Introdução
Este estudo de caso é um relato da experiência de atendimento clínico da autora com uma das mulheres, adolescente, em situação de violência doméstica, atendidas numa clínica-escola.
A violência doméstica contra crianças e adolescentes envolve questões afetivas e emocionais importantes, uma vez que o agressor, na maior parte dos casos, é um familiar da vítima, pai ou padrasto, o que dificulta o rompimento da relação afetiva. De acordo com Azevedo e Guerra (2011), há uma transgressão do poder/dever do adulto e uma objetificação do infans, ou seja, uma negação do direito de que toda criança e adolescente têm de ser tratados como sujeitos em desenvolvimento.
Ressalta-se, no entanto, que as crianças e os adolescentes que vivenciam junto à família a violência doméstica e familiar experimentam uma angústia excessiva e pagam um preço muito alto por ela, ficando restritas a poucas possibilidades de desenvolvimento. Para a psicanálise, as primeiras relações são primordiais para humanizar e garantir a sobrevivência da criança. De acordo com Zornig (2000), mesmo antes de nascer, a criança se insere no discurso parental mediante suas expectativas e seus desejos. Sua entrada na cultura e na linguagem depende do lugar que lhe é designado.
O olhar e o cuidado da mãe sobre o bebê dão a ele um senso de existência, ou seja, fornecem um sentido de continuidade, conforme nos comunica Winnicott (1984). Pode acontecer que a mãe, envolvida com outra preocupação, não veja o seu bebê. Se for constante esse distanciamento entre a tentativa de captura do olhar do bebê e a não resposta da mãe, poderá haver dificuldades na constituição do EU. O amor da mãe faz falta, e as falhas na relação mãe-bebê podem esvaziar de sentido as trocas afetivas com a mãe e, mais tarde, com qualquer outra pessoa (Zalcberg, 2019).
Além do amor da mãe, é necessário que a criança possa ir adquirindo o senso de existência, o que é possível ocorrer a partir do momento em que a mãe pode oferecer um atendimento sensível ao bebê, permitindolhe identificar e diferenciar mundo interno e externo, seu corpo e o do não eu, construindo, assim, o self – sentido de si mesmo (Winnicott, 1984). É essa continuidade de existência que permite ao sujeito identificar sua realidade psíquica e seu esquema corporal, respondendo à realidade pela via da criatividade e não da submissão. Para o autor, o estado de unidade é a conquista básica para a saúde no desenvolvimento emocional de todo ser humano.
Para a filha mulher, a consistência do si mesmo depende daquilo que a mãe pronuncia e constitui com o olhar, portanto a imagem de si depende daquilo com o qual ela se liga à linguagem e ao real do corpo.
Segundo Zalcberg (2019, p. 34), “quanto mais vacila a palavra materna de enaltecimento do seu corpo feminino, mais a menina encontra dificuldade de constituir uma imagem feminina”. Para a autora, muito do destino de mulher da filha vai depender de como a mãe lida com os dispositivos da maternidade e da feminilidade. Quando a mãe vive plenamente sua feminilidade, ela possibilita que a filha compreenda que o importante é saber fazer em relação a ela e não um saber sobre.
A figura paterna tem como finalidade a introdução da lei simbólica na relação da mãecriança. Quando essa figura não representa uma figura protetora, que estabelece interditos, ela falha em sua função primordial. A aquisição da linguagem e de uma portabilidade de voz própria, enquanto sujeito de desejo, somente pode ser acessada quando há a internalização dessa instância, representada pela entrada do terceiro na relação mãe-bebê. De acordo com Zalcberg (2019), um pai dentro de si pressupõe contar um símbolo daquilo que a menina precisa para se constituir. Nesse sentido, o pai é muito mais do que a pessoa real, “é um mediador que transcende a visão da mãe” (Zalcberg, 2019, p. 23).
Cabe lembrar aqui que é de fundamental importância a renúncia da criança em permanecer e ocupar esse lugar de perfeição que corresponda aos ideais paternos, os quais fundam seu Ego Ideal. A passagem edípica e, portanto, inclusão do terceiro, traz consigo a incorporação de ideais externos ao sujeito, da ordem de exigências, às quais o sujeito terá de se sujeitar, passando a construir um Ideal de Ego (Carvalho, 2003). Portanto, podemos inferir que o ego ideal está para o plano da fantasia/imaginário assim como o Ideal de Ego está para o plano do simbólico. Dentro desse Ideal, permeiam os hábitos e os costumes sociais, que, nos casos em que se vivenciou a violência doméstica, constituem pano de fundo das expectativas amorosas.
