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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.38 Belo Horizonte dez. 2012

 

 

Lugar de fala: psicanálise e gestão docente da indisciplina

 

Place of speech: psychoanalysis and management faculty of indiscipline

 

 

Katherinne Rozy Vieira GonzagaI; Fernando Cézar Bezerra de AndradeI; II

I Sociedade Psicanalítica da Paraíba
II Universidade Federal da Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A gestão pedagógica para situações de indisciplina discente na escola é um problema relevante, que, porém, não é, em geral, considerado na formação continuada dos educadores. Entendendo a indisciplina como uma situação de conflito relacional na escola que, mal gerida, pode agravar-se em violência, levantou-se a hipótese de que instituir um lugar de fala no grupo de professores produz efeitos subjetivos nos docentes implicados no manejo dessas situações. Este artigo apresenta o lugar de fala em sua dimensão grupal e sua influência sobre o aperfeiçoamento do manejo docente de situações de indisciplina discente. Isto é ilustrado a partir de fragmentos do caso de uma das professoras participantes de um grupo de reflexão sobre a gestão da indisciplina, cuja principal finalidade era prestar-se como lugar de fala para docentes, de modo a favorecer a elaboração psíquica de conflitos que as docentes atravessavam na relação com o alunado. Por isso, o grupo considerado inspirou-se no dispositivo da Pedagogia Institucional, “lugar de fala” (PAIN, 2009), e teve seus movimentos psicodinâmicos interpretados sob a ótica do pensamento winnicottiano. Levada em conta a subjetividade das docentes, o grupo que serviu de enquadre do lugar de fala também contribuiu para que surgissem efeitos sobre a posição subjetiva das profissionais nele envolvidas, propiciando condições de mudanças necessárias a uma melhor gestão da indisciplina. No caso considerado, ao falar sobre sua própria agressividade no contexto de um grupo que funcionou como cobertura (WINNICOTT, 2005), a professora tornou-se mais sensível a mensagens do alunado, eventualmente veiculadas pelo comportamento indisciplinado.

Palavras-chave: Lugar de fala, Docente, Gestão da indisciplina, Grupo de reflexão, Teoria winnicottiana.


ABSTRACT

The management of disruptive situations for pedagogic students in school is a significant problem, which, however, is not generally considered in the continuing education of educators. Understanding the discipline as a conflict situation in the relational school, poorly managed, can escalate into violence, raised the hypothesis that establish a place of speech in the group of teachers produces subjective effects on teachers involved in handling these situations. This article presents the place of speech in its size group and its influence on improving the management of teaching situations of indiscipline students. This is illustrated from the case of a fragment of the teachers participating in a focus group on the management of indiscipline, whose main purpose was to provide a place of talking to teachers, to encourage the development of psychic conflicts that teachers crossed the relationship with the students. Therefore, the group considered inspired by the device of Institutional Pedagogy, "place of speech" (PAIN, 2009) and psychodynamic had their movements interpreted from the perspective of Winnicott's thinking. Taken into account the subjectivity of teachers, the group that served as the frame of the place of speech also contributed to that surge effects on the subjective position of the professionals involved in it, providing the conditions necessary changes to better management of indiscipline. In the case considered, when talking about their own aggression in the context of a group that served as cover (WINNICOTT, 2005), the teacher became more sensitive to messages of students, possibly transmitted by the unruly behavior.

Keywords: Place of speech, Teaching, Management of indiscipline, Reflection group, Winnicott's theory.


 

 

O presente trabalho considera um extrato de uma pesquisa que tratou da formação docente para a gestão da indisciplina, ao longo de seis semanas, com um encontro semanal de três horas, realizada com dez professoras da Educação Infantil que trabalhavam em Centros de Referência em Educação Infantil (doravante CREIs) de João Pessoa-PB (GONZAGA, 2011).

Os seis encontros das professoras que formaram o grupo de reflexão compuseram-se de três momentos: leitura e discussão de textos sobre o tema do desenvolvimento emocional do indivíduo e a indisciplina na ótica da teoria winnicottiana, apresentação e discussão de caso (momento em que as professoras traziam situações de indisciplina discente que vivenciavam em sala de aula e expressavam sua gestão diante dessas situações) e encaminhamentos e fechamentos (em que se discutia e eram decididas maneiras para lidar com as situações e agendava-se a apresentação do caso para a semana seguinte).

