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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte jan./jun. 2018

 

AUTORES CONVIDADOS

 

Stoller e a psicanálise: da identidade de gênero ao semblante lacaniano

 

Stoller and psychoanalysis: from gender identity to the lacanian semblance

 

 

Rafael Kalaf Cossi

I Fórum do Campo Lacaniano - EPFCL-SP
II Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise - LATESFIP-USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste texto, incialmente examinamos a obra de Robert Stoller, notadamente em seu percurso pela psicanálise. Detectamos que, ao longo de seu trabalho, Stoller tratou das diferentes manifestações da sexualidade até aos estudos antropológicos. Pioneiro do uso do termo “gender” no contexto psicanalítico, Stoller propôs várias modificações à teoria do Édipo freudiana. Suas teses foram largamente disseminadas em solo anglo-saxão e exerceram influência decisiva em expoentes da psicanálise inglesa. Mais conhecido no Brasil por sua pesquisa a respeito da transexualidade, verificamos que sua insistente intenção era engendrar o que denominou como “núcleo de identidade de gênero”, e que foi alvo de crítica de Lacan no Seminário 18. A proposição stolleriana foi o ponto de partida para o desenvolvimento lacaniano da noção de semblante e acompanhamos que, se uma modalidade de relação pode ser inferida a partir dela, posteriormente Lacan vai se dedicar à formalização da não relação sexual.

Palavras-chave: Stoller, Psicanálise, Identidade de gênero, Semblante, Não relação.


ABSTRACT

In this paper, we initially examine Robert Stoller’work, notably in his course by psychoanalysis. We have found that Stoller has spread throughout his work from the various manifestations of sexuality to anthropological studies. As the pioneer of the use of the term gender in the psychoanalytic context, Stoller proposed several modifications to the freudian theory of the Oedipus. His theses were widely disseminated on anglo-saxon territory and exercised decisive influence on exponents of English psychoanalysis. Best known in Brazil for his research on transsexuality, we proved that his insistent intent was to develop what he called “core gender identity, which was criticized by Lacan in the seminar XVIII. The stollerian proposition was the starting point for the lacanian development of the notion of semblance and we follow that: if a modality of relation can be inferred from it, in a second moment Lacan will apply to the formalization of the non sexual relation.

Keywords: Stoller, Psychoanalysis, Gender identity, Semblance, Non relation.


 

Robert Jesse Stoller (1924-1991) foi um psicanalista e psiquiatra norte-americano de grande impacto, cujas teses ressoam até hoje muito além de seu país. Atuou como professor de psiquiatria da Universidade da Califórnia de Los Angeles (UCLA), fundou a Gender Identity Research Clinic-UCLA e era filiado à Los Angeles Psychoanalytic Society.

Num primeiro momento, nos anos 1950, ele partiu do estudo dos casos de intersexo; depois se dedicou a transexuais e sujeitos perversos, notadamente nas décadas de 1960 e 1970; enfim, em torno dos anos 1980, ao estudo da pornografia e da dinâmica da excitação sexual. Além da clínica e da pesquisa, voltava-se a estudos antropológicos, visando investigar como se dava a constituição das identidades sexuais e a expressão dos diferentes papéis de gênero em outras culturas.

Stoller dialogava tanto com o meio médico quanto com meio psicanalítico, preferencialmente a escola kleiniana e a psicologia do ego, na qual Hartmann era um interlocutor privilegiado. É vasta a quantidade de trabalhos em medicina aos quais se refere, principalmente os de John Money, de quem Stoller esteve perto na Johns Hopkins University em Baltimore.

Nesse universo, em que as pesquisas científicas são marcadas por métodos quantitativos baseadas em evidências e regidas pelo positivismo, Stoller teve a coragem de estudar o que considerava “patologias do gênero sexual” adotando referenciais psicanalíticos como parte do seu modo de pesquisa e da análise de resultados.

Sua teoria sobre a transexualidade, inovadora e muito contestada, serviu como ponto de partida para a sistematização do pensamento de autores de destaque da psicanálise lacaniana concernente a esse quadro, entre eles, Catherine Millot, Moustapha Safouan, Henry Frignet e Marcel Czermak. Ademais, foram justamente Money e Stoller que trouxeram o termo “gênero” para dentro dos estudos sobre a sexualidade, absorvido pelas ciências sociais norte-americanas nos anos 1970.

A renovada e controversa teoria que Stoller desenvolveu sobre identidade de gênero também incidiu nas pesquisas de autores da psicanálise como Omo Ralph Greenson,1 Margareth Mahler, Richar Green, J. Chasseguet Smirgel e Emilce Bleichmar. Além disso, foi alvo da crítica de teóricas dos estudos de gênero do porte de Butler e, no meio psicanalítico, do próprio Lacan – por sinal, suas elaborações teóricas a respeito do núcleo da identidade de gênero, pensamos, foram o contraponto lacaniano para que se compusesse a noção de ‘semblante sexual’ do Seminário 18.

Toda dedicação a casos que intitula como “distúrbios de gênero” tem, no fundo (e isso Stoller confessa em vários momentos), como razão principal descobrir o desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade em geral – a anormalidade esclareceria a normalidade, em seus termos. Stoller desconfiava, assim como Money, da unanimidade das raízes biológicas da identidade de gênero, indo contra a vigorosa corrente organicista da psiquiatria da época.

Apesar de Freud já em muitos textos ter se dedicado ao tema da identidade sexual e suas condições de constituição, Stoller foi o primeiro a abordar esse assunto em psicanálise recorrendo ao termo “gênero” em 1968. Para Stoller, faltava ao freudismo uma categoria que permitisse diferenciar radicalmente o sexo, como determinação orgânica do homem e da mulher, do sentimento social de identidade, o “sexo social” masculino ou feminino, a ser contemplado por “gênero” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 291-292).

