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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.41 Belo Horizonte jul. 2014
História e genealogia do CPRS e do CBP1
History and genealogy of CPRS and CBP
Cleo José Mallmann
ICírculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
RESUMO
O autor faz um levantamento histórico e genealógico das instituições psicanalíticas que precederam nossa instituição, o Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul e o Circulo Brasileiro de Psicanálise, desde o grupo das quartas-feiras de Freud até hoje. Trata apenas das instituições que nos dizem respeito diretamente.
Palavras-chave: Caruso, História das instituições psicanalíticas, Genealogia das instituições psicanalíticas, Genealogia dos analistas do CPRS.
ABSTRACT
The author carries out a historical and genealogical survey of the psychoanalytical institutes that preceded our institute, Rio Grande do Sul’s Psychoanalytical Society and the Brazilian Psychoanalytical Society, from Freud’s Wednesday’s group up to the present day. It talks only about the institutes directly related to us.
Keywords: Caruso, Psychoanalytical Institutes History, Psychoanalytical Institutes, Genealogy, CPRS’s Analysts Genealogy.
Primórdios da história
Assim se inicia nossa história, a história do CPRS e a história de todas as instituições psicanalíticas, narrada pelo próprio Freud em História do movimento psicanalítico, de 1914:
A partir de 1902, alguns jovens médicos agruparam-se à minha volta com o objetivo bem determinado de aprender, exercer e divulgar a psicanálise. A iniciativa veio de um colega que em si próprio experimentara a eficácia do tratamento. Combinamos ter reuniões em minha casa, em dias determinados, para discutirmos de acordo com certas regras, procurarmo-nos orientar neste domínio ainda desconcertante e levar outras pessoas a partilhar de nosso interesse. Um dia, um jovem recém-diplomado por uma escola profissional veio procurar-nos com um manuscrito que dava provas de extraordinária compreensão. Aconselhamo-lo a seguir os estudos secundários, a frequentar a universidade e a consagrar-se às aplicações não médicas da psicanálise. Foi assim que Otto Ranck passou a ser o secretário ativo e dedicado de nosso grupo e o mais fiel de meus colaboradores (FREUD, 1914, p. 36).
O colega que sugeriu a reunião do grupo foi Wilhelm Steckel. De 1886, quando Freud abriu seu primeiro e único consultório na Berggasse n.º 19, em Viena, até 1902, ele foi o único analista, um analista isolado.
Em 1902 Freud, juntamente com Alfred Adler, Rudolf Reiter, Max Kahane e Wilhelm Steckel, iniciou as reuniões das quartas-feiras, ou a Sociedade Psicológica das quartas-feiras. Esse foi o primeiro círculo da história do movimento psicanalítico.
Dessas reuniões participavam homens de diversas áreas: médicos, a maioria, filósofos, artistas, educadores e, às vezes, até curiosos. Funcionava durante o ano letivo, sempre às 21 horas, acompanhada de café e charutos. O orador do dia era sorteado e depois se seguiam as discussões.
Em 1907 o grupo já contava com 22 membros ativos. Porém, Freud não via em todos o mesmo interesse. Assim, para resolver o problema, decidiu dissolver o grupo. Enviou uma circular a todos os membros propondo encerrar as reuniões das quartas-feiras para criar uma nova instituição. Com isso dava às pessoas que por algum motivo não mais se afinavam com o grupo a oportunidade de sair sem constrangimento. Aos sócios que desejassem continuar bastava mandar-lhe uma carta afirmativa.
O grupo reorganizado passou a se chamar Sociedade Psicanalítica de Viena (Wiener Psychoanalytische Vereinigung) em 1908.
Em 1904 Paul Federn e Wilhelm Steckel também começaram a psicanalisar. Em 1908 a metade do grupo, já com 38 membros, era analisada por Freud ou Federn. Diz Roudinesco:
As primeiras análises não comportavam um curso nem um princípio didático, e aqueles que as conduziam foram pioneiros de uma prática ainda não codificada. Inventaram dia após dia a prática psicanalítica, a clínica do tratamento, a exposição de casos e a concentração da doutrina (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 719).
