num corpo muito difícil de habitar), ainda que não reduzido a ele.

A contraditória rima entre amor e dor, do ponto de vista clínico, concerne especialmente à problemática do sadismo e do masoquismo, com ênfase no problema gerado por esta última manifestação clínica, estruturada em torno da obtenção de prazer através da submissão ao sofrimento. Nascida na clínica freudiana, a metapsicologia do masoquismo remete, igualmente, a uma discussão sobre as possibilidades da cura, em face do aparentemente inexorável poder da repetição.

Inicialmente, para discutir essa rima contraditória do ponto de vista da metapsicologia psicanalítica, após se fazer referência à teoria freudiana sobre o masoquismo, resume-se a leitura que dele faz Jean Laplanche (2008). Do acompanhamento dessas duas metapsicologias, apresenta-se a hipótese interpretativa pela qual o masoquismo consiste numa resposta (tradução) narcísica e defensiva, complementar e diametralmente oposta ao enigma lançado por um adulto cujas mensagens sexuais inconscientes revelaram traços predominantemente sádicos, no contexto da sedução inerente à relação criança-adulto.

 

Tendências da metapsicologia freudiana sobre o masoquismo

Sexologicamente, o masoquismo é definido como a “condição na qual o indivíduo obtém prazer da experiência de dor e humilhação infligida por outros ou, em alguns casos, por ele próprio” (APA, 2010, p.577). Todavia, “o termo também é aplicado a experiências que não envolvem obviamente sexo” (APA, 2010, p.577).

Com efeito, já em Freud a noção ultrapassa a acepção sexológica mais restrita, de modo a reconhecer seus elementos “em numerosos comportamentos sexuais, e rudimentos na sexualidade infantil” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1991, p.274), envolvendo diversos padrões que derivam dessa sexualidade. Como lembram Roudinesco e Plon (1998, p.501), o termo, criado por Krafft-Ebing para tratar de uma perversão sexual, na psicanálise a partir de Freud “foi retomado [...] no contexto de uma teoria da perversão estendida a outros atos”, sendo “acoplado ao sadismo”, com o qual faz um par complementar.

É assim que, já nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1974), enquanto o sadismo é visto como expressão do caráter ativo da pulsão, o masoquismo, seu oposto, é tratado como

Uma continuação do sadismo que se volta contra a própria pessoa, que com isso assume, para começar, o lugar do objeto sexual. A análise clínica dos casos extremos de perversão masoquista mostra a colaboração de uma ampla série de fatores (como o complexo de castração e a consciência de culpa) no exagero e fixação da atitude sexual passiva originária (FREUD, 1974, p.160).

Dez anos depois, em “Pulsão e destino das pulsões” (FREUD, 1974), para exemplificar a reversão ao oposto (um dos destinos da pulsão), se a fórmula da reversão do sadismo sobre o próprio sujeito mantém-se na explicação do masoquismo (a mesma pulsão sexual muda de objeto e se fixa no eu), uma explanação mais detida sobre o masoquismo será exposta minuciosamente em dois outros momentos relevantes da obra: em 1919 e em 1924, quando Freud debruça-se, respectivamente, sobre as associações entre narcisismo e masoquismo e, uma vez introduzido o conceito de pulsão de morte (1974), entre masoquismo, agressividade e compulsão à repetição.

Antes de qualquer coisa, porém, afirma-se entender que esses momentos ilustram o que Laplanche (2008) denomina por tendência copernicana e tendência ptolomaica do pensamento de Freud, para tratar de direções epistemológicas adotadas por Freud ao longo de sua obra, identificáveis nas explicações que ele fornece para os fenômenos psicanalíticos (em particular o inconsciente, sua gênese e natureza).

À semelhança do descentramento provocado pela teoria copernicana no pensamento moderno ocidental através do paradigma heliocêntrico, a primeira tendência acentua, na explicação dos fenômenos psíquicos, a influência da alteridade para caracterizar o inconsciente, a sexualidade e os fenômenos a eles associados, bem como o descentramento do eu no psiquismo.

Já a tendência ptolomaica distingue-se pelo uso de argumentos em que o recurso à alteridade perde força para explicar o psiquismo (e, nele, o inconsciente e a sexualidade), recorrendo-se a processos endógenos, principalmente biológicos, para formular teorias autocentradas no indivíduo. Donde o adjetivo derivado, na comparação com o modelo copernicano da correspondência, na história das ciências, ao modelo geocêntrico atribuído a Ptolomeu (LAPLANCHE, 1988; 1992; 1997).

Em “Uma criança é espancada”, a tendência copernicana transparece com mais nitidez. Nele, o masoquismo aparece como a segunda etapa de uma sequência de três posições libidinais envolvendo o objeto de desejo, das quais a primeira é a sádica e a terceira, impessoal (porque resultado da elaboração psíquica completada em favor da defesa do eu). Trata-se de uma cena fantasiada, em que a intersubjetividade está presente. Ela é composta por, pelo menos, três atores: uma criança que é espancada, um adulto que nela bate e uma criança que assiste, direta ou indiretamente, à cena e que, no fundo, a cria através da fantasia, dela auferindo prazer.

