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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.42 Belo Horizonte dez. 2014
Filosofia e liberdade: o desafio da psicanálise
Philosophy and liberty: the challenge of psychoanalysis
Vincenzo Di Matteo
I Universidade Federal de Pernambuco
RESUMO
O texto analisa as relações e as implicações da questão da liberdade com a do inconsciente psicanalítico. Num primeiro momento, é registrado o evento de Bonneval (1960) quando o tema do inconsciente foi objeto de reflexão entre psiquiatras, psicanalistas e filósofos franceses. Em seguida, são apresentadas algumas perspectivas para se repensar os limites e a possibilidade da liberdade humana dentro da atual conjuntura cultural.
Palavras-chave: Filosofia, Psicanálise, Psiquiatria, Inconsciente.
ABSTRACT
The text analyzes relations and implications of the question of freedom with the psychoanalytic unconscious. At first, is recorded the event in Bonneval (1960) when the issue of the unconscious was the object of discussion between psychiatrists, psychoanalysts and French philosophers. Then, some perspectives to rethink the limits and the possibility of human freedom within the current cultural context are presented.
Keywords: Philosophy, Psychoanalysis, Psychiatry, Unconscious.
Introdução
Pretendo, nesta comunicação, analisar os desafios específicos que a invenção da psicanálise colocou para a filosofia da liberdade do século XX, em particular para os filósofos ligados à fenomenologia e à renovação dos estudos hegelianos na França. Registro o diálogo tenso, mas não impossível, entre filósofos e psicanalistas que culminou no famoso encontro de Bonneval (1960) sobre o inconsciente, mais de 50 anos atrás. No final, apresento algumas perspectivas com relação à questão da subjetividade e liberdade, que se abrem atualmente para filósofos e psicanalistas, dentro da atual conjuntura cultural.
1 A liberdade humana e seus limites
O conceito e o sentido de liberdade como autodeterminação e autocausalidade incondicionada a partir da vontade, o equivalente psicológico da liberdade, foi cedendo lugar, a partir da modernidade tardia, para um sentido mais matizado. O ser humano tem, sim, uma liberdade, mas relativa, finita, situada, motivada e condicionada por determinadas circunstâncias. Conservaríamos certo grau de possibilidade de escolha a despeito de condicionamentos que podem, às vezes, comprometê-la seriamente.1
No caso específico do determinismo inconsciente, como os filósofos do século XX se posicionaram? Filósofos e psicanalistas conseguiram, de fato, estabelecer um verdadeiro diálogo sobre temas e problemas que lhes são comuns, tais como a subjetividade, a liberdade, a ética, a cultura, ou permaneceram fechados em seus respectivos monólogos?
2 Filosofia e psicanálise: um diálogo impossível?
Teoricamente, o diálogo entre psicanálise e filosofia era possível, desejável e certamente poderia ser produtivo. Não seria a primeira vez que a filosofia se alimentaria de outras áreas do saber.2 No entanto, as primeiras relações desses dois saberes foram marcadas mais pelo desconhecimento, pela desconfiança, pelas resistências recíprocas do que pela abertura e diálogo.3
De fato, o inconsciente psicanalítico, entendido como metonímia do conjunto mais amplo da rica constelação semântica construída pela psicanálise para dizer o que seu fundador chamou de “revolução psicológica” contraria a concepção equivocada de que o sujeito da modernidade fazia de si mesmo como um ser de autoconsciência e de autodeterminação.4 A ideia fundamental que perpassa as três revoluções (cosmológica com Copérnico, biológica com Darwin e psicológica com Freud) é a de um descentramento do sujeito. Essa metáfora condensa em Freud uma pluralidade de sentidos que foram se enriquecendo com o tempo a partir da experiência clínica e de sua metapsicologia. Trata-se, inicialmente, do descentramento da consciência para o inconsciente (primeira tópica) (1900; 1915), mas também do eu para o outro (1914a teoria do narcisismo) e, finalmente, o maior e o mais radical dele: da consciência e do inconsciente para o da pulsão (segunda tópica) (1920; 1923), o que implica reconhecer que o ego não é senhor em sua própria casa, reduzido a um pobre diabo a serviço de seus tirânicos senhores: o Id, o Superego e o insensível e duro mundo da natureza.