Cabe esclarecer que, em Stoller, sexo se refere a estados biológicos: genética, caracteres primários e secundários do sexo, aparato anatomofisiológico, endócrino e cerebral; gênero diz respeito a um conjunto de fenômenos como sentimentos, pensamentos, comportamentos e fantasias relacionados à masculinidade e à feminilidade, e não apresentam nenhuma ancoragem biológica – é consolidado culturalmente, adquirido na vida pós-natal. Sexo e gênero não andam necessariamente lado a lado; um pode se desenvolver a despeito do outro.

Stoller também é conhecido pela releitura e pelas inversões que propôs à teoria freudiana. Enquanto Freud privilegiava o investimento sexual primário como decisivo para a posição sexual primária (investimento heterossexual do menino e homossexual da menina, os dois tomando a mãe como primeiro objeto sexual), Stoller valorizava a posição identificatória inicial, ambos assumindo-a como primeiro objeto de identificação (FERRAZ, 2001, p. 123).

Seria o menino, e não a menina, que teria de enfrentar o caminho mais tortuoso com vias de consolidar sua identidade como homem – ao contrário de Freud, para quem a menina padeceria mais. Para Stoller, a feminilidade, e não a masculinidade, é primária. O complexo de Édipo não seria o único nem mesmo o mais importante processo pelo qual se daria a constituição da identidade sexual.

Faziam parte do seu método de investigação a observação naturalista, a avaliação e o tratamento psicológico de pessoas com distúrbios de gênero, assim como o acompanhamento de suas famílias durante anos. Stoller acreditava que distúrbios de gênero poderiam ser evitados se detectados precocemente, no caso de crianças que apresentassem seus traços rudimentares. Para entender as origens da masculinidade e da feminilidade, Stoller pregava que se deveria recorrer à teoria psicanalítica, às teorias de aprendizagem e à biologia. Cada uma dessas áreas, se tomadas isoladamente, levaria a explicações equivocadas.

De partida, estava focado em quadros clínicos nos quais as questões biológicas influenciavam os comportamentos de gênero e a aparência anatômica do sexo. Segundo Stoller ([1968]1984, p. 3), Freud nunca teria abandonado a ideia de que, em muitos casos, forças biológicas influem na determinação da masculinidade e da feminilidade, apesar das expectativas sociais e do papel da nomeação. O fator biológico é que preponderaria nos casos de sujeitos intersexo e portadores de síndromes genéticas, como as de Klinefelter e Turner.

Como fruto de dez anos de estudo e trabalho dedicados a 85 pacientes que apresentavam distúrbios de gênero e 63 membros de suas famílias, Stoller publica em 1968 a obra Sex and gender, em que aborda temas referentes ao desenvolvimento, à manutenção e à manifestação da masculinidade e da feminilidade; a certas síndromes genéticas e ao tratamento de distúrbios de gênero, além de defender teoricamente a relevância do período pré-edípico. Mesmo com a “força biológica” em jogo, Stoller estava particularmente atento à hipótese – já levantada por Money e os Hampson ainda nos anos 1950 – de que o comportamento ligado ao gênero é predominantemente marcado pela designação do sexo do sujeito e outros fatores ambientais.

Tal tese provém das constatações oriundas do estudo clássico desses dois pesquisadores: duas crianças manifestavam certa síndrome genética que interferia nos andrógenos. Ambas eram genética e endocrinologicamente mulheres e possuíam estrutura interna também típica do sexo feminino, contudo a genitália externa era masculinizada. Ao nascimento, uma delas foi designada como menina e a outra, como menino. Por volta dos cinco anos, a primeira acreditou ser uma menina: dizia sentir-se como tal e não levantava questões sobre isso. Da mesma forma a segunda, com relação a ser um menino. Concluíram daí que o que determinou o gênero não foi o sexo biológico, mas experiências pós-natais, um complexo processo pelo qual a sociedade rotula um ser como homem ou mulher (STOLLER, [1968] 1984, p. 5). Apesar de tal evidência, Stoller questiona se, em todos os casos, a atribuição do sexo é um fator a prevalecer sobre outros na definição da identidade de gênero.

Ao contrário daqueles pesquisadores, Stoller sustenta que forças biológicas não só interferem como também são, em alguns casos, decisivas para a construção da formação identitária. Essa hipótese surgiu a partir do trabalho com uma paciente que tinha aparência anatômica feminina normal ao nascimento e foi criada como uma menina pelos pais, mas que expressava já na infância tantos comportamentos masculinos que chegou a ponto de ser diagnosticada como portadora de distúrbio de identidade de gênero. Na puberdade, seu corpo se virilizou e passou a viver como um homem. Submetida a testes, averiguou-se que a paciente apresentava um déficit na produção da enzima responsável pela metabolização de testosterona – daí Stoller ter concluído que não é possível afirmar que o gênero imputado e sob o qual a criança foi tratada tem sempre primazia sobre os fatores anatomofisiológicos ou forças biológicas.

Como forma de ilustração, passemos ao relato de um desses casos (STOLLER, 1968/1984):

A criança foi anatomicamente reconhecida e designada como menina ao nascimento. Contudo, comia muito rapidamente como um glutão; só brincava e participava de jogos de meninos, nos quais sempre assumia papéis masculinos; era agressiva e destrutiva, sua mãe não conseguia ser próxima dela; vestia-se com roupas de homem e só requisitava a companhia deles. Apesar dos esforços da família para que se comportasse como uma menina, tudo falhou. Queria, inclusive, ser vista como um menino. Na adolescência, passou por exames médicos e se verificou que era um menino cromossomicamente normal. Apesar da genitália externa se assemelhar à de uma menina, no fundo era um pequeno pênis do tamanho de um clitóris. Também portava hipospadia, criptorquidia bilateral, escroto bífido e próstata normal. Na adolescência dizia se sentir atraído sexualmente por mulheres e que era em torno delas que giravam suas fantasias sexuais. Tinha prazeres, preocupações, atitudes e maneirismo típicos de um rapaz.