Essa cena fantasiada é analisada por Freud a partir do que ele afirma ser uma recorrência em sua clínica, a princípio estranha não só pela relação entre a obtenção de prazer e um pensamento impessoal (“uma criança é espancada) mas, também, porque esse prazer associa-se à dor.

Freud desenvolve a análise regressivamente, isto é, do terceiro para o primeiro momento e, de volta ao terceiro, passando pela etapa masoquista. Duas categorias são relevantes nesse modelo: o conteúdo que é deslocado no processo (e por ele também transformado), a pulsão sexual; e os objetos sobre os quais ela é investida — tanto o pai quanto a outra criança que apanha (um irmão, supõe Freud), ou o próprio eu.

Ora, no início desse processo, a pulsão sexual é associada por Freud à atividade, nesse modelo, contrária ao segundo momento, o da passividade masoquista. Além disso, quando investida sobre o próprio eu, em sua faceta narcísica, é interpretada em termos de pensamentos inconscientes implícitos na fantasia infantil: “meu pai me ama”. Narcisismo e sadismo, atuando juntos na fantasia, são assim interpretados por Freud:

Essa primeira fase da fantasia de espancamento é, portanto, inteiramente representada pela frase “O meu pai está batendo na criança”. Estarei denunciando uma grande parte do que será exposto depois, quando, em lugar disso, disser: “O meu pai está batendo na criança que eu odeio” FREUD, 1974, p.232).

E, mais adiante:

A idéia de o pai batendo nessa odiosa criança é, portanto, agradável, independentemente de ter sido realmente visto agindo assim. Significa: “O meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim” (FREUD, 1974, p.234).

A continuação poderia ser: “meu pai não bate em mim porque me ama. E tanto me ama que até bate em quem eu odeio”. E o masoquismo, com tudo isso? Necessariamente suposto no processo constitutivo da fantasia, ele implica na transformação da sexualidade ativa em sexualidade passiva:

Agora, portanto, as palavras seriam: “Estou sendo espancada pelo meu pai.” O que é de um caráter inequivocamente masoquista. Essa segunda fase é a mais importante e a mais significativa de todas. Pode-se dizer, porém, que, num certo sentido, jamais teve existência real. Nunca é lembrada, jamais conseguiu tornar-se consciente. É uma construção da análise, mas nem por isso é menos uma necessidade (FREUD, 1974, p.232 [grifo ausente no original]).

Quais os indicadores de tal importância atribuída ao masoquismo? De um lado, o caráter elaborador da fase masoquista da fantasia — próprio do modelo tradutivo criado por Freud (1896/1974; 1896/1974) —, que remete à construção de uma verdadeira teoria sobre o espancamento e seus envolvidos, tratados como objetos de desejo inclusive por transformações linguísticas de pensamentos inconscientes. Por essa teoria, o sofrimento é invertido em prova do cuidado e do interesse de quem o causa, enquanto o componente sádico é neutralizado e, até, invisibilizado. Além disso, dá-se a ocultação da ferida narcísica com que o processo iniciou-se, elemento esse sagazmente reconhecido por Freud:

Depressa se aprende que ser espancado, mesmo que não doa muito, significa uma privação de amor e uma humilhação. E muitas crianças, que se acreditavam seguramente entronadas na inabalável afeição dos pais, foram de um só golpe derrubadas de todos os céus da sua onipotência imaginária(FREUD, 1974, p.234).

A partir desses dois aspectos, implicados mutuamente e visíveis já na análise freudiana de 1919, num modelo que atribui à intersubjetividade um lugar fundador para o psiquismo, pode-se afirmar ser o masoquismo um dos componentes envolvidos no processo de reparação narcísica originado na ferida aberta pelas múltiplas significações do espancamento: “se me bate, não me ama. Mas, ao bater em outro, reafirma seu amor por mim, poupando-me do sofrimento que pode causar-me”. Obviamente, nessa construção, o sadismo investido na outra criança a apanhar imaginariamente é logo neutralizado pelo masoquismo que, somente então, desaparece na forma final da fantasia. Antes de seu desaparecimento, porém, uma variante intermediária do pensamento sádico permite que o masoquismo se expresse: “meu pai, que pode amar batendo, quando bate em mim, ama-me. E se é batendo que meu pai ama, que bata em mim (e só em mim), sempre”.