Essa descrição mais sombria de nós mesmos pode ter contribuído para o surgimento das resistências iniciais à “jovem ciência” psicanalítica. Em vários escritos, Freud (1917; 1925) aborda esse tema explicitamente. Conforme, porém, suas palavras proféticas (1925, p. 273), “essa resistência não pode durar para sempre. Nenhuma instituição humana pode, a longo prazo, escapar à influência da crítica legítima”. Nesse sentido, é significativo o que aconteceu com os filósofos de língua francesa a partir da implantação do freudismo na década de 1920 até a década de 1960.
3 A geopsicanálise francesa
A França não foi inicialmente uma terra prometida para a psicanálise. É notório que ela entrou um pouco tardiamente nesse país, e sua incorporação pela psiquiatria e pela cultura em geral foi lenta, excetuando-se o movimento surrealista.
Não é por acaso que o artigo de Freud ([1925] 1976) As resistências à psicanálise, traduzido em francês e publicado inicialmente num periódico de língua francesa, destacava a medicina e a filosofia da consciência como as resistências mais fortes.
Alguns ‘obstáculos epistemológicos’ dificultavam essa inserção. Havia toda a tradição da psiquiatria de Charcot e de Janet que parecia tornar dispensável a tradição psiquiátrica alemã, incluindo nela a própria psicanálise de Freud. Persistia, também, toda uma tradição cartesiana da filosofia francesa, sem contar com a tradição espiritualista e idealista (DELACAMPANHE, 1997, p. 223) que via com desconfiança o materialismo e o ateísmo da doutrina freudiana.
A psicanálise parecia um cavalo de Troia deixado diante das muralhas milenares da filosofia. Um presente fascinante mas enigmático. Um verdadeiro presente de grego.
Questionava-se antes de tudo a validade ou não da ‘doutrina’ freudiana – mais especificamente a do chamado “realismo” do inconsciente – exposta numa linguagem positivista e que colocava em cheque uma abordagem filosófica ou psicológica do sujeito ‘em primeira pessoa’ (POLITZER [1928] 1973). É compreensível que a atitude inicial dos filósofos fosse mais de rejeição do que de acolhida, como o mostra claramente o caso do Sartre de O ser e o nada, ao opor ao inconsciente da psicanálise o conceito de má-fé ([1943] 1995, p. 92-118) e à psicanálise freudiana, que chamava de “empírica” sua psicanálise “existencial” ([1943] 1995, p. 682-703).
O livro de Dalbiez – La Méthode Psychanalytique et la Doctrine Freudienne – publicado em 1936, representou a concretização filosófica de toda uma atitude com relação à psicanálise que se tornou hegemônica na França após a Primeira Guerra Mundial: o ‘sim’ à técnica terapêutica, e o ‘não’ à doutrina freudiana que a sustentava.
Segundo o autor da primeira tese de doutorado em filosofia da psicanálise na França, a psicanálise seria apenas um método que se revelou extremamente fecundo para explicar a causalidade do que Dalbiez ([1936] 1947, p. 301) chama de ‘psiquismo inferior’ (atos falhos, sonhos, sexualidade) e a do ‘psiquismo mórbido’ (neuroses, psicoses), mas totalmente inadequado para explicar o ‘psiquismo superior’ (arte, moral, religião).5
No fundo, as críticas dos filósofos franceses revelavam o medo de que, sob “as astúcias do demônio inconsciente”, o homem se livrasse de suas responsabilidades, (RICOEUR, 1950, p. 352) seria o suicídio da liberdade, talvez até “obscuramente desejado por todo aquele que busca no freudismo não um socorro para compreender e sarar a consciência que fracassa, mas uma explicação que o livra da carga de ser livre” (RICOEUR, 1950, p. 378).