A gestão pedagógica para situações de indisciplina discente na escola é um problema relevante, que, porém, muitas vezes deixa de ser considerado na formação continuada dos educadores. Por entendermos a indisciplina como uma situação de conflito relacional na escola que, mal gerida, pode culminar em situações mais graves de conflitos, levantou-se a hipótese de que instituir um lugar de fala no grupo de docentes produz efeitos subjetivos capazes de favorecer a gestão da indisciplina pelos profissionais implicados no manejo dessas situações.

Para avaliar tal hipótese, analisamos os efeitos subjetivos da constituição de um lugar de fala (entendido como um espaço coletivo para a discussão sobre dificuldades relacionais, de aprendizagens, para trocas de experiências vivenciadas no cotidiano escolar e para tomar decisões). O trabalho em grupo nessa formação docente continuada favoreceu meios para que as professoras desenvolvessem habilidades para criarem novas formas de lidar com a indisciplina.

Para a análise dos movimentos psicodinâmicos das professoras no grupo de reflexão (em que se instituiu o lugar de fala), duas categorias foram consideradas: o grupo como cobertura e o grupo como unidade pessoal (WINNICOTT, 2005). Para a análise da mudança na posição subjetiva das professoras, seis categorias foram definidas: a queixa de indisciplina, a concepção de indisciplina, a forma de manejo da situação, a biografia da participante, a dinâmica do lugar de fala e as novas intervenções relatadas a partir da vivência do lugar de fala. Neste artigo, apresentamos uma breve discussão sobre o aspecto grupal da dinâmica própria ao lugar de fala, assim como sua influência na aparição de novas formas no manejo das professoras lidando com a indisciplina.

Os resultados verificados a partir da instituição do lugar de fala foram mudanças na posição subjetiva das professoras em direção a uma vida mais autônoma e a uma atitude mais proativa e pedagógica diante de situações de indisciplina discente. O progresso das mudanças correlacionou-se à qualidade do estabelecimento das relações objetais de cada professora. Para essa tarefa, entendemos ter sido necessária a figura de um profissional que, externo aos CREIs e treinado na escuta psicanalítica, favorecesse, no contexto de uma formação continuada, a elaboração de material psíquico das docentes, cujas intervenções no enfrentamento da violência poderiam torná-las elas próprias causa de mais violência na escola (pela ineficiência e inadequação das estratégias adotadas).

 

A instituição do lugar de fala: o grupo de reflexão

Com Winnicott (2005) e Freller (2001), sabemos que o ambiente escolar em situações de tendência antissocial – expressa muitas vezes pelos atos de indisciplina – é determinante para a modificação da conduta indisciplinada, seja em direção à solução do conflito ou à violência.

Segundo Silva (2002), trabalhar em equipe, de modo colaborativo, é essencial para que profissionais da escola reflitam contínua e produtivamente sobre sua prática e sobre a formação global do alunado. “Para a concretização desse novo tipo de trabalho escolar, são necessárias mudanças nas relações e inter-relações pessoais dos professores com seus pares e com os alunos; exigem-se diferentes competências e habilidades para atuar nessa nova escola” (SILVA, 2002, p.80).

No que concerne à gestão dos conflitos, considerando-se que o grupo é uma instância de convivência, é nele que se manifesta e desenvolve a sociabilidade – e, com ela, também o conflito. Nessa ótica, obviamente, “a convivência é um feito coletivo e nunca setorial” (FERNÁNDEZ, 2005, p.159). Ora, uma proposta educativa que considera, em primeiro plano, as relações interpessoais como determinantes da vida da escola e toma como axioma central a noção de conflito, afirmando-se “uma pedagogia da crise, que não recua diante da violência, mas a inclui no campo educativo” (PAIN, 2009, p.15) é a Pedagogia Institucional (ANDRADE; GONZAGA, 2010), doravante PI.

A PI propõe que todo o trabalho escolar seja submetido à regular apreciação individual e grupal, em contextos de coletividade. Daí serem frequentes as atividades em grupo, tanto para discentes quanto para docentes. Essa pedagogia também reconhece que a participação em grupo de atividades por docentes e outros profissionais remete, necessariamente, à consideração da dimensão subjetiva dos participantes do grupo na realização das tarefas. Daí o olhar sobre a subjetividade docente e, nela, sobre os efeitos que o trabalho em grupo pode exercer.

