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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.48 Belo Horizonte July/Dec. 2017

 

PAINEL TEMÁTICO - DESAFIOS ATUAIS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

 

Esconderijos e medos

 

Hiding places and fears

 

 

Maria Beatriz Jacques Ramos

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo aborda temas relacionados com a angústia de separação – a intrusão, o negativo e a pulsão de morte na presença do medo. O medo provoca engano e mentira, leva a esconderijos psíquicos nos quais predominam a compulsão à repetição e a transgressão. O medo obstaculiza o vínculo com o outro, com a vida e interroga o setting analítico.

Palavras-chave: Angústia, Pulsão de morte, Setting analítico.


ABSTRACT

This study deals with themes related to separation anxiety - intrusion, the negative, and death instinct in the presence of fear. Fear causes deceit and lies, leads to psychological hiding places in which compulsion to repetition and transgression prevail. Fear hinders a bond with the other, with life, and questions the analytical setting.

Keywords: Anxiety, Death instinct, Analytical setting.


 

Nos esconderijos, residem as agonias em um constante vaivém, ancoradas no território infantil, matizadas por amor e ódio. A trilha do funcionamento psíquico segue o desígnio pessoal, convergindo com o singular e o plural por tramas da meninice marcadas pela necessidade de cuidado, confiança, acolhimento e segurança. Tramas que deixam marcas, avivam a interioridade, exprimem as nuances da agressividade e da bondade, da aproximação e da separação, da possibilidade de estar junto e afastado.

No inconsciente estão os desejos e os afetos signatários da atemporalidade, da pulsionalidade e das fantasias resistentes e persistentes que se sobrepõem à espacialidade intersubjetiva.

Cada escrito tem um começo, uma ilustração ou acontecimento. Alguém convoca e provoca atenção, desenreda a fala e registra uma história.

Neste caso, é Rodrigo que, de forma inusitada e breve, conversa sobre o medo:

Eu penso, ah, ah...
Quem diz que não tem medo quer dizer que tem medo de dizer que tem medo e sai correndo. Não dá para correr do medo, porque tem uma emoção dentro do medo e ele fica com mais medo. A explicação do medo termina com o medo, vira uma conversa de emoção. Todos sentem medo. Se eu falar tudo sobre o medo, vocês vão falar que falo de emoção. É isto mesmo! O medo tem mais coisa de emoção que de medo. Só cada pessoa sabe e sente como é o medo. E quando fala, ela entra no medo, na barriga do medo. Pergunta para os especialistas do medo, eles vão falar a mesma coisa. É simples assim... Mas o medo é importante. Vamos supor que uma pessoa tem medo. Esse medo é medo dela mesma. Todo ser vivo tem isso e vocês vão ter orgulho de ter medo. Sério! Ele é importante. Não importa ter medo ou não, tem que encarar e lutar contra. Pronto! Acho que falei tudo que existe sobre o medo. Todos têm medo. (Rodrigo, 6 anos, 29 maio 2017).

Rodrigo narra e escuta o próprio medo, as perdas, as exceções e o desamparo que aparecem no “sonho sonhado e no sonho acordado”. Expõe o discurso, a matriz simbólica calcada nos pais, na construção de imagens e nas representações.

Esconderijos e medos visitam as histórias e os dramas. Avistam os encontros e os desencontros; os paradoxos entre presente e passado, o pensamento e o afeto.

A criança vive angústias internas e externas. Desde a partida do útero, ela chora inundada pelo outro numa interação com a vida e a morte. Angústias persecutórias e culpas não são totalmente superadas, pois incidem na onipotência, na idealização, na negação, na projeção e nas dobras da infância que não foram reparadas.

A linguagem vai além da comunicação de alguma coisa, é uma forma de agir sobre o outro. É na palavra que a pulsão insiste e repete. Ao segui-la, acompanhamos as pegadas pulsionais e identitárias.

Para avançar nesse tema, apresento três peças de Nelson Rodrigues (1912-1980): A mulher sem pecado (1942), Os sete gatinhos (1958) e O beijo no asfalto (1961).

Nelson Rodrigues, dramaturgo brasileiro e jornalista, coloca em ato a ousadia, a ironia e contorna os relacionamentos limítrofes. As falas são polêmicas e atuais, as montagens ilustram inveja, ciúme, nascimento e morte, penalidade e engano. Engano e mentira, criação e recriação da satisfação e da dor por meio do rompimento e destruição de si mesmo.