A despeito dessas leituras mais críticas de Freud, especialmente a partir da segunda parte do século XX, filósofos franceses ligados de alguma forma à fenomenologia de Husserl e/ou à analítica existencial de Heidegger, como M. Merleau-Ponty (1942, 1945, 1951, 1960), P. Ricoeur (1950, 1954, 1960), A. De Waelhens (1958, 1959) e/ou à renovação dos estudos hegelianos na França, como J. Hyppolite encontraram, em Freud, cada vez mais um interlocutor privilegiado com o qual mantiveram um diálogo crítico, mas não inamistoso, a ponto de Merleau-Ponty (1960) se perguntar: foram as resistências do leitor que cederam com o decorrer dos anos ou este caiu nas armadilhas da psicanálise? Foram justamente esses filósofos, junto com Henry Lefebvre, filósofo marxista e sociólogo de renome, os convidados para discutir com psiquiatras e psicanalistas o tema do inconsciente em Bonneval no ano de 1960.
4 Psiquiatras, psicanalistas e filósofos em Bonneval
As quatro jornadas de Bonneval (de 30 de outubro a 2 de novembro) (EY, 1966; ROUDINESCO, 1986, p. 328-340; MIJOLLA, 1982, p. 85), se tornaram um marco histórico e geográfico bem preciso e podem ser consideradas paradigmáticas para identificar as consonâncias e dissonâncias do inconsciente entre psiquiatras, psicanalistas e filósofos.
O convite partiu de Henri Ey, que desempenhou na área da psiquiatria francesa um trabalho de renovação que tem seu correspondente no de Lacan na área da psicanálise. Não era a primeira vez que ele reunia psiquiatras e psicanalistas para confrontar suas posições com relação à loucura e especificamente ao inconsciente freudiano.6
Em 1960, porém, foram convocados psiquiatras,7 filósofos de renome e psicanalistas das duas sociedades: a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP)8 e a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP).9 Lacan, que pertencia então à SFP, foi convidado, a título de amizade pessoal, podendo participar dos debates, mas sem direito a nenhuma exposição.
Não nos deteremos na análise das peças tomadas isoladamente desse complexo jogo de saber e de poder em que as jornadas se transformaram. Tanto para Ey, quanto para Lacan, Bonneval não representava apenas um encontro científico, mas um verdadeiro acontecimento político, o que talvez possa explicar certos desvios de linguagem, certas atitudes polêmicas lastimáveis que ameaçaram transformar o Simpósio em “circo” (EY, [1966] 1969, p. 10).
Para Ey, tratava-se de abrir a psiquiatria francesa à experiência freudiana, mas sem que a primeira perdesse sua identidade e abdicasse da especificidade de seu discurso sobre a loucura. Para Lacan, se tratava de mostrar à IPA que o freudismo repensado na perspectiva linguística estava alcançando um verdadeiro estatuto científico na França; frente à SPP, de criticar a tendência médica que nela predominava e apresentar seu grupo coeso em torno das teses que relacionavam o inconsciente com a linguística estrutural; frente à psiquiatria, de provar que agora a psicanálise era a legítima herdeira da antiga psiquiatria, mesmo que “extramuros” e, frente aos filósofos, opor ao freudismo fenomenológico, o freudismo estruturalista (ROUDINESCO, 1994, p. 262).
Na realidade, os dois mais brilhantes representantes da psiquiatria e da psicanálise francesa não conseguiram atingir seus objetivos, pelo menos totalmente. Primeiro, porque numerosos estudantes de psiquiatria que participaram do encontro ficaram seduzidos pelo discurso psicanalítico. Segundo, porque o grupo de Lacan não estava tão coeso ou mais coeso do que o da SPP. Terceiro, porque os filósofos, aparentemente os mais afetados pelo discurso psicanalítico do inconsciente, não tiveram dificuldade em reconhecer a necessidade de uma revisão de sua postura com relação à psicanálise.10 As ressalvas que apareceram foram com relação à concepção lacaniana do inconsciente estruturado como linguagem, por sinal brilhantemente defendida por Laplanche e Leclaire naquela oportunidade. A crítica que mais parece ter magoado Lacan foi a do seu amigo Merleau-Ponty. “Algumas vezes – teria dito – experimento um mal-estar em ver a categoria da linguagem ocupar todo lugar” (EY, 1966. p. 170).11
Esse mal-estar decorria do fato de que Merleau-Ponty via na psicanálise freudiana algo que podia ajudar a filosofia a superar a compreensão idealista da consciência. No mesmo ano, escreve num prefácio ao livro do Dr. Hesnard, A obra de Freud e sua importância para o mundo moderno:
A psicanálise com suas metáforas energéticas e mecanicistas conserva o limiar de uma intuição que é uma das mais preciosas do freudismo: aquela de nossa arqueologia (HESNARD, 1960, p. 9).
