2022: bicentenário do Brasil como nação independente. Números redondos – duas centenas – por qualquer calendário que seja, invocam comemoração especial.
A primeira sociedade psicanalítica fundada no Brasil – a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 1927, dissolvida em 1930 e recriada em 1951 – ainda não completou seu primeiro centenário. Quanto ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), completa 66 anos neste ano do bicentenário do Brasil.
Há mais de vinte anos, quando pela primeira vez assumimos a chefia do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ), fundado em 1981, a instituição era pequena e precária sua sede: entre membros e candidatos mal passava de trinta pessoas. O local alugado em Botafogo era a antiga garagem para dois carros, fundos de uma grande casa de dois andares.
Uma senhora de mais de meia-idade, recente ex-aluna do curso de Psicologia, mas já graduada há décadas em Direito, no intervalo de uma supervisão em consultório, escutou meu ceticismo quanto à instituição psicanalítica. Em oposição à ausência de qualquer crença religiosa minha, essa supervisionanda era de fé judia ortodoxa. Junto com o marido preservavam, salva da Segunda Grande Guerra, a biblioteca várias vezes centenária do rabino chefe de uma grande cidade europeia, a fim de finalmente a levarem para Israel. Em tom forte, seu comentário para meus queixumes sobre o CBP-RJ foi: “o importante é que ele existe”.
Sim. O ato de fundação, seja de um país e por mais discutíveis que tenham sido os motivos e os métodos, seja de uma instituição de ensino e transmissão de uma prática clínica, por mais que seus participantes adorem querelas esdrúxulas, é o ato de criação de algo até então inexistente, mas que sonha em transmitir algo de novo e livre para as gerações futuras.
O Círculo Brasileiro de Psicanálise passava por crise semelhante ao do Rio. Gestões polêmicas, pouco participativas com as filiadas e tomando decisões polêmicas sem consulta as filiadas. Que por sua vez indagavam qual o propósito de uma federação.
Roberto Bittencourt, um dos fundadores do primeiro círculo do Rio em 1969 e fundador do CBP-RJ em 1981, mas que retornara ao seu estado natal, o Rio Grande do Sul, indicou que procurássemos Clovis Figueiredo Sette Bicalho, presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Com seu auxílio estabeleceu-se uma nova chapa para o CBP. Maria Mazzarello Cotta Ribeiro foi eleita presidente do CBP, e propostos os nomes para próximos mandatos. Sucederam-na, cada qual de um círculo diferente, três presidências que durante mais seis anos deram continuidade ao trabalho de investimento no Círculo Brasileiro. E que continuou nas gestões seguintes.
Uma das primeiras mudanças da gestão de Maria Mazzarello foi a completa reforma da Estudos de Psicanálise. Desde então o CBP tem mantido seu alento.
O CBP não se originou diretamente de um ato forte de criação como a International Psychoanalytic Association (IPA), fundada pelo próprio Freud. Embora o Círculo de Trabalho de Psicologia Profunda de Viena, fundado em 1947 por Igor Caruso, tenha surgido como dissidência da Sociedade Psicanalítica de Viena, fundada por Freud antes da IPA, era uma instituição menor. E Caruso foi um nome importante em seu tempo. Mas hoje muito esquecido, bem como seus livros.
Ter um fundador e um ato de fundação mais frágeis guarda seus méritos. A instituição não pode se fiar na crença de que possui força própria inata para continuar. Herdeiros de um ato de fundação fraco, não há como escapar de permanentes dúvidas quanto à sua origem, seu propósito e sua capacidade. Um ato de fundação forte pode criar a mística e a ilusão da perenidade, que aos poucos pode se reduzir à inercia.
Temos de ser gratos a Igor Caruso, Malomar Lund Edelweiss, Kattrin Kemper e vários outros, que vieram e que virão.
Pouco após assumir o cargo chefe na chapa que em 2000 passou a administrar o CBP-RJ, recebi o telefonema de uma reunião sobre algo que não entendi bem do que se tratava. Mas fui à reunião. Era o início do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. A sobrevivência em jogo não era apenas de uma instituição psicanalítica, mas de todas no Brasil, que também é a do país enquanto mínima e humanamente viável. Porque a psicanálise só sobrevive onde há um grau razoável de liberdade de pensamento, jogo democrático e possibilidade de sobrevivência econômica de seus cidadãos.