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Estudos de Psicanálise
versión impresa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.42 Belo Horizonte dic. 2014
Os sentidos da saúde na obra de Donald Winnicott
The meanings of health in Donald Winnicott’s work
Rafaela Mota Paixão FrançaI; Maria Consuêlo PassosII; Zeferino RochaI, II
I Círculo Psicanalítico de Pernambuco
II UNICAP
RESUMO
Pretende-se neste ensaio abordar os sentidos da palavra “saúde” na obra de Donald Winnicott, com o objetivo de mostrar a sua complexidade conceitual e suas relações com o processo de amadurecimento.
Palavras-chave: Saúde, Doença, Teoria do amadurecimento, Criatividade.
ABSTRACT
It is intended in this essay to address the sense of the word ‘health’ in the work of Donald Winnicott, as the aim of showing its conceptual complexity and its relations with the ripening process.
Keywords: Health, Disease, Theory of maturation, Creativity.
Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós certas pequenas loucuras.
MARCEL PROUST
Introdução
A noção de saúde esteve, durante muito tempo, marcada por críticas e controvérsias no que se refere a sua definição e às expectativas sociais produzidas a partir dela. Historicamente observou-se uma evolução conceitual importante no que se entende por saúde e doença quando essas concepções, antes marcadas pela hegemonia do naturalismo e da biologia, foram colocadas em questão, passando a ser problematizadas em diferentes áreas do conhecimento. Os desdobramentos desses debates resultaram, então, numa modificação significativa na definição de saúde, que foi ampliada frente ao destaque que os aspectos culturais e contextuais assumiram.
Sob o prisma das ciências sociais, das ciências naturais, da psicanálise ou e da filosofia, por exemplo, a definição de saúde não encontra uma univocidade conceitual ainda hoje. Dessa forma, é possível dizer que os sentidos da palavra “saúde” sempre foram relacionados aos diferentes contextos históricos e ao panorama aberto pelas leituras sob as quais foram analisados, sendo, portanto, fundamental que seja considerada a perspectiva epistemológica e a filiação teórica de um estudo que enseja essa noção.
No presente trabalho não nos debruçamos sobre o debate epistemológico a respeito da saúde, tampouco sobre a redefinição do seu conceito. Nosso objetivo foi compreender a utilização do conceito de saúde feito por Donald Winnicott em seus escritos, com a finalidade de debater a complexidade de sua formulação, mostrando como esse autor contribuiu para uma reflexão positiva acerca da saúde. Caminhamos pelas trilhas do paradigma psicanalítico, mais precisamente, acompanhamos o desenvolvimento desse conceito na obra do referido autor, numa tentativa de sistematização dos textos em que encontramos pistas da trajetória seguida para formular a concepção de saúde psíquica presente em sua obra.
Estudiosos da obra de Winnicott rapidamente compreenderam que, pelo seu estilo de escrita e pela sua forma de apresentação teórica – geralmente marcadas pela sua experiência clínica e apresentadas em conferências de rádio ou palestras que proferia –, a teoria winnicottiana se diferenciava daquilo que era produzido pela psicanálise até então. Essa diferença deu margem, por exemplo, a que a sua teoria fosse considerada simplista ou sem uma unidade teórica.1 Embora esse ensaio não se proponha a desenvolver as críticas que envolvem essa questão, reconhecemos o quão difícil pode ser a delimitação de determinadas conceituações em sua obra frente a sua maneira livre de desenvolvimento teórico. Por ora, gostaríamos de destacar a importância desse esforço de sistematização na medida em que a noção de saúde, tal como foi formulada pelo autor, apresenta uma construção muito peculiar e de impacto importante na clínica psicanalítica. Tendo como referência as significativas contribuições do psicanalista britânico, pensamos poder refletir sobre os ideários de saúde que marcam a atualidade. Foi nosso propósito investigar: em que aspectos essa concepção de saúde pode ser entendida como inovadora e como Winnicott definiu o conceito de saúde psíquica em sua obra. Lançamos como questões: Pode-se dizer que há uma unidade teórica quanto ao sentido da palavra saúde em sua obra? Como as formulações winnicottianas podem nos ajudar a entender a busca pela “saúde perdida”2 na contemporaneidade?