Esse conceito-metáfora de arqueologia não é só da psicanálise. Seria também da filosofia do último Husserl que podia ser entendida como uma arqueologia da experiência humana.12 A expressão foi recolhida pela fenomenologia e filosofia em geral de língua francesa a ponto de até o hegeliano J. Hyppolite (1988, p. 88) considerar a psicanálise como “arqueologia ou exegese do espírito”.13 Ao tema “da arqueologia do sujeito”, Ricoeur (1965, p. 407-443), em seu Ensaio sobre Freud, dedicará um inteiro capítulo.
Essa metáfora da arqueologia permite aos filósofos franceses mostrar tanto a necessidade da psicanálise de se precaver do risco idealista quanto aquela da fenomenologia em permanecer fiel a si mesma ao ‘descer no seu próprio subsolo’, não podendo se considerar uma ‘filosofia da consciência’. Isso implica que a consciência e a liberdade humana não podem ser consideradas como um dado, mas como uma tarefa infindável: tornar-se consciente e tornar-se livre.
Se naquele encontro os psicanalistas levaram a melhor sobre psiquiatras e filósofos, não houve, todavia, um consenso quanto ao modo de entender o inconsciente, nem entre o próprio grupo de Lacan. Laplanche tinha suas reservas com relação à tese lacaniana do inconsciente estruturado como linguagem.14
De qualquer maneira, Bonneval prometia um diálogo promissor entre filósofos e psicanalistas tanto mais que o tema da liberdade e da ética não eram estranhos à psicanálise como o mostra O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960).
Mas o que aconteceu nestes últimos cinquenta anos? Mudaram as relações e as correlações de forças entre psiquiatras, psicanalistas e filósofos?
5 Psiquiatras, psicanalistas e filósofos hoje
Evidentemente, o contexto histórico cultural atual não é mais como o do começo da segunda parte do século XX e menos ainda aquele francês. Com relação à psicanálise, temos que reconhecer que, enquanto moda, talvez já tenha passado. Não é por acaso que, no final do século que findou, a psicanalista Roudinesco (2000) sente a conveniência de lançar um livro em defesa da psicanálise com o título emblemático de Por que a psicanálise? Ao mesmo tempo, vários psicanalistas do mundo todo se autoconvocaram no Primeiro Encontro dos Estados Gerais da Psicanálise, realizado em Paris, no ano 2000 e no segundo em 2003, no Rio de Janeiro, para repensarem suas teorias, suas práticas a partir dos novos desafios que a cultura lançava à psicanálise. Dois filósofos ligados à psicanálise foram convidados oficialmente para participar do evento: Derrida (2001) no primeiro e Sergio Paulo Rouanet (2003) no segundo. Sinal inequívoco da permanência das afinidades eletivas entre os dois saberes de filosofia e psicanálise. Outros sinais são a criação do GT Filosofia e Psicanálise em 2003, aqui no Brasil, e a Sociedade Internacional de Psicanálise e Filosofia (SIPP), na Europa, em 2008.
Quanto às mudanças culturais ocorridas nos últimos decênios e que provavelmente vão continuar a ter seus desdobramentos e importantes reverberações sobre as subjetividades, nos próximos anos, destaco apenas a sensação de que gozaríamos hoje de uma liberdade superampliada mesmo sem as contrapartidas de segurança que deixa o sujeito contemporâneo tão ou, talvez, até mais infeliz daquele moderno.15 Talvez o peso excessivo dessa pretensa liberdade contemporânea levou o sujeito de hoje a procurar mais a proteção medicamentosa do que os referenciais da psicanálise.
