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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.38 Belo Horizonte dez. 2012

 

 

Loucuras maternas1

 

Maternal madness

 

 

Frank Chaumon

Tradução: Elisa Rennó dos Mares Guia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A psicanálise com crianças é frequentemente confrontada com aquilo que aqui chamamos de loucura materna, significando uma oposição do “objeto da mãe” que parece limitar, de maneira antecipada, o horizonte do trabalho analítico. Tal situação direciona frequentemente o trabalho do analista que recebe crianças para a “separação”, um corte do “gozo”, ligação que para nós pode ser interrompida enquanto resistência da transferência da mãe, carregada pela criança. Com o intuito de especificar as coordenadas do ato analítico nestes casos, buscamos mostrar a maneira pela qual a falha da operação pré-especular do amor materno pode conduzir a violência que certas formas de loucura materna tentam evitar.

Palavras-chave: Loucura materna, Psicanálise com crianças, Objeto.


ABSTRACT

Psychoanalysis with children is often confronted with what is designated here as maternal madness, meaning a position of “object of the mother” which seems to limit in advance the horizon of analytical work. This situation frequently directs the analyst who receives the child towards a “separation”, a cutting of the “jouissance” link, which, for us, can be interpreted as a resistance to the mother’s transference, carried over by the child. In order to specify the coordinates of the analytical act in these cases, we have tried to show how failure of the pre-specular operation of maternal love leads to drive violence, which certain forms of maternal madness attempt to ward off.

Keywords: Maternal madness, Psychoanalysis with children, Object.


 

 

Que uma criança possa ocupar o lugar de “objeto” é uma constatação bastante familiar para o psicanalista. Em muitos casos cabe a ele efetuar um longo trabalho para que, durante uma análise, se possa desdobrar o laço eletivo, ou até mesmo exclusivo, que fora atado por uma analisante com um de seus filhos. Contudo, é natural que um psicanalista de crianças seja conduzido a falar de tal posição de “objeto da mãe”2, a partir do momento em que ele é confrontado com aquilo que parece comprometer de antemão qualquer possibilidade de um percurso analítico com o seu jovem paciente. A mãe que, no entanto, confia seu filho ao analista queixa-se desse laço que traz sofrimento a ela e demanda que esse sofrimento seja aliviado. Porém, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, ela parece se ater a este doloroso entrave. Ela pede que este nó górdio seja desfeito, mas impede de mil maneiras toda tentativa de corte, como se o menor passo dado nesta direção colocasse em questão toda ligação possível com seu filho. É bastante comum que desde os primeiros encontros ela se comporte como intrusa no espaço da criança, ela parece não aceitar que esta fale sozinha com o seu analista.

Tais situações suscitam frequentemente, da parte dos profissionais, uma retórica de “separação”, ato que deverá operar em tal laço incestuoso, e que afirmamos, com certeza, trata-se de um pré-requisito para qualquer forma de trabalho analítico possível com uma criança. Passado o fracasso das primeiras tentativas nesse sentido, o discurso faz julgamento (diagnósticos apressados de psicose ou perversão, "explicar" a fixação do equilíbrio mórbido) ou convicção (do gozo materno). De tal forma que, algumas vezes, conseguimos “separar” a mãe de sua criança, tida como objeto em nome de uma referência à interdição do incesto, ou seja, de um registro simbólico (a lei) que, supostamente, deve preceder as práticas (jurídicas) de separação ditas “no real”, que vão desde simples exigências educacionais até a separação de corpos realizada por uma recolocação da criança em família de acolhimento (adotiva) ou em instituição. Espera-se que tais práticas possam produzir um corte na indistinção de uma alienação mórbida.

Acontece que alguns analistas se deixam levar por tais atalhos que parecem ser a maneira mais branda, caminho que consiste em operar esta separação pela distinção precoce de espaços. Convidamos a mãe para "falar em um outro lugar", ou seja, "para si mesma", augurando que, pela instauração de um espaço para a sua fala, tal endereçamento irá preservar um outro lugar para o seu filho. Esta iniciativa se contrapõe à precedente, na medida em que não é em nome de uma condenação do suposto gozo materno que encaminhamos a mãe a um outro lugar. E é sim porque se supõe que aquilo que a atém a seu filho pode ser desatado somente em um outro lugar, um lugar separado. Propomos um outro endereço não para contrapô-la a seu filho, e sim como um lugar para ela sem o seu filho. No entanto, verifica-se que tal endereçamento é frequentemente entendido pela mãe como algo que tem por finalidade o não recebimento de sua palavra.

Nós a encaminhamos para falar em outro lugar enquanto é aqui – onde e a quem ela confia o seu filho – que ela quer se endereçar. É pelo seu filho enquanto objeto que ela sofre, mas é em seu próprio corpo que reside o nó. Aqui o mal-entendido é radical; ele está ligado a uma espécie de antecipação efetuada pelo analista que, tendo entendido que a razão dos atos da mãe residia em um sofrimento dela, ofereceu-lhe um lugar para falar "para ela", supondo que ela não saberia realmente encontrar esse lugar investindo-se no espaço destinado à criança. Isto pelo fato de que o analista está convencido de que a questão encontra-se ligada à sua infância, e que esta fora transferida através de um movimento atual para a sua relação com seu filho-objeto. Ou seja, ele está convencido de que alguma coisa da própria infância desta mãe se encontra em sofrimento e que tal sofrimento busca ser dito atualmente, no lugar para onde ela conduz o seu filho; o analista tenta operar uma distinção para abrir um espaço onde ela possa efetuar este retorno. Ele espera que dessa maneira possa dar continuidade ao trabalho com a criança3.