Em outro texto, ao falar da análise didática, Roudinesco lembra:
O princípio da análise didática enraizou-se espontaneamente no cerne da Sociedade Psicológica das quartas-feiras, e depois foi sendo elaborado conforme as reflexões do movimento sobre a contratransferência. Não havendo nenhuma regra estabelecida, Freud e seus discípulos não hesitavam em aceitar em análise as pessoas íntimas (amigos, amantes, concubinas) ou os membros de uma mesma família (mulher, filhos, sobrinhos) e em misturar estreitamente as relações amorosas e profissionais. Foi assim que Jung tornou-se amante de Sabina Spielrein, Freud analisou sua própria filha e se viu implicado em um incrível imbróglio com Ruth Mack-Brunswick, Sandor Ferenczi foi analista de sua mulher e da filha desta, por quem se apaixonou, e Erich Fromm tornou-se terapeuta da filha de Karen Horney, de quem tinha sido companheiro (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 17).
E Paul Federn casou-se com uma de suas analisandas. No grupo das quartas, até 1907, todos eram obrigados a falar. A partir daí, na Sociedade Psicanalítica de Viena só alguns falavam, e os alunos escutavam. Afirma Roudinesco (1998, p. 719): “A febre dos primórdios dissipou-se em benefício da razão institucional. A academia sucedeu ao banquete”.
Em 1910 a Sociedade Psicanalítica de Viena foi oficializada, integrada à IPA, fundada no mesmo ano. Diz Roudinesco (1998, p. 720): “A academia havia se transformado numa instituição às voltas com disputas de escola”. Em seguida viriam as dissidências: Adler (1910), Jung (1913) e Steckel.
Até 1910 as reuniões ainda eram na casa de Freud. A partir desse ano passaram para outro lugar mais amplo. Em 1910 já havia 58 membros: 57 homens, a maioria judeus austríacos, e somente uma mulher, a médica Margarete Hilfending. Anna Freud ingressou em 1922. Mais adiante, com a invasão da Áustria pelos alemães, os que não conseguiram fugir morreram nos campos de concentração. Aliás, o próprio Freud perdeu suas quatro irmãs nos campos de concentração, e sua filha Anna Freud foi presa pela Gestapo por breve período, o que contribuiu para que Freud decidisse sair de Viena.
Essa parte histórica dos primeiros tempos da psicanálise se conhece hoje graças às atas escritas minuciosamente por Otto Ranck, secretário do grupo de 1908 a 1918. Freud conservou essas atas e as entregou a Federn para guardá-las. Este por sua vez as confiou a Herrmann Nunberg.
Sobre a questão da análise pessoal (ou análise didática) como condição para ser analista, Jung escreveu em 1912, mesmo ano em que Freud fez Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. E no congresso da IPA em 1919, em Budapest, Hermann Nunberg foi o primeiro a propor a obrigatoriedade da análise didática. Mas a ideia não foi aceita, e a votação impedida por Ranck e Ferenczi. Em 1920 o Instituto Psicanalítico de Berlin adotou essa norma. E somente em 1925, no congresso de Nurenberg, Max Eitingon tornou obrigatórias para todas as sociedades pertencentes à IPA a análise didática e a supervisão.
IPA (International Psychoanalytical Association)
Em 1908 reuniram-se, no encontro dos psicólogos freudianos, em Salzburg, 42 pessoas de diferentes países: Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Suíça, Hungria e Áustria. Dois anos após foi considerado como o primeiro congresso de psicanálise.
Em 1910, no congresso de Nurenberg, por iniciativa de Freud e Ferenczi, criou-se a IPA, órgão agregador e normatizador de todos os grupos existentes. O primeiro presidente foi Jung, ideia de Freud com a intenção de expandir a psicanálise fora da Áustria e tirá-la do círculo judaico.
De 1910 a 1925 a IPA foi apenas um órgão coordenador dos grupos. Em 1925 passou a ser normatizador. Foi nesse ano que se introduziu a obrigatoriedade da análise didática e da supervisão
De l910 a 1936 a IPA conservou seu nome em alemão: Internationale Psychoanalitische Vereinugung (IPV). Como na década de 1930 havia grande migração para a Inglaterra e Estados Unidos, alterou-se o nome para o inglês: International Psychoanalitical Association.