Seguimos, como roteiro metodológico, alguns artigos espalhados pela obra de Winnicott, cujas proposições argumentativas possibilitaram ao autor introduzir, ou complementar, a sua noção de saúde. Sempre que possível, fizemos uma análise cronológica dos textos, com o intuito de facilitar ao leitor a visualização da sua trajetória, tentando ressaltar os aspectos significativos desse material, bem como os pontos de conexão, similitudes e complementaridades existentes entre eles. A atualidade das formulações winnicottianas explica por que os seus escritos vêm sendo constantemente revisitados, sobretudo, quando se trata da psicanálise de crianças. Um mergulho na obra desse autor, portanto, justifica-se como uma tentativa de acompanhar o percurso que empreendeu, percorrendo os meandros de cada produção, com a finalidade de contribuir ao estudo do sofrimento psíquico.
Saúde e normalidade
A elucidação do conceito de saúde psíquica, ainda que não corresponda ao conceito-chave da psicanálise winnicottiana, é um aspecto emblemático da formulação de sua teoria do amadurecimento pessoal normal. De maneira geral, podemos dizer que sua concepção de saúde e doença está atravessada pela noção de indivíduo saudável, que, por sua vez, corresponde à capacidade de adequação entre a maturidade emocional e a idade cronológica.
Contudo, antes que a sua formulação relativa à saúde encontre sentido na perspectiva da maturidade individual, ou seja, na teoria do amadurecimento, pode-se dizer que Winnicott introduziu a sua proposição sobre esse conceito a partir de um alargamento na concepção de normalidade. Em 1931, quando escreve Nota sobre normalidade e ansiedade, ele assinala a complexidade de um estudo relativo ao tema. Na ocasião, ele diz que “às vezes pode ser mais normal para uma criança estar doente do que estar bem” (WINNICOTT, [1931] 2000, p. 58), demonstrando um entendimento muito diferente das perturbações (físicas ou emocionais) que podem acometer as crianças. Winnicott fundamenta a sua assertiva na ideia de que haveria um mal-estar normal vivido por toda criança; mal-estar esse, inclusive, que pode ser expresso na forma de um sintoma físico, mas que decorreria de conflitos emocionais – como uma espécie de sinal de que a saúde psíquica não estaria bem.
Nesse trabalho, Winnicott elabora uma série de proposições que estão relacionadas à ansiedade na infância: sintomas físicos que são acompanhados pela ansiedade e que costumam provocá-la; desde ansiedades que resultam de mudanças ambientais às doenças físicas que seriam mascaradas pela ansiedade. Entretanto, o que fica mais evidente em sua apresentação corresponde não apenas ao fato de que Winnicott relativiza as causas da ansiedade, mas, especialmente, à maneira como redimensiona o papel da criança em sua existência, na medida em que ressalta “que muita coisa depende da capacidade da criança para tolerar o nível de ansiedade” (WINNICOTT, [1931] 2000, p. 71). Ou seja, o autor acena para o lugar de implicação da criança frente ao seu sintoma.
Nessa época, embora escrevendo como pediatra, Winnicott demonstra a grande influência que recebeu do esquema teórico da psicanálise: os aspectos inconscientes e o sentimento de culpa já estão em pauta em suas proposições. No que se refere à definição de saúde, mesmo que não explicitamente descritos, existem indícios de que a resposta (saudável ou não) ao ambiente decorre de aspectos singulares, mas não parece ainda desenvolver esse conceito a partir do axioma da teoria do amadurecimento do indivíduo, tal como fará pouco depois. Nesse momento, Winnicott parece muito mais preocupado em desfazer a relação direta entre normalidade e saúde, do que em afirmar que a saúde decorreria de conquistas adquiridas com a maturidade.