Nesta proposta está implícito que, para o analista, essa abertura de espaço consiste em um primeiro passo necessário para uma “separação”. Isto, muitas vezes, não somente resulta em um fracasso, como também é vivido pela mãe como uma forma de violência, de recusa, com a finalidade de não recebê-la. Isso exige uma atenção, ou seja, é necessário perguntar o que realmente deve ser compreendido como resistência do analista em se deixar fazer parte da transferência materna, como recusa de ocupar o lugar que lhe é atribuído no discurso da mãe. Esta recusa está certamente ligada a uma dificuldade específica da psicanálise com crianças, que consiste em estar, às vezes, no movimento transferencial da criança e no movimento transferencial dos pais, especialmente da mãe. Ao recusar-se a praticar uma terapia familiar, tentando se ater ao seu lugar de analista da criança, ele endossa uma rigorosa posição doutrinal. Mas o que ele não percebe é que não se trata de uma demanda de análise da mãe. Trata-se de uma demanda de acolhimento, daquilo que, para esta mulher, se encontra atado, fixado na ligação com o seu filho colocado em posição de “objeto”. O lugar onde se encontra esse nó constitui o compromisso sintomático que carrega consigo a demanda4.

Eu designo tais casos com o nome de loucura materna, pois é na operação materna – que se refere, na maior parte dos casos, somente a uma criança entre os demais filhos – que reside o impedimento. Se, frequentemente, nos deixamos levar e falamos sobre psicose ou perversão, é sem dúvida em função de uma dimensão do gozo, às vezes obscena, que tais laços chegam a oferecer um verdadeiro espetáculo, mas é um erro: não é somente por elas serem neuróticas, psicóticas ou perversas que a ligação é uma ligação de loucura – mesmo que, certamente, sua patologia eventualmente dê a esta loucura um colorido particular –, mas sim porque é a falha da operação maternal que fixou em algum ponto o percurso da pulsão e deixou a sua marca. É a razão pela qual o lugar do endereçamento eletivo da demanda é o da criança: estas mães não param de consultar para seus filhos e não para si mesmas. Ou mais precisamente, elas vêm tentar, no lugar de sua criança, relançar a dinâmica daquilo que foi fixado na relação com tal criança, e que testemunha o impedimento da operação materna. Esta é a dupla face da loucura materna – de não ser uma “patologia” da mãe e de buscar fazer-se escutar no lugar da criança –, que introduz a recusa da qual ela é, frequentemente, objeto. Cabe ao analista da criança produzir um tempo de lugar de endereçamento dessa loucura, para que depois ele possa continuar sua rota, com a criança5.

Eu gostaria de tentar dar a estas proposições uma fundamentação teórica, retornando àquilo que eu designei com o nome de operação maternal (CHAUMON, 2005).

 

Loucura do amor materno

A minha hipótese é de que a loucura materna é uma representação do amor materno e que, assim como toda forma de amor, apresenta traços de loucura. Para um psicanalista, falar sobre o amor materno é algo possível desde a época de Freud. Ele qualificou este amor, especialmente em “Para Introduzir o Narcisismo” (1982). Este amor não é nada mais que o narcisismo que retorna: “O amor dos pais, tão cativante e, no fundo, tão infantil, não é nada mais do que o seu próprio narcisismo que acaba de renascer e que, apesar de sua metamorfose em amor de objeto, manifesta-se sem se confundir com a sua antiga natureza” (FREUD, 1982). A criança é o ser em majestade, His Majesty the Baby, pois ele é contemplado em seu esplendor a partir da perspectiva do amor narcísico.

É por isso que este amor é um amor louco: patologia, morte, renúncia ao gozo não valem a pena pela criança “que estará realmente, novamente, ao centro e no seio da criação” (FREUD, 1982).

Esta loucura de amor materno foi objeto de uma descrição que se tornou clássica, mas, no entanto, devido ao seu estatuto teórico ambíguo, foi pouco aprofundada pelos lacanianos. Trata-se daquilo que Winnicott nomeou de “preocupação materna primária”, estado que ele postula como bastante característico da mãe ao final de sua gravidez e durante as primeiras semanas de vida da criança (WINNICOTT, 2000). De acordo com este autor, tal disposição amorosa propicia uma abertura ao filho, pois ela permite que ele entre em acordo com as suas necessidades de maneira quase perfeita, ou seja, com uma certa quantidade de frustração para que a falta necessária à vida seja introduzida (a famosa “good enought mother”). A mãe adivinha amorosamente o que convém a ele, ela antecipa a sua demanda, ela nomeia com certeza o que para ele ainda se encontra aquém das palavras. Trata-se de uma loucura de amor, que é loucura naquilo que lhe permite “se colocar no lugar de seu filho e de responder às suas necessidades” (WINNICOTT, 2000, p.172). Pois ela sabe, com certeza, o que ele quer e que ela supõe um saber nele, o qual ela detém, antes mesmo que ele possa dizê-lo. Mas a certeza louca que autoriza esta violência de interpretação (AULAGNIER, 1979) não é aquela da psicose, o seu saber não é intimado pelo Outro, pois trata-se do saber do amor: porque eu te amo, somos apenas um e nossos desejos estão unidos.

Com frequência ficamos maravilhados e impressionados com a perspicácia da mãe, com a sua intuição quase miraculosa. Podemos dar com facilidade alguns exemplos espetaculares: ela adivinha o mal-estar de seu filho antes de qualquer outra pessoa, se antecipa antes mesmo que o perigo se instale, ela antecipa cada desejo. Esta apologia do “materno” não é nada mais do que a idealização do milagre do amor, que sabe tudo sobre o amado, adivinha, identifica. Falamos menos de seu reverso, de seu lado escuro feito de falta de conhecimento, de recusa de qualquer alteridade, de violência e de raiva. L’infans, aquele que não fala, está necessariamente exposto às devastações que podem ser tanto maravilhosas quanto monstruosas de amor.