Comitê secreto
O Comitê Secreto foi criado em 1912 por iniciativa de Ernest Jones e dissolvido em 1927. O objetivo do comitê era assegurar a unidade do movimento e a absoluta fidelidade à doutrina de Freud. Faziam parte do grupo: Freud, Karl Abraham, Hans Sachs, Otto Ranck, Sandor Ferenczi e Ernest Jones.
Instituto Imperial para Investigação Psicológica e Psicoterapia
Na época da guerra, através do psiquiatra Auersperg, da clínica neurológica em que trabalhava, Caruso tomou conhecimento do Instituto Imperial para Investigação Psicológica e Psicoterapia de Viena. Como a WPV (Sociedade Psicanalítica de Viena) havia sido extinta por causa da perseguição aos judeus, esse instituto alemão era o local onde se podia ensinar e praticar a psicanálise desde que Freud não fosse explicitamente mencionado, uma vez que ele era judeu e persona proibida. Os analistas judeus aí não eram aceitos. E uma vez que todo o sistema de saúde na Áustria era controlado pelos nazistas, os analistas judeus tiveram que emigrar ou foram presos, ou viviam clandestinamente.
August Aichhorn (1878-1949) era vienense, socialista, cristão. Professor e pedagogo, dedicou-se ao cuidado e ao estudo da delinquência juvenil. Foi diretor de dois institutos dedicados aos cuidados juvenis. Fez análise com Paul Federn e entrou no grupo de Freud, a Sociedade Psicanalítica de Viena (WPV), em 1922, mesmo ano em que ingressou Anna Freud (por quem Aichhorn se apaixonou, mas só confessou isso antes de morrer). Coordenava um grupo de estudos sobre delinquência e escreveu um livro sobre o tema prefaciado por Freud.
Aichhorn permaneceu em Viena porque seu filho fora preso no campo de concentração de Dachau. De 1938 a 1944 dirigiu como “psicólogo clínico” a formação psicanalítica no Instituto Alemão de Pesquisas Psicológicas e Psicoterapia, criado por Mathias Heinrich Göring.
Em seguida à fundação, veio de Berlin para ensinar no Instituto Alemão de Viena Victor Emil Freiherr Von Gebsatel (1883-1976). Ele fizera sua análise e formação com Leonard Seif, analisando de Jung e do grupo de freudianos. Gebsatel tivera contato com Freud no congresso de 1913. Era da nobreza, católico, não apoiador do nazismo e conhecedor da filosofia cristã. Aichhorn e Gebsatel eram os principais coordenadores da formação neste instituto (análise, supervisão e seminários).
Foi justamente nesse período, enquanto trabalhava na Clínica Neurológica Marie-Theresie Schlössel, sob a coordenação do psiquiatra Auersperg, que Caruso fez sua formação no Instituto Alemão de Viena. Inicialmente fez análise com Aichhorn, por um ano e depois com Gebsatel.
Acrescenta Huber (1980, p. 6): “Após a guerra achou-se Caruso evidentemente não mais pertencente ao círculo de outrora grupo de trabalho do Instituto Imperial, o qual imediatamente gerara a WPV”.
Reestruturação da Wiener Psychoanalytische Vereinigung (Sociedade Psicanalítica de Viena)
Com o advento da II Guerra Mundial e a perseguição nazista a partir de 1938, saíram da Áustria 68 analistas sócios da Sociedade Psicanalítica de Viena e 38 candidatos. O próprio Freud emigrou para Londres. Com isso a Sociedade Psicanalítica de Viena cessou.
Quando Freud parte em 1938 para Londres, antes de tirarem tudo de sua casa, August Aichhorn pediu a um fotógrafo, Edmund Engelman, para fotografar toda a casa. Graças a esse gesto temos fotos de como era sua casa, em especial seu local de atendimento, testemunhando 47 anos da dedicação de Freud à ciência, à arte e à cultura. Em seguida a casa foi esvaziada e em 1969 transformada em museu com as fotos e alguns objetos.
