Introdução – antes de 1927
O nome de Durval Marcondes é sempre lembrado como fundador da primeira sociedade psicanalítica do Brasil, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, também referida na capa do primeiro livro traduzido no Brasil de autor do grupo inicial de Freud – Ernst Jones – como Sociedade Brasileira de Psicanálise Seção de São Paulo (SBPSP), fundada conjuntamente com Francisco Franco da Rocha em 24 nov. 1927. Franco da Rocha foi seu primeiro presidente, e Marcondes, o secretário. Durval Marcondes também se correspondia em alemão com Freud, a quem deu ciência desse evento e pelo qual foi agradecido por carta. Em 17 jun. 1928 é fundada a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, que teve curta duração (Mokrejs, 1993, p. 299). Durval Marcondes participou da fundação dessa primeira sociedade psicanalítica carioca, cujo ato de fundação ocorreu sede do Hospital Nacional de Alienados (antigo Hospício Pedro II), e quando foram eleitos: Juliano Moreira, presidente, e Julio Pires Porto-Carrero, secretário.
Em 1930 Durval Marcondes recebeu uma carta de Max Eitingon informando que o congresso de psicanálise realizado em Amsterdã adotara um sistema internacional de formação para psicanalistas. com base em três pilares – análise didática, formação teórica e supervisão de casos – já seguido pelo Instituto Psicanalítico de Berlim, por ele dirigido. Marcondes compreende que, antes de fundar uma instituição psicanalítica, há a necessidade de formar psicanalistas. E foi por seu intermédio que em 1936 a médica e psicanalista Adelheid Koch emigrou para o Brasil, onde se tornou a primeira analista didata, formadora de novos analistas.
Mas antes da vinda da primeira analista ao Brasil, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo se dissolveu em 1930. Foi recriada como grupo de estudos em 1944 e aceita como instituição plena e com seu nome original pela International Psychoanalytic Association (IPA) em 1951. A Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro parece não ter tido existência atuante e possivelmente sequer ato formal de dissolução.
Contudo, a história da psicanálise no Brasil precede em quase trinta anos o pioneirismo de fundação da sociedade psicanalítica em São Paulo. Primeiro, pela divulgação do nome de Freud e algumas de suas ideias, por neurologistas e psiquiatras, a partir de 1899. Depois, pelo impacto da leitura de Freud, em época indeterminada, mas ao final da primeira e o início da segunda décadas do século XX, por alguns intelectuais que viriam a se destacar a partir da Semana de Arte Moderna de 1922. Entre eles, o primeiro parece ter sido o poeta, escritor, musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo brasileiro, Mário de Andrade. Na Semana de 22, uma das comemorações do primeiro centenário da independência do Brasil, o nome de Freud seria pronunciado no Theatro Municipal de São Paulo por Mário de Andrade.
Em 2000 ocorreu uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo Assis Chateaubriand, acompanhado de um breve mas belo catálogo (Masp, 2000). Tratou da maior parte do que abaixo será descrito. Contudo, incorreu no que criticaremos: reduz os protagonistas iniciais da difusão da obra e clínica de Freud no Brasil, período que abarca quase trinta anos (1899-1927) – Franco da Rocha, Juliano Moreira, Antonio Austregésilo e Genserico Pinto – a uma rápida citação de nomes, duas curtas colunas com menos de meia página e três fotos (Pinto não mereceu uma). Também não menciona que, exceto Franco da Rocha, os outros três, apesar de não serem cariocas de nascimento, difundiram a psicanálise a partir do Rio de Janeiro. Contudo, o catálogo dedica duas páginas inteiras, com texto muito mais extenso e quatro ilustrações, duas sendo fotografias pessoais, somente para o paulista Durval Marcondes, tido por fundador da primeira sociedade psicanalítica do Brasil, em São Paulo, em 1927. Será feita uma revisão crítica dessa historiografia.
Vejamos um breve inventário da difusão das ideias psicanalíticas no Brasil entre 1899 e 1928.