A pessoa destrutiva quer mais à custa dos demais, pois não é capaz de consideração e generosidade. Ela não tolera a presença e desafia a diferença. Ela quer a posse. Sua finalidade é danificar a coisa cobiçada. A conexão entre avidez e inveja mostra que o outro é um rival que pode roubar ou privar o bem-estar, além de ser portador das qualidades que provocam desejos.

 

Primeiro tempo: textos e pretextos de Nelson Rodrigues

A mulher sem pecado, peça apresentada no Teatro Carlos Gomes, Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1942.

Olegário, casado com Lídia, um homem preso à cadeira de rodas, suborna a empregada e o motorista para confirmar a suposta traição da esposa. Lídia pergunta o que fez ou faz, do que é acusada. Sua vida não tem mistérios. Sai com amigas, vai à costureira, à cabeleireira e, quando retorna a casa, é permanentemente agredida, torturada. Para Olegário, ela mente, pois ele não sabe para quem olha na rua, não sabe o está dentro dela, não sabe o que ela sente, o que sonha, o que fez no passado. Insiste que casou com o passado da mulher, que seus atos podem ser puros, mas seu pensamento não. Ele sofre e faz sofrer, maltrata para ser maltratado. Não é louco, é paranoico, é cruel, carrega o fardo do ciúme de forma perversa. Queixa-se de sua condição, da mãe doente (catatônica/parada), da sogra e do irmão adotivo de Lídia, que moram em sua casa. Sustenta todos e não é recompensado; escuta a voz da primeira mulher, a falecida; ouve vozes, vê uma menina que aparece e desaparece, que sobe e desce as escadas. Carrega o inferno e precisa de provas da infidelidade. Acredita que ninguém é fiel a ninguém, pois cada mulher esconde uma infidelidade passada, presente ou futura. A única coisa que interessa é ser ou não ser traído.

Enquanto isso, Humberto, o motorista, sempre à procura de provas, mantém a história de Olegário. Conta que, quando menino, foi castrado por um homem, sofreu uma mutilação. Era o único que não representava perigo, que não podia tocar no corpo de Lídia, “pegá-la”.

Olegário se levanta no terceiro e derradeiro ato. Ele não era paraplégico. Ficou sete meses na cadeira para testar a fidelidade da mulher. Agora tinha certeza de que ela não tinha pecado, mas nesse momento recebe uma carta.

Olegário! Parto com Humberto. Nunca mais voltarei. Não quero seu perdão. Adeus, Lídia. Nunca mais voltarei. Nunca mais...
[...]
Só, Olegário vai à gaveta da secretária. Apanha um revólver. Abre o tambor, olha-o, fecha-o. Ele se aproxima da mãe, que nada vê, que só enrola um eterno paninho, encosta o revólver na fronte (RODRIGUES, 2012, p. 84).

A farsa termina! Olegário é vencido por aquilo que provocou! Humberto, homem viril, arrebata Lídia, a seduz, trata-a como cretina. Lídia foge. Cumpre o desejo do marido!

Os sete gatinhos, peça apresentada no Teatro Carlos Gomes, Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1958.

Aurora e Bibelot se encontram para um programa. Ele sem um tostão, e ela com o compromisso de levar quinhentos cruzeiros para casa. Um dinheiro destinado ao casamento da irmã caçula, a única virgem da família. Eles vão para um apartamento, e Aurora conta que em sua casa são cinco mulheres e que, da penúltima para a caçula, havia um espaço de dez anos. As quatro, mais velhas, não se casaram, se prostituíram, e a maninha com 16 anos estuda no melhor colégio do Rio de Janeiro, vai se casar na igreja de véu e grinalda e, para isso, juntam tostão a tostão do que ganham para o enxoval. As quatro irmãs vendem o corpo, mas não pode faltar o dinheirinho do enxoval.