De acordo com Winnicott, tal estado da mãe porta um estatuto paradoxal, pois de alguma forma ele percebe uma loucura normal. É de fato uma patologia, um “estado psiquiátrico” que pode “ser comparado a um estado de ruptura, ou a um estado de dissociação, ou a uma fuga, ou ainda a um transtorno mais profundo, tal como um episódio esquizóide” (WINNICOTT, 2000, p. 170). No entanto trata-se de uma paixão “natural”, em que os “traços patológicos” são mascarados pela criança que a suscita: “Caso a criança morra, o estado da mãe torna-se bruscamente patológico” (WINNICOTT, 2000, p. 170). Daí a fórmula notável: “É um estado organizado, que seria uma doença se não fosse gravidez” (Idem). Pode-se dizer que a “preocupação materna primária” é uma loucura, a criança está chegando! Isto permite prever que, quando a criança não ocupa mais a posição de objeto “natural” dessa paixão – ou seja, quando ela deixou de ser l’infans objeto de amor narcísico –, este estado possa parecer aos outros um verdadeiro estado de loucura.

 

O amor recobre o real

Se a intensidade do momento narcísico materno beira a loucura, me parece preferível reservar o termo loucura materna aos casos em que esse amor segue fixado, atado a um ponto de impedimento encontrado no tempo da operação materna. Digamos que a loucura materna não cessa de testemunhar aquilo que não passou durante a operação materna, e que se repete em seu laço com a criança.

Para demonstrá-lo é preciso desdobrar esta operação em que a mãe oferece a seu filho a unidade de seu corpo enquanto um lugar que bloqueia a pulsão. O amor materno é realmente viático, conjunto de provisão pelo qual a mãe pode emprestar o seu corpo como lugar de vendagem da pulsão. Trajeto que deve ser operado pela criança para se deduzir como sujeito6. De acordo com Freud, esse amor deve ser estabelecido “na origem”, pois ele se baseia no narcisismo primário, e não no narcisismo secundário (aquele em que os objetos fazem retorno no eu constituído). Esse narcisismo originário é a fonte de “atitude carinhosa dos pais para com seus filhos”: este é o conceito de que "havíamos suposto a existência e que constitui um dos pressupostos teóricos de nossas teorias sobre a libido” (FREUD, 1982, p.96). A atitude face ao recém-nascido é o argumento-chave preciso em que Freud se apoia para sustentar esta hipótese. E isto ocorre a tal ponto que podemos dizê-lo ao contrário, pois é a existência do amor materno que confirma de maneira retroativa que existe realmente um narcisismo primário. Tal narcisismo deve ser estabelecido como um verdadeiro núcleo do ser: “Nós fazemos a representação de um investimento libidinal originário (ursprünglich) do eu, mais tarde uma parte é cedida aos objetos, mas, fundamentalmente, o investimento do eu persiste e se comporta em relação aos investimentos de objeto como o corpo de um corpo protoplasmático em direção aos pseudópodes que ele emitiu” (FREUD, 1982, p.83).

De certa forma, seria de uma reserva “narcísica”, a não ser, diz Lacan, quando se trata de narcisismo sem Narciso, pois neste momento o estádio do espelho ainda não foi atingido. Alguma coisa reside no corpo, que não passara inteiramente pelos objetos: Lacan retoma esta afirmação de Freud, a partir de sua teoria do imaginário, dizendo que existe um resto na operação do espelho. Em seu seminário A Angústia, ele localiza no corpo, aquém do espelho (à esquerda no esquema abaixo), esta “reserva libidinal, ou seja […] algo que não se projeta, que não se investe no nível da imagem especular, que é irredutível a ela pela razão de que este algo continua profundamente investido no nível do próprio corpo, do narcisismo primário, daquilo que chamamos de autoerotismo, de um gozo autista” (LACAN, 2005, p.55).

A questão que podemos colocar sobre este ponto consiste em saber se seria possível estabelecer uma ligação entre a existência de uma tal reserva narcísica e a operação materna. Winnicott responde com a afirmativa: o estado de loucura, particular às mães no momento do nascimento, é aquilo que permite à criança fundar em si mesma aquilo que chamamos de “um sentimento contínuo de existir” (WINNICOTT, 2000, p.172). O amor materno deve, então, ser considerado como este momento de revivescência narcísica que condiciona a possibilidade de um narcisismo primário para a criança. Na medida em que a mãe pode recolocar em jogo o narcisismo primário, a criança poderá fundar seu próprio “sentimento contínuo de existir”. Ou seja, delimitar uma área de desdobramento “narcísico”. É a mãe que se oferece, em seu amor, para que esta reserva de existência seja colocada para o seu filho.