Adotamos, na pesquisa cujos dados servem aqui de suporte à discussão, o pensamento winnicottiano para orientar nosso olhar interpretativo. Assim, quando a subjetividade é levada em conta, o grupo também pode ter efeitos sobre a posição subjetiva dos profissionais nele envolvidos, ao ponto de propiciar condições para a mudança necessária à boa gestão docente da indisciplina. O que a teoria winnicottiana assegura sobre o grupo, tomado como ambiente de mudanças subjetivas?
Para Winnicott (2005), o grupo, dependendo das necessidades daqueles que dele participam, pode funcionar como uma unidade individual ou cobertura materna. No caso da unidade individual, o fundamento da formação do grupo maduro é a multiplicação de unidades individuais (WINNICOTT, 2005), quando cada participante teve um desenvolvimento emocional sadio e encontra-se rumando em direção à independência (etapa mais próxima do que o autor considera saúde emocional); nessas condições “o grupo beneficia-se da experiência pessoal dos indivíduos, cada um dos quais foi visto através do momento de integração e recebeu cobertura até estar apto a dar cobertura a si mesmo” (WINNICOTT, 2005, p.220).

Já no caso da cobertura, o grupo funciona como uma proteção ambiental que exerce poderes de reparação das falhas ambientais eventualmente experimentadas por seus integrantes: nesse sentido, existe a possibilidade de dar-se “cobertura a um agrupamento de pessoas relativamente não integradas [mais distantes do que o autor considera saúde emocional] e um grupo pode ser formado. Neste caso, o trabalho do grupo não provém de indivíduos, mas de cobertura” (WINNICOTT, 2005, p.220).

Segundo Winnicott (2005), o esperado é que o indivíduo saudável gradualmente se torne em condições de identificar-se com o grupo, sem perder sua espontaneidade individual e o senso de si-mesmo (self), que se define como “descrição psicológica de como o indivíduo se sente subjetivamente, sendo o ‘sentir-se real’ o que coloca no centro do sentimento de self” (ABRAM, 2000, p.220).

A formação de grupos faz parte da experiência cultural, “algo que pertence ao fundo comum da humanidade, para o qual indivíduos e grupos podem contribuir, e do qual todos nós podemos fruir, se tivermos um lugar para guardar o que encontramos” (WINNICOTT, 1975, p.138): trata-se das relações de objeto estabelecidas durante o desenvolvimento do indivíduo.

A experiência cultural primária é a relação mãe-bebê, que, durante o desenvolvimento maturacional, vai se ampliando para outras relações. Esta experiência acontece numa zona intermediária – o espaço transicional –, em que os fenômenos experimentados (por exemplo, o brincar das crianças e o falar dos adultos) nem são “uma questão de realidade psíquica interna, nem tampouco de realidade externa” (WINNICOTT, 1975, p.134), localizam-se entre extensões do “eu” e do “não-eu”.

O grupo formado na pesquisa aqui considerada funcionou como espaço transicional, instituído pelo dispositivo do lugar de fala (THÉBAUDIN; OURY, 1995; PAIN, 2009), dando oportunidade às professoras de terem experiências culturais que lhes permitiram movimentos subjetivos das situações de indisciplina discente, criando novas formas e possibilidades de manejo das situações, experiência vivida coletivamente.

Ora, o lugar de fala ocupa, logicamente, um papel decisivo como dispositivo gerador do espaço transicional. Na experiência do grupo de professoras analisada nesta pesquisa, esse dispositivo tratou, como conteúdo manifesto, da indisciplina discente, mas levou em conta, a todo momento, o conteúdo latente das representações, fantasias, afetos implícitos nas relações de objeto mantidas pelas professoras – o que supôs necessariamente tratar de seus alunos e da relação com eles.

Analisamos, adiante, fragmentos de situações experimentadas por uma participante do grupo, a quem atribuímos o pseudônimo de Lígia, a fim de ilustrar como tal arranjo teórico permite melhor compreender a dinâmica do funcionamento do grupo aqui analisado, bem como as mudanças de posição subjetiva das professoras envolvidas.