Freud ainda era vivo quando o governo de Viena propôs dar seu nome à Rua Berggasse, mas Freud declinou da oferta. No pós-guerra Freud foi esquecido a ponto de as pessoas não lembrarem onde ficava sua casa.
No final da guerra, em 1946, o grupo de analistas do Instituto Alemão queria reconstruir a WPV e restabelecer a filiação à IPA, mas a IPA fez exigências muito fortes: que todos os analistas tivessem a formação segundo seus padrões. Assim, todos os membros do Instituto teriam que comprovar sua formação. Os que não conseguiram ou não queriam refazê-la não foram aceitos na WPV refundada. Caruso fizera sua formação nesse instituto, tendo como analistas por um ano Aichhorn e depois Gebsatel.
As lideranças na reconstrução da WPV, segundo Roudinesco, foram:
• August Aichhorn, que participou do grupo de Freud desde 1922 e foi um dos líderes na fundação e no funcionamento do Instituto Alemão;
• Barão Alfred Von Winterstein, que já participara da WPF de Freud desde 1910. Durante a guerra teve seus livros confiscados;
• Conde Wilhelm Solms-Rödesheim;
• Conde Igor Caruso;
• Anna Freud.
Há aqui uma controvérsia que as referências históricas e testemunhas pessoais não elucidam. Embora Roudinesco afirme que Caruso tivesse participado da reconstrução da WPV, outros dados apontam que ele não foi aceito na sociedade por causa de sua estreita relação com o psiquiatra Auersperg, filiado à SS (diretor da clínica neurológica Marie-Theresie, na qual Caruso trabalhou durante todo o período de sua formação). Outra versão é que Caruso não aceitou as exigências excessivamente médicas da IPA e, por isso, não continuou na WPV. A Dra. Edith Frank-Rieser, do Círculo Psicanalítico de Innsbruck (estudou em Salzburg na década de 1960 e foi assistente de Caruso até 1976), até hoje não conseguiu elucidar essa controvérsia histórica. Ela afirma: ”Caruso pessoalmente não conseguiu se adaptar bem às novas condições – ele não aceitava a ‘ortodoxia’ da educação psicanalítica sem diálogo com o humano e as ciências filosóficas, teológicas e comportamentais” (FRANK-RIESER, 2013).2
Wiener Arbeitskreis für Tiefenpsychologie, WATP (Círculo de Psicologia Profunda de Viena)
Hubert escreve sobre o Círculo de Viena em seu livro Psicanálise na Áustria desde 1933 (Psychoanalyse in Östereich seit 1933):
Em 1950, na Revista Vienense de Psicologia Prática, encontra-se uma nota: desde 1945 realizou-se um seminário de psicologia profunda sob a direção do Dr. Igor A. Caruso, que agora se constitui no Círculo Vienense de Estudos de Psicologia Profunda (HUBER, 1980, p. 5).
Segundo Roudinesco, o Círculo de Psicologia Profunda foi fundado em 1947 por iniciativa de Igor Caruso e do diretor da clínica onde Caruso trabalhara como psicólogo (Clínica Marie-Therese-Schlössel), Dr. Alfed Auersperg. Era um círculo no qual se discutiam casos clínicos de maneira informal, sem hierarquia. Alguns componentes do grupo: Igor Caruso, Alfred Auersperg (cristão), Pe. Bichlmeier, Pe. Coreth, Niedermeier (cristão), Gebsatel (analista cristão, ex-analista de Caruso), Afonse Moeder (analista existencial), Wilfried Daim.
Roudinesco escreve que Caruso criou um novo grupo, o WATP, saindo da WPV porque esta lhe parecia excessivamente médica e atrelada às normas rígidas da IPA. No dizer do site do Círculo Psicanalítico de Viena, Caruso não teria sido aceito na WPV por causa de sua estreita relação com Auersperg. Outro dado desencontrado é que Auersperg seria um dos fundadores do Círculo de Viena em 1947, quando na verdade emigrou para o Brasil em 1946. Deduzo que ele apenas participava do grupo de discussões de Caruso antes da fundação.