Esquema 1. Esquema óptico de Lacan (LACAN, 1988, p. 681)

Esta operação materna é interrompida, barrada em certas circunstâncias. Eu formulo a hipótese de que, por não poder realizar esta operação, nesse momento de narcisismo originário, a mãe se encontra exposta a uma violência pulsional e permanece ligada a seu filho em uma relação de loucura. Para demonstrar isso, é preciso considerar a construção especular não a partir do ponto de vista da criança, como é recorrente, e sim do ponto de vista da mãe. Irei me apoiar no esquema óptico remodelado por Lacan em seu seminário A Angústia, seminário em que ele tenta inscrever a novidade radical da definição de objeto a, e acaba conseguindo. Até então, o estatuto original de imaginário havia sido perfeitamente estabelecido pela operação especular, ou seja, por aquilo que dá uma forma unificada, determinada, ao caos que a antecede. O esquema óptico (LACAN, 1988, p.653) havia permitido situar em um quadro, as duas outras dimensões do simbólico e do real: o simbólico era situado às vezes em A (espelho do Outro) e em I (ponto de vista do ideal do eu), o real sendo localizado na parte esquerda do esquema, figurado pelas flores do vaso. Mas o problema preciso, ao qual se confronta Lacan nesse momento de sua pesquisa, é o de que a escritura de a o interdita então de figurar este objeto no esquema. Pois uma das características principais do objeto a é justamente não poder ser especular. Se escrevemos a à esquerda, não é possível inscrevê-lo à direita, do outro lado do espelho plano, pois o objeto a não possui imagem. Lacan explora tal impossibilidade estrutural a partir da clínica freudiana do surgimento da angústia, relacionada ao Unheimlich, ao inquietante estranhamento. Este percurso vai permitir o esclarecimento daquilo que impede a operação materna.

Vejamos que, desde o início, na proposição de Lacan, o ponto de vista materno encontra-se presente em negativo. Ou seja, o lugar da mãe é identificado de maneira que o espelho propicia sua abertura estrutural para o eu. Isto possui um duplo sentido. Primeiramente, para o espelho plano do grande Outro, em que a natureza simbólica possui um efeito direto sob a possibilidade da criança de se ver. Depois, pelo movimento da criança que procura no olhar da mãe o assentimento do nome daquilo que ele vê no espelho (LE GAUFEY, 1977). Para que a criança possa se ver como corpo unificado designado por seu nome, a lógica do esquema óptico implica que a apresentação do espelho seja feita pela mãe e o dom de seu assentimento a este reconhecimento. Isto implica, então, que a mãe faça a sua parte7. Antes de considerar aquilo que pode ser obstáculo para que isso aconteça, é preciso aprofundar a lógica do esquema, assim como o seu impedimento, que representa pela configuração a nova definição de objeto a.

Esquema 2. Esquema do seminário A Angústia (LACAN, 2005, p. 105)

Caminhemos passo a passo. O sujeito infans não possui acesso ao seu eu como totalidade (o vaso real, à esquerda), a não ser pelo truncamento da imagem, i’(a). Ele é, contudo, afetado em seu corpo. Em primeiro lugar, pela experiência pulsional que ocasiona uma intensificação do gozo em certos pontos, chamados por Freud de zonas erógenas, orifícios pelos quais entram e saem os fluxos de troca com o Outro.

Esta operação especular religa, reagrupa, limita este gozo polimorfo na forma unificada do espelho. A patologia demonstra ao contrário a esquizofrenia, com a vivência da fragmentação, a psicose e o autismo infantil com fantasias de invaginação e reversão dos dedos das luvas do corpo através dos orifícios. Falar sobre a "fragmentação" ou "desordem dos objetos a” neste sentido é possível, mas a partir de nosso ponto de vista, ou seja, daquele que pode operar somente depois do estádio do espelho. Desordem e fragmentação só podem ser compreendidas a partir da ordem unificadora do especular, não antes disso. A passagem do espelho é este momento em que a criança cessa de ser em prol da pululação gozadora dos objetos (o caos pulsional), graças à forma unificante de sua imagem.

Assim, a operação do espelho opera uma “transferência de libido”, de um estado a outro. Em uma espécie de simetria que parece implicar, nas primeiras versões do esquema, as letras i(a) e i’(a). A imagem dita real, à qual o sujeito não tem acesso, se “reflete” na imagem dita virtual. Esses termos ópticos obscurecem a demonstração, pois, estritamente falando, é claro que não existe imagem à esquerda. No entanto, segundo Lacan a imagem é aquilo que é produzido pelo espelho. É por esta razão que o termo i(a) desaparece na versão tardia do esquema. Existe uma passagem de um estado (real) a outro (imaginário) pelo espelho que unifica em uma forma. Ou seja, ele reúne os pontos do gozo que até então estavam dispersos no corpo. Se representamos os objetos a pelas flores, o vaso do corpo imaginário as agrupa em um bouquet, o todo se constituindo em imagem do corpo i’(a). O que seria de fato o corpo sem os objetos pulsionais? Nada mais do que uma Gestalt, o que recusa Lacan, razão pela qual ele deve colocar os objetos da pulsão “em” um corpo receptáculo.

Mas a dificuldade provém da ilusão propriamente imaginária que gera tal esquema: ele passa a sensação de uma completude corporal. O vaso circundando as flores se presta a credenciar a imagem adequada “contendora”. A partir do momento em que existe uma dimensão “contendora” do espelho, o que está em questão é a relação existente entre a dimensão propriamente imaginária e a da falta, o que foi enfatizado durante todo o ensinamento anterior de Lacan, particularmente a falta de objeto. A lógica do espelho como unificador esbarra na lógica do objeto a que faz objeção.

Não é possível argumentar que i '(a) seja a imagem de i (a): a hipótese da estabilidade e da completude que sugere esta duplicação de contendores é recusada pela clínica. Com base na leitura dos textos de Freud sobre o Unheimliche (FREUD, 1985), Lacan trabalha a retificação da sua primeira etapa do esquema: quando algo completa a imagem, não é o apaziguamento trazido pela completude que se produz, mas sim, ao contrário, é a angústia que surge. Conhecemos a fórmula: a angústia é desencadeada pela “falta da falta”.