O pai, seu Noronha, um contínuo que servia café para os deputados e frequentava uma casa espírita, tinha o seguinte raciocínio:

Eu tive cinco filhas. Acompanhem meu raciocínio: quatro não se casaram [...] Tem algo entre nós! Alguém perde as minhas filhas! [...] Alguém que não deixa minhas filhas casarem! [...] Não interessa nome! Nem cara! [...] Alguém perdendo nossas virgens! [...] Ontem o dr. Barbosa Coutinho (espírito de luz) me confirmou que existe, sim, esse alguém. [...] E, então, o dr. Barbosa Coutinho mandou que eu olhasse no espelho antigo. Pois bem. Olhei no grande espelho e vi dois olhos, um que pisca normalmente e outro maior parado. O pior é que só o olho maior chora e o outro, não. [...] Esse alguém, que chora por um olho só, sabe que ainda temos uma virgem! [...] Silene, tão menina e tão virgem! Mas eu juro! Não hei de morrer sem levar Silene, de braço, até o altar, com véu, grinalda, tudo! [...] É preciso salvar a virgem que nem seios tem! (RODRIGUES, 2012, p. 33).

No segundo ato, Silene, a predestinada, retorna a casa com o Dr. Portela, pois é expulsa do internato. O doutor conta que a jovem de 16 anos tinha matado a pauladas uma gata grávida. A gata do vizinho que andava pelo colégio. E, enquanto recebia os golpes de Silene, paria sete gatinhos. Tudo na presença das alunas e professoras do estabelecimento. Foram momentos horríveis, indescritíveis, e algumas meninas passaram muito mal. O Dr. Portela diz que tentou segurá-la, mas Silene não parava, ela estava transtornada e tinham testemunhas.

Silene confessa que matou, que esmigalhou a cabeça da gata. Diante da confissão, Noronha não tem saída. Ele chama um médico para examinar a filha e descobre que ela está no terceiro mês de gravidez. O pai da criança era seu amante, um homem casado. A partir daí, Noronha diz que não irá entregar cafezinho aos deputados e que todas as filhas seriam prostitutas. Entrega Silene ao médico para que comece o serviço.

Aurora, ao conversar com Silene, avista que seu amante é Bibelot. A irmã ia para casa dele e ficavam no quarto da empregada. Em sequência, entra Bibelot. Ele conta que ficaria sozinho, a esposa morria, mas logo arrumaria uma mulher para ficar em casa (Silene) e outra na zona (Aurora). Aurora, furiosa e humilhada, conta os planos de Bibelot. Entrega-o ao pai que o mata. Porém, logo as irmãs percebem que o homem errado tinha morrido e partem para cima de Noronha. Lembram que ele prostituiu Silene, que mandava velhos deputados as procurarem para se tornarem amantes.

O pai inventa, se empodera da nobre intenção em relação à filha mais nova. Queria um casamento de anjo para Silene! Arlete, uma das filhas, mostra que ele não se arrepende, não chora por elas, mas por si mesmo.

Olegário exibe o choro, elas querem ver as lágrimas e descobrem uma lágrima caída de um olho. Ele era o demônio que chorava com um só olho. Neste ato, Hilda, outra filha, entra em transe mediúnico e recebe o primo Alípio, que manda matar o velho, enterrá-lo no quintal com a única lágrima no rosto. Em meio a gritos, a filha apunhala o pai e diz: “Morre, velho safado!”

 

O beijo no asfalto, apresentada no Teatro Ginástico, Rio de Janeiro, 7 de julho de 1961

A história principia numa delegacia com um diálogo entre um repórter e o delegado sobre um atropelamento, seguido de morte. O repórter diz que o caso é inédito, já que o homem atropelado por uma lotação recebe um beijo na boca de outro homem que estava no local. A partir desse fato, desenrola-se a peça. A vida de Arandir se torna um martírio para provar a boa intenção a despeito da tragédia que se desenrola.

Selminha, a esposa, e Aprígio, seu pai, ficam entre a perplexidade e a decepção. A suposta traição se desenha. Arandir é interrogado e humilhado na delegacia; acusado de gostar de homem e de conhecer a vítima, de dar um show ao beijar o moribundo. No decorrer da peça, a posição do pai de Selminha e a indecisão da mulher tomam conta. A única pessoa que tenta compreendê-lo é Dália, a cunhada.

Jornalistas invadem a vida de Arandir. Querem detalhes sobre “o suposto crime”. Todos são interrogados, inclusive Selminha, que começa a duvidar da inocência do marido e pensa já ter visto o rapaz em sua casa e, possivelmente, esse não tenha sido o primeiro beijo, nem a primeira vez. Sente-se enganada, atraiçoada. As alegações de Arandir são desnecessárias. Ele é enxovalhado, sai do emprego, não suporta as piadas e mortificações. A sentença estava posta - ele é culpado - conhecia e se relacionava com outro homem. Seu Aprígio, o mais indignado e abatido com os fatos, briga com a filha, acusa-a de não saber amar.