Stoller salienta que não é que a criança tivesse mudado sua identidade de menina para menino, mas que sua identidade sempre foi masculina. Consta na descrição do caso que, antes de ser aceito como homem, reagia neuroticamente às pressões do ambiente – seus sintomas teriam cessado após a autenticação familiar de que se estava diante de um menino. A partir de então, passou a atuar de forma “edipicamente” comum (mãe tomada como objeto de amor e pai como rival). Stoller conclui desse caso que a tentativa de criar o filho como uma menina, e mesmo o fato de ele possuir uma genitália de aparência feminina, não foram suficientes para o desenvolvimento da feminilidade – um impulso mais poderoso conduziu a criança rumo à masculinidade.

Contudo, Stoller confessava não saber como tais fatores orgânicos atuavam. Talvez essa tendência biológica em direção à masculinidade e à feminilidade trabalhasse em silêncio no feto, e espera-se que, na maioria dos casos, elas sejam suplantadas pelos fatores ambientais. Tal como Money e os Hampson preconizavam, os fatores biológico e ambiental se manifestariam mais ou menos em harmonia para produzir a masculinidade em homens e a feminilidade em mulheres.

Todavia, não é sempre assim. E Stoller ([1968] 1984, p. 19) divaga que em algumas pessoas as forças biológicas são mais potentes do que em outras e sobrepujam os fatores ambientais. Mas, de toda forma, não era a descoberta de qual seria o fator universal mais vigoroso nesse processo o que o guiava. Stoller estava voltado à pesquisa do que denominou “núcleo de identidade de gênero”, elemento a ser constituído por fatores heterogêneos. No caso dos sujeitos transexuais, a constituição do núcleo da identidade do gênero se daria exclusivamente por fatores psicológicos e é a essa tese que Stoller dedica sua pesquisa no fim dos anos 1960.

 

Núcleo de identidade de gênero

Stoller ([1968] 1984) sustenta que o esperado é que, por volta dos dois anos, desenvolva-se o senso de pertencer a um sexo: a consciência que permite que afirmemos, para nós mesmos “Eu sou homem” ou “Eu sou mulher”. É importante frisar que isso é diferente do senso de masculinidade ou feminilidade. Este diz respeito ao que se aprende sobre como homens e mulheres agem, é marcado pelas expectativas transmitidas pelos pais sobre como devemos nos comportar, é um atributo cultural. Já a constatação “Eu sou homem” ou “Eu sou mulher” é instituída biológica e psicologicamente, e começa antes do “Eu sou masculino” ou “Eu sou feminino”.

Notamos tal anterioridade quando verificamos certa dinâmica presente nos travestis fetichistas, tal como Stoller denomina, que podem se vestir, se comportar, se enfeitar como mulheres, contudo não asseveram ser, de fato, mulheres – seus “núcleos de identidade de gênero” (STOLLER, [1968] 1984, p. 2) são masculinos.

Os comportamentos de gênero podem mudar ao longo do tempo e dependem da cultura, mas a convicção de que se é homem ou mulher, não. Cabe salientar que identidade de gênero nuclear não delibera papéis ou relações objetais, ou seja, não decreta comportamentos de gênero, escolha de objeto e práticas sexuais (STOLLER, 1993, p. 29).

A formação identitária, o “núcleo da identidade de gênero”, é válida tanto para meninos quanto para meninas; e, uma vez composta, é praticamente imutável. Sua instauração se daria a partir de três coeficientes: o primeiro diz respeito à relação pais e filho. Trata-se de atitudes, expectativas, gratificações, frustrações que os pais e parentes enviam à criança. Também faz parte desse primeiro fator a designação (ou assignação) dos pais de que seu filho é homem ou mulher, a partir da visão de sua genitália externa.

O segundo diz respeito à percepção e às sensações que o órgão sexual fornece à criança — tal percepção contribui para a formação do ego corporal. Stoller também inclui nesse segundo fator o processo de imprinting, tal como se manifesta nas experiências dos gansos de Lorenz. Daí ele considera que humanos respondem sexualmente a humanos, não (ou nem tanto, em alguns casos) a outros animais ou objetos, em parte por causa de uma ainda obscura ação do sistema nervoso central que é produzida ou impressa pela mãe, dada sua qualidade de ser humana e mulher (STOLLER, [1968]1984, p. 10).

No livro escrito sete anos depois, Sex and gender II (1975) e no Brasil intitulado A experiência transexual (1982), Stoller soma àquele ainda outro processo, retirado do behaviorismo, no caso, o que denominou “reforço”’, “modelagem” ou “condicionamento”: alguns comportamentos de gênero são encorajados pelo meio, enquanto outros são desvalorizados. Dessa maneira, ao lado dos fatores psicológico e biológico, há um outro, designado por Stoller como “biopsíquico” (imprinting e condicionamento), que também se faria presente. Já o terceiro ponto contempla as forças biológicas atuantes.

Stoller admite que tem dificuldade em saber o peso de cada um desses fatores para a formação da identidade de gênero nuclear, mas aponta que, se o peso de um deles aumenta em detrimento do dos outros, desvios de gênero podem ser provocados. Em tese, os dois primeiros seriam mais ‘possantes’; porém, há casos que contradizem tal hipótese. Somente em um ponto Stoller é enfático: embora a presença do órgão genital participe da constituição de tal núcleo, ela não é essencial.