 

O grupo de professoras

O grupo de reflexão foi formado com dez professoras de CREIs, a partir de uma proposta para uma formação continuada com docentes da Educação Infantil para a gestão da indisciplina. O critério relevante para a participação no grupo de reflexão – a saber, a motivação intrínseca das docentes participantes para discutirem e analisarem a gestão docente da indisciplina discente – foi garantido durante a seleção por parte da Secretaria Municipal de Educação.

Observamos que algumas professoras aproveitaram o espaço de fala mais que outras; que houve tanto resistências a mudança quanto, ao mesmo tempo, a mudança através da perlaboração da transferência negativa de uma professora; que a potencialidade para a transformação foi mais evidente numa das professoras; e que se deram modificações, em maior ou menor grau, na posição subjetiva das professoras, inferidas seja por suas falas, seja por suas expressões faciais. Tudo isso se deveu ao modo como cada uma relacionou-se com o grupo e com a psicanalista que, agindo como pesquisadora e coordenadora das reuniões do grupo, mantinha o enquadre para o funcionamento do lugar de fala – cujo principal elemento consistia no direito a falar, para todas no grupo, sobre situações de indisciplina, bem como no compromisso de abrir-se à reação das colegas e da psicanalista.

No decorrer do processo de formação pôde-se perceber, também, que o lugar de fala através do trabalho grupal favoreceu efeitos subjetivos nas professoras: o movimento subjetivo em relação ao grupo, saindo da demanda de cobertura (indicando um funcionamento egoico mais imaturo) em direção à unidade individual; e o movimento subjetivo em relação ao grupo já caracterizado, desde o início, como unidade individual (indicando um funcionamento egoico mais maduro).

 

O grupo como cobertura para a professora Lígia

O grupo é por excelência um lugar de fala, uma vez que falar pressupõe regras; ao mesmo tempo, o dispositivo do lugar de fala, utilizada para esta pesquisa, tal como sugere a PI, é um exercício de convivência com um outro e com os conflitos decorrentes da relação social, sempre mediado pela linguagem. Cabe considerar que, sendo aquela atividade de formação oferecida pela primeira vez, o grupo recebeu, por CREI, duplas de docentes que, afora a colega da dupla, não se conheciam ou relacionavam entre si; não obstante, estabeleceram-se relações que caracterizaram o grupo num registro de cobertura.

Como vimos, segundo Winnicott (2005), os grupos podem funcionar sob duas modalidades: como unidade individual e como cobertura. No primeiro caso, os indivíduos estão egoicamente integrados (o que resulta de um processo de desenvolvimento maturacional em que, na relação suficientemente boa com sua mãe, o ego primitivo do bebê incorpora experiências à personalidade) e são relacionalmente mais maduros; estão, portanto, aptos a relações menos duais e socialmente mediadas. Já no segundo, os indivíduos ainda encontram-se na fase de não integração (anterior à integração e que diz respeito ao tempo da imaturidade egoica do bebê, quando este estabelece, na relação suficientemente boa com sua mãe, o sentimento de confiança e pode entregar-se aos cuidados maternos): desse modo, precisam do grupo como espaço de acolhimento e proteção.

No processo de formação aqui analisado, o grupo funcionou, na maior parte do tempo, e para a maioria das professoras, como cobertura. Como bem indica Winnicott (2005), oscilações naturais foram percebidas numa ou noutra professora, que durante o processo utilizavam-se do grupo, ora como unidades individuais, ora como cobertura. Tal foi o caso de Lígia, cujas falas permitiram entender os seus movimentos subjetivos em relação ao grupo e mais tarde observar sua mudança diante de seus alunos indisciplinados – vez que, de maneira geral, utilizou-se do grupo de reflexão fazendo demandas de cobertura ao grupo.