As primeiras informações sobre Freud e a psicanálise: médicos, neurologistas e psiquiatras
Em Psicanálise no Brasil – as origens do pensamento psicanalítico (Mokrejs, 1993), consta a informação de que Juliano Moreira (1873-1933), médico negro de origem humilde, nascido em Salvador, Bahia, e considerado o fundador da psiquiatria no Brasil, teria sido o primeiro professor a lecionar temas de Freud (Mokrejs, 1993, p. 294). Fez isso em sua cátedra na Faculdade de Medicina da Bahia em 1899, onde também se formara, em 1891. Mas mudou-se para o Rio de Janeiro em 1903. Em 1914 Moreira realizou outra exposição sobre Freud, na Sociedade Brasileira de Neurologia (Mokrejs, 1993, p. 294).
Mas a primeira menção escrita sobre Freud no Brasil teria sido feita em 1908 pelo médico Antônio Austregésilo Rodrigues Lima (1876-1960). Originário de Recife, veio estudar medicina no Rio de Janeiro e foi o precursor da neurologia no Brasil. Austregésilo também fundou a escola neurológica no Rio de Janeiro em 1912 e foi o primeiro professor da Cátedra de Neurologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Presidiu a Academia Nacional de Medicina e, em 1930, tornou-se presidente da Academia Brasileira de Letras.
Em 1908 Antônio Austregésilo publicou o artigo Novas concepções sobre a histeria na revista Arquivos Brasileiros de Medicina, da qual foi fundador. Rafael Dias de Castro, professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado de Minas Gerais relata que nesse artigo
[...] Austregésilo expunha algumas concepções sobre a categoria “histeria”. Nesse ensaio, o autor afirmava que a teoria sexual da histeria, de Freud (e Breuer), seria “absurda, pois podemos encontrar na histeria mais frieza sexual que erotismo” (Austregésilo, 1908, p. 64). De acordo com ele, a psicanálise se apresentava apenas “como mais uma teoria” (p. 65), mas se assistia a partir dos trabalhos de Freud “o desenvolver de ideias e teorias acerca deste estado nevropático [a histeria]” (Castro, 2017, p. 64).
Mokrejs (1993, p. 294-295), no livro já citado, publicado mais de vinte anos antes do artigo de Castro, relatara que a primeira menção escrita sobre Freud teria sido feita por Antônio Austregésilo, mas em 1912, no artigo Conselhos médicos, também na revista Arquivos Brasileiros de Medicina. Em 1919, em dois números da mesma revista também Austregésilo publicou outros dois artigos – Sexualidade e psiconeuroses e A psicologia de um neurologista, Freud e suas teorias sexuais.Mokrejs (1993) cita este último erroneamente como um livro. Mas, até o presente, tudo indica que o primeiro livro sobre psicanálise no Brasil só seria publicado em 1920.
Em História da psicanálise - São Paulo (1920-1969) (Oliveira, 2005), consta a informação de que Francisco Franco da Rocha (1864-1933), médico psiquiatra paulista, publicou no jornal O Estado de São Paulo, de 20 mar. 1919, o artigo Do delírio em geral. Aula magistral para os alunos da Faculdade de Medicina,
[...] onde faz menção às teses freudianas, aproximando o conteúdo dos sonhos ao dos delírios, e tratando-os como manifestações dos instintos próximos do crime e da arte (Oliveira, 2005, p. 62).
Contudo, os artigos publicados de Austregésilo e Franco da Rocha publicados entre 1908 e 1919 tratam de temas localizados na obra de Freud. Mesmo sem ter tido acesso direto aos textos, é possível deduzir, através dos títulos, que neles há tendência a tentar compreender ou subordinar algumas ideias de Freud a partir de uma visão médica ou psiquiátrica. Seria bastante compreensível tentar decifrar o novo a partir do já conhecido.
Mas, em 1919, Franco da Rocha também brindara a turma de doutorandos em Medicina, da qual foi paraninfo, com o opúsculo A doutrina de Freud (Mokrejs, 1993, p. 295). Pelo título. parece ter sido o salto para uma visão mais abrangente da obra de Freud. Mas se foi o mais conhecido, não foi o primeiro a fazê-lo.