Stoller cita o caso de dois meninos que nasceram sem pênis e tinham desenvolvido o núcleo de identidade de gênero masculino. Apresentavam maneirismos e interesses tipicamente masculinos. Esses dois meninos, quando hospitalizados, inventaram substitutos para seus pênis com os mesmos significados de agressividade e intrusão que se costuma atribuir a eles – o primeiro colecionava garrafas; o segundo, facas.

Apesar de Stoller não arriscar uma hipótese sobre a causa determinante em jogo no ato dessas crianças, aqui se mostra que, quando o menino sabe que ele é um homem, se não for dotado de um pênis, ele tenderá a instituir para si um objeto que funcione simbolicamente da mesma forma que tal órgão sexual – o caráter expedido ao pênis pode se materializar em outro elemento. O núcleo da identidade de gênero se constitui independentemente da genitália em si.

Ao lado dessas proposições, Stoller arrisca outra, tão insistentemente enfocada ao longo de sua obra: o núcleo de identidade de gênero é fixado antes da fase fálica.

Enquanto o processo de desenvolvimento da identidade de gênero vai até a adolescência, o núcleo de identidade de gênero se estabelece precocemente. Stoller nunca descartou a concepção clássica de que a ansiedade de castração e a inveja do pênis sejam agentes fundamentais para a construção da identidade de gênero; contudo, antes da ocorrência desses efeitos, segundo ele, o núcleo de identidade de gênero já estaria formatado (STOLLER, [1968] 1984, p. 2).

Nesse sentido, Stoller contesta a teoria freudiana. Além do mais, ele se diz espantado com o fato de como um observador do gabarito de Freud pôde acreditar que o desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade é o mesmo nos meninos e nas meninas até a fase fálica, até que “fatores biológicos” fizessem com que elas tomassem outro caminho.2

Passemos, então, ao debate Stoller-Freud e, em seguida, à fração do pensamento stolleriano, que abarca os motivos psíquicos que operam na identidade de gênero. Para essa empreitada, recorre-se à transexualidade.

Na leitura de Stoller, Freud tomava a bissexualidade como um dado inato e universal. Seria como uma condição constitucional de todo ser humano, cujas raízes são biológicas e psicológicas, que influenciaria tanto a escolha de objeto quanto o grau de masculinidade e feminilidade – as pessoas seriam um misto dessas duas tendências.

Stoller discorda: não existiriam raízes biológicas a determinar a bissexualidade; além do mais, para ele, as pessoas podem apresentar uma mescla de masculinidade e feminilidade, mas nunca uma mistura da qualidade de ser homem e da qualidade de ser mulher – estas últimas duas referentes ao núcleo da identidade de gênero.

Outra crítica que Stoller endereça a Freud é que ele tomaria a qualidade de ser homem e a masculinidade como um estado primário – ser mulher e a feminilidade desfrutariam de status inferior. Além do mais, a menina teria uma trilha mais custosa a percorrer para a constituição de sua identidade sexual do que o menino. Contra tudo isso, Stoller propõe que a bissexualidade não seja nem original, nem biológica; que a masculinidade não seja primária e que o percurso edípico talvez não atue como o processo mais relevante para a constituição da identidade sexual. Vejamos como.

Para Stoller, na vertente masculina do Édipo freudiano, o menino, na medida em que deseja a mãe, toma o pai como rival e se vê ameaçado pela perda de seu órgão genital – angústia essa alimentada pela visão dos órgãos genitais femininos. A ameaça de castração incide tanto na perda do órgão quanto no decréscimo da qualidade de ser homem. Por fim, seus pais vêm ao seu auxílio para solucionar essa trama e transferir seu investimento libidinal da mãe para outras mulheres; e seu pai lhe serve de modelo de identificação. Então, podemos ver aqui que a masculinidade e a heterossexualidade são essenciais e tomadas como dados a priori.

Já a menina, ainda acompanhando a leitura stolleriana de Freud, se depararia com mais problemas: seus genitais são desprovidos de valor, o que culmina na inveja do pênis; seu objeto de amor original é homossexual; sua feminilidade deve ser conquistada,3 não é um atributo dado de início e teria de haver uma alteração quanto ao órgão sexual a ser priorizado. Na melhor das hipóteses – quando a inveja não é excessiva, não se fixa a uma desesperança passiva e masoquista nem porta a fantasia de obter um pênis ou alçar o clitóris ao papel de substituto dele –, a menina adentra na feminilidade. Daqui em diante, ela assume o pai como seu novo objeto de amor (ou seja, há um esforço para ir da homo para a heterossexualidade), o clitóris é deslocado pela vagina como seu principal órgão de investimento libidinal e, finalmente, identifica-se com a mãe. Mesmo assim, seriam poucas as meninas que teriam o privilégio de chegar a esse final feliz no seu processo edípico. De toda forma, a feminilidade é um estado secundário, e o drama edípico é mais brandamente solucionado pelo menino do que pela menina.

Para dar corpo a seu argumento, Stoller ([1968] 1984, cap. 6) se mune do trabalho de outros teóricos, dizendo-se acompanhado de Horney, Jones e Zilboorg. As críticas a Freud se sustentam basicamente nas suas considerações de que, num primeiro momento, não existiria diferença psicossexual entre meninos e meninas. Jones, a esse respeito, recusa o postulado freudiano de que o fator comum para meninos e meninas na fase fálica é a crença de que só existiria um órgão sexual, o masculino. Horney reprocha duramente a ideia de que as mulheres são descontentes com a atribuição de seu sexo e que só sob certas circunstâncias superam tal “aborrecimento”. Jones aponta que a importância dos órgãos genitais femininos sempre foi subestimada pela tradição psicanalítica falocêntrica. Stoller lança dúvidas a respeito da ideia de que o clitóris seja como um pequeno pênis, masculino e mais ativo que a vagina. Além do mais, aposta que o senso de ser mulher e se sentir feminina não está atrelado à genitália. Assim, tais autores aos quais Stoller recorre também propõem revisões à teoria freudiana e advogam que formações como inveja do pênis e o ódio aos homens seriam posteriores – a feminilidade seria primária e só a saída da womanhood criaria as condições indispensáveis para que uma mulher reconhecesse e se confrontasse com a diferença masculina.