De fato, a partir dos anos 1980, aproximadamente, a correlação de forças entre psiquiatria e psicanálise se alterou em favor da psiquiatria, graças também à poderosa Associação Americana de Psiquiatria, cujo Manual diagnóstico e estatístico dos distúrbios mentais (DSM) foi praticamente adotado pela Associação Mundial de Psiquiatria e, mais tarde, pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Desde o primeiro Manual, de 1952, até o DSM 5, de 2013, houve um progressivo distanciamento do referencial clínico da psicanálise por parte da psiquiatria (Cf. ROUDINESCO, 2000, p. 47-52).16
Esse divórcio entre psiquiatria e psicanálise, além de certa hegemonia da terapia medicamentosa, também teve, como efeito colateral, a explosão de numerosas formas de psicoterapias alternativas à psicanálise que se apresentavam com as credenciais de um tratamento ideal: tuto, cito, jocunde, isto é, um tratamento seguro, rápido e prazeroso, mas que a psicanálise desde o começo do século passado não podia prometer (FREUD, 1905, p. 272) e nunca prometeu.
É provável que as causas do que chamamos de divórcio entre psiquiatria e psicanálise sejam sobredeterminadas. Além do avanço espetacular da neurobiologia, da neurofisiologia, da neuropsicologia, da inteligência artificial, das pesquisas farmacológicas e da força da indústria farmacêutica, não podemos esquecer as novas demandas nascidas com a globalização.
Se compararmos o contexto de Bonneval com o de hoje, é fácil perceber que o confronto mais problemático não é mais entre um inconsciente fenomenológico e outro psicanalítico, nem entre uma psiquiatria dinâmica e uma psicanálise repensada em categorias linguísticas, mas entre uma determinada compreensão de sujeito e de liberdade que assume a categoria do inconsciente de um lado e, do outro, uma psiquiatria radicalmente biológica, e muitas psicoterapias que, mesmo por razões teóricas diferentes, parecem prescindir ou renunciar à hipótese do inconsciente e ao jogo de linguagem que lhe é correlato.
Quem defende a validade também para os dias de hoje do jogo de linguagem que se articulou em torno do significante inconsciente para se falar da subjetividade e da liberdade humana não pode deixar de se perguntar: mas por que tentar salvar a categoria do inconsciente se o próprio fundador da psicanálise admite que os avanços da farmacologia um dia pudessem até acabar com o tratamento realizado por “meios psicológicos”? (FREUD, 1940, p. 210) e por que dar sobrevida a conceitos tão polissêmicos e problemáticos como sujeito, consciência, liberdade para dar conta do que seria propriamente o humano?
As objeções são pertinentes. Talvez tenhamos que fazer o luto tanto da longa e respeitada tradição filosófica da chamada “metafísica da subjetividade e da liberdade”, quanto de categorias psicanalíticas. O que podemos lucrar com esse luto é certamente uma maior liberdade para criar novas metáforas, novos jogos de linguagem para responder ao eterno enigma da Esfinge: decifra-me ou devoro-te.
É provável, portanto, que o jogo de linguagem da psicanálise tenha que conviver com outros jogos de linguagem (Wittgenstein) ou outros jogos da verdade (Foucault). Penso, porém, que, independentemente de não ser mais hegemônica, a compreensão do homem que a psicanálise nos legou é ainda indispensável, para neutralizar duas ideologias que sempre rondam qualquer discurso sobre o humano: a idealista do consciencialismo e a cientificista do orgânico e do químico. Em Bonneval, os filósofos reconheceram que as metáforas psicanalíticas poderiam nos ajudar e evitar uma compreensão idealista de nós mesmos. Paradoxalmente, hoje, a psicanálise nos poderá ajudar a neutralizar a ideologia organicista.
A psicanálise, de fato, aponta para três grandes universais da subjetividade humana – o inconsciente, a sexualidade e a transferência – que remetem a certa visão trágica do humano, mas não niilista.