A escarificação pode ser concebida como o ato por meio do qual o sujeito faz um corte intencional na pele comum instrumento cortante, no intuito de deixar uma cicatriz no corpo, sem implicar necessariamente a inscrição de uma imagem ou de outro elemento. Além disso, para Miranda e Protti (2019), os sujeitos que os realiza não têm intenção de cometer suicídio. Para a psicanálise, as escarificações são manifestações de uma perturbação no psiquismo, resultante de uma experiência de angústia intensa, repetitiva e destrutiva, fragilmente ancorada na fantasia psíquica.
Estudo de caso
Este trabalho teve um delineamento qualitativo, com o objetivo exploratório e interpretativo, a fim de adquirir maior familiaridade com o caso em estudo. Os conteúdos transcritos das sessões foram inseridos numa tabela e, posteriormente, emparelhados com o referencial teórico psicanalítico, considerando as premissas teóricas que sustentam a escuta psicanalítica, a saber: a atenção flutuante, a contratransferência e a associação livre (Nogueira, 2004).
Eu sou o Nando1
A adolescente participante deste estudo será denominada Violeta2 como forma de garantir o sigilo dos dados. Na primeira entrevista, Violeta, com 16 anos, se apresentou acompanhada de sua mãe, após duas entrevistas iniciais com os pais para a realização da anamnese e compreensão da queixa manifesta atual. Violeta entrou na sala de atendimento, tímida e cabisbaixa. Foi a mãe quem a apresentou, referindo o nome e afirmando que iria aguardá-la na sala de espera. Violeta se sentou e abriu seu caderno de desenhos, afirmando: “minha mãe pediu para trazer”. Afirmou que gostava de desenhar e que é uma atividade que gosta de fazer quando está muito estressada. Os desenhos revelavam figuras sem cor, caricaturadas, com expressões em inglês que remetem a amores não correspondidos. Na época em que os pais buscaram ajuda para ela, o episódio da internação por tentativa de suicídio era recente, há menos de um mês. Ela cursava o ensino fundamental numa cidade do interior do Rio Grande do Sul e estava convivendo com seus pais, num clima familiar de violência doméstica, ‘super-visionado’ pelo estado, que se apresentou a mim, nos meses seguintes, por intermédio de uma requisição de um parecer sobre a situação atual da adolescente. Narrou que seus pais “já tinham problemas demais”, seus amigos, “eram poucos” e aqueles que ela considerava haviam se afastado. Revelou que ela machucava e fazia mal a todas as pessoas de quem ela se aproximava, ainda mais quando se “descobriu” como “Nando”.
Para a adolescente, sua descoberta da masculinidade estava sendo difícil, pois nem a escola, nem seus pais respeitavam sua preferência nominal. Aproximadamente por quatro meses iniciais de psicoterapia, suas reivindicações foram em relação a essa temática: solicitava à analista que pudesse “falar” por ela, na escola e com os pais. Foi identificado que, além da violência física e verbal do casal, ela vivenciava episódios de violência física por parte do pai e explicitava violências cotidianas na relação com a mãe. Essas violências não eram assim nomeadas, porém apareciam como condutas controladoras e vigiadas da mãe em relação à sua intimidade, como verificar o celular, suas conversas e postagens, precisando da “senha” do celular da adolescente para olhar quando ela quisesse. Além disso, a mãe controlava se a menina usava sutiã, porque era contrária ao uso do binder.3 Para esse controle, a mãe costumava tocar o corpo da paciente depois que ela se vestia, represando-a quando não estava com o sutiã adequado. Outras condutas consideradas violentas para a expressão da paciente eram demarcadas pela recusa em permitir que pudesse escolher suas roupas quando saíam para fazer compras. Após um ano de psicoterapia, foram percebidas mudanças na relação da adolescente com sua mãe e seu pai, pois eles eram convidados a comparecer em sessões mensais.