Ao lado dessas contestações, o embate forte que Stoller trava com a psicanálise clássica se dá a partir da consideração de que Freud não teria dado a devida importância ao período pré-edípico. Segundo Stoller, seu conceito de identidade de gênero nuclear modifica a teoria freudiana. Haveria um estágio anterior ao Édipo, momento em que o menino estaria “fundido com a mãe” (STOLLER, 1993, p. 35). Mãe e filho ainda não seriam objetos separados, e este se sentiria como uma parte do corpo dela, o que o conformaria à feminilidade. Caso esse estado não seja superado, corre-se o risco de ser implantada na sua identidade de gênero nuclear a qualidade ou senso de ser mulher. A não separação da mãe provoca distúrbios de gênero, e a transexualidade é seu caso mais extremo.

Essa teoria da protofeminilidade4 transporta a “vantagem” do menino para a menina. A peculiaridade do vínculo inicial com a mãe induz a menina à feminilidade, facilita a formação de sua identidade como mulher. Só que o mesmo não se dá para o menino. Então, é ele quem tem que se empenhar mais para a constituição de sua identidade de gênero masculina. Ele deve se encontrar suficientemente apartado da mãe para entrar no Édipo, acessar a heterossexualidade e a masculinidade, vencendo aquele estado feminilizante inicial. A masculinidade é uma conquista, não é uma disposição natural a ser mantida.

Por sinal, a hipótese stolleriana de que a condição de homem é algo a ser adquirido seria corroborada por estudos antropológicos analisados por ele, como os realizados junto à tribo dos Sâmbia, da Nova Guiné. Um dos ritos aos quais os meninos devem se submeter para se tornarem masculinos é ingerir o sêmen de homens solteiros, via felação (STOLLER, 1993, p. 250-251), assim como evitar o contato com as mulheres na infância e na adolescência. Ou seja, tornar-se homem exige um longo trabalho de dedicação.

A teoria stolleriana tem o mérito de interpelar concepções da psicanálise tradicional que sustentam o julgamento de que as mulheres são inferiores aos homens. Stoller é contra o falocentrismo,; contra a centralidade da inveja do pênis na sexualidade feminina, contra a tese de que o clitóris é uma versão menor do pênis, contra as proposições de que o acesso à feminilidade é mais duro e raro para mulheres do que a masculinidade para os homens e de que, como resultado da diferença anatômica entre os sexos, as mulheres possuem um senso ético diferente do dos homens como fruto de seus superegos ou senso de justiça mancos;5 e, por fim, avesso às suposições de que a feminilidade é algo depreciativo para elas e queficam decepcionadas quando constatam que não vão ter um pênis.

Depois de se aplicar ao estudo de casos de intersexo em sua pesquisa sobre as condições de desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade e ter comprovado a influência de aspectos biológicos nesse processo, Stoller vai para o outro lado e passa a se interessar mais, notadamente nos anos 1960, pelo papel dos fatores ambientais ou pós-natais na constituição da identidade de gênero.

Para tanto, foca sua pesquisa na transexualidade. O motivo para tal escolha é que se trataria de um quadro clínico de formação identitária não decidido por forças biológicas. Transexuais seriam sujeitos que não apresentariam disfunções anatomofisiológicas, endócrinas ou genéticas que levariam a um distúrbio de gênero. Ou seja, um quadro clínico que escancararia a determinação de fontes ambientais ou pós-natais para a constituição identitária sexual.

Ademais, segundo Stoller, a transexualidade contesta as sentenças consolidadas da psicanálise de que a ansiedade de castração e o complexo de Édipo – ou seja, processos relacionados ao tema do conflito – são os estandartes do estabelecimento da masculinidade e da feminilidade. Stoller se pauta na hipótese de que um processo não conflitivo – segundo ele, não contemplado por Freud – é que seria resolutivo para a formação do núcleo da identidade de gênero.

Stoller acreditava que existiria um contínuo entre os distúrbios de gênero: uma das extremidades seria a transexualidade. Enquanto perversão de identidade de gênero, travestismo fetichista – nos seus termos – e homossexualidade decorrem de conflitos e defesas, a transexualidade, não: “[...] vejo o transexualismo como uma identidade per se” (STOLLER, 1982, p. 2).

O sujeito transexual, na ótica stolleriana, não distorce a percepção do seu corpo, tem conhecimento do seu sexo e ao mesmo tempo, relata ter a convicção ou sentimento de que pertence ao gênero oposto ao que o seu corpo indica. Um transexual masculino, por exemplo, é biologicamente um homem; porém, afirma que sua identidade de gênero é feminina.

Vale esclarecer que com o termo “transexual masculino”, Stoller se referia a um sujeito cujo corpo de nascença era biologicamente masculino e cuja identidade sexual era feminina, ou seja, Stoller pautava-se pelos caracteres anatomofisiológicos para a sistematização dos termos transexuais masculinos ou femininos. Hoje em dia, a tendência é oposta: a primazia é do gênero. Então, o termo “mulher transexual”, por exemplo, indica um sujeito cujo sexo de nascimento é masculino e manifesta o gênero sexual feminino. Para evitar maiores confusões de leitura, optamos seguir a terminologia do autor em destaque.