O sentido de saúde, então, parece significar algo que não se resume ao oposto de anormalidade. Em outras palavras, fica evidente a tentativa de Winnicott de propor uma separação desses conceitos, quando esclarece que uma diminuição da saúde, quando resultante de questões emocionais, não é necessariamente indicativa de anormalidade no indivíduo. Para ele:
Apesar de ser possível admitir que um mau estado de saúde pode ser normal, é legítimo, por outro lado, utilizar a perturbação da saúde física como um indicador de que a saúde psicológica vai mal, e dizer que as dificuldades de uma criança tornaram-se patologicamente intensas quando seu estado físico apresenta problemas que, direta ou indiretamente, a saúde – ou mesmo a própria vida – sofrem uma ameaça mais do que apenas temporária (WINNICOTT, [1931] 2000, p. 60).
Em alguns dos seus escritos, entretanto, essa relação entre normalidade e saúde não parece ter o mesmo destino, qual seja, ser cuidadosamente dissociados. Isso pode ser observado, por exemplo, em seu texto A mente e sua relação com o psicossoma. Apresentado em 1949 à sessão médica da British Psychological Society, o trabalho teve como objetivo, entre outras coisas, propor uma teoria da mente. Nele Winnicott começa a apresentar a sua elaboração da noção de “continuidade da existência”, demarcando a sua posição no que se refere às influências da saúde no desenvolvimento do psicossoma. É possível perceber também como aparecem com todo vigor, as formulações do autor sobre o papel do ambiente na adaptação às necessidades do bebê – que corresponde, em suas palavras, a um “recém-criado psicossoma”.
O ambiente perfeito é aquele que se adapta ativamente às necessidades do recém-criado Psicossoma, esse que, enquanto observadores, sabemos ser um bebê que acabou de nascer (WINNICOTT, [1949] 2000, p. 334).
Parece intrigante, contudo, como em algumas passagens desse texto Winnicott tomou a definição de saudável como sinônimo de normalidade, escorregando no automatismo da relação de sobreposição entre esses dois conceitos. Tal como pode ser observado neste trecho: “O estudo dessas tendências anormais deve preceder o exame mais direto da mente enquanto especialização da psique saudável ou normal”. E mais adiante, seguiu comentando:
[...] os neurocirurgiões vêm agindo sobre o cérebro normal ou saudável na tentativa de modificar ou melhorar os estados mentais (WINNICOTT, [1949] 2000, p. 333, grifo nosso).
Exemplos como esse nos permitem pensar que, no momento em que tomou dessa forma tais conceitos, mesmo que não estivesse se detendo especificamente neles, Winnicott deixou escapar ao leitor como o uso que se faz dessas noções de saúde e normalidade pode induzir uma interpretação sinonímia entre elas. O sentido de saúde nessas afirmações, mesmo se mostrando expressamente relacionado às influências do ambiente suficientemente bom, parece escorregar na tendência comum de tomar a noção de saúde como expressão de normalidade, desconsiderando os aspectos singulares da condição individual e das capacidades normativas.
Apesar de Winnicott ter feito uma relação aproximada desses conceitos nessa/naquela ocasião, não a entendemos como comprometedora de seu posicionamento sobre o tema. Isso porque a sua maneira de equivaler automaticamente o conceito de normalidade e saúde nos faz tomar essa passagem como um aparente descuido, frente às descrições que realiza em sua obra problematizar estas noções. Assim, poderíamos dizer que o lapso acima apontado não desfaz o projeto winnicottiano de destacar aquilo que considerou fundamental à saúde psíquica: a vitalidade do amadurecimento individual e suas relações com o ambiente, na medida em que não sustenta uma posição do autor sobre essa referência.