Em relação à mãe foi percebida uma responsividade materna frente às demandas do adolescente, com uma aceitação do espaço individual e íntimo dela, interrompendo as condutas de controle com o celular e o uso de sutiã por parte do paciente e facilitando a compra de roupas e binder para que ele pudesse utilizar. Em relação ao pai, foi percebida uma mudança do sentimento de pena para raiva em relação considerando todas as frustrações sentidas pela ausência de uma presença protetora e afetiva [pela ausência de proteção e afeto].
A adolescente relatou que havia dois anos iniciara a prática de cortar seu corpo sempre que precisava obter alívio para suas ansiedades, “eu tenho crises de ansiedade, é tanta dor que eu preciso me cortar para me aliviar”. Assim, cortava as pernas, os pulsos e braços. Reconheceu que existem tantas coisas “ruins” ao seu redor, que ela é invadida por um caos, um peso, um desespero. Reforçou que a sua internação ocorreu por ter cortado os pulsos, mas afirmou que não foi tentativa de suicídio, ressaltando que eram cortes mais superficiais. Quanto à internação referiu: “eu nunca fui tão bem tratada na escola e em casa como depois da internação, parece que agora me enxergam”. Trouxe o relato de episódios traumáticos da infância, como o falecimento de um avô, que ocorrera em sua presença, quando ele cuidava dela em uma manhã, como sempre fazia.
Ao longo das sessões, a paciente foi se apropriando de suas questões, discorreu sobre sua disforia de gênero, suas oscilações entre sentir-se “menina ou menino”: nem mulher, nem homem. Apresentou suas compulsões à comida, seus ataques ao corpo, sua obesidade e suas autocríticas para com isso, bem como a condenação de viver em roupas “maiores” do que as que lhe cabiam, para dissipar seu corpo-objeto de investimento narcísico. Discorreu ainda sobre suas poucas amizades, suas queixas de bullying desde a infância e a sua impossibilidade de pensar numa relação íntima com alguém.
Discussão
De acordo com os relatos e os comportamentos expressos, serão discutidos os seguintes aspectos: a repetição, na relação transferencial, do comportamento de dependência e submissão de Violeta à mãe, os conflitos com a figura paterna e a fragilidade simbólica, o luto e a disforia de gênero.
Uma das tarefas do adolescer consiste em lidar com as ansiedades de aniquilamento sentidas durante essa fase e causadas pelo abalo das estruturas narcísicas. Na adolescência ocorre a revivência do processo de separação-individuação, o qual é perpassado pelo processo de desidentificação das identificações do adolescente com o infans, o que exige o abandono da imagem idealizada e arcaica parental. Essa é uma tarefa que gera sentimentos de desamparo pelo abandono dos pais da infância, desestabilizando os sistemas narcisistas intra e intersubjetivos e ativa o luto pelos pais que envelhecem e a criança que cresce (Kancyper, 1999).
Nas primeiras entrevistas com Violeta, foi possível identificar sua alienação ao desejo da mãe quando ele não se apresentou para a analista, ele é apresentado pela mãe. Além disso, Violeta trouxe os desenhos “recomendados pela mãe”. É possível identificar que a adolescente regride a uma condição infantil, ela é falada pelo outro e utiliza os desenhos, como o faz em casa, para apresentar sua condição emocional. Observa-se, assim, a falência do terceiro simbólico, da linguagem e, consequentemente, se compreende as atuações, posteriormente, anunciadas: os cortes, a compulsão à comida, o choro contido. A conduta regredida, então, se repete na relação transferencial, ao portar um lugar de submissão e dependência de um outro para traduzir suas experiências emocionais.
A relação mãe-filha é complexa e tem algumas especificidades que precisam ser consideradas. De acordo com Zalcberg (2019), uma delas se refere à resolução subjetiva da forma como se deu a aceitação da mãe com relação ao seu próprio corpo e com o sentimento de feminilidade a ele associado. Para a filha lidar com a falta imaginária e constituirse feminina, é preciso que reste ao menos o sentimento de ser amada e com um senso de existência desgarrado da dependência do olhar do outro, do contrário, permeiam sentimentos de vazio, tédio ou de insuficiência, manifestados por uma autocrítica que não lhe permite se afirmar. Compreende-se que, para Violeta (aqui referida como a filha/menina) e sua mãe, algumas situações não foram muito bem resolvidas. Uma se confunde com a outra e a autocrítica presente em ambos os discursos confere um teor de esgotamento, de insuficiência narcísica importante para a busca de um ressarcimento do ressentimento na relação com o outro. Provida de sentimento de impotência e dívida para com a mãe, com ideais de preenchimento de significados junto a essa figura materna, Violeta abdica de sua feminilidade, ataca o pensamento, o corpo e qualquer relação possível de investimento sexual em um outro. O outro existe para lhe dar um senso de continuidade de existência (Winnicott, 1984).