Huber afirma convicto falando do Círculo:
Na sua história espelha-se um bom pedaço da ocupação com questões de psicanálise como ela se processava fora da Associação Psicanalítica de Viena. O Círculo de Estudos representa muitas vezes francamente um aglomerado de pessoas que pelos motivos os mais diversos não podiam filiar-se à Sociedade Vienense (HUBER, 1980, p. 5).
A esse novo grupo, o Círculo, cabia a tarefa de desenvolver as noções de psicologia profunda e seu emprego na educação, na psicologia aplicada, na medicina, na sociologia, etc. O grupo consistia em sua maior parte de jovens assistentes, psiquiatras, psicólogos, além de teólogos que se encontravam quinzenalmente, às quartas-feiras. O grupo variava de 8 a 15 pessoas e era aberto a não membros. Escreve Huber (1980, p. 7):
O atrativo do grupo parece, por um lado, ser devido à estrutura amplamente informal e à sua franca receptividade na organização; por outro lado, era muito apreciado o nível exigente do círculo de discussões, o qual sabia criar uma atmosfera agradável, cultural e intelectual; para muitos, entretanto, era demasiadamente católico.
Segundo Rogério Amoretti (1992, p. 119), é preciso lembrar que durante o tumulto da guerra
[...] a igreja católica, poderosa na Áustria, foi talvez a única instituição de envergadura que pode oferecer certa resistência, não isenta de riscos, aos nazistas, permitindo também um relativo abrigo aos profissionais da saúde mental que não desejavam ‘colaborar’.
Mesmo no período inicial do pós-guerra, a hostilidade para com os discípulos de Freud não cessou de imediato. Até 1950 havia membros frequentando as duas sociedades. Nesse ano se deu uma separação formal da Sociedade Psicanalítica de Viena, ou seja, os membros da WPV não mais frequentavam os encontros do Círculo (WATP). Ao longo da década de 1950, o Círculo foi se estruturando e em 1954 tornou-se sociedade civil com permissão da Segurança de Viena. Era formada por sócios efetivos e sócios extraordinários (aqueles que não haviam feito formação, mas eram colaboradores). Além dessas duas categorias, havia os membros correspondentes e simpatizantes, com alguma ligação com o Círculo por cursos, palestras, etc. Lacan era sócio correspondente.
Na ebulição do período pós-guerra, as diretrizes da crítica radical a qualquer ortodoxia ou dogmatismo transformaram o Círculo em um centro de variada riqueza de estudo, onde psicanálise, psicologia analítica e existencial, ecumenismo, psicologia genética, etologia, antropologia, filosofia, psicopedagogia etc. são abordados de forma sistemática e ampla, atraindo a atenção e participação, em maior ou menor grau, de celebridades como Konrad Lorenz, Jean Piaget, J. Nuttin, Lacan, entre outros (AMORETTI, 1992, p. 119).
Por ocasião do Congresso de Insbruck, em 1950, os Círculos de Psicologia Profunda estabeleceram em conjunto as regras gerais de formação. Escreve Huber (1980, p. 7):
O alvo da formação é o enriquecimento da personalidade, a extensão dos conhecimentos genéricos e a aquisição de conhecimentos da prática psicológica. A análise didática e os seminários de formação eram o meio para isso. Cada Círculo de Estudos que preparava os candidatos devia, no curso de 3 anos, realizar 6 seminários de formação. Ao lado disso deve decorrer uma prática e uma análise de controle.
Aqui já fica claro o tripé da formação: análise pessoal, estudo teórico e supervisão. Se o grupo fosse capaz de cumprir tais regras, poderia se constituir como Círculo de Estudos de Psicologia Profunda e se tornar um grupo oficialmente reconhecido. Em 1957 já eram 31 analistas sócios e 38 em 1958.
O Primeiro Círculo fora da Áustria foi o nosso: Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul, em Pelotas. Depois vêm outros países como Colômbia (Caruso ficou por meio ano em Bogotá), México, Alemanha, Suíça, Argentina e na própria Áustria onde, além de Viena, se formaram mais três sociedades (Salzburg, Innsbruck e Linz e Graz.
No primeiro congresso internacional dos Círculos de Psicologia Profunda, em 1966, havia 10 grupos representados por 74 delegados. Criaram a Federação Internacional dos Círculos de Psicologia Profunda (FICPP), extinta após pouco tempo de duração.