Numa das falas, fazendo um comentário sobre sua vida pessoal, Lígia afirmou:

No meu caso eu tenho três filhos: uma casada, uma do meio e a caçula. E meu marido tem um irmão que, quando eu namorava com meu marido, tinha sete anos. Quando a mãe dele falava que ia sair, toda rua ia pra fora por causa do escândalo. Eu até deixava de ir à escola para ficar com ele, porque ele só queria ficar comigo, e eu pensava: “Meu Deus, se eu me casar com o irmão dele, será que vou ter filhos iguais a ele?!”. E dizia à minha sogra que se fosse meu filho, ele deixava de fazer isso. E não é que paguei com a língua, a primeira não, a segunda não, mas a terceira, a rapinha do tacho, minha amiga, quando o pai fala que vai sair, começa o escândalo, dizendo: Não vai não, não vai não, fica comigo! Quando a irmã diz: Carol fique quieta, não bate em mim não! Meu Deus, eu fico olhando, não parece com o pai e sim com o tio, eu não digo, mas penso: “Paguei minha língua”! E aí, é hereditário? O que é? (Primeiro encontro).

Em tom áspero – que expressava uma agressividade investida na figura da pesquisadora, verificada, além do tom e do conteúdo de suas falas, através dos olhares de desdém e das expressões faciais de descaso ao que estava sendo dito pelas colegas e pela coordenadora –, Lígia parecia buscar consolo e proteção no grupo. Ao perguntar-se se o que acontecia com a terceira filha era sua culpa ou de fatores que a ultrapassavam, neste fragmento da fala da professora, Lígia evidenciava uma raiva dirigida à sogra (que a colocara no lugar de babá do futuro cunhado), e a consequente culpa – pagar uma suposta dívida, “pagar a língua” –, o que sugeria também que ela continuava a ver-se como babá, desta feita de seus alunos.

Essa professora foi agressiva com a pesquisadora durante todo o processo de formação, o que se compreendeu como sua necessidade de destruir, em sua fantasia, o objeto (aqui, a pesquisadora), na expectativa de que ele sobrevivesse a esses ataques, de modo que ela pudesse usufruir dele. Como bem lembra Winnicott (1975): “a capacidade de usar um objeto é mais apurada que a capacidade de relacionar-se a objetos; o relacionamento pode dar-se com um objeto subjetivo, mas o uso implica que o objeto faça parte da realidade externa” (WINNICOTT, 1975, p. 131).

Algumas falas suas ilustram a dificuldade da professora em posicionar-se diante do ódio que eventualmente seus alunos exprimiam na conduta indisciplinada: quando algum aluno apresentava ódio e lidava com a situação, ela negava ou se confundia com ele.

E por incrível que pareça, aquele que você ama é o mais impossível (Segundo encontro)
Eu [Lígia reproduzindo a fala de um aluno] vou dizer a minha mãe, meu pai, minha irmã, minha namorada.” Então, eu [Lígia] digo: “Eu também vou dizer a minha mãe, meu pai”. E ele pergunta: “a senhora vai dizer o quê?” “O que você tá dizendo”. “Ah, tia! Deixa pra lá” (Segundo encontro)

Vê-se no segundo trecho que Lígia falava como uma garotinha que enredasse o coleguinha, num movimento infantil (WINNICOTT, 2000) em que não se tratava apenas da “aquisição do status de unidade, mas também à junção do amor e do ódio e ao reconhecimento incipiente da dependência [...]” (WINNICOTT, 2000, p.375). Nessa situação, o elemento mais importante para a dinâmica do grupo e a psicodinâmica de Lígia era a sobrevivência da pesquisadora na condição de mediadora e garantidora do lugar de fala.

No decorrer dos encontros, a mesma professora mostrou-se claramente menos ameaçada ao falar; direcionando-se e falando à pesquisadora-mediadora, assumiu-se perante o grupo, expressando com isso mais confiança e menos defesas:

É, na semana passada minha “aborrescente”, minha ex-caçula, estava lá no centro – eu tenho um boxinho e ela toma conta –, aí, meio-dia, quando ela ia subindo pra sair, eu disse: “Ei, moça, como é que faz, diz quando sai?” Aí ela disse: “Bênção, mãe!” E eu respondi: “Deus te abençoe!” Depois, eu fiquei pensando que tinha muita gente e eu chamei a atenção dela, não foi coisa de magoar, mas a gente faz cada uma, mas é uma coisa que sai de repente (Quarto Encontro).

A oscilação de Lígia diante de sua responsabilização por sua própria raiva pôde ser entendida como um movimento gradual que participou do desenvolvimento da capacidade dela em “lidar com o choque de reconhecer a existência de um mundo situado fora do seu controle mágico” (WINNICOTT, 2005, p.109). Além disto, como uma criança, Lígia precisou de “tempo para os processos de maturação”, a fim de tornar-se “capaz de ser destrutiva e de odiar, agredir e gritar, em vez de aniquilar magicamente o mundo” (WINNICOTT, 2005, p.109).