Aprígio trata o genro como canalha e diz para Dália (filha mais nova):

Esse pulha. Na minha frente. Nem respeitou minha presença. Na minha frente, sim! Na frente de toda cidade. Toda cidade estava lá, vendo, espiando! (exultante e feroz) E ele beijou na boca um homem! [...] Humilhou minha filha. [...] Eu estava junto com meu genro. Quando ele se abaixou, eu estava ao lado. Juntinho, ao lado. E vi e ouvi tudo. Olha ninguém pediu beijo! O rapaz já estava morto. [...] Beijou porque quis e não era um desconhecido. Eram amantes! (RODRIGUES, 2012, p. 68).

Dália supõe que o pai ama Selminha como mulher. Ele ri. Isso não era verdade. Não era isso que sentia! Porém, no último diálogo de Aprígio e Arandir, os sentimentos se revelam. O sogro questiona:

Aprígio (violento) – Escuta! Vim aqui saber! Escuta! Você conhecia esse rapaz?
Arandir (desesperado) – Nunca vi.
Aprígio – Era um desconhecido?
Arandir – Juro! Por tudo que há de mais! Que nunca, nunca!
Aprígio – Mentira!
Arandir (desesperado) – Vi pela primeira vez!
Aprígio – Cínico! (muda de tom, com uma ferocidade) Escuta! Você conhecia o rapaz. Conhecia! Eram amantes! E você matou. Empurrou o rapaz! [...]
Aprígio (ofegante) – Eu perdoaria tudo. (mais violento). Só não perdoo o beijo no asfalto. Só não perdoo o beijo que você deu na boca de um homem. [...] Pela última vez, diz! Eu preciso saber! Quero a verdade! Vocês eram amantes? (sem esperar a resposta, furioso) Mas não responda. Eu não acredito. Nunca, nunca acreditarei. (Numa espécie de uivo) Ninguém acredita! (RODRIGUES, 2012, p. 81).

E finaliza com a revelação:

Aprígio – Você era o único homem que não podia casar com a minha filha! O único!
Arandir (atônito e quase sem voz) – O senhor me odeia porque deseja a própria filha. É paixão. Carne. Tem ciúmes de Selminha.
Aprígio (num berro) – De você! (estrangulando a voz) Não de minha filha. Ciúmes de você. Tenho! Sempre. Desde o teu namoro, que não digo teu nome. Jurei a mim mesmo que só diria teu nome a teu cadáver. Quero que você morra sabendo. O meu ódio é amor. Por que beijaste um homem na boca? (RODRIGUES, 2012, p. 82).

Aprígio atira em Arandir! Num espasmo de dor, ele morre enrolado no jornal que o difamou. Morre diante do desespero de Aprígio, que grita o nome amado em meio às penumbras e trevas da desolação.

 

Segundo tempo: paradoxos que condenam

Olegário, Noronha e Aprígio habitam o mundo de Hades, caminham nas profundezas da alma! Na mitologia grega, Hades é o deus do submundo e das riquezas dos mortos, é governante dos subterrâneos da Terra.

Esses homens expiam as turbulências das bifurcações do ser e do ter. Representam a sanidade e a loucura, os desafios e as rupturas.

Sua história não é linear! Ela fica entre o passado e o presente, sinaliza a fronteira da realidade e da recusa. Indica compulsões, esconde a mentira e a dor de si mesmos; a nostalgia do que foi perdido, a busca pelo corpo do outro para atuar as angústias.

A recusa assume o controle da vida e promove vínculos sádicos. Os atos ilustram a dissociação do eu e conectam a “fome da dúvida cruel” e do vazio. O ódio mobiliza a destrutividade contra o outro e contra si mesmo. Os traumas movimentam pensamentos e emoções. As escolhas amorosas cobrem o superego punitivo, que se apropria da consciência ao atacar o presente e o futuro.

Nessas exibições, o superego denota uma realidade complexa, um cortejo de acusações para evadir a cólera, a transgressão, a impotência e a perda. Assim, aparecem o desafio, a dissociação e as construções que ilustram a falta do reconhecimento de si como ator da ação.