O trágico aponta para uma série de dificuldades que nenhum avanço tecnológico ou farmacológico poderá contornar sozinho, como tornar-se adulto (a infância como destino); saber amar (caráter errante do desejo); conhecer-se em profundidade (inconsciente); lidar com múltiplos conflitos (Ego, pobre diabo, servindo a três senhores); ser ético e não apenas moral (superego); se tornar animal social a despeito de ser mais um animal de horda (Totem e tabu); assumir o trágico da cultura, evidenciado na luta de gigantes entre Eros e Thanatos, enfim, a dificuldade de um desamparo fundamental e da impossibilidade de ‘ser feliz’.
Somos todos de alguma maneira como os heróis das tragédias gregas: ‘vítimas voluntárias’. Tanto no registro individual, quanto no registro social e mundial há algo que não escolhemos. Foi dado ou imposto e muitas vezes está na origem das ‘desgraças’ que se abatem sobre nós, tais como a doença, a violência, o terrorismo, a guerra, a desigualdade, a exclusão social. Todavia, não podemos renunciar à nossa responsabilidade humana.
Nesse sentido, não é possível ignorar que a psicanálise é também habitada e animada por duas utopias (ROUANET, 2003, p. 154-164), isto é, que é possível minorar alguns dos males humanos tanto individuais quanto culturais. Trata-se, porém, de utopias como possibilidade de uma autotranscendência rumo a algo que é inalcançável e, ao mesmo tempo, irrenunciável.
Talvez possamos sintetizar a tensa relação inconsciente x liberdade com as duas utopias, que lhe estão atreladas, a individual e a social, numa única frase: “onde havia Id e Superego cultural deve advir o Ego”. Uma recaída ptolomaica de Freud? É provável. Segundo Marcuse, essa famosa frase de Freud é “a mais racional de todas as formulações que se possa imaginar em psicologia” (MARCUSE, [1968] 2001, p. 121). Otimismo ingênuo? Certamente não. Trata-se de um “otimismo desesperado” como o apelida Sergio Paulo Rouanet (2004, p. 123-134) ou, segundo as palavras do psicanalista austríaco Igor Caruso, de um “ceticismo desiludido, mas ao mesmo tempo, [com] a esperança obstinada, quase insensata, na vocação do homem para se tornar mais humano” (CARUSO, 1970, p. 127).
Conclusão
Para encerrar, gostaria de visualizar plasticamente esses ideais que se abrem para o homem contemporâneo que pode integrar o oráculo de Delfos “conhece-te a ti mesmo” com aquele pós-moderno: “constrói-te a ti mesmo”, o que postula uma liberdade menos domesticada e mais ousada.
Na figura mitológica do Ulisses de Homero se encontra a personificação do logocentrismo ocidental em geral, do racionalismo iluminista em particular e de uma liberdade que finalmente se reencontra com a segurança. O herói homérico sempre leva a melhor sobre o irracional representado pela sede de vingança de Netuno, a força bruta de Polifemo, a sedução das sereias, a magia de Circe e, dessa maneira, volta para a rotina da vida familiar e política de Ítaca.17
Encontra-se, também, em Ulisses, o Odisseu, o Aventureiro, a personificação desse novo ideal de uma liberdade aberta a novas experiências e à ampliação de um autoenriquecimento, integrando com a racionalidade a astúcia, a malícia, a curiosidade, a criatividade quase infinita do nosso inconsciente. Na versão de Dante, Ulisses não volta para sua pátria, mas se arrisca no mar aberto além das Colunas de Hércules rumo ao desconhecido. Apesar de a aventura ter terminado tragicamente em naufrágio na versão dantesca, certamente permanecerá a razão que Ulisses apresentou a seus companheiros antes de fazer dos remos asas para o “folle volo” (voo enlouquecido):
Considerate la vostra semenza:
[Considerai vossa origem:]
fatti non foste a viver come bruti,
[feitos não fostes para viver como brutos,]
ma per seguir virtute e conoscenza
[mas para seguir virtude e conhecimento]
(DANTE. Inferno. Canto XXVI, v. 117-120)
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Endereço para correspondência
Av. Beira Rio, 660/1601 - Madalena
50610-100 - Recife - PE
E-mail: dimatteo@nlink.com.br
Recebido: 30/09/2014
Aprovado: 21/10/2014
SOBRE O AUTOR
Vincenzo Di Matteo
Prof. Dr. Aposentado da UFPE - Depto. de Filosofia.