Para dar conta da operação especular em seu carácter de amarração com o real e com o simbólico, é preciso que na imagem se preserve um lugar vazio, um buraco. Este lugar de falta é tão decisivo que Lacan o designa com o nome Heim, ou seja, o em si, raiz etimológica da língua alemã que encontramos no termo tão carregado Heimat, o país, a pátria. É neste ponto que se situa – e aqui ele traz os passos de Heidegger – “a casa do homem”, “a ausência onde nós somos” (LACAN, 2005, p. 58). Este lugar é homólogo ao enigma do desejo do Outro que deixa uma lacuna na imagem do outro que sou. Por isso convém inscrever esta falta no esquema, seja pela letra X (LACAN, 2005, p. 132), seja pelo – φ (LACAN, 2005, p.105).

Esquema 3. Esquema do seminário A Angústia (LACAN, 2005, p.132)

No entanto, quando a imagem apresenta um carácter de completude (bouquet + flores), ou seja, quando algo vem neste lugar vazio, é que se produz o fenômeno do Unheimliche. De alguma forma é a negação na imagem do vazio do Heim que produz a angústia. Daí uma assimetria que precisa ser inscrita no esquema, colocando à esquerda os objetos a e à direita um X ou um - φ. Existe um resto da operação de “transferência da libido” que se encontra aqui na operação especular: alguma coisa “não se passa no espelho”, os objetos a não são especuláveis.

 

O ponto de vista materno

Vejamos novamente este momento especular, mas dessa vez a partir do ponto de vista da mãe8. Ela se encontra desde o nascimento defronte a um infans, um ser do qual ela antecipa a vinda enquanto eu, através da suposição do saber que ela lhe credita (enquanto sujeito). Para isso ela irá aplicar uma lógica transitivista (BERGÈS; BALBO, 1998) e irá acoplar aquilo que na linguagem implica um sujeito em espera, mas que já existe,9 com o que ainda não está lá, ou seja, sua unidade imaginária corporal. Ela olha para a sua criança não da maneira que ela é, mas como ela a ama, ou seja, de acordo com sua própria reserva narcísica. Ela não enxerga a sua incoordenação motora, a explosão sensorial, o transbordamento de gozo, mas ela enxerga um corpo que ainda não está aqui, no momento em que ele está capturado pelo atual da pulsão. Ela antecipa a sua unidade e o seu controle, e o saber que ela lhe supõe (a ele, o sujeito) e antecipa (seu eu ideal) em sua realização. Nas palavras que ela endereça a ele existe esta mesma antecipação jubilatória que é descrita por Lacan sobre a criança em frente ao espelho. É justamente porque ela o enxerga em um ponto onde ele ainda não se encontra que ele é impulsionado em sua busca. Ela o vê ali, onde ele ainda não está, é este o milagre do amor: ele recobre o real, o corpo que goza, esta coisa que é a criança recém-nascida, que faz com que um mundo soterrado volte à cena

Utilizando o esquema óptico, podemos dizer que a mãe enxerga o seu filho à direita em i(a), enquanto ele ainda é somente um corpo fragmentado (as flores) situado na parte esquerda do desenho. A clínica nos ensina que a operação que ela efetua, que poderíamos chamar de operação de antecipação especular, não vai além de si mesma. Em todos os casos é preciso, para que possa sustentar esse ponto de vista de amor, um ponto fora da cena, índice de seu desejo e que fará função de Nome do pai para a criança. A mãe vê seu filho onde ele ainda não está, por causa dos significantes chamados em seu lugar. É devido ao fato de que ex-siste um ponto de vista simbólico, que o amor toma o seu âmbito imaginário, ou seja, apresenta um espelho narcisista para a criança, em que ela é convidada a reconhecer-se. O intervalo próprio ao significante abre um espaço na lógica unificadora da imagem.

Esta operação de amor materno se torna impossível, ou muito vulnerável, se ela não se sustenta em tal referência fora do espelho. Os dois impasses são conhecidos: ou o narcisismo opera em circuito e esgota-se mortalmente em si mesmo, ou ele não pode se implementar. O amor exclusivamente narcísico, aquele em que a mãe não vê na criança nada além dela mesma, em que ela não enxerga nenhum traço “paterno”, pode fechar-se em si mesmo. Ele também não se encontra menos propício à descontinuidade pulsional. Este amor encarcera mãe e filho em um círculo mórbido, sob a constante ameaça de aniquilação, pois o espelho pode ser quebrado através dos golpes interruptores da pulsão. Do contrário, o impossível recurso ao amor narcísico deixa a mãe defronte à nudez violenta do corpo da criança, inquietude real, até mesmo monstruosa da qual ela se esquiva com horror e angústia. Ela não pode vestir esse corpo com os seus devaneios narcísicos, e esta é a razão pela qual ele se impõe a ela como Coisa hostil, intrusiva e persecutória.

 

Amor narcísico e sexual pulsional

Entre estes dois tipos de impasse, às vezes impressionantes, existem todos os tipos de representações da operação de amor materno. Podemos nos dar conta somente se temos em mente a medida do que se encontra em jogo, ou seja, a amarração do pulsional ao narcísico, os dois registos heterogêneos de amor e de sexo. De acordo com Lacan, “O campo do amor, ou seja, do narcísico, [...] Freud nos indica em seus próprios termos que ele é feito de inserção de l’autoerotisch nos interesses organizados do eu” (Ibid, p.174). De um lado existe o amor e do outro as pulsões parciais. Contrariamente àquilo que temos o hábito de dizer sobre os efeitos eróticos do amor materno, é através da pulsão, e não através do amor, que o sexo chega na criança. “A sexualidade enquanto tal faz a sua chegada, exerce a sua atividade própria, através do intermediário – tão paradoxal quanto isso possa parecer – das pulsões parciais.” Lacan insiste: “Proponho a distinção radical existente entre o se amar através do outro, o que não deixa no campo narcísico do objeto nenhuma transcendência ao objeto incluído, e a circularidade da pulsão, ou heterogeneidade do ir e vir que mostra uma abertura em seu intervalo” (Ibid, p. 177). Existe uma contradição entre o amor e as pulsões que devem, portanto, ser traçadas juntas, em um movimento que parte de um para ter acesso aos outros: “O nível de Ich é não pulsional, e é neste ponto que Freud funda o amor. Tudo aquilo que é assim definido ao nível de l’Ich não passa a ter valor sexual, não passa de l’Erhaltungstrieb, a conservação, ao Sexualtrieb, que em função da apropriação de cada um desses campos, não é apreendido por uma das pulsões parciais” (Ibid, p. 174)