Genserico Pinto – uma visão abrangente do Freud de 1914
Muito menos conhecido que os nomes citados, já em 1914 outro autor originário da medicina teceu um texto bem mais extenso, inteiramente dedicado a vários itens e uma abordagem global da obra de Freud até então existente. Mas esse texto aparentemente nunca foi publicado e vendido em livrarias. O autor sequer ainda era médico. Trata-se da tese de doutoramento do cearense Genserico Aragão de Souza Pinto, intitulada Da psicanálise: a sexualidade nas nevroses. Na época, uma tese não constituía um trabalho de pósgraduação. Até 1931 uma tese era o trabalho necessário para a conclusão do curso de medicina. Obrigatório para o que hoje denominamos graduação em medicina e, por isso, os médicos ganhavam o direito ao título de “doutor”. A tese Da psicanálise: a sexualidade nas nevroses foi defendida e aprovada com distinção em 16 dez. 1914, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
O texto de Genserico Pinto trazia uma foto de Sigmund Freud na página que antecedia aos agradecimentos. Era dividido em dez seções, mencionava que as primeiras páginas seriam dedicadas a apresentar os três médicos que, no Brasil, se utilizavam dos métodos de Freud: os psiquiatras Juliano Moreira e Henrique de Britto Belford Roxo e o neurologista Antônio Austregésilo. E é o próprio Genserico que nos informa que não havia, entretanto,
[...] por parte desses ilustres cientistas, nenhum estudo impresso sobre o assunto; assim, a nossa tese representa o primeiro trabalho dado à publicidade no Brasil (Pinto, 1914, p. 7 citado por Castro, 2020, p. 358).
Para Dunker (2014, p. 28), psicanalista e professor da USP, a tese de Genserico Pinto “é uma apresentação sumária, mas bastante correta, no seu conjunto, da evolução das ideias de Freud [...]”.
De acordo com Rafael Castro, pesquisador em história das ciências, na tese de Pinto é descrita uma síntese e evolução das ideias de Freud, desde a passagem de Freud pelo hipnotismo, pelo método catártico, até abandonar esses procedimentos. O doutorando relata como desse modo Freud passou a se utilizar de outro método muito mais preciso, referindo-se à associação livre,
[...] conquanto mais trabalhoso e requerendo uma paciência maior: um interrogatório minucioso e paciente, destinado a arrancar do seio do psiquismo inconsciente as reminiscências que aí se fixaram. É este o princípio básico da doutrina (Pinto, 1914, p. 15 citado por Castro, 2020, p. 358).
Em 1905, Freud havia lançado os Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie [Três ensaios sobre a teoria da sexualidade] e Genserico Pinto assegura que a concepção original de Freud advinha do fato de assumir que “a função sexual é a principal função do indivíduo”, apresentando a discussão sobre a sexualidade infantil, afirmando ser esse o “ponto capital do freudismo, aquele que mais interessa e mais debates tem despertado” (p. 19). (Pinto, p. 16 citado por Castro, 2020, p. 359). O doutorando de 1914 segue sua tese discorrendo sobre a libido, o caso do Pequeno Hans e ilustrando a aplicação clínica da psicanálise, relatando sua própria prática a partir de cinco casos clínicos.
A tese de Genserico Pinto até hoje possui ecos contemporâneos. Ressaltava a habilidade extrema que era necessária para o aprendizado teórico e o uso prático da psicanálise, acentuado pela questão da ética, apesar de ele mesmo não ter sido analisado, pelo simples fato de que ainda não havia psicanalistas no Brasil.
Segundo Genserico Pinto (1914, p. 93 citado por Castro, 2020, p. 366), o método de Freud só daria bons frutos
[...] nas mãos de um especialista completo e cujas qualidades morais lhe emprestem a calma, a paciência e a dedicação indispensáveis ao tratamento do doente, que em geral dura longos meses e mesmo anos inteiros.
Tomemos o cuidado em alertar que, por melhor que fossem as intenções de todos os médicos citados, qualquer tentativa de prática psicanalítica não deixava de ser a de uma análise selvagem. Pelo motivo já mencionado, nenhum desses profissionais havia feito uma análise pessoal.