A Dra. Edith lembra que, por ter essa formação com viés cristão, Caruso foi aceito pelas instituições cristãs. Isso fez com que também teólogos, tanto da Áustria quanto posteriormente da América, procurassem Caruso para análise e formação. E Malomar Lund Edelweiss, fundador do Círculo do Rio Grande do Sul e do CBP, era um deles.
Um grupo de estudos que surgiu de maneira informal e que se propôs o estudo e o aprofundamento da ideologia da psicologia profunda, “o Círculo de Viena sofreu um processo variado de desenvolvimento, tornando-se uma escola a qual assumiu, junto com a Sociedade Psicanalítica de Viena, a manutenção da tradição da psicanálise de Freud na Áustria” (HUBER, 1980, p. 7).
O nome “psicologia profunda“ é um termo do próprio Freud para designar a psicanálise. Passou-se a usar esse termo em virtude da rejeição ao nome psicanálise e a tudo o que dizia respeito a Freud durante a guerra.
Progressivamente, ao longo dos anos, Caruso abandonou sua atitude eclética em relação à prática e à teoria psicanalítica e se tornou progressivamente materialista-dialético e freudiano.
IFPS (International Federation of Psychoanalytic Societies)
Em 1962 aconteceu o primeiro fórum de psicanálise das sociedades não filiadas à IPA em Amsterdam. Foi considerada a primeira reunião de grupos psicanalíticos autônomos fora da IPA. Numa reunião dos presidentes de quatro sociedades, foi criada a International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS) ou Federação Internacional das Sociedades Psicanalíticas:
• Círculo Psicanalítico de Psicologia Profunda de Viena, sob liderança de Caruso;
• Deutsche Psychoanalitische Geselschaft - sociedade alemã fundada em 1910 e isolada da IPA durante a guerra; tem forte influência da escola neopsicanalítica de Berlin, de Schultz-Hencke;
• Sociedad Psicoanalítica Mexicana, sob a liderança de Erich Fromm;
• William Alonson White Psycoanalytic Society, onde circulam as ideias de Harry Stack Sullivan, Frieda Fromm Reichmann, Karen Horney e outros da escola cultural.
O propositor da IFPS era Erich Fromm, excluído da IPA em 1956 e fundador da Sociedade Mexicana.
Sua fundação pelas quatro instituições
[...] foi guiada pelo objetivo de incrementar contatos científicos e pessoais, bem como a busca de caminhos entre os membros da IFPS, através da promoção da livre discussão sobre a teoria psicanalítica e a prática em publicações conjuntas, bem como a troca de experiências no que diz respeito à formação profissional (IFPS, 2004, p. 7).
Círculo Brasileiro de Psicanálise e Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
Com seu livro Psicanálise e síntese da existência, Caruso (1952) se tornou conhecido e atraiu pessoas de toda parte para fazer formação em Viena. Embora seja por muitos considerado um livro importante, o próprio Caruso o considerou superado por ocasião de sua estada no Brasil.
Malomar Lund Edelweiss soube de Caruso em 1953, através do psicólogo psicanalista húngaro-argentino Bela Szekely, em sua passagem por Pelotas. Atraído por esse novo viés da psicanálise do grupo vienense que se propunha incluir na visão do homem a dimensão filosófica e religiosa, Malomar, então diretor da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Pelotas, e Gerda Kronfeld, enfermeira de nacionalidade austríaca, foram a Viena por dois anos para se analisar com Caruso e fazer a formação.
Em 1956 trouxeram Caruso para uma série de palestras. Ele veio com sua esposa. Ficou por cinco semanas no Brasil fazendo palestras em Pelotas, na PUC de Porto Alegre e na PUC de São Paulo. Na ocasião, em setembro de 1956, fundaram o Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda. Muitos presentes assinaram a ata, mas destacamos os principais continuadores:
• Malomar Lund Edelweiss, padre, filósofo, teólogo, psicólogo; em seu retorno de Viena, funda a Faculdade de Psicologia da Universidade Católica de Pelotas;
• Francisco Dias da Costa Vidal, educador, psicólogo;
• Siegfried Kronfeld, austríaco, médico psiquiatra; havia sido diretor de uma clínica psiquiátrica em Viena;
• Gerda Kronfeld, austríaca, enfermeira;
• Pe. Géza Kövecses, jesuíta como Malomar.