Esta contradição é resolvida pela vestimenta do amor, que encobre o caráter sexual das pulsões às quais a mãe deve se submeter. Este é o sentido da observação de Freud, sob o qual a mola narcisista do amor materno vai ao encontro da “negação da sexualidade infantil” (FREUD, 1982, p. 96). No entanto, a mãe é realmente a primeira “sedutora”, na medida em que ela se oferece ao exercício pulsional, emprestando o seu corpo a “perversão polimorfa” da criança (CHAUMON, 2005). A postura perversa do sexual pulsional é de fato contraditória ao registro do amor, que permanece no ciclo de homogeneidade narcisista. Aos olhos dos outros – como Freud observou maliciosamente, especialmente aos olhos do pai, que fica ressentido –, o sexual da pulsão com que a mãe se presta é, muitas vezes, insuportável. Somente o amor materno pode tornar isso socialmente aceitável, somente o amor materno permite à mãe se prestar a este papel sem causar muitos danos.

Existe de fato um desacordo, uma lacuna entre o amor materno e o exercício pulsional, e é contra essa estrutura que Ferenczi se ergue em seu famoso artigo "Confusão de línguas entre adultos e crianças” (FERENCZI, 2011, p.111-121). Em seu texto ele denuncia a traição sofrida pela criança que demanda carinho e que em troca recebe uma resposta sexual do adulto. Ao solicitar o amor, ou seja, o espelho narcísico em que se constitui o seu ser, ela reconhece no outro a lógica pulsional, ou seja, o corte e a queda do objeto. Ela busca a garantia do amor terno e se depara com o sexual parcial da pulsão. Ela busca a “promessa da aurora” (GARY, 1960) do amor narcísico, ela quer estar no lugar do falo imaginário da mãe, e aqui ela se encontra ante o corte e a perda que opera o sexual pulsional. Mas existe uma versão simétrica que não é abordada por Ferenczi, em que os efeitos são, portanto, ainda maiores. É aquela em que o adulto busca o carinho de um amor narcísico na criança, e se depara com a exigência pulsional imperativa desse amor. A mãe busca o retrouvaille narcísico do mesmo, ela quer se confortar em seu filho, encontrar junto com ele e junto a ele a reserva narcísica do ser. E ela se depara bruscamente com violência da pulsão, que apreendeu seu corpo para fazer dele uma parte perdida, para sempre perdida. A violência do sexual pulsional constitui o real, a aprovação do materno, em que a operação se sustenta somente a partir do recurso à via narcísica do carinho10.

 

Loucuras maternas

Existem casos que testemunham esta etapa não atravessada, esta fixação a um ponto de impedimento encontrado durante o percurso: a falha do amor da origem deixou a mãe atada ao sexual da pulsão, resultando, assim, uma certa loucura materna, ou seja, uma maneira de ainda manter, apesar de tudo, algum tipo de vínculo com a criança.

Certamente pode haver casos em que a montagem narcísica não possa ser efetuada pela mãe desde o momento da gravidez, deixando-a sujeita à ameaça de uma espécie de alien, de um real parasita que invade o seu corpo. O que pode resultar uma impossibilidade radical de qualquer tipo de contato, em que todos os pedidos da criança possuem caráter persecutório. Ainda mais frequentemente, em um primeiro momento, o véu do amor poderá ser colocado no corpo da criança, permitindo assim que os primeiros laços pulsionais sejam feitos. Porém, algo acontece e interrompe este entendimento narcísico. O amor retira-se como um véu rasgado e a coisa-criança entra em cena. O horror do real apareceu de maneira repentina, mas não sob a forma imóvel da alteridade enigmática do anjo impassível, e sim em sua vertente ativa, ameaçadora, imperiosa: pois a pulsão exige sem atraso, ela reivindica o objeto sem ao menos olhar para o outro, ela percebe uma lógica perversa (de acordo com Freud) se apropriando, para sua satisfação, do corpo da mãe que ela recorta. Se por Lacan a Coisa é este Outro irreconhecível e fundamentalmente hostil em sua alteridade, podemos então dizer que o infans é para a mãe o retorno da Coisa, a presença imediata de um porto atado ao gozo.