As conclusões possíveis dessa elaboração implícita na fantasia sadomasoquista são indicadas pelo próprio Freud e podem ser assim resumidas: ser amado pelo pai e sê-lo com exclusividade. Em qualquer dos raciocínios imaginários (o sádico ou o masoquista), amor e dor são associados, um dirigindo a dor para o objeto (sadismo), outro a revertendo sobre si (masoquismo). Restaura-se a premissa narcísica, duramente lesada primariamente pela surra paterna ainda não sexualizada pelo autor da fantasia: “meu pai, ao bater, ama, e sempre a mim, quando bate naquele que odeio (sadismo) ou em mim (masoquismo)”. Invertido o significado que, atribuído ao espancar, era originalmente avesso ao narcisismo, quaisquer das alternativas é eficaz. Resta, então, completar a explicação do motivo da inversão, pois se há uma reversão da libido, para Freud, ela não se dá por si mesma.

Ora, além do caráter estritamente narcísico da fantasia, Freud enxerga na aparentemente estranha elaboração masoquista um duplo ganho psíquico: com ela, quem fantasiava reparava-se da culpa por obter prazer no dano ao objeto odiado, alvo do espancamento imaginário (a outra criança, ameaça à exclusividade narcísica); e, através da regressão libidinal (do reverso sobre si mesmo), remia-se da culpa de desejar o dispensador das pancadas: o pai.

Se o tema da culpa lembra a noção de superego sistematizada em 1923 (e, portanto, em formação à época do artigo aqui considerado), vale ressaltar outra nuance do argumento freudiano, qual seja, aquela que invoca a teoria sobre o complexo de Édipo, já definida, em suas linhas mestras, em 1900 (FREUD, 1974): em “Uma criança é espancada”, Freud situa sua análise no contexto edípico heterossexual, classicamente considerado por ele. A autora da fantasia que serve de modelo à análise é uma menina, o que implica em um arranjo metapsicológico pelo qual Freud associa sadismo à atividade, supostamente entendida como função natural masculina, e masoquismo à passividade, presumidamente um atributo feminino.

Parece haver confirmação do ponto de vista de que o masoquismo não é a manifestação de uma pulsão primária, mas se origina do sadismo que foi voltado contra o eu — ou seja, por meio de regressão de um objeto para o ego. Pode-se ter como certo que as pulsões com propósito passivo existem, particularmente entre as mulheres. A passividade, contudo, não é a totalidade do masoquismo. A característica do desprazer também pertence a ele — um desconcertante acompanhamento para a satisfação de uma pulsão. A transformação do sadismo em masoquismo parece dever-ser à influência do sentimento de culpa que participa do ato de recalque. Assim, o recalque opera, aqui, de três modos: torna inconscientes as conseqüências da organização genital, obriga essa organização a regredir ao anterior estádio sádico-anal e transforma o sadismo desse estádio em masoquismo, que é passivo e novamente, num certo sentido, narcísico (FREUD, 1974, p.241-242).

Essa referência às meninas é relevante, já que Freud explica, por esse viés, o que seria o natural caráter passivo do masoquismo, em princípio incompatível, nessa lógica, com os meninos, tidos como constitucionalmente ativos por serem do sexo masculino. “Não nos devemos esquecer de que, quando a fantasia incestuosa de um menino se converte na fantasia masoquista correspondente, ocorreu uma inversão a mais do que no caso de uma menina, ou seja, a substituição da atividade pela passividade” (FREUD, 1974, p.237).

Ilustrando o movimento freudiano diante das contradições internas de sua obra (especialmente evidentes quando Freud buscava integrar os modelos teóricos que ele chegava a reconhecer como, eventualmente, até opostos), há, aqui, um tour de force no argumento que começou no plano da análise das relações de objeto e que, então, recorre a uma premissa biológica — ontogenética e, às vezes, até filogenética (LAPLANCHE, 1997; MAIA, 2008) — para, definindo-a como axioma, resolver as dificuldades enfrentadas pelos limites da teoria intersubjetiva que o pai da psicanálise conseguira formular.

Esse outro modelo metapsicológico, autocentrado, foi desenvolvido, sobremodo, na obra freudiana a partir da segunda década do século passado, num percurso que culminou numa nova concepção para o inconsciente — expandido e assimilado à noção biológica de id (LAPLANCHE, 1992) — e, no caso do masoquismo, na sua vinculação à passividade, essa característica feminina presumidamente natural — argumento esse explorado em 1924, com “O problema econômico do masoquismo”. Nele, Freud apresenta três possibilidades para o masoquismo:

O masoquismo apresenta-se à nossa observação sob três formas: como condição imposta à excitação sexual, como expressão da natureza feminina e como norma de comportamento (behaviour). Podemos, por conseguinte, distinguir um masoquismo erógeno, um masoquismo feminino e um masoquismo moral. O primeiro masoquismo, o erógeno — prazer no sofrimento — jaz ao fundo também das outras duas formas. Sua base deve ser buscada ao longo de linhas biológicas e constitucionais e ele permanece incompreensível a menos que se decida efetuar certas suposições sobre assuntos que são extremamente obscuros. A terceira, e sob certos aspectos a forma mais importante assumida pelo masoquismo, apenas recentemente foi identificada pela psicanálise como um sentimento de culpa que, na maior parte, é inconsciente [...] (1974, p.201-202).