Não foi diferente quando, em 1951, ele escreveu ao British Medical Journal problematizando a noção de higiene mental, presente no relatório da segunda sessão da Comissão de Especialistas em Saúde Mental da Organização Mundial de Saúde. Apesar de reconhecer o destaque dispensado à infância nesse relatório, ele considerou que o grande feito desse tipo de produção era a necessidade de enfatizar o papel da saúde mental. Winnicott associou essas impressões a alguns comentários que teceu sobre a monografia do Dr. John Bowlby,3 cujo trabalho ele considerava não ter trazido nada de novo, a não ser o fato de conseguir traduzir a importância dos cuidados maternos em números (expressivos). Em suas palavras:
Talvez o principal resultado dessas investigações, especialmente quando foram confirmadas e ampliadas, seja o de servir de lição para os profissionais da área médica, incluindo os administradores. Deve ser sempre difícil para os especialistas em saúde manter presente a maior importância da saúde mental (WINNICOTT, [1951] 2005, p. 193).
Esse artigo, intitulado O alicerce da saúde mental, soa muito mais como uma crítica contundente à forma como a OMS usa as conclusões apontadas pelas estatísticas de Bowlby, na medida em que as considera pouco ou nada representativas no que se refere ao desenvolvimento emocional das crianças. Winnicott não deixou de considerar a importância dessas afirmações para a medicina preventiva, na medida em que elas podem refletir o favorecimento e a redução das tendências antisociais, bem como a diminuição do sofrimento que se produz nas situações de separação de pais e filhos, especialmente, os menores. Mas o destaque a ser dado a essa apresentação está no desfecho desse artigo. Nele Winnicott assume uma posição contundente de assegurar a existência de aspectos marcantes do desenvolvimento emocional da criança, presentes desde o início da vida. Ele sutilmente parece sugerir que de nada adiantaria tudo isso, se não for considerados: “a riqueza da personalidade, o vigor do caráter e a capacidade de autoexpressão plena, livre e madura” (WINNICOTT, [1951] 2005, p. 194). Tal colocação apresenta, de certo modo, a sua concepção inovadora de saúde, considerando-a um estado marcado pela vitalidade criativa.
Em 1953, ele escreveu Tolerância ao sintoma em pediatria: relatório de um caso, artigo de significativa importância, na medida em que nele recoloca a problematização da normalidade e anormalidade em cena, mas o faz dando um acento todo especial à consideração de que o corpo teria uma tendência natural para o restabelecimento da saúde.
Creio que nas melhores escolas de medicina o ensino inclui o lembrete de que as crianças sobreviviam às doenças mesmo antes da penicilina, e que mesmo atualmente é a criança e os seus tecidos sadios que ao final das contas produzem a restauração da saúde, e não os antibióticos (WINNICOTT, [1953] 2000, p. 168).
Pensando assim, Winnicott demarca as diferentes nuances que se aplicam na definição da saúde, seja física, seja psíquica, ao afirmar que
[...] na medicina psicológica podemos perceber um vínculo entre o normal e o anormal ainda mais estreito que o existente entre a fisiologia e os processos patológicos dos tecidos e das funções (WINNICOTT, [1953] 2000, p. 169).
Nessa passagem é possível reconhecer o desdobramento de sua escrita dos anos 1930, quando a noção de normalidade começa a ser vista por ele em toda a sua complexidade. Indo mais além, nesse artigo o psicanalista recorre ainda à distinção entre o papel do pediatra e do psiquiatra infantil destacando sobretudo os diferentes sentidos dados ao sintoma por cada um deles.
Para ele, enquanto o pediatra se debruça sobre o sintoma usando a melhor terapêutica na tentativa de fazê-lo desaparecer, o psiquiatra infantil entende que o papel do sintoma é complexo e mantido pelo valor que tem em si mesmo. Isso nos permite pensar que, para Winnicott, tal como proposto por Freud, os sintomas têm um sentido que deve ser considerado. Mas não apenas isso, no caso das crianças, dirá que correspondem, de modo geral, a um sinal das dificuldades no seu desenvolvimento emocional.