Após muitos atendimentos com transexuais e seus parentes, Stoller detecta certo padrão nas dinâmicas familiares em que um filho é transexual,6 no qual uma rara coincidência de fatores ocorre: a mãe é cronicamente deprimida, apresenta intensa inveja do pênis e desejo apenas parcialmente suprimido de ser homem; o pai é distante, física e psicologicamente, e passivo; subsiste entre mãe e filho uma simbiose feliz, vínculo mais intenso do que o que se costuma observar na maternagem comum – o contato físico é excessivo e se firma um prolongado laço sem hostilidade ou frustrações, não movido por desejo sexual, mas identificação (eles são praticamente um, o filho é o falo da mãe e suaviza a depressão dela); o pai não o rompe, pelo contrário, chega a encorajá-lo; esse filho é escolhido para ser enredado nessa simbiose por apresentar uma beleza fascinante. Consequentemente, o menino não entra no Édipo, não toma seu pai como rival e sua mãe como objeto de desejo, ficando preso à feminilidade primária – a masculinidade não se desenvolve. Pode-se dizer, então, que o senso de ser mulher do transexual masculino se deu livre de conflitos ou traumas.

Usando expressões comuns às de Winnicott, como “mães suficientemente boas”, Stoller aponta que “mães boas demais”, e não só as que não são suficientemente boas, causam problemas aos filhos. Mães superpoderosas e superprotetoras são comuns nas dinâmicas familiares de filhos homossexuais.

No caso dos transexuais, aquela longa “simbiose feliz” traz como consequência um

[...] distúrbio profundo no ego corporal da criança, pelo que ele se sente como sendo, de alguma forma, mulher, apesar de ter conhecimento de que é um homem (STOLLER, 1982, p. 54).

E mais adiante finaliza seu diagnóstico:

[...] essas mães não danificam o desenvolvimento das funções do ego em geral, ou mesmo do ego corporal, exceto em relação a esse senso de feminilidade (STOLLER, 1982, p. 55).

Ao contrário do que se poderia esperar, transexuais masculinos, segundo Stoller, não são meninas edipianas: não são românticas, sedutoras do pai, não assumem a mãe como rival e como futura fonte de identificação. O menino transexual teria como principal ocupação compor uma aparência feminina (STOLLER, 1982, p. 96).

Stoller também mostra que diferentes tipos de laços simbióticos estão na base das diferenças etiológicas entre o transexual masculino, o travesti fetichista e homossexual masculino. Nos travestismos há não a intensidade da simbiose transexual, mas um progressivo distanciamento da mãe e desenvolvimento da masculinidade do filho; contudo, esse processo é combatido por uma mulher (vestindo-o com roupas femininas, por exemplo), com a finalidade de dificultar a aquisição do senso de masculinidade. Já na homossexualidade masculina há um misto de excessiva gratificação e punição quando o menino expressa sua masculinidade (STOLLER, 1982, p. 159). Nesses dois quadros, o núcleo de identidade de gênero é masculino e tende a ser preservado. Na transexualidade masculina, não.

De toda forma, Stoller conclui que, em geral, quanto mais intensa e prolongada é a simbiose inicial mãe-bebê, mais feminino o menino será. Um pai forte e masculino deve impedir o prolongamento daquele laço e separar o menino do corpo e da psique da mãe, ajudando-o a desenvolver a identidade masculina. Desligado da mãe, o filho a reconhece como um ser do outro sexo, pode passar a desejá-la e se defrontar com o conflito edípico. No caso das meninas, a simbiose mãe-filha não deve ser fendida rapidamente: ela deve ser alimentada, já que promove a feminilidade. Sem tais procedimentos, não há desenvolvimento da masculinidade nem da feminilidade (STOLLER, 1993, p. 90).

Mas existe outro ponto: para o rompimento dessa simbiose, há também que levar em conta a contribuição do menino: Stoller presumia que haveria forças biológicas (séries complementares de Freud) que os compeliriam, mais em alguns meninos do que em outros, a escapar da simbiose e superar a protofeminilidade. O menino construiria barreiras intrapsíquicas contra seu próprio desejo de se manter fundido à mãe. A instituição desses bloqueios provém de componentes biológicos, habilidades aprendidas e prazer em tomar a via da masculinidade, que anda ao lado do encorajamento do meio ao menino tomar tal partido, incentivando-o a não só desenvolver, mas também a preservar a masculinidade. O menino criaria um escudo protetor contra a “ansiedade de simbiose” (STOLLER, 1993, p. 243).

O grau de feminilidade que se planteia em um menino depende também de outros pontos da dinâmica familiar a que ele foi submetido na infância, de características da mãe e do pai e da relação mantida entre eles. Stoller parece operar com variações sobre o mesmo tema. Critérios análogos aos observados nas famílias de filhos transexuais servem de referência geral. Em menor grau de intensidade ou com um colorido diferente, supostamente eles causariam distúrbios de gênero menos graves que a transexualidade. Por exemplo, se a mãe ama o pai. se a simbiose não é tão veemente. se os comportamentos femininos do filho não são tão apreciados. se a mãe é feminina em alguns aspectos. se o menino é bonito mas não lindo. se o pai não está tão ausente assim, produziriam graus de feminilidade inferiores aos que se nota em sujeitos transexuais.

Outro elemento a ser destacado é que Stoller evita discutir sua teoria a partir do kleinismo, pois, segundo ele, a literatura dessa corrente psicanalítica não aborda o desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade (STOLLER, 1982, p. 36). Além do mais, Klein se consagra especialmente às fantasias do bebê; Stoller, por sua vez, julgava que não existiria, nos primeiros meses de vida, aparato psíquico estabelecido a ponto de suportar uma intricada carga fantasística. Daí Stoller recorrer a dispositivos como imprinting e influências condicionadoras, mais fisiológicas, que não exigem refinadas faculdades psíquicas. No princípio, a mãe invade o filho e, nesse período inicial, o filho ainda não foi capaz de produzir um escudo fantasístico que funcionaria como defesa (STOLLER, 1982, p. 51-53).