Em se tratando do masoquismo feminino, Freud comenta:

Havendo, porém, uma oportunidade de estudar casos em que as fantasias masoquistas foram, de modo especial, ricamente elaboradas, de imediato se descobre que elas colocam o indivíduo numa situação caracteristicamente feminina; elas significam, assim, ser castrado, ou ser copulado, ou dar à luz um bebê. Por essa razão chamei essa forma de masoquismo, a potiori por assim dizer [isto é, com base em seus exemplos extremos], de forma feminina, embora tantas de suas características apontem para a vida infantil (FREUD, 1974, p.202-203).

Mesmo reconhecendo que tais elementos da fantasia podem pertencer, perfeitamente, à fantasia infantil — perversa e polimorfa, por definição (FREUD, 1974) —, explicáveis por uma teoria já disponível e suficiente, chama a atenção que Freud prefira qualificar esse masoquismo como feminino e que o tome como pressuposto, conquanto baseado no masoquismo erógeno: “o masoquismo feminino que estivemos descrevendo baseia-se inteiramente no masoquismo primário, erógeno, no prazer no sofrimento” (FREUD, 1974, p.202-203). Este, por sua vez, é um conceito que trata da ligação generalizada entre prazer e dor, cujas raízes encontram-se, para o pai da psicanálise, “ao longo de linhas biológicas e constitucionais” (FREUD, 1974, p.201).

Percebe-se, no artigo de 1924, a força maior da tendência ptolomaica pela qual a explicação de um fenômeno psíquico é afetada pelo princípio da autocentração originária, tanto da sexualidade quanto da agressividade. Tal princípio cria duas aporias para a metapsicologia freudiana do masoquismo: a sexualidade (mesmo a narcísica), já associada a Eros, não é compatível com o acúmulo de tensão próprio à angústia e à dor, pois o princípio de prazer é, fundamentalmente, descarga; além disso, a agressividade — que, como demonstram Laplanche e Pontalis (1991, p.10-14), com seu caráter de atividade, antes estava à disposição da vida (e, portanto, na primeira teoria das pulsões, a serviço da autoconservação, primariamente dirigida para fora) — agora, pela tese do masoquismo originário, é entendida como originariamente voltada sobre o próprio indivíduo.

Quem conhece o percurso cronológico da obra de Freud sabe que, para acentuar a diferença metapsicológica entre as duas teorias freudianas sobre o masoquismo, aqui se lançou mão do artifício de retirar provisoriamente do caminho entre elas uma obra que, não só antecede o texto de 1924 — do qual pode ser dito ser uma aplicação, ao caso do masoquismo, dos novos princípios gerais sobre as pulsões — como, também, cria as condições para resolver os problemas antes indicados. Trata-se de “Além do Princípio de Prazer” (FREUD, 1974), em que se lança a tese da existência das pulsões de morte, construto explicativo da compulsão à repetição (como os sonhos traumáticos e as brincadeiras infantis, por exemplo).

Nessa nova teoria pulsional, a sexualidade deixa de ser a opositora das pulsões de autoconservação para tornar-se, com estas, protetora da vida. Além disso, a agressividade ganha um estatuto teórico que a supõe, de saída, já pulsional, e deixa de ser associada à vida e à autoconservação para ser posta, contrária e primariamente, a serviço da autodestruição, sendo interpretada como aspecto das pulsões de morte. Tais pulsões, além de inerentes a qualquer organismo, inatas, por se caracterizarem como primeiramente autodirigidas, representariam, como nenhuma outra, o caráter repetitivo da pulsão e os princípios de inércia, de Nirvana, de descarga completa das tensões, ameaçando as estruturas do ego e do organismo inteiro. Esse risco é contrabalançado pelo autoerotismo e, depois, pelo narcisismo, que remetem pelo menos parte da destrutividade para fora, sob a forma de sadismo:

A libido tem a missão de tornar inócua a pulsão destruidora e a realiza desviando essa pulsão, em grande parte, para fora — e em breve com o auxílio de um sistema orgânico especial, o aparelho muscular — no sentido de objetos do mundo externo. A pulsão é então chamada de pulsão destrutiva, pulsão de domínio ou vontade de poder. Uma parte da pulsão é colocada diretamente a serviço da função sexual, onde tem um papel importante a desempenhar. Esse é o sadismo propriamente dito. Outra porção não compartilha dessa transposição para fora; permanece dentro do organismo e, com o auxílio da excitação sexual acompanhante acima descrita, lá fica libidinalmente presa. É nessa porção que temos de identificar o masoquismo original, erógeno (FREUD, 1974, p.204).