Os opostos Violeta/Nando podem ser pensados como a dificuldade de unificação dos aspectos femininos e masculinos em um único sujeito, que está adolescendo... adoecendo. Não se percebe num senso de identidade estável: se sente ora menina, ora menino. Esconde o corpo, as formas, se torna indefinido. A incongruência entre o sexo biológico e a identidade de gênero (experiência emocional psíquica e social de uma pessoa feminina, masculina conforme a cultura de origem) pode ser identificada pelo desconforto e ansiedade gerados em relação à sua indefinição, sua contrariedade e seus ataques ao corpo sexuado, compondo sua disforia de gênero. No entanto, não é possível desvincular essa experiência emocional com a violência doméstica.
Violeta, na relação com a mãe, recebeu uma excitação traumática, invasiva (a mãe lhe toma o corpo, o espaço das sessões, o lugar da fala) e o pai não se apresenta com o terceiro simbólico num lugar de proteção e de representante de uma lei que transcenda a visão da mãe. Falha, então ,o Ideal de Eu para Nando, que não se constitui como valores internos com os quais pode contar, mas com uma cobrança de um Supereu cruel, sádico, com o qual ela está em posição de fracasso, de impossibilidade de adquirir uma posição de valor. Identifica-se com o agressor, ela é o adolescente agressor e violado, que sofre bullying, que se ataca constantemente, faltando-lhe objetos internos bons, de cuidados internos positivos, e sem o apoio narcísico parental.
Violeta se sente um peso na vida dos demais, sente que afasta as pessoas, projeta um ideal externo de suporte narcísico com o qual não pode contar. Os cuidados favoráveis não se confirmam no encontro com o outro e ele é o objeto de causa e efeito do desencontro. A culpa pelo descumprimento de um ideal narcísico de completude do outro, originado na base de sua relação com a mãe, se projeta nas demais relações. O luto, a perda de um familiar, concretiza seu potencial danoso, de aniquilação a si e ao outro. Desprovido de amor-próprio, se resigna a pagar um preço alto para sobreviver aos desígnios do incerto, da imensidão que porta o outro com sua condição de acolher e vincular-se.
Considerações finais
Com base no estudo de caso relatado, é possível compreender que as escarificações na adolescência apontam para outras situações desconfortáveis e conflituosas que ainda não puderam ser identificadas e experienciadas como tal. Ao conhecer e escutar a adolescente, se observou dificuldades em seu processo de transição da infância à vida adulta. O corpo, assim como as dúvidas em relação à identidade de gênero e a sua satisfação com as relações sociais, foram percebidas como resultantes de experiências infantis invasivas e abusivas, com as quais ela precisava inicialmente se diferenciar, para depois construir novos modelos de relações de objetos internos e de relações objetais favoráveis.
A psicoterapia foi possível após um período de ambientação da adolescente a um espaço seu, privado e íntimo, de forma que ela pudesse se sentir segura e tranquila em confiar, sem o sentimento de traição ou cilada à figura materna. Nesse sentido, a analista representou um terceiro simbólico nessa relação, alguém que, de alguma maneira, estabelecia um corte simbólico e não real, como a adolescente insistia em repetir compulsivamente no real, no corpo. A presença da mãe, suas mensagens e telefonemas à analista foram aos poucos se dissipando, a partir da conduta da analista em reforçar à mãe o sigilo que deveria manter com a paciente, bem como aguardar o que ela traria para a sessão. A adolescente, aos poucos, buscou romper com o lugar de Eu Ideal construído nessa relação primordial com a mãe, para constituir um Ideal de Eu que lhe permita dar um sentido de existência coeso e autônomo.