Nessa relação simbiótica se trataria não de uma identificação clássica –que requer recursos de fantasia e memória –, mas de um tipo de transmissão da feminilidade na qual o filho a recebe passivamente, derivada da excessiva imposição dos corpos, vivida de forma tão gratificante que nenhuma forma de proteção precisaria ser erguida contra ela (STOLLER, 1982, p. 55).

No final de A experiência transexual, Stoller (1982) parece rever sua consideração anterior de que as versões masculina e feminina do núcleo de identidade de gênero têm a mesma estrutura. Paira sobre o homem a atração a regressar à primitiva e feminilizante unidade com a mãe. Existe um conflito formado sobre o senso de virilidade, conflito de que as mulheres não padeceriam – o núcleo de identidade de gênero masculino não é tão inalterável como Stoller acreditou inicialmente (STOLLER, 1982, p. 297).

E afirma:

O senso de virilidade e o desenvolvimento posterior, masculinidade, são um pouco menos firmemente estabelecidos em homens do que o senso de feminidade e a feminilidade nas mulheres (STOLLER, 1982, p. 299).

A simbiose da menina com a mãe fortalece o senso de feminidade. Já para o menino, tal laço o torna vulnerável à “tentação” de retorno, e sua masculinidade pode ser posta em perigo. Stoller levanta a hipótese de que talvez por isso homens sejam mais propensos à perversão que as mulheres, o que o fez enveredar para a pesquisa desse quadro, das dinâmicas da excitação sexual e da pornografia, no que tange à identidade sexual. Grosso modo, no homem, a fuga para a pornografia, a fetichização e a erotização do ódio contra mulheres seriam estratégias de defesa contra a paixão do regresso à fusão inicial com a mãe e sua consequente feminilização e perda de masculinidade (STOLLER, 1998, p. 48-49).

Então, para Stoller, a constituição da identidade de gênero e a incidência da diferença sexual são explicadas por fatores relacionados ao sexo biológico, ao papel da atribuição de significados efetuada pelo outro – de que se trata de um homem ou mulher –; por expectativas do meio social, fenômenos etológicos ou de condicionamento; por formações egoicas e imaginárias e pela qualidade do vínculo simbiótico feminilizante com a mãe. Stoller enfatiza a importância do período pré-edípico e, através de diversas manifestações da sexualidade, constrói sua tese a respeito do “núcleo da identidade de gênero”, posta em xeque por Lacan.

No Seminário 18, Lacan se refere a Sex and gender, de Stoller. Num primeiro momento, para criticar seu entendimento da transexualidade, depois para contestar a suposição de que existiria, de fato, um núcleo duro no que compete à identidade de gênero. Nesse debate, Lacan recorre a “semblante”.

 

Da identidade de gênero ao semblante

Após criticar o “caráter inoperante do aparato dialético” (LACAN, [1971] 2009, p. 30) utilizado por Stoller para explicar os casos de seus pacientes transexuais – justamente por, para o psicanalista francês, ele ter negligenciado o mecanismo da foraclusão e a psicose latente de tais sujeitos –, discorre sobre a identidade de gênero stolleriana.

Para Lacan, o que só se tem é “parecer” homem ou mulher, semblante:

O importante é isso: a identidade de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos, “homem” e “mulher”. É claro que a questão do que surge precocemente só se coloca a partir de que, na idade adulta, é o próprio destino dos seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres. Para compreendermos a ênfase depositada nessas coisas, nesse caso, é preciso nos darmos conta de que o que define o homem é sua relação com a mulher, e vice-versa. Nada nos permite abstrair essas definições do homem e da mulher da experiência falante completa, inclusive nas instituições em que elas se expressam, a saber, no casamento. Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem. É isso que constitui a relação com a outra parte. É à luz disso, que constitui uma relação fundamental, que cabe interrogar tudo o que, no comportamento infantil, pode ser interpretado como orientando-se para esse parecer-homem. Desse parecer-homem, um dos correlatos essenciais é dar sinal à menina de que se o é. Em síntese, vemo-nos imediatamente colocados na dimensão do semblante (LACAN, [1971] 2009, p. 30-31).

Se a sexualidade humana não pode ser deduzida da anatomia, da fisiologia ou da genética, não se fia ao modelo da reprodução sexual nem se molda aos preceitos de rituais ou instituições culturais – como o casamento, por exemplo – também não é o ato de nomeação (Você é uma menina! Você é um menino!), conduta tangente à linguagem, o que permite ao sujeito se assegurar como um homem ou mulher. A identificação sexual consiste não em se crer homem ou mulher, tal como defendia Stoller, mas em levar em conta que há meninas, no caso dos meninos, e que existem meninos, para as meninas (LACAN, [1971] 2009, p. 33).

Nesse sentido, o homem só se pode afirmar como tal em relação à mulher, e vice-versa – há que assentir a diferença e que um só existe em relação ao outro. Os gêneros não têm substância intrínseca a eles. E aqui entra o semblante na sua dimensão sexualizada: trata-se de “parecer-homem” ou “parecer-mulher”. Esse braço discursivo e dialético do semblante sexual controverte a tese de que um gênero se constitui por si só, sem o seu respectivo oposto e sem o reconhecimento do outro sexo.

Avançando na discussão, Soler (2005) declara que a diferença entre os sexos também se faz notar no que compete ao semblante fálico,

[...] um desfila como desejante, a outra como desejável [...]. De um lado, portanto, a exibição ostentatória [...]. Do outro, a armadilha disfarçada [...]. As maneiras variam, é claro, mas persiste a estrutura que sempre envolve o ponto de falta do sujeito [...] (SOLER, 2005, p. 32).