A vida deles é árida, atuada e movida por impulsividade. Há uma saturação de subentendidos e tropeços nos atos e nas palavras, na ordem do recalcado. As palavras são mais do que uma forma de comunicação, são uma forma de atuar e rastrear as pegadas das projeções.

O sofrimento os une e, ao mesmo tempo, tenta aplacá-los por meio das defesas primitivas, numa insistente negação e crueldade. Denota maestria nas modalidades excitadas de masoquismo e sadismo. O ataque ao vínculo não ocorre apenas contra o outro, mas contra o ego, contra a capacidade de buscar novas ligações. A frieza e a indiferença tornam-se escudos das intrusões e ausências.

Amar e odiar a mesma pessoa! Um paradoxo! Um paradoxo ilustrado por Nelson Rodrigues na vida de Olegário, Noronha e Aprígio.

Olegário almeja a traição da esposa. Noronha, a relação incestuosa com a filha mais jovem, a menina sem seios, a menina inocente que sonha em conduzir ao altar. Aprígio almeja o semelhante, o genro, o homem que casou com sua filha. Os sentimentos que prevalecem são inveja, avidez e indignação.

A epifania da pulsão de morte remete à elucubração persecutória, à projeção do ódio contra objetos internos perigosos e ameaçadores.

Vazio e repúdio reativam angústia paranoide e defesas maníacas. Empobrecem o ego e o contato com a realidade. Conectam-se com os desligamentos e desuniões.

Nessas histórias, vemos o psiquismo assentado na perda, numa atividade metafórica contínua. A interioridade fica apoiada na impossibilidade de viver, na proeminência do masoquismo mortífero. Eles sentem dores, mostram o adoecimento psíquico decorrente do castigo, num fluxo de ataque e contra-ataque. A intensidade dos medos é evidente e proporcional às tendências destrutivas.

Eles são massacrados pelo sofrimento e pelo sadismo. Sadismo que une agressividade e prazer. Sadismo que visa dominar o objeto para fugir da castração. Eles se notam privados e expiam uma ferida narcísica.

Freud, em 1922, apresenta o texto Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade. Nesse material, indica que o ciúme se origina de uma projeção, tem um caráter quase delirante e revelador das fantasias inconscientes de infidelidade, nas quais os personagens são do mesmo sexo da pessoa. O ciúme delirante se manifesta na paranoia, pois o ciumento projeta para fora o que não quer perceber no próprio interior.

Quem mente, mente para si mesmo. Quem engana, engana a si mesmo. Quem tortura precisa alimentar a dor de forma sadomasoquista.

Em O problema econômico do masoquismo Freud ([1924] 2011) reitera que as mortificações masoquistas e as crueldades fantasiadas ou executadas sadicamente remetem à pulsão de morte. Para ele, a pulsão de morte é atuante, principalmente no sadismo e no masoquismo, quando em muitas circunstâncias a destruição se volta para fora, é projetada e reintrojetada à situação masoquista erógena.

O sadismo do superego e o masoquismo do ego se complementam e se juntam para produzir as mesmas consequências.

Na metapsicologia kleiniana, expande-se a compreensão do superego sádico, inicialmente incipiente e arcaico, que adquire forma nas relações objetais. A dialética entre o mundo interno e externo, as fantasias inconscientes e a realidade determinam as angústias ligadas à agressividade e ativam defesas para que o sujeito litigue as emoções e as comunicações com os outros.

Klein, a partir de 1935, apresenta os pressupostos do ego persecutório com uma crueldade intensa. Um ego que realiza um movimento perigoso de ataque aos objetos temidos, que teme a retaliação e projeta agressão como mecanismo de proteção contra a ameaça e a intimidação externa. Um efeito bumerangue, que fragmenta o ego e a realidade. A confusão entre o bom e mau, o intrapsíquico e intersubjetivo engendra a confusão entre o interno e o externo. A frustração reforça o sofrimento e agencia o empobrecimento psíquico pelo uso da identificação projetiva; uma identificação que aloca no outro o temido e negado em si mesmo. O medo de ser aniquilado e extinto cria os protótipos dos perseguidores internos e aciona os comportamentos sádicos. O que é colocado para dentro com ódio e a excessiva cisão fazem persistir a onipotência narcísica.

É importante lembrar que a cisão é uma defesa primária, protótipo do recalque, modula a intensidade das vivências primevas e erige uma barreira mais ou menos rígida entre inconsciente e consciente.