O sentimento de angústia, tão frequente nos primeiros tempos da relação da mãe com o infans, sinaliza o que está em jogo neste momento e nos permite identificar o que se passa. Para perceber isso basta retomarmos a demonstração de Lacan sobre o Unheimlich: é quando surge alguma coisa no espelho, ali, aonde deveria subsistir um vazio, a angústia irrompe. No lugar da criança, ou seja, em i’(a) em que deve ser escavado o lugar de l’x ou do – φ, alguma coisa impede, e assinala a saturação pelo objeto. Na imagem da criança não existe mais esta falta através da qual pode-se indicar “o desejo de outra coisa”, o que aparece no lugar – a angústia! –, é um objeto de gozo em que a sua emergência pode ser literalmente sideral. A mãe se encontra na posição fundamentalmente de passividade que é característica do retorno pulsional, o que Lacan revela pela forma passiva do verbo “fazer-se”. Conhecemos bem a versão paradigmática, a do objeto oral, que se enuncia “fazer-se sugar”. O gozo do Outro está ali, imediato, é o horror do vampiro, o seio monstruoso que aspira a mãe inteiramente e ameaça de esvaziá-la, toda a sua substância. A angústia surge no momento em que a relação narcísica falha e no lugar em que o desejo do Outro interroga o sujeito na raiz de seu ser, como objeto a de seu desejo. Dessa forma, no recito de O homem de areia (HOFFMANN, 2007), em que Freud se apoia para identificar o inquietante estranhamento, Nathanaël, o voyeur, fica horrorizado ao encontrar o Outro desejando os seus olhos, até mesmo o coração de seu ser. O que o sujeito é como objeto a para o Outro surge como uma estranheza familiar quando o véu do (des)conhecimento narcísico falha em filtrar o desmensurado da pulsão.

Não poder colocar em prática a operação do amor materno, ou seja, recobrir o pulsional do véu da semelhança narcísica expõe à lógica sexual acéfala da pulsão. Para aparar este real, para antecipar o retorno da angústia, a mãe poderá recorrer a tudo aquilo que pode fazer função de alerta, de antecipação do perigo, com a finalidade de pôr em prática todos os tipos de parapeitos salvadores colocados diante do perigo iminente. O modelo é, naturalmente, o do fetiche, ou seja, esse objeto que vem fixar o movimento, colocado ali como testemunha. Testemunha do instante que antecede a confrontação do horror da castração. O fetiche é um lugar de clivagem, o reconhecimento do furo e ao mesmo tempo de sua negação.

Frequentemente, dizemos que a criança é colocada na posição de fetiche, ou seja, de objeto da perversão materna. Parece-me que convém ser um pouco mais preciso e apontar que não é a criança em si, mas sim este laço com a criança que precede (metonimicamente) o momento da angústia, que pode atuar como fetiche. O que será preferível, por tratar-se do momento do percurso pulsional que foi efetuado antes do surgimento da angústia. O que permanecerá assim fixado, petrificado, é o momento do laço pulsional, ao qual a mãe soube se submeter, logo antes da derrota narcísica que barra o outro tempo da pulsão. Enquanto fetiche, este laço dá suporte a duas posições antagônicas: ele testemunha o desempenho da operação materna e, ao mesmo tempo, ele a denuncia. Ele repete o momento da completude materna, mas sob proteção do registro narcísico (ela não cessa de mostrar como sabe satisfazer a tal ou qual registro da demanda), mas ele atesta, por sua fixação e sua exclusividade, a falha da continuidade do movimento pulsional (uma outra demanda seria insuportável).

Dai advém a posição da mãe em relação àqueles a quem ela se dirige: eu sei bem que o sintoma11 da minha criança testemunha o meu fracasso, mas mesmo assim ele testemunha o que aconteceu, que eu soube ser mãe. Eu sei bem, pois eu trago ele até você, você que eu suponho ser o possível analista do meu filho, mas mesmo assim eu protesto, enquanto mãe, contra a desqualificação que poderá resultar e, por esta razão, eu mostro, eu exibo o fálico de uma relação pulsional antecedente12.

A loucura materna é a fixação – às vezes dolorosa e gozadora segundo a lógica do fetichista – neste momento do circuito pulsional, que precede a derrota do amor. Ela testemunha o tempo de antes, e protesta através dele contra a realidade deste amor. É isso que explica o mal-entendido do qual a mãe é frequentemente objeto: a loucura aparece como perversão materna (o gozo) enquanto ela é exibida como amor. Ela ama o seu filho através do modo de amor narcísico – e que é doravante inadmissível por parte de terceiros –, ela administra a evidência relacionada ao fetiche do momento pulsional realizado. Ela protesta seu amor em que ela mantém o testemunho. Mas ela não sabe que, ao mesmo tempo, ele atesta a sua derrota.

Loucura materna, às vezes patética e insuportável, em que compreendemos que o voto da “separação” a que ela induz atesta um verdadeiro mal-entendido. O que desejamos interromper na verdade é esta relação de fetiche tão preciosa para ela, pois intercepta o testemunho do momento em que ela pensa ter operado como mãe. Se a mãe se endereça a um analista para o seu filho fazendo valer junto a ele esta loucura, é para que ele leve em conta, ao mesmo tempo, as duas posições inclusas neste laço fetiche. É esta demanda contraditória que a criança está encarregada de encarnar, tanto que a negação não será desdobrada como tal. Ele o encarna e isso será, então, por ele que deverá passar o desenrolar dessa loucura que, por sua vez, poderá dissolver-se. É assim, creio eu, que devemos compreender o que diz Lacan ao evocar em sua nota a Jenny Aubry (LACAN, 2003), os casos, segundo ele, de mais difícil acesso para psicanalista, em que o sintoma “faz sobressair a subjetividade da mãe”. A criança, nos diz Lacan, torna-se “objeto” da mãe, “e não tem mais outra função senão a de revelar a verdade deste objeto” (LACAN, 2003, p.369). As palavras têm aqui o seu peso, devemos sobressaltá-las: não tem mais... senão. “Ela [a criança] aliena nela toda a possibilidade de acesso da mãe à sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência, e ao mesmo tempo exigindo ser protegida” (Idem). É aí que reside a essência: é de fato porque ela aliena nela (a criança) todo acesso possível à sua verdade (da mãe) que é por ele que será preciso passar para que ela reencontre o caminho de sua própria verdade, petrificada nesta relação. No caso que menciono aqui, ou seja, no caso em que a loucura materna busca ser escutada pelo analista da criança, trata-se de levar em conta aquilo em que a criança porta a clivagem materna, de desdobrar as declarações contrárias. Assim, com frequência, a via de acesso é descongestionada para trabalho com a criança, mas desde que isso seja questão para ele.