Medeiros e Albuquerque – Início da análise leiga no Brasil
Em outro artigo, Entre reflexões e apropriações: a difusão da psicanálise para além do meio médico psiquiátrico carioca (décadas de 1910 e 1920), Castro (2016) visa mostrar como a teoria psicanalítica circulou fora do ambiente médico psiquiátrico carioca antes de sua institucionalização no campo científico (como os da educação e da psiquiatria) na década de 1920, através de médicos e intelectuais no Rio de Janeiro e em São Paulo, que se referem à teoria de Freud a partir de diferentes pontos de vista e opiniões, no ambiente leigo, em jornais de grande circulação (Castro, 2016, p. 63).
Mas a difusão por leigos parece ter sido mais precoce. Na lista de Mokrejs (1993), o primeiro livro publicado no Brasil sobre as ideias de Freud teria sido O hipnotismo e suas aplicações, autoria de Medeiros e Albuquerque, Rio de Janeiro, Ed. Leite Ribeiro, S. Maurilio, 1919 (Mokrejs, p. 295).1 Castro o coloca como um texto publicado nos Arquivos Brasileiros de Medicina IX. Mas defendemos a hipótese de que a publicação na referida revista médica foi uma resenha do livro. O primeiro número da revista médica foi publicado em 1911, donde o nono teria sido em 1920 e dificilmente publicaria um livro inteiro, ainda mais de um leigo (Arquivos Brasileiros de Medicina, 2022).
José Joaquim de Campos da Costa Medeiros e Albuquerque (1867-1934) foi escritor, jornalista, político e professor brasileiro, membro fundador da Academia Brasileira de Letras (ocupante da cadeira 22) e letrista do Hino à Proclamação da República. O próprio Medeiros e Albuquerque citado por Castro (2016) dizia ter tido contato com a psicanálise por causa de seu interesse na técnica do hipnotismo (Medeiros e Albuquerque, 1922, p. 11). Medeiros e Albuquerque lia Freud em inglês e dizia ter chegado à psicanálise através de seu interesse pelo hipnotismo. Segundo ele, a psicanálise trazia três grandes inovações:
A primeira dizia respeito à distinção entre consciente, subconsciente e inconsciente [...]. Uma segunda inovação estava no modo como Freud classificava as nevroses, as dividindo entre nevroses propriamente ditas ou nevroses atuais e psiconevroses. [...] A outra inovação, que para Medeiros e Albuquerque era a mais original e que talvez atraísse a maior atenção, eram os estudos sobre a interpretação dos sonhos [...] (Castro, 2016, p. 69).
Uma vez que a tese de Genserico Pinto não foi comercialmente publicada, o primeiro livro sobre psicanálise publicado no Brasil teria sido em 1919: O hipnotismo e suas aplicações, de autoria do leigo Medeiros e Albuquerque. O segundo, O pansexualismo na doutrina de Freud, em 1920, escrito pelo já muito mencionado Francisco Franco da Rocha (1863-1933), médico psiquiatra paulista (Mokrejs, 1993, p. 295). Bem menos explicitado nos textos de história da psicanálise no Brasil, é que Franco da Rocha também fundara em 1896, no estado de São Paulo, o Hospício do Juquery, do qual foi diretor até 1923.
Mário de Andrade, a Semana de 22 e o público leigo
Parece ter sido a Semana de Arte Moderna, que ocorreu no Theatro Municipal de São Paulo entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922, o que mais difundiu o nome de Freud para além dos médicos, o que provavelmente já vinha ocorrendo, mas de modo bastante limitado.
Os poemas de Pauliceia desvairada foram escritos entre 1920 e 1921. Mário de Andrade os enviou a seu amigo Monteiro Lobato, que possuía uma editora em sociedade com Octalles Ferreira, embora Lobato tivesse uma posição muito contrária às vanguardas. Os meses se passaram e não havia resposta. Até que Mário inquiriu Lobato. Este lhe respondeu não haver compreendido “neres daquilo tudo” e sugeriu que Mário escrevesse um prefácio para expor suas ideias sobre poesia moderna (Tércio, 2019, p. 105). E assim, em meados de 1921, Mário escreveu, o Prefácio interessantíssimo, primeiro texto literário brasileiro que menciona a psicanálise e vários de seus termos e fundando o Desvairismo. Pela primeira vez, o nome de Freud é publicamente citado além do meio médico, o que não comoveu Lobato, que mandou Mário de Andrade imprimir alhures seu livro.