Como decorrência do estatuto primário de Tanatos e, com ele, da agressividade (que só secundariamente é dirigida ao exterior, graças à intervenção da libido narcísica), Freud inverte, em “O problema econômico do masoquismo”, a sequência mantida até “Uma criança é espancada”, e a primazia passa a ser atribuída ao masoquismo, tornando-se o sadismo uma expressão secundária daquela agressividade libidinalmente investida. Daí surge a noção de masoquismo primário, já introduzida em 1920:

As observações clínicas nos conduziram, naquela ocasião, à concepção de que o masoquismo, a pulsão componente complementar ao sadismo, deve ser encarada como um sadismo que se voltou para o próprio ego do sujeito. Mas, em princípio, não existe diferença entre uma pulsão voltar-se do objeto para o ego ou do ego para um objeto, que é o novo ponto que se acha em discussão atualmente. O masoquismo, a volta da pulsão para o próprio ego do sujeito, constituiria, nesse caso, um retorno a uma fase anterior da história da pulsão, uma regressão. A descrição anteriormente fornecida do masoquismo exige uma emenda por ter sido ampla demais sob um aspecto: pode haver um masoquismo primário, possibilidade que naquela época contestei (FREUD, 1974, p.75).

Não que a possibilidade da reversão secundária (indicada até 1919) tenha sido descartada por Freud. Mas a adequação do problema do masoquismo à nova teoria pulsional realçou, ainda mais, uma ligação biológica entre agressividade e sexualidade, relação essa que não mais precisa perguntar-se pela mediação dos movimentos intersubjetivos narcísicos, mas se apóia na natureza (mortífera) de um grupo de pulsões.

Se — num paradigma autocentrado, monádico, em que as relações de objeto são secundárias — a agressividade, articulada à libido, traz, necessariamente, o masoquismo para o primeiro tempo e o torna universal e necessário, aumentando sua importância na metapsicologia, dele retira, todavia, os elementos reconhecidos no texto de 1919, que permitiam ver no masoquismo seu caráter de uma elaboração possível da intersubjetividade e, com isso, sua função de ocultar a ferida narcísica (já que o outro não é, inicialmente, levado em conta).

Perde-se, assim, uma valiosa perspectiva sobre essa formação psíquica: a de sua natureza tradutiva e exclusivamente sexual do que na fantasia, como ressalta Laplanche (1987), vem a constituir-se como cena interior, de origem fantasmática e manifesta porta aberta à elaboração psíquica.

Esses aspectos são retomados e enfatizados, como se verá a seguir, no contexto da Teoria da Sedução Generalizada.

 

O masoquismo à luz da Teoria da Sedução Generalizada

O ponto de vista de Jean Laplanche (2008) sobre o masoquismo, no contexto de sua obra, foi por ele condensado ao discutir essa temática a partir da Teoria da Sedução Generalizada (doravante, TSG).

A maior vantagem de recorrer a essa perspectiva está no fato de que ela, interpretando criticamente a obra de Freud, valoriza-a no que a teorização fundadora evidenciou da intersubjetividade, ressaltando a riqueza do texto freudiano e desenvolvendo a tendência copernicana da obra freudiana para formular, a partir dela, contribuições originais à psicanálise. Nas palavras de Laplanche,

O que chamo desvio do pensamento freudiano não é um simples erro, que bastaria refutar. É o momento em que um pensamento, diante do obstáculo, toma uma via errônea. Mostrar a existência de um desvio supõe vários elementos complexos: indicar as causas do desvio; mostrar as possibilidades de outro caminho; e mostrar como os avatares da obra criticada (a de Freud, em seus diferentes momentos) prestam homenagem, por assim dizer, à verdade abandonada pelas tentativas muitas vezes acrobáticas, para retomar, reencontrar, reintegrar o que estava perdido (LAPLANCHE, 2008, p.440).

Esse trabalho promove uma metapsicologia que, de fato, dialoga com Freud, questionando-o continuamente:

Um diálogo e um questionamento que, vindos na posteridade de Lacan, puderam aproveitar dele não apenas a pertinência de um “retorno a Freud”, mas também aquilo que se viria a revelar equivocado na tentativa de caracterização do objeto da psicanálise. [...] Questionar Freud é questioná-lo no sentido de sua descoberta. E apontar-lhe os desvios quando ele os perde de vista. Não é por acaso que as duas grandes teorias de Laplanche, a da “sedução originária” e a “teoria tradutiva do recalque”, constituem-se em desenvolvimentos de intuições do primeiro Freud, de tal modo que o teórico Laplanche, em sua originalidade, sempre nos dá a impressão de continuar resgatando a inspiração original de Freud (MAIA, 1994, p.64-65).

Ora, para a TSG (LAPLANCHE, 1988; 1992; 2007), a humanização é um processo que se dá promovendo a formação de um inconsciente que não existia originariamente no psiquismo humano; no contexto da intersubjetividade, uma criança vem a constituir-se humana porque se encontra com adultos que, inconscientemente, a tratam como objeto de seus desejos, através de investimento da sexualidade perversa, polimorfa, infantil e recalcada.