Durante todo o processo experimentado pela professora Ligia, evidenciaram-se efeitos subjetivos na posição da professora com relação ao grupo de reflexão. Mesmo continuando até o final com demandas de cobertura, ela pôde, ao utilizar-se do lugar de fala, estabelecida a confiança da preservação do outro e de si, encontrar acolhimento para seus afetos, o que favoreceu algum reconhecimento deles. No quinto encontro, por exemplo, valorizou o trabalho do grupo e, sobretudo, a escuta da coordenadora: “quinta-feira, a gente sabe que tem uma pessoa pra ouvir nossos problemas” (Quinto encontro). “A gente para mais pra ver o que tá acontecendo” (Quinto encontro).

 

Considerações finais

A partir dessas observações, as falas da professora Ligia e seus movimentos no (e diante do) grupo fazem-nos lembrar que “o que caracteriza a PI é a oportunidade para a mudança coletiva ou a criação de instituições em resposta às necessidades sentidas e às demandas expressas.” (THÉBAUDIN; OURY, 1995, p.150). Assim, o grupo teve a função de proteger a liberdade de expressão, lugar onde se pôde dizer qualquer coisa sobre indisciplina discente, sob a definição precisa dos lugares, limites e leis de funcionamento. Tais definições enquadraram o espaço que permitiu “a um grupo ajudar seus participantes a perseguirem sua tarefa em condições difíceis” (COLOMBIER; MANGEL; PERDRIAULT, 1989, p.132) – no caso da pesquisa aqui considerada, situações entendidas pelas professoras como indisciplina discente e consideradas por elas de difícil manejo.

Interpretamos a possibilidade de que os atos de fala acontecessem no grupo de reflexão por ter sido ele utilizado, pela maioria de suas participantes e na maior parte do tempo, como cobertura, de modo que as docentes puderam se valer das ocasiões para atuarem como unidades individuais, uma vez que os lugares de fala lhes propiciaram isso. No grupo de reflexão em questão, o lugar de fala permitiu entender o grupo como predominantemente funcionando na condição de cobertura para suas participantes e, algumas vezes, como unidade individual.

Vale lembrar que tanto Lígia (que muito utilizou o grupo de reflexão como lugar de fala para pedir cobertura) quanto outras professoras (que utilizaram o grupo como unidade individual) oscilaram em suas posições, durante o processo de formação, ora apelando ao grupo como cobertura (o que foi predominante), ora como unidade individual. Essa oscilação pareceu revelar tanto o crescimento no processo de gestão das próprias emoções – condição para o manejo pedagógico da indisciplina – quanto as eventuais resistências e regressões, vividas pelas docentes em situações de conflito para as quais não se sentiam preparadas.

O holding (WINNICOTT, 2010) – pontualidade, assiduidade, disponibilidade para a escuta analítica – garantiu não só o enquadre do lugar de fala – lei, lugar, limite e linguagem –, mas também a provisão de um ambiente necessário aos processos de desenvolvimento psicoafetivo das professoras, tendo por consequência um aumento na autoconfiança para gerir a indisciplina.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Katherinne Rozy Vieira Gonzaga
Praça João Brasil Mesquita, 19 – Miramar
58043-060 – João Pessoa/PB
Tel.: (83)3224-2504
E-mail: katherinnegonzaga@hotmail.com

Fernando Cézar Bezerra de Andrade
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58030-904 – João Pessoa/PB
Tel.: (83)3244-8056
frazec@uol.com.br

RECEBIDO: 16/08/2012
APROVADO: 21/08/2012

 

 

Sobre os Autores

Katherinne Rozy Vieira Gonzaga
Mestre em Educação (UFPB). Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba. Psicóloga Clínica. Especialista em Psicologia Clínica. Especialização na área da violência doméstica contra crianças e adolescentes.

Fernando Cézar Bezerra de Andrade
Doutor em Educação (UFPB). Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba. Professor do Departamento de Fundamentação da Educação/Centro de Educação/Universidade Federal da Paraíba.