Entre várias outras menções aos conceitos e usos da psicanálise no Prefácio interessantíssimo, duas parecem ser as mais pertinentes:
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo
O que meu inconsciente grita. Penso depois: não só
para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a
razão deste Prefácio Interessantíssimo.
[...]
Dom Lirismo, ao Desembarcar do Eldorado do
Inconsciente no cais da terra do Consciente, é Inspecionado pela visita médica, a Inteligência,
que o alimpa dos macaquinhos e de toda e, qualquer doença que possa espalhar confusão,
obscuridade na terrinha progressista. Dom Lirismo sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud, que a denominou censura. Sou contrabandista! E contrário à lei da vacina obrigatória.
A defesa da criação poética a partir da ordem imprevista das emoções e das associações de imagens, a poesia enquanto próxima da loucura, são diretamente citadas nos itens que compõem o prefácio. Muitos leitores podem – e com razão – achar que se trata de um texto surrealista.
Contudo, o Prefácio Interessantíssimo foi escrito em 1921. Mário de Andrade não tomara conhecimento do surrealismo, movimento artístico e literário surgido em meados da década de 1920 em Paris e que também se baseava em Freud e na psicanálise. A palavra “surrealismo” fora cunhada pela primeira vez em março de 1917 pelo poeta Guillaume Apollinaire, falecido no ano seguinte. Mas os dois manifestos surrealistas, que codificaram e expandiram o movimento até se tornar um dos maiores século XX, dos quais o mais conhecido foi aquele escrito por André Breton, surgiram apenas em 1924. Portanto, Mário de Andrade, lendo trechos inéditos do que viria a ser A escrava que não é Isaura na Semana de Arte Moderna de 22 e publicando a Pauliceia desvairada ainda em 1922, se antecipara aos surrealistas quanto ao uso de Freud na poesia.
Mário possuía em sua biblioteca pessoal, hoje no Instituto de Estudos Brasileiros, as seguintes obras de Freud: Introduction à la psychanalyse, traduzido por S. Jankélévitch (1922), Trois essais sur la théorie de la sexualité, traduzido por B. Reverchon (1923), Cinq leçons sur la Psychanalyse (1924), tradução de Yves de Lay, com introdução de Édouard Claparède, Totem et tabou (1925), Essais de Psychanalyse (1927) e Le mot d’esprit et ses rapports avec l’inconscient, traduzido por Marie Bonaparte e Dr. M. Nathan em 1930 (Riaviz, 2003, p. 6).
Mas todas essas traduções francesas da biblioteca pessoal de Mário de Andrade são posteriores aos poemas e a introdução da Pauliceia desvairada. O contato de Mário com a obra de Freud deve ter ocorrido por traduções e/ou edições francesas anteriores.
Há controvérsias sobre a real importância da Semana de Arte Moderna de 1922. Para vários autores e pesquisadores sobre o modernismo brasileiro, o vulto do evento teria sido bem menor do que é hoje apregoado. A fama e a importância da semana seria muito mais um mito construído depois.
À época em que o evento ocorreu, seu impacto ficou limitado a um público de elite em São Paulo [...]. Durante as décadas de 1929 e 1930, as ações transcorridas no palco do Theatro Municipal tiveram repercussão pequena em âmbito nacional (Cardoso, 2022, p. 18).
Independentemente da querela sobre a real dimensão da Semana de 22, a intensa participação de Mário no evento ajudou muito a divulgar o nome do autor da Paulicéia desvairada e seu Prefácio interessantíssimo. No evento de 22 Mário também leu publicamente trechos do texto que dois anos depois viria a ser conhecido e publicado com o título A escrava que não é Isaura, texto no qual o nome de Freud foi novamente divulgado.
Ninguém passa incólume pelo vácuo de Schopenhauer, pelo escalpelo de Freud, pela ironia genial de Carlito. Ninguém mais ama dois anos seguidos!