A partir dessas asserções é possível afirmar que a proposição winnicottiana avançou não apenas na compreensão dos sentidos dos sintomas infantis, mas possibilitou uma reformulação da noção de saúde psíquica, na medida em que empreendeu uma análise aprofundada das condições do desenvolvimento emocional infantil. Em sua leitura do fenômeno da saúde, o autor destaca a importância da condição individual, considerando a existência de processos corporais que favoreceriam por si sós, a restauração da saúde independentemente da terapêutica. Ou seja, ao dizer que haveria uma tendência natural à saúde em cada um de nós, Winnicott amplia o conceito de saúde, que passa a ser considerado como expressão de força de vida.
Saúde e doença: paradoxos do amadurecimento
Essa forma de entender a saúde leva Winnicott, por conseguinte, a propor a necessidade de tolerância ao sintoma, porque para ele a presença do sintoma na criança deve ser entendida como uma saída para alcançar o amadurecimento do desenvolvimento, que por alguma razão estacionou.
A sua formulação do conceito de saúde pode ser considerada inovadora, uma vez que coloca em cena a dimensão da saúde como estando associada à dimensão do amadurecimento. Com isso, queremos dizer que, não sem razão, Winnicott formula sua compreensão do estado de saúde, tendo, por princípio, a capacidade espontânea de uma condição natural para a sua restauração. Somente uma teoria que assume a criatividade como primária – no sentido de uma condição de existir – pode interpretar a doença como decorrente de uma submissão à vida. Nesse sentido, o estado de ser saudável tem relação direta com a capacidade do indivíduo de viver criativamente. Por conseguinte, a noção de adoecimento passaria a ser norteada pela perda da criatividade na vida ou pela sua inibição.
Essa forma de compreender a existência perpassa todas as proposições de Winnicott e repercute também na sua análise da saúde e da doença. Para ele, o sentido de existir faz parte da natureza humana, mesmo que a garantia do ser não esteja dada em princípio. O ser corresponde a uma experiência complexamente desenvolvida e será estabelecido na medida em que o ego começa a se organizar. Em suas palavras: “ser e se sentir real dizem respeito essencialmente à saúde, e só se garantirmos o ser é que poderemos partir para coisas mais objetivas” (WINNICOTT, [1984] 2005, p. 18). A isso, soma-se ainda a capacidade de ter experiência cultural, condição para o viver criativo, e, por isso, considerado como “o bônus mais importante proporcionado pela saúde” (WINNICOTT, [1984] 2005, p. 21).
O papel da condição individual, acima citado, será melhor desenvolvido por Winnicott em 1967 por intermédio do conceito de indivíduo saudável. Debruçando-se sobre o estudo da saúde do indivíduo, ele defende que a saúde social depende da primeira, sem deixar de considerar a importância do lugar social dos homens e das mulheres. Em trabalho intitulado O conceito de indivíduo saudável (1984), o psicanalista britânico aborda novamente a questão da normalidade e da saúde, agora destacando a proposição, segundo a qual a maturidade individual é marcada pelo movimento de dependência. O seu fundamento reside na consideração de que a dependência faz parte da existência humana e, nesse sentido, a independência absoluta para Winnicott não existiria. Assim, resume:
Seria nocivo para a saúde o fato de um indivíduo ficar isolado ao ponto de se sentir independente invulnerável. Se esta pessoa está viva, sem dúvida há dependência! Dependência da enfermeira de um sanatório ou da família (WINNICOTT, [1984] 2005, p. 3).
Essa é uma forma de Winnicott problematizar o tema da dependência\independência, que lhe é tão caro e ao qual dedicou muitas passagens de seus escritos. Ainda sobre isso, afirma que:
A independência nunca é absoluta. O indivíduo normal não se torna isolado, mas se torna relacionado ao ambiente de um modo que se pode dizer serem o indivíduo e o ambiente interdependentes (WINNICOTT, [1983] 2007, p. 80).