Esse investimento dá-se num complexo de vínculos intersubjetivos que se caracterizam, sobretudo, por sua dimensão contraditoriamente comunicativa, já que são remetidas ao infans mensagens, cujos significados não podem ser inteiramente processados, pois tanto elas estão sexualmente comprometidas pelo inconsciente dos adultos, quanto a própria criança não possui, inicialmente, inconsciente de natureza sexual, sendo incapaz de traduzi-las em seu significado erógeno (LAPLANCHE, 2007).

Graças a essa inabilidade infantil, o conteúdo sexual da mensagem é, gradualmente, recalcado, dando-se, com isso, o recalque originário constitutivo do aparelho psíquico. Incapacidade infantil de decifrar, mensagem inconscientemente comprometida, adulto emissor comprometido com seu inconsciente: tudo isso acentua o caráter enigmático do que, na verdade, primeiro, é um desencontro de psiquismos, tão paradoxal quanto fundador: a um só tempo, essa é uma experiência que, por ser sexual (no sentido psicanalítico do termo), é ameaçadora... e sedutora, produzindo angústia e prazer.

É esse (des)encontro que Laplanche (1988; 2007) denomina por Situação Antropológica Fundamental (doravante, SAF), motriz do processo psíquico de tradução, tão importante para entender-se as produções psíquicas de um ponto de vista psicanalítico:

Nessa situação antropológica fundamental, os termos importantes são: “comunicação’ e “mensagem”, com uma ideia em que gostaria de insistir: não falo de mensagem inconsciente; toda mensagem para mim é uma mensagem que se produz no plano consciente-pré-consciente; quando me refiro à mensagem enigmática, falo de mensagem comprometida pelo inconsciente; não há, jamais, mensagem inconsciente em estado puro. Logo, tem-se um caráter comprometido da mensagem, e isso num único sentido, já de saída, mesmo que a reciprocidade [entre adulto e criança] também se estabeleça rapidamente no plano sexual. O que conta, enfim, nessa situação, é o que de fato faz o receptor, ou seja, precisamente sua tentativa de tradução, acompanhada de seu inevitável fracasso (LAPLANCHE, 2007, p.100).

A síntese da teoria laplancheana, aqui apresentada, busca evidenciar as lentes pelas quais a obra de Freud acerca do inconsciente e seu método de investigação é interpretada. O inconsciente, reafirma Laplanche, diz respeito ao que não pôde ser traduzido da mensagem adulta pela criança: justamente seu componente sexual infantil, perverso e polimorfo (1997). Por sua vez, seu método de investigação, a psicanálise, é, então, entendido como o efeito da possibilidade de traduzir — para a qual estão ao dispor, em primeiro lugar, a associação livre e, secundariamente, a interpretação (LAPLANCHE, 1993; 1995; 1997) —, possibilidade essa bloqueada pelo sintoma e desbloqueada no tratamento, graças ao enquadre e à elaboração da transferência, retomando-se as condições geradoras da SAF e, com isso, se produzindo mais inconsciente sexual.

Então, para realçar o valor dessa construção teórica, vale acompanhar a exegese que Laplanche (2008) faz do texto freudiano de 1924, para em seguida esclarecer sua posição sobre o masoquismo da perspectiva da TSG. Ele sustenta que a teoria freudiana sobre o masoquismo acompanha (usando sua expressão) os desvios biologizantes inerentes à teoria geral sobre a sexualidade. A essência desses desvios reside no “retorno ao endogenismo da pulsão sexual” (p.440), ou seja, à assimilação das características da pulsão àquelas do instinto, com a consequente e definitiva naturalização da sexualidade inconsciente.

Para ilustrar essa tese inicial, valendo-se da análise sobre as teorias freudianas do apoio e da pulsão de morte, entende, na primeira, uma “emergência do sexual a partir de outro modo de funcionamento [o biológico, o inato], que vem a substituir a teoria da implantação [explicada pela intersubjetividade]” (LAPLANCHE, 2008, p.441) [nos colchetes, acréscimo deste autor]

Ao dedicar-se, por assim dizer, à garimpagem, da sexualidade intrusiva no contexto da intersubjetividade no texto freudiano de 1924, nele encontra, em suas palavras, “estratos de teorizações sucessivas, contradições reveladores, irritantes, mas fecundas, uma vez limpas de sua crosta, além da criatividade” (LAPLANCHE, 2008, p.442). Um deles é a qualificação do masoquismo como “enigmático”. Para Laplanche, “quando Freud fala do enigmático de uma questão, tenho a tendência a desdobrar as coisas: uma questão é enigmática quando nela o enigma tem uma função, no seu conteúdo mesmo” (LAPLANCHE, 2008, p.442).