Na mascarada feminina, joga-se com se fazer desejar, moldar-se às condições de desejo do homem – o que deseja, o que tem e quer dar as provas de sua potência –, numa parada viril. A visão de Soler autoriza pensar que semblante-homem e semblante-mulher estariam em uma relação em que a complementaridade seria possível. Contudo, a autora despreza a verdade e o real em exercício do lado ‘mulher’, que implementam a dissimetria nesse nível.

Para o homem, nessa relação, a mulher é precisamente a hora da verdade. No tocante ao gozo sexual, a mulher está em condição de pontuar a equivalência entre gozo e semblante. É justamente nisso que jaz a distância a que o homem se encontra dela. Se falei em hora da verdade, é por ser a ela que toda a formação do homem é feita para responder, mantendo, contra tudo e contra todos, o status de seu semblante. É certamente mais fácil para o homem enfrentar qualquer inimigo no plano da rivalidade do que enfrentar uma mulher como suporte dessa verdade, suporte do que existe de semblante na relação do homem com a mulher (LACAN, [1971] 2009, p. 33).

Pode-se dizer, então, que a mulher denuncia para o homem que o gozo dele se vincula ao semblante; indica que o semblante, cuja edificação é fálica, acomete as relações que estabelece – esse é o seu terreno familiar. Tal cenário se desestabilizaria com a entrada da mulher, representante do teste de verdade para ele – a verdade só pode ser semidita, tem uma parcela de real, cuja infiltração, no caso, é encarnada pela figura feminina. Ela desequilibra os alicerces fálicos nos quais o homem se escora. Daí ser mais fácil para ele, segundo Lacan ([1971] 2009, p. 33), enfrentar um rival homem – e, nesse contexto, dar provas de sua masculinidade via semblante — do que encarar uma mulher e o desnudamento do espaço que o semblante é incapaz de recobrir.

Adiante, Lacan ([1971] 2009, p. 34) continua: “Ninguém, senão a mulher – porque é nisso que ela é o Outro – sabe melhor o que é disjuntivo no gozo e no semblante [...]”. ‘Homem’ é atrelado a semblante, campo fálico. ‘Mulher’ é pesada em sua relação com a verdade, o que já nos parece ser um prenúncio do gozo feminino. Semblante e verdade estabelecem uma relação ao serem traduzidos para o universo da diferença dos sexos. Ou melhor, já anunciam uma não relação.

Se, nos anos 1950, Lacan concebia a diferença sexual em termos de ser o falo (mulher) e ter o falo (homem), e no início desse Seminário 18 fala em parecer-homem e parecer-mulher – formulações que admitem conceber a pressuposição de uma relação entre os sexos –, agora, quando entramos com a noção de semblante afetada pela verdade, Lacan dá um passo que nos parece ser decisivo e sem recuos, ao propor um tratamento lógico para o tema que já vinha sendo abordado desde o Seminário 14 – não há ato sexual7 – sob o enunciado-veredito “a relação sexual não existe”, já no Seminário 18.

Tal o percurso de Lacan: da fixidez e unilateralidade da identidade de gênero stolleriana, ao ficcional e bífido semblante; da relação presumida entre os sexos, ao decreto de sua impossibilidade, e que será alvo exaustivo de formalização em seus seminários subsequentes.

 

Referências

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FREUD, S. Sexualidade feminina (1931). In: ______. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 371-398. (Obras completas, 18).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 14: a lógica do fantasma (1966-1967). Centro de Estudos Freudianos do Recife. Publicação não comercial.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1970-1971). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

SOLER, C. (2005) O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

STOLLER, R. J. Masculinidade e feminilidade: apresentação de gênero. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.         [ Links ]

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STOLLER, R. J. Observando a imaginação erótica. Rio de Janeiro: Imago, 1998.         [ Links ]

STOLLER, R. J. Sex and gender: the development of masculinity and femininity (1968). Londres: Karnac Books, 1984.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: rkcossi@hotmail.com

Recebido em: 07/01/2018
Aprovado em: 10/02/2018

 

 

SOBRE O AUTOR

Rafael Kalaf Cossi
Psicólogo (USP).
Psicanalista.
Mestre e doutor em psicologia clínica pelo Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP).
Vinculado à Escola de Psicanálise do Fórum do Campo Lacaniano (EPFCL-SP).
Membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP).
Autor dos livros Corpo em obra: contribuições para a clínica psicanalítica do transexualismo (nVersos, 2011) e Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos (Annablume, 2018).

 

 

1 Stoller cita tal pesquisador em Sex and gender (1968). A tese de “desidentificação da mãe”, defendida por Greenson como processo necessário ao direcionamento do filho à masculinidade, é especialmente cara a Stoller.
2 Cf. FREUD, (1931) 2010, p. 216-217.
3 Cf. FREUD, (1925) 2011, p. 262-263.
4 Em contexto biológico, Stoller (1982, p. 14) afirma que é preciso que o cérebro fetal seja organizado pelo andrógeno para que se produza um corpo masculino e o fundamento da masculinidade – nesse sentido, o pênis seria como um clitóris masculinizado; o cérebro masculino, um cérebro feminino androgenizado.
5 Cf. Freud, (1925) 2011, p. 267-268.
6 Segundo Stoller (1982, p. 223), há diferenças clínicas contundentes entre as versões masculina e feminina da transexualidade. Ao “transexualismo feminino”, segundo ele, mais raro, Stoller se dedicou menos – dai a moderação em sustentar uma tese mais decidida.
7 “O segredo, o grande segredo da psicanálise, é que não há ato sexual” (LACAN, 1966-1967, p. 140)

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