1 Em suma, estaríamos sujeitos a várias formas de determinismo, mas não necessariamente ao fatalismo. Nesta última perspectiva do fatalismo, seríamos o que somos porque um ‘outro’, entendido como Fado, Deus, Ser (determinismo teológico-filosófico), economia (determinismo histórico-econômico), sociedade, cultura (determinismo sociocultural), corporalidade (determinismo biológico-genético), inconsciente (determinismo psíquico), nos destinam a sermos o que somos.
2 A história da filosofia atesta que a confrontação com outras disciplinas sempre a fecundaram. Assim foi com os pré-socráticos e a astrologia; com Pitágoras, Platão e a geometria e a matemática; com Aristóteles e as ciências naturais; com Agostinho, Tomás de Aquino e a teologia; com Descartes e a mecânica galileiana; com Kant e a física de Newton; com Hegel e as ciências históricas e sociais; com Husserl, Russell, Wittgenstein e as matemáticas.
3 Segundo Gay (1989, p. 291), o que importava a Freud “[...] não era tanto o que poderia aprender com a história da arte, a linguística e as demais [áreas do saber], mas o que elas poderiam aprender com ele; Freud entrou em terras alheias mais como um conquistador do que um suplicante”. Cfr. Também a carta a Jung, de 30 nov. 1911, em que Freud parece dispensar outros interlocutores: “ψ fará da se” (FREUD/JUNG, 1976, p. 535).
4 “Ao ser arrastada, porém, na órbita do modelo poiético do conhecimento, a liberdade, enquanto autodeterminação e poder de escolha que avoca a si o fazer o sentido, torna-se, talvez, o traço mais característico da figura histórica do sujeito na modernidade” (VAZ, 1994, p. 12).
5 O livro se encerra com uma frase que parece salomônica para dividir o sim e não à psicanálise: “A obra de Freud é a análise mais profunda que conhece a história daquilo que no homem não é o mais humano” (DALBIEZ, [1936] 1947, p. 302).
6 Bonneval mostra que a psiquiatria dinâmica, no decorrer da primeira metade do século XX se aproximou bastante da psicanálise ao tentar explicar o psiquismo não apenas a partir do modelo nosográfico da psiquiatria positivista, mas também do modelo cultural, fenomenológico e psicoterápico. Já em 1946, os adeptos de um “inconsciente biológico” e de um “inconsciente mais linguístico” tiveram oportunidade de expor seus pontos de vista. Assim, H. Ey relembra aquele terceiro encontro dos seis que ele organizou em Bonneval: “Em 1946 tivemos a famosa discussão sobre A psicogênese das psicoses e das neuroses cuja fama, um pouco empanada, ainda brilha no fundo de todos aqueles que dela participaram. Foi nessa jornada que entrei em contato com Jacques Lacan e, desde então, marcamos a divergência de nossa pesquisa da verdade e nosso comum esforço para chegar até ela” (EY, H. 1966, p. 9).
7 Os psiquiatras foram representados por Georges Lantéri-Laura, Sven Follin, Claude Blanc, François Tosquelles e René Angelergues.
8 Os psicanalistas da Sociedade Psicanalítica de Paris, por Serge Lebovici, René Diaktine, André Green e Conrad Stein.
9 Os psicanalistas da Sociedade Francesa de Psicanálise, à qual pertencia Lacan, por Serge Leclaire, François Perrier, Jean Laplanche e J.-B. Pontalis.