Muitas vezes, durante um processo analítico, o analista é confrontado com tal lugar que a criança passou a ocupar para uma mulher, e já escrevemos muito sobre isso – o primeiro foi Freud, sobre as representações do estatuto da criança no destino da feminidade. O que merece, me parece, ser distinguido enquanto loucura materna são os casos em que, no encontro com o analista da criança, esta representação da operação materna demanda o seu reconhecimento. Eu busquei mostrar, de um lado, a necessidade, e do outro, a dificuldade.

 

Referências

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BERGÈS, J ; BALBO, G. Jeu des places de la mère et de l’enfant. Toulouse : Érès, 1998.         [ Links ]

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FERENCZI, S. Confusion de langue entre les adultes et l’enfant. Dans OEuvres complètes, tome IV, Paris: Payot, 1982, p.125. “Confusão de língua entre os adultos e a criança (a linguagem da ternura e da paixão)”, cap. IX, p. 111-121, in Obras completas, Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 2011, v. IV.         [ Links ]

FREUD, S. “Pour introduire le narcissisme” (1914). In La vie sexuelle. Paris: PUF, 1982.         [ Links ]

FREUD, S. L’inquiétante étrangeté et autres essais. Paris: Gallimard, 1985.         [ Links ]

GARY, R. La promesse de l’aube. Paris: Gallimard, 1960.         [ Links ]

HOFFMANN, E.T.A. O homem de areia, in Freud e O Estranho: Contos fantásticos do inconsciente (org. e sel.) Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.         [ Links ]

LACAN, J. Le séminaire livre X (1962, 1963), L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004, p.109. (LACAN, J. O seminário, livro: a angústia. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2005).         [ Links ]

LACAN, J. “Note sur l’enfant”. Dans Autres écrits. Paris: Le Seuil, 2001. (Nota sobre a criança, in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003).         [ Links ]

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Endereço para correspondência
34 rue de la Montagne Sainte Geneviève
75005 – Paris/França
E-mail: franck.chaumon@gmail.com

RECEBIDO: 20/08/2012
APROVADO: 28/08/2012

 

 

Sobre o Autor

Franck Chaumon
Psicanalista. Autor de vários artigos e dos livros Lacan, le sujet, la loi, la jouissance (F.Chaumon, “Lacan: la loi, le sujet et la jouissance”, collection Le bien commun. Ed.Michalon, 2004), e Manifeste pour la psychanalyse (S. Aouillé, P. Bruno, F. Chaumon, G. Lérès, M. Plon et E. Porge, Manifeste pour la psychanalyse. Paris, éditions La Fabrique, 2010).

 

 

1 N.T: Título original: Folies Maternelles, texto publicado na revista Essaim, v. 2, n.15, Toulouse: Érès, 2005, p.101-116.
2 Aliás, é a propósito da criança que Lacan emprega tal fórmula, na resposta dada por ele a Jenny Aubry em seu texto “Note sur l’enfant”, dans Autres Écrits. Paris: Le Seuil, 2001, p. 373-374. (LACAN, J. “Notas sobre a criança”, in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 369-370).
3 Claro que, em alguns casos, tal proposição é eficaz. Da mesma forma, com frequência, o analista dá continuidade ao trabalho com a mãe, mas somente em relação ao desenrolar dos significantes em que a criança fora, em um primeiro momento, porta-voz. O presente trabalho concerne somente aos casos em que a loucura do laço materno é patente e em que a promessa da separação, qualquer que seja a forma, resulta em uma dolorosa falha.
4 Desde que uma analisante possa nos fazer escutar em que tal criança ocupa para ela um lugar de objeto, a conjuntura transferencial é diferente quando é justamente desse lugar de objeto que ela se queixa, mais uma vez, àquele que se oferece para receber “a criança”.
5 As modalidades práticas – presença ou não da criança durante as entrevistas com a mãe, modalidades da escansão, etc. – decidem-se, evidentemente, em cada caso e de acordo com o estilo de cada um. Mais uma precisão: o desenrolar deste trabalho com a mãe não conduz a uma análise da mãe; ele permite “simplesmente”, na maioria das vezes, dar continuidade ao trabalho com a criança.
6 O “novo sujeito” abordado por Lacan na teoria da pulsão da Metapsicologia.
7 O que supõe o pai.
8 Este ponto de vista é aquele que só pode ser realmente explicitado em uma análise. Mas o que nos foi ensinado pode nos permitir situar aquilo que se encontra em jogo nas mulheres que consultam”somente como” mães.
9 Nos significantes, no campo do Outro.
10 Esta violência é demonstrada pelas passagens ao ato com os bêbes, e constituem frequentemente uma resposta do adulto à violência traumática do sexual pulsional, uma vez que ele não é suficientemente protegido pelo véu, a para-excitação do amor narcísico.
11 Que ela reconhece como tal.
12 Quando o circuito pulsional efetua o seu percurso completo, pensamos no falicismo da mãe. A criança é o falo da mãe, ao título de pulsão. É por isso que convém dizer que, de uma certa forma, o falicismo pode existir oralmente ou analmente, etc. Por exemplo, se ele toma bem o seio, ele a constitui como “boa” mãe amamentadora. O que designamos como “perversão materna” são, frequentemente, os casos em que a mãe demonstra o registro em que ela pensava ter sabido se deixar levar pelo jogo da pulsão.