O masoquismo é, pois, enigmático em sua forma e em seu conteúdo, assim resumidos por Freud nas três categorias de masoquismo indicadas em 1924, que precisam ser entendidas como resoluções para o enigma da sexualidade, afirma Laplanche. São cenas em que o corpo (masoquismo erógeno), a fantasia (masoquismo feminino) e a relação (masoquismo moral) precisam ser considerados, e não o são. Para destacar o traço tradutivo e enigmático da sexualidade, recôndito nas formas indicadas por Freud, Laplanche retoma-as uma a uma.

Sobre a primeira categoria, Laplanche lembra haver variações do masoquismo erógeno não consideradas por Freud, mas muito importantes para revelar as soluções em que, pela fantasia, inclui-se ou não a alteridade, quais sejam, respectivamente, nos casos em que a submissão (numa relação com um dominador particular) é o alvo e, noutros casos, em que apenas o sentir dor importa (não importando quem a provoque).

Sobre a segunda categoria, Laplanche compara-a àquela do texto freudiano de 1919, para concluir que o espancamento foi substituído, em 1924, pela castração. “Vê-se que aqui começa a virada pela qual Freud reinterpretou, em função de sua teoria do primado do falo, a clínica da fantasia de fustigação” (p.445). Além disso, nessa categoria, tanto a referência freudiana aos cenários (infantis) da fantasia, que são reproduzidos na cena erótica pelo masoquista, quanto o comentário de Freud acerca da superposição entre posição feminina e posição infantil, deixam de ser explicados. Isso quando, na verdade são, aos olhos do psicanalista francês, as brechas pelas quais tanto a cenografia intersubjetiva quanto a natureza infantil (e, assim, não restrita a um sexo) deixam entrever a sexualidade intrusiva.

Sobre a última categoria, Laplanche lembra que, para Freud, a moralidade vem pelo processo que, a partir do complexo de Édipo, constitui o superego. Assim, ressexualiza-se a moral por conta da relação libidinal com os mesmos objetos que servem de suporte à identificação superegoica — as figuras parentais responsáveis pela interdição: são os mesmos pais amados quem, na dialética psíquica, constrangendo um desejo, permite outros.

Nada de masoquismo sem sexualidade, nada de masoquismo sem que se possa e deva reencontrar os sinais da sexualidade, quiçá do orgasmo: Freud resta imperturbavelmente orientado, na sua descrição do masoquismo moral, pela bússola do sexual (LAPLANCHE, 2008, p.447).

Nessa trindade, concebida também por Freud como sucessão geneticamente articulada (masoquismo erógeno --> masoquismo feminino --> masoquismo moral), Laplanche entende haver uma aporia assim formulável: como, numa sequência linear, tirar o não-sexual (moralidade) do sexual (feminilidade), e este do biológico (constituição erógena)? Para resolvê-la, apenas o deus ex machina da biologização (a genética e a filogenética) pode ser invocado, e esse artifício, para Laplanche, só faz sentido se interpretado como manifestação distorcida do princípio copernicano da estrangeiridade, característica do inconsciente sexual na teoria ptolomaica.

Convenhamos: essa prioridade atribuída por Freud ao que se passa “no interior” — prioridade do momento em que o sujeito faz-se sofrer, prioridade do ataque interno — pode ganhar um sentido preciso: aquele que busquei descrever com o termo de “tempo auto-“, entendendo por isso uma série de momentos fundadores quando se constituem, por um movimento comum (aquele do recalque), a fantasia inconsciente e a excitação que lhe corresponde (a “pulsão”); uma excitação que é vivida necessariamente também de modo masoquista, como a agressão dolorosa por um corpo estrangeiro interno, em vista do qual o eu é passivo e se encontra em permanente perigo de deixar-se sucumbir (LAPLANCHE, 2008, p.448).

Para Laplanche, é esse “tempo auto” — autoerótico, autocentrado (autóctone, por assim dizer) — que, certamente, registra o início da autonomia (eis outro termo aqui adequado) psíquica do sujeito psicanalítico (dotado de inconsciente). Mas, pretender que ele seja o primeiro tempo desse processo, isto é, que a sexualidade do sujeito nasça, na infância, do corpo em si mesmo (id, zona erógena, constituição biológica, filogenética etc.) é um engano insustentável, gerador de problemas insuperáveis na obra freudiana, tais como, por exemplo, atribuir à pulsão de morte um caráter excitante (paralelo a Eros) sobre o eu (no caso do masoquismo originário), quando ela foi definida para explicar... a busca pelo fim de toda excitação!

É, por certo, para a questão da fantasia que convém atentar. A fantasia não saberia introduzir-se secundariamente, como um tipo de epifenômeno, de ornamento psíquico de um processo puramente biológico. Repô-la na origem é repor o processo e qualquer de suas derivações no lugar. É impossível partir de um masoquismo erógeno puro, a fim de compreender o que quer que seja o masoquismo. A verdadeira derivação não pode partir senão do domínio não especulativo próprio à psicanálise: aquele da fantasia, na sua ligação original com a excitação e o orgasmo (LAPLANCHE, 2008, p.449).