Sentimentos de abandono e dano resultam em depressão, em empobrecimento do sujeito e da capacidade de simbolizar. A intolerância às interdições mostra oscilações das situações angustiantes, marca os entrelaçamentos paranoides e depressivos.

Com essas cogitações, avizinham-se os finais das histórias e dos três personagens despedaçados. Pessoas submersas nas fantasias inconscientes e na modalidade erótica da raiva. Elas jazem no passado revivido, na passividade transformada em atividade. Expõem a desumanização de si e da alteridade, pois o trauma está instalado na anatomia e na identidade sexual.

As comunicações das figuras dramáticas lembram a ineficácia das tendências reparadoras. Eles sabem e negam. Habitam dois mundos: o oficial e o reservado, falam do que está morto ou da condição de moribundo.

 

Terceiro tempo: não acaba quando termina

Na dramaturgia de Rodrigues, a autossuficiência e o negativo conservam a pulsão de morte. E isso remete à mitologia grega, ao destino de Tirésias e do psicanalista.

A visão de Tirésias, etimologicamente, o que tem capacidade de visão, é a visão de dentro para fora, por isso é mántis. Diga-se, de passagem, que, de maneira muito constante, a mântica está relacionada com a serpente, réptil ctônio por excelência e, por isso mesmo, em comunicação com o mundo de baixo, depositário muito antigo da adivinhação (BRANDÃO, 2002, p. 176).

Essa história trata da mudança em seu caráter divinatório:

Acrescente-se logo que esses repetidos cambiamentos de sexo na Antiguidade já eram considerados “como forma de expressão de uma natureza propriamente andrógina”, segundo resulta da representação de um espelho etrusco, em que Tirésias, no Hades, aparece com aspecto de hermafrodito (BRANDÃO, 2002, p. 176).

Tirésias, uma metáfora mítica; um cego que tudo vê, que foi homem-mulher e mulher-homem, que entende dos mais variados sentimentos dos sexos e passa a interpretar as mensagens e os mistérios de alguns mitos gregos. Entre eles, do longo e rico ciclo tebano quando Édipo mata o pai, elimina a esfinge e desposa a mãe. Tem descendentes com Jocasta e busca a confirmação, a revelação dos seus segredos em Tirésias. Segredos nem tão escondidos. Tirésias também esclarece a vida e a maldição de Narciso.

Na mitologia, entende-se que a cegueira de Tirésias é exterior; a cegueira de Édipo e Narciso é interior. Tirésias avista o que não vê, de dentro para fora. Édipo e Narciso olham o que não “enxergam”, olham de fora para dentro, numa dura dialética da visão.

Nas produções teatrais, realizam-se especulações entre a realidade e a ficção, a compulsão e a solidão, as ciladas e as artimanhas que driblam os desejos e afloram o sintoma. Um sintoma que está na vida, na transferência analista e analisando. Que suscita atenção em relação às demandas para decifrar.

A escuta leva ao lugar do outro; um lugar de criação. O tratamento analítico promove encontro com a repetição. A escuta põe em suspensão a singularidade e a deformação. Assim, o analista se compromete com o que permanece, e o que muda se depara com o recalcado e repressor das pulsões e seus derivados.

Portanto, no campo analítico alguns fatores se destacam: o discurso explícito do paciente; a percepção de si mesmo, o funcionamento psíquico, o modo como se manifestam e compõem as relações objetais, o narcisismo e o masoquismo. Nesse paradigma, a atenção flutuante descentra o discurso do paciente para procurar um novo centro, que não está no conteúdo manifesto, mas em outro lugar.

O trabalho analítico caracteriza-se por examinar as modalidades de ligação e de desligamento, o trabalho do negativo nos desinvestimentos objetais e nas funções psíquicas.

A negatividade age contra a expansão da vida mental e somática, diz respeito ao ódio, ao vazio e à destrutividade causa de sofrimento e inibição associativa. Na psicanálise, a ética passa por um contato afetivo e um conhecimento, já que “antes de curar a ferida é necessário cuidar do fio da faca”. Um fio que pode machucar e arranhar.

A análise tenciona a relação aqui e agora, exige do analista uma ocupação psíquica contínua, uma inclusão na trama das emoções e pensamentos do paciente, uma implicação.