10 Ricoeur, por exemplo, reconhece o abalo considerável que constitui para ele, enquanto filósofo, o encontro com a psicanálise e é forçado a uma dupla confissão que soa como uma verdadeira autocrítica: “[...] eu não compreendo o inconsciente a partir do que sei da consciência ou mesmo do pré-consciente [...]”; “[...] eu já não compreendo sequer o que seja a consciência [...]” (RICOEUR, 1966, p. 409).
11 Conforme o ‘resumo’ redigido por J. B. Pontalis a respeito da intervenção de Lacan na discussão do tema “o inconsciente e a linguagem”. Sobre ‘o resumo’ de Pontalis e sua fidelidade com a verdade histórica, remetemos tanto ao ‘sim’ de E. Roudinesco (HPF2, p. 336), quanto ao ‘não’ de Lacan (1966, p. 833; EY, 1966, p. 190).
12 Segundo Fink apud Pintor Ramos, 1978, p. 253.
13 Trata-se de uma conferência proferida no King’s College, em 04 mar. 1959, praticamente na mesma época do prefácio de Merleau-Ponty.
14 Sobre as divergências, isto é, se o inconsciente é a condição da linguagem (Laplanche) ou se a linguagem é a condição do inconsciente (Lacan) e os desdobramentos da polêmica, remetemos tanto à obra de E. Roudinesco (HPF2, p. 330-337), quanto ao texto de Laplanche, especialmente ao postscriptum acrescentado em 1966 (LAPLANCHE, 1966, p. 111-112); ao texto que Lacan elaborou em 1964, após a ruptura, portanto, da SFP (O inconsciente. 1966, p. 188-199, também publicado nos Escritos com o título Posição do inconsciente no Congresso de Bonneval retomada de 1960 e 1964 (Écrits. 1998, p. 829-850); ao prefácio de Lacan à tese de doutorado de Anika Lemaire (LACAN, J. Prefácio. In: LEMAIRE, 1982. p. 17-27); bem como ao capítulo desse livro dedicado ao estudo crítico do artigo de Laplanche em Bonneval com esclarecimentos sobre o pensamento de Lacan (1998, p.161-181).
15 Segundo Bauman (1998, p. 10) e parafraseando Freud, teríamos trocado uma segurança com pouca liberdade por uma liberdade sem segurança. “Se obscuros e monótonos dias assombravam os que procuravam segurança, noites insones são a desgraça dos livres”.
16 Inicialmente, o Manual levava em conta as contribuições da psiquiatria dinâmica e da psicanálise, isto é, reconhecia que os distúrbios mentais eram decorrentes da história pessoal do sujeito e de sua articulação com o mundo familiar e sociocultural, o que demandava um tratamento medicamentoso, mas associado com uma terapia que levasse em conta a história do sujeito. Essa síntese alcançada pela psiquiatria dinâmica foi se dissolvendo progressivamente com o abandono da terminologia psicanalítica. Os conceitos – psicose, neurose, perversão – viraram “distúrbios mentais” e entraram na órbita de uma medicina biofisiológica. A última versão do DSM, com sua profusão de categorias clínicas, evidenciaria – segundo alguns críticos - uma verdadeira “psiquiatrização da vida cotidiana” ao mesmo tempo que revelaria uma moral psiquiátrica implícita, fiadora de determinados valores sociais apresentados com as credenciais de uma pretensa normalidade médica (SAFATLE, 2013).
17 Cf. A canção de Lúcio Dalla intitulada Ítaca. Nela, ficam evidentes o desejo e a felicidade dos remadores em voltar para sua cidade e suas famílias. Ao ritmo dos tambores, cantam em coro: “Ítaca, Ítaca, Ítaca, a minha casa eu a tenho somente lá e para casa eu quero voltar, do mar, do mar, do mar”. Na última estrofe, porém, a segurança dos lares vacila em favor da aventura da liberdade. “Capitão, que soluciona com a astúcia cada aventura, lembra-te de um soldado que cada vez tem mais medo, mas também o medo, no fundo, dá-me sempre um gosto estranho; se houver ainda mundo, estou pronto, onde vamos? Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Xxk-j8YugkA>. Acesso em 22 set. 2014.