Laplanche não se furta de recordar que Freud, ainda em 1924, confundiu dor e desprazer, duas experiências, na verdade, distintas: o prazer sexual (lust) implica, necessariamente, numa tensão excitante, de modo que “não há mistério do masoquismo, mas, sim, o enigma no interior do masoquismo” (p.453). Naturalizou, também, a passividade, ao associá-la a um sexo — e, ainda mais estranho, ao transformá-la em fim de uma pulsão—, quando ela é, em verdade, inerente à posição infantil na assimetria própria à SAF:

“Uma pulsão com fim passivo”, Freud nunca nos esclareceu o que entedia por isso. Tentei, de minha parte, preencher essa lacuna, fornecendo um critério preciso: aquele de um “a mais” de representação no sujeito ativo (o adulto, com suas representações conscientes e inconscientes) que no passivo (no começo, o lactente). Ora, é esse ponto que introduz, de cara, a fantasia em um processo que não poderia ser descrito como puramente “econômico”. [...] Pois é a irrupção de um “a mais de mensagem”, emanando do outro, que funciona como dor, a princípio externa, depois oriunda desse outro interno que é a fantasia recalcada (LAPLANCHE, 2008, p.453).

Laplanche alcança, assim, o ápice de sua argumentação, ao ressaltar que, nessa fantasia recalcada, o masoquismo representa, certamente, uma etapa da série de movimentos que constituem a própria sedução: “é, por certo, o segundo tempo — masoquista, inconsciente, recalcado — que inaugura a sexualidade, a pulsão sexual no sujeito” com a implantação de uma “mensagem dirigida ao ego, mensagem ao mesmo tempo não sexual e sexual”, de sorte que “o movimento inicial do sadomasoquismo não é centrífugo, mas centrípeto” (LAPLANCHE, 2008, p.454).

 

Por trás do masoquismo, a passividade originária: considerações finais

Há, por consequência, na SAF, segundo a TSG, um traço intrinsecamente sadomasoquista — no sentido daquele “a mais” antes citado — que se caracteriza pela universalidade própria àquela situação; pelo caráter assimétrico do processo de transmissão da mensagem sexual, também típico do (des)encontro entre adulto e criança; e pela relativização da importância de uma eventual cena originária, que seria buscada como a matriz da sedução: “as cenas sucessivas, por mais variadas que possam ser, veiculam todas a mensagem parental. A primeira, se houver, não tem qualquer privilégio” (LAPLANCHE, 2008, p.454).

É o próprio Laplanche quem faz a melhor síntese de sua posição teórica sobre o masoquismo:

Fazer face à essencial passividade da situação infantil, eis a maior tarefa da simbolização. Aquilo de que a simbolização, concebida como tradução impossível, deixa de dar conta é a fantasia inconsciente. Ela, somente, é a única fonte da pulsão sexual humana. Em relação a ela, estamos todos numa posição de essencial passividade, uma posição de “masoquismo originário” (LAPLANCHE, 2008, p.455).

A mesma passividade em que se encontra a criança no tempo de constituição de seu inconsciente, tão desvantajosa por criar tanta angústia, assume, então, um estatuto de “tempo auto” na teoria, dirigindo o olhar para o narcisismo.

A revisão da metapsicologia freudiana sobre o masoquismo empreendida pela análise laplancheana, ressalta, inicialmente, a contradição interna entre as teorias antes e depois da introdução do conceito de pulsão de morte: esse problema, porém, torna-se compreensível quando a obra é interpretada a partir do ângulo da alteridade, tal como o faz Laplanche, para destacar não só uma possibilidade de reconciliar as dificuldades epistemológicas internas às duas teorias freudianas sobre o masoquismo, mas também para ressaltar, por trás dessa formação psíquica, sua relação direta com a passividade originária a que todo ser humano está submetido na SAF.

Assim, à luz da TSG, o masoquismo pode ser entendido como uma solução, já de caráter narcísico, para o enigma da sexualidade, particularmente quando lançado por mensagens cujo teor seja sádico e, nesse sentido, ressaltando a passividade como resposta complementar e oposta, no jogo de forças, àquele conteúdo provindo do adulto.

 

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Endereço para correspondência
Avenida Epitácio Pessoa, 753/809 – Bairro dos Estados
58030-904 – João Pessoa/PB
E-mail: frazec@uol.com.br

Recebido: 01/08/2011
Aprovado: 08/09/2011

 

 

Sobre o Autor

Fernando Cézar Bezerra de Andrade
Doutor em Educação (UFPB). Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba. Professor do Departamento de Fundamentação da Educação/Centro de Educação/Universidade Federal da Paraíba.