Se as coisas funcionam bem, as turbulências perceptivas e afetivas são decompostas em imagens e ideias, nas quais afeto e simbolização podem dialogar. A clínica reflete o analista, o modo de estar consigo mesmo para estar com o paciente.

Na clínica nascem a teoria e o analista num discurso vivo. Mais do que uma forma de comunicação, a palavra é uma forma de agir um sobre o outro. A situação analítica e a regra fundamental – a livre associação, a atenção flutuante e a escuta – induzem ao recalcado.

É na linguagem que a pulsão insiste. Pode não ser falada, mas invoca o traumático. Ao seguir essa via, acompanhamos as vicissitudes da pulsão e as pegadas transferenciais.

A transferência rompe com a objetividade, inclui uma montagem entre analisando e analista. Um lugar onde os dois estão no campo da presença e da ausência. O analista reconhece a transferência sem se confundir com ela e remete o sujeito aos fundamentos infantis da onipotência, da estrutura narcísica primária e da renúncia.

A escuta traz à cena uma narrativa. Mas qual narrativa? Possivelmente não a factual, mas a constituída nas fantasias. Fantasias que irrompem no sintoma e no seu deciframento. Tal como os mitos, as fantasias respondem aos enigmas que o sujeito coloca. Desse ou de outro modo, tudo se complica à medida o analista tem seus devaneios e seus mitos. Os devaneios e os mitos podem limitar a escuta e impedir a empatia, obstaculizar as possibilidades do analisando reconstruir uma nova ideia, uma nova experiência.

Assim como a existência do eu, requer o outro, pois ambos se constituem na intersubjetividade, o si mesmo se apoia nas identificações e na progressiva internalização dos relacionamentos objetais que infligem marcas no narcisismo.

Green (1988) usa a expressão “narcisismo de vida, narcisismo de morte”, título de uma das suas obras, para ilustrar os vínculos e a angústia. O principal objetivo da pulsão de vida é a função objetalizante, cunhar uma relação com o objeto, transformar o eu em objeto libidinal investido pelo narcisismo de vida.

A pulsão de morte tem como objetivo exercer uma função desobjetalizante, marca do narcisismo negativo. Descargas no corpo, no ato, na percepção (alucinação), que comprometem a relação objetal com seus substitutos ou com o próprio ego. O traumático não representado provém da intensidade das percepções e da incapacidade de transformar uma vivência em algo psíquico.

O discurso do narcisista é recitativo e narrativo, como se a simples desconexão da linguagem tivesse o poder de destruir a imagem do self, perseguida pelo despedaçamento e desamparo. A frieza e a indiferença tornam-se escudos para proteger o self e afastá-lo da angústia de intrusão e separação.

Diria inclusive que o que caracteriza a estrutura narcisista é este ponto fraco na armadura ou no brasão. Ponto rapidamente percebido pelo objeto, que sofre por se ver mantido assim à distância, excluído da relação de proximidade, congelado pelo sujeito narcisista (GREEN, 1988, p. 178).

A imagem narcísica é uma das condições do aparecimento do desejo e do reconhecimento. Compõe-se de um conjunto de representações que circulam em torno de uma falta. Uma falta que permanentemente busca a satisfação, o prazer. É na manifestação do narcisismo que emerge a identidade inscrita e marcada pelo outro. O narcisismo pode alterar a capacidade de pensar sobre as experiências, pois está relacionado com um ideal de bem-estar e estima.

Analisar é uma tarefa que requer registro da escuta e da comunicação analisando e analista. Analisar nos confronta com a fraqueza, a insegurança, a incapacidade de mudança quando se confundem os grifos para elucidar: os retalhos das lembranças, dos vazios que não se completam e querem se perpetuar.

E, assim, retornamos aos medos. Afinal “todos têm medos” e esconderijos. Segredos para escamotear, abafar.

Assim caminha a psicanálise. Assim caminha o analista no século XXI.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mbeatrizjacques@gmail.com

Recebido em: 04/12/2017
Aprovado em: 17/12/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Beatriz Jacques Ramos
Doutora em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da PUCRS.
Psicanalista.
Sócia efetiva do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
Presidente do Círculo Psicanalítico do RS - CPRS (2010-2015).
Coordenadora do Instituto de Estudos de Psicanálise do CPRS (2015-2019).
Membro do Conselho Consultivo da revista Estudos de Psicanálise.

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