Até mesmo antes do nascimento, o bebê é absolutamente dependente e caminhará, desde os primeiros meses de vida, rumo à aquisição de uma independência, mesmo que ela não possa ser considerada definitiva, apesar da chegada à maturidade. É fundamental lembrar que, para ele, a presença dos cuidados infantis é a porta de entrada para o trabalho psíquico necessário nessa caminhada da dependência absoluta rumo à independência. Na conferência Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo, pronunciada na Clínica Psiquiátrica de Atlanta, em outubro de 1963, Winnicott examina detalhadamente essa caminhada e propõe três categorias que definiriam o processo de maturação: dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência. Apesar de ressaltar que não pretende se distanciar da conceituação freudiana em termos das zonas eróticas e das relações objetais, seu exame vai mais além no estudo das relações iniciais do bebê com o ambiente, explicando que
[...] o ambiente favorável torna possível o progresso continuado dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial (WINNICOTT, [1983] 2007, p. 81).
Essa citação é um bom exemplo da complexidade da teoria winnicottiana, na medida em que, apesar de considerar o papel do ambiente nas origens da saúde, ele não o faz pela via redutora e simplista, que tende a tomar o indivíduo unicamente como um produto do meio. A formulação de Winnicott, portanto, continua destacando as tensões intrapsíquicas, tais como pensadas pela psicanálise, mas avança ao abrir caminho para o fator ambiental, sem tomá-lo como argumento necessariamente mais forte.
De modo geral, o autor vai considerar a saúde em termos do desenvolvimento, o que o leva a considerar a saúde como uma condição relativa à maturidade, que inclui também, mas não apenas, a idade. Como tendência ao amadurecimento ele faz referência aos fatores internos, tais como aqueles que são herdados, bem como ao meio ambiente saudável nas inter-relações mãe-bebê. Para ele, esse momento não se resume apenas a uma saúde individual, mas envolve sobretudo a capacidade de adaptação do ambiente ao bebê. Só depois desse processo bidirecional, ele considera ser possível a saúde prosperar, o que é dificultado por um meio ambiente não saudável. Essa forma de compreender o papel do ambiente como parte da promoção da saúde psíquica confere um relevo especial ao ambiente facilitador (condição para os ajustes às necessidades individuais) dentro do arcabouço psicanalítico e marca a definição de saúde enquanto elemento complexo.
Ao apresentar a trajetória intelectual de Winnicott, Dias (2002, p. 124) esclarece a questão do seguinte modo:
Na obra winnicottiana, o conceito de ambiente, ou de fator externo, é extremamente complexo, e, assim como se constitui em uma das principais chaves para entender o seu pensamento, é também, se mal-entendido, uma das maiores fontes de equívocos. Quando, referindo-se aos estágios iniciais, e levando em conta o que seria o ponto de vista do bebê, o autor fala de ambiente externo, este só é externo da perspectiva do observador. No início da vida, o ambiente é subjetivo e, nesse sentido, não é externo nem interno. Enquanto subjetivo, o ambiente participa intrinsecamente da constituição do si-mesmo e não é, meramente, uma influência externa. É somente no decorrer do processo de amadurecimento que a criança poderá chegar ao sentido de externalidade. Só então o ambiente poderá ser visto como externo e, mesmo assim, não inteiramente e nem sempre.
Winnicott, assim, questiona o modo de ver daqueles que reduzem a saúde à simples ausência de distúrbio psiconeurótico, na medida em que considera que existem critérios mais sutis que precisavam ser considerados. Ele acreditava não estar formulando uma teoria contrária às proposições freudianas sobre a etiologia das neuroses; todavia, mais do que curar os pacientes, ele queria saber sobre o que versa a vida. Em sua perspectiva: “a ausência de doença psiconeurótica pode ser saúde, mas não é vida” (WINNICOTT, [1967] 1975, p. 139).