Em seguida se formou um grupo de estudos em Porto Alegre, todos médicos: Alberto Ribeiro, Paulo Brandão, Nilo Fichtner e Mariano Henzel, grupo coordenado por Malomar.
Em 1963, com a ida de Malomar para Minas, o casal Kronfeld se transferiu de Pelotas para Porto Alegre e assumiu a coordenação do Círculo, que passou a ter sua sede em Porto Alegre.
Em l963 Malomar foi convidado por colegas de estudo de Roma (Bispo D. Serafim e Francisco Viegas) para iniciar um grupo de estudos e formação em Belo Horizonte. Algum tempo depois de se estabelecer em Belo Horizonte, Malomar novamente trouxe Caruso para cursos, análise e supervisão. Caruso ficou em Belo Horizonte nos anos 1968 e 1969.
Carlos Pinto Corrêa, que fez formação com Caruso nesse período em Minas, tem um interessante depoimento numa entrevista:
O grande legado de Caruso é a fidelidade a Freud e a liberdade para que cada pessoa faça seu próprio trajeto intelectual [...] Quem soube se aproximar dele e estar um pouco mais perto teve a oportunidade de conviver com um homem de profundidade sem limites (CORRÊA, 2013).
Em 1970 o CBP se filiou à IFPS. Em 1998, em reunião de delegados em Porto Alegre, o CBP oficializou sua desfiliação da IFPS. No entanto, algumas instituições isoladamente decidiram continuar filiadas: os Círculos de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, de Sergipe e da Bahia. Essa filiação se deu através do nome do Círculo de Minas Gerais. É interessante notar que, das cinco instituições que votaram pela saída da IFPS, três delas também se desfiliaram posteriormente do CBP.
Por ocasião do Congresso do CBP em Salvador, em 2002, quando GREP e o IEPSI já haviam se desfiliado do CBP, perguntei à Ângela Porto, ex-presidente do CBP, o motivo das desfiliações. Ângela respondeu que uma instituição que não conhece sua história, sua origem não tem motivação para continuar a pertencer a ela. Entre outras, talvez fosse uma das razões.
A partir de 1968, o CBP publica uma revista anual: Estudos de Psicanálise. A partir de 2011 passa a ser bianual. Em 1971 o Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda mudou seu nome para Círculo Brasileiro de Psicanálise. Igualmente as unidades nos estados passaram a se chamar “Círculo”: o nosso, Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
De Belo Horizonte o Círculo se expandiu para o Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Aracaju, João Pessoa e Natal. Em Belo Horizonte chegou a formar três grupos. Dessa forma, o Círculo Brasileiro se constituiu de 9 instituições com aproximadamente 300 sócios. Atualmente temos 6 unidades e 138 sócios.
Organograma Histórico do CBP e CPRS
Genealogia dos Analistas do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul*
Igor Alexander Caruso, Conde
Nasceu em 4 de fevereiro de 1914, em Tiraspol, sul da Rússia, hoje Moldávia. Faleceu em 28 de junho de 1981, em Salzburg, Áustria.
a) Juventude
O Conde Igor A. Caruso descendia de família ítalo-russa aristocrática. Por ocasião da revolução russa de outubro, teve de emigrar para a Bélgica. A partir dos 12 anos cresceu junto aos padres de lá. Estudou psicologia na universidade de Louvain graças a uma bolsa de estudos. Obteve seu doutorado em 1937 (com 23 anos) com o tema A noção de responsabilidade e de justiça imanente à criança (La notion de responsabilité et de justice chez l’enfant).