Podemos perceber que a definição negativa da saúde – aquela que a considera como ausência de doença – parece insuficiente aos olhos de Winnicott, o que se evidencia pelo fato de que em praticamente toda a sua obra se escute um sutil apelo para que sejam considerados os aspectos positivos dela. Essa dimensão positiva do conceito de saúde exige que ele seja tomado em toda a sua complexidade, desde seus aspectos biológicos aos psíquicos e sociais, sem perder de vista a sua relativização quanto ao que corresponde à doença. De acordo com essa visão, é a presença de certas capacidades, e não a pobreza ou falta delas, que corresponde à condição saudável do indivíduo. Esta inclui a capacidade de ter uma vida em que as relações interpessoais constituem um aspecto fundamental, bem como a condição de lidar com o seu mundo interno e externo, além da vigência da experiência cultural. Seriam, portanto, três áreas importantes e, segundo Winnicott, experienciadas pelas pessoas saudáveis. Nesse sentido, ele conclui: “quando apenas sãos, somos decididamente pobres” (WINNICOTT, [1945] 2000, p. 225).
Grosso modo, pode-se dizer que, enquanto Freud se debruçou sobre a dinâmica das neuroses para desenvolver a sua teorização dos distúrbios psíquicos e da natureza humana, Winnicott viu no desenvolvimento emocional primitivo a chave para a compreensão da doença, deslocando o eixo de sua pesquisa para as perturbações precoces e psicóticas, que considera decorrentes de uma não integração do eu, dado que o processo de amadurecimento, por alguma razão, falhou. Ele não discorda das formulações freudianas, mas afirmando que as bases da saúde se consolidam no início da vida, põe em questão a dimensão universal das relações neuróticas com a saúde. A sua compreensão não desconsidera as múltiplas experiências ao longo da vida como condição de facilitação e/ou impedimento à continuidade saudável da existência, mas aponta para o papel fundamental do desenvolvimento inicial como condição de possibilidade para a emergência do indivíduo saudável.
Como escreve Dias (2002, p. 142)
[...] na ótica winnicottiana, a neurose, nesse sentido bem específico, significa saúde e, é esse o sentido da afirmação de que, se o desenvolvimento primitivo é perturbado, a criança não tem ‘saúde suficiente’ para chegar a uma neurose.
As diferenças entre as concepções de saúde e doença se colocam também no campo epistemológico. Freud descreve a saúde em termos metapsicológicos e busca na vida pulsional o segredo das relações entre o corpo e a psique, enquanto Winnicott parte do processo de amadurecimento para explicar as conquistas subjetivas e objetivas da criança. Embora esse não seja o foco do nosso trabalho, reconhecemos que o debate sobre as aproximações e os distanciamentos das teorias de Freud e Winnicott é um terreno fértil em questões que poderiam ser abordadas noutro momento.
Quando escreveu O psicossoma e a mente (1949), Winnicott retomou a problematização dos conceitos de soma, psique e mente, iniciada em 1949. Nesse ensaio, ele se ocupou de contrapor soma e psique, com a ressalva de considerar não ser lógico opor mental a físico, pois não os entendia como fazendo parte de uma mesma ordem. O que se coloca como questão a partir dessas proposições é a suposição de diferenças entre aquilo que definirá como saúde física, psíquica e intelectual.
Novamente o que salta aos olhos neste trabalho é a presença de uma concepção de saúde marcada pelo processo de maturação do indivíduo em suas relações com um ambiente que propicie um holding satisfatório.
Sobre essas considerações, Winnicott ressalta a dupla via entre corpo e psique, destacando as relações que existem entre elas, ou seja, os efeitos da psique sobre o corpo e vice-versa. Segundo Estellita-Lins (2007, p. 367), essas relações “respondem aqui por um domínio lógico e normas operatórias que recobrem grosso modo fisiologia e patologia, acrescentando-lhes, contudo, a dimensão do cuidado e do desenvolvimento”. Para o autor, portanto, uma nova concepção de cuidado se estabelece a partir da leitura sobre saúde e doença empreendida por Winnicott, fazendo-se necessário, inclusive, reconsiderar a intervenção psicanalítica.
Assim, pode-se dizer, essa dimensão de cuidado que perpassa a compreensão winnicottiana confere novos ares aos sentidos da saúde em sua obra. Inicialmente entendido como holding – aquilo que proporciona uma continuidade da existência –, o cuidado aparece na teorização e definição da saúde, na medida em que é suposto como uma possibilidade de saída de uma vida doentia.
Em 1970, em palestra intitulada A cura, Winnicott nos lembra que ‘cura’, em suas raízes, significa ‘cuidado’ (WINNICOTT, [1984] 2005, p. 105). Para ele, é fundamental que o psicanalista pratique um “cuidar-curar”, contrariamente a um exercício voltado para a erradicação de um mal, tal como proposto pela perspectiva que toma a doença de um ponto de vista negativo. Esta se tornou uma de suas contribuições mais significativa para a terapêutica psicanalítica: a ampliação do(s) sentido(s) da saúde.
Considerações finais
O nosso mapeamento do conceito de saúde psíquica na abordagem examinada permitiu observar uma evolução conceitual nas teorizações de Winnicott sobre os sentidos da saúde. Acreditamos que essa definição perpassa pelo menos duas formas ao longo de sua obra: uma, que toma a saúde relacionando-a ao conceito de normalidade, sem uma problematização do conceito; e outra, quando a presença da saúde é ampliada pela via do cuidado, ou seja, quando a saúde é considerada como decorrente do processo de amadurecimento e provisão do ambiente. Parece-nos que é na segunda, que se encontra a maior riqueza da constução conceitual do autor sobre a noção de saúde.
É possível afirmar também que a direção tomada por Winnicott nesse debate, apesar de não estar explicitamente posta, mostra-se colocada ao longo de toda a sua obra, mesmo que dispersamente. Em diferentes passagens, o autor pincela o seu argumento fundamental sobre a concepção de normalidade e anormalidade na infância, a saber, a relação da criança com a complexidade da sua própria existência.
Dessa forma, acreditamos que Winnicott conseguiu elaborar, dentro da perspectiva psicanalítica, uma concepção peculiar de saúde, na medida em que a supôs como parte da existência e tomou os aspectos da criatividade como condição para a uma vida saudável. Essa abertura para a diversidade de sentidos sobre ser o que se define como ‘saúde’ se mostra como elemento fundamental aos que trabalham na clínica contemporânea e, portanto, não pode deixar de ser considerada.
Referências
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Recebido: 20/10/2014
Aprovado: 21/10/2014
SOBRE OS AUTORES
Rafaela Mota Paixão França
Mestre em Psicologia Clínica. Psicóloga do CPPL. Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco.
Maria Consuêlo Passos
Doutora em Psicologia Social. Psicanalista de casal e família.
Docente-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da UNICAP.
Zeferino Rocha
Mestre em Filosofia e Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Doutor em Psicologia pela Universidade de Paris X, Nanterre. Professor da Pós-Graduação de Psicologia Clínica da UNICAP. Membro fundador do Círculo Psicanalítico de Pernambuco.
1 Em seu livro A teoria do amadurecimento de D.W. Winnicott, Dias (2003) indica a crítica empreendida por Jacobs, quando em 1995 afirma que Winnicott é um escritor profícuo, mas que pouco teria publicado que possa ser apresentado como compreensível.
2 Em analogia ao título do livro de Proust Em busca do tempo perdido, entendemos que haveria uma idealização da saúde na contemporaneidade, o que levaria a sociedade a estar permanentemente "em busca da saúde perdida": quiçá nunca tida mas sempre desejada.
3 John Bowlby (1907-1990) foi um psicanalista e psiquiatra inglês, especialista em psiquiatria infantil. A convite da Comissão Social das Nações Unidas, coordenou um amplo estudo sobre os problemas e as necessidades das crianças sem lar.