Após a formação, trabalhou na Bélgica em consultório educacional. Aí conheceu também sua primeira esposa, Irina Grauen, natural da Estônia, que estudava na Bélgica. O casamento se deu na Estônia, na casa dos pais dela, em 1939. Porém, como consequência da guerra, rompeu-se o pacto entre Hitler e Stalin, e a Estônia foi anexada à Rússia. Caruso e Irina não conseguiram mais voltar para a Bélgica. Fugiram para um campo de refugiados em Neresheim, na Alemanha, onde nasceu e morreu sua filha.
b) Guerra e pós-guerra
Em 1942, graças à ajuda do cunhado, um alemão funcionário da SS, casado com a irmã de Irina, Caruso e a esposa conseguiram emigrar para Viena. Inicialmente trabalhou na clínica neurológica Am Spiegelgrund, como psicólogo assistente, em testes, sob a coordenação dos médicos nazistas Ernst Illing e Heinrich Gross, no pavilhão 15 e 17 (setor de “medidas de extermínio” e “cuidados com a herança e a raça”).
Edith Frank-Rieser (2013), assistente de Caruso e estudiosa da história do Círculo de Viena, afirma:
Caruso logo se deu conta de que as crianças deficientes ou com retardo mental, com habilidades educacionais deficientes, iam morrer. Ficou aí somente sete meses e saiu tão logo foi possível. Também nunca participou de partido nazista. Afinal, era um imigrante russo e, como tal, também era observado.3
Em seguida foi trabalhar na clínica neurológica Nervenheilanstalt Döbling, Marie-Theresien Schlössel, sob a coordenação do psiquiatra A. Prinz Auersperg (era membro da NSDAP e da SS, mas não participava do programa de eutanásia, segundo a Dra. Edith). Era um psiquiatra interessado no tratamento psicoterápico de seus pacientes. Caruso foi aceito como psicoterapeuta não médico clínico, o que só era permitido por delegação de um médico, no caso Auersperg. Ali participava do grupo de discussão dos casos clínicos. Aqui novamente a Dra. Edith (2013) relata:
Caruso sabia da necessidade de todos os psiquiatras deste tempo elaborarem diagnósticos mais leves, mais otimistas, para que seus pacientes se mantivessem longe do sistema lógico da ‘vida sem valor’. E ele conseguia seguir isto nesta clínica, conforme consta em suas anotações.4
Durante este período de trabalho na clínica neurológica, Marie-Theresie concomitantemente participava do Instituto Alemão, onde fez sua formação com Aichhorn e Gebsatel. Conforme Edith Frank-Rieser (2013),
[...] após a guerra, fechado o Instituto Alemão, Caruso formou um grupo aberto de discussão em sua clínica, uma tarde por semana, na qual participavam os colegas do extinto Instituto e outros profissionais de saúde e ciência, inclusive Auersperg (que emigrou para São Paulo em 1946, depois USA e Chile). Por muito tempo, membros da refundada WPV participaram deste grupo até se retirarem. O objetivo do encontro aberto era uma troca interdisciplinar sobre os aspectos da psicanálise, não só no entendimento freudiano. Muitos colegas não médicos permaneceram com Caruso e, em 1947, fundaram o Círculo de Psicologia Profunda.4
Observação: Há um documentário sobre Caruso com depoimentos de analistas que conviveram com ele, feito em 2008, na Áustria, falado em alemão-austríaco: Igor A. Caruso - Wiederholen, Erinnern, Durcharbeiten, do diretor Michael Kolberger. O filme está disponível na secretaria do CBP. A tradução dos depoimentos do documentário sairá em breve na revista Estudos de Psicanálise.
Referências
AMORETTI, R. Labirinto da identidade: fragmentos da história do CBP. Estudos de Psicanálise, Recife, n. 14, p. 113-23, 1992. [ Links ]
ANDRADE, H. W. M. História do Círculo Brasileiro de Psicanálise. XVI Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, Natal (RN), 2006, 1 DVD. [ Links ]
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Endereço para correspondência
Praça Dom Feliciano, 26/304 - Centro Histórico
90020-160 - Porto Alegre/RS
E-mail: cjmallmann@hotmail.com
Recebido: 10/03/2014
Aprovado: 31/03/2014
SOBRE O AUTOR
Cleo José Mallmann
Psicólogo. Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
1 Trabalho apresentado na jornada comemorativa dos 57 anos do CPRS (14 set. 2013).
2 Tradução do autor.
3 Tradução do autor.
4 Tradução do autor.