A capacidade de gozar aumentou todavia ... (Andrade, 2009, p. 246).
Nos dez anos seguintes Mário de Andrade tornou-se autor e poeta cada vez mais conhecido. Logo a psicanálise também era cada vez mais difundida e para muito além do circuito de neurologistas e psiquiatras. Através da voz e da escrita de Mário de Andrade, Freud e a psicanálise ampliaram seu círculo para o público leigo.
Ou não tão leigo. O próprio Durval Marcondes, psiquiatra que viria a se corresponder diretamente com Freud e que se tornaria muito conhecido como o principal fundador, em 1927, da primeira sociedade psicanalítica brasileira e, como acontece com muitos médicos, também era poeta. Durval publicou em agosto de 1922, na revista modernista Klaxon, o poema Symphonia em preto e branco (Sociedade Brasileira de São Paulo, 2022). Klaxon foi criada três meses após a Semana de 22, copiando suas letras, cores e estilos. Durou apenas de maio de 1922 a janeiro de 1923, mas teve nove números, dos quais, além de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, também participaram, entre outros, Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida. À época da publicação de seu poema, Durval tinha apenas 22 anos, vindo a se formar em medicina apenas em 1924. E, em 1926, seu primeiro artigo a ser publicado na seção de obras do jornal O Estado de São Paulo, intitulava-se O symbolismo esthético na literatura - Ensaio de uma orientação para a crítica literária, baseada nos conhecimentos fornecidos pela psychanalyse (Sagawa, 2002, p. 159).
A participação de Oswald de Andrade para a difusão de Freud e da psicanálise no Brasil será um pouco mais tardia. Data de 1928, quando da publicação do Manifesto antropofágico. Uso e leitura muito singulares de Totem e tabu, de Sigmund Freud.
Primeira tradução de Freud no Brasil – o Modernismo mineiro e Iago Pimentel
O movimento modernista paulista contara com o apoio de parte de sua elite rica. A Semana de Arte Moderna também teve participação de nomes de outros estados. Manuel Bandeira, recifense que residirá a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, não foi pessoalmente,2 mas seu poema Os sapos, foi lido na Semana de 22 do Theatro Municipal da capital paulista.
Após o evento paulista, o Modernismo expandiu-se a outros estados. Mas nem sempre com o apoio da elite e do dinheiro. Em 1924 Belo Horizonte foi visitada por uma caravana de paulistas, entre os quais estavam a pintora Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e o poeta e romancista franco suíço Blaise Cendrars. À época a comunicação entre os dois estados era difícil, e o deslocamento do grupo pelo interior mineiro, quase uma aventura. O grupo paulista buscou contato com os artistas e escritores da capital mineira. E o conseguiu por intermédio de Carlos Drummond de Andrade, então já poeta e prosador publicado.
Depois da expedição dos paulistas a Minas Gerais, incentivado por correspondência de Mário de Andrade, o grupo mineiro tomou força. Uma revista modernista foi fundada em 1925, chamando-se singelamente A Revista. Seus fundadores foram Drummond, Emilio Moura, Francisco Martins de Almeida e Pedro Nava. Contou com muitos outros nomes, entre os quais os mais conhecidos vieram a ser, além de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, Manuel Bandeira, o próprio Mário de Andrade e Sigmund Freud. Sem esquecer de Ronald de Carvalho, que em 1915 fora um dos dois editores revista portuguesa Orpheu n.° 1, que viria a se tornar um marco famoso da literatura e na qual publicaram, entre outros: Fernando Pessoa, Álvaro de Campos e Mário de Sá-Carneiro,
Mas houve muito pouca verba. A Klaxon também durou pouco, mas produziu nove números. A Revista teve apenas três números. Todos com várias páginas de anúncios de produtos bastante populares.
Os três números da mineira A Revista iniciativa sustada pela escassez de fundos e falta de patrocínio, sinalizam a esqualidez da cena cultural fora da órbita governamental, se comparada à lufada de revistas modernistas em São Paulo, cobrindo amplo espectro de credos estéticos e ideologias (Miceli, 2022, p. 134).
No segundo número de A Revista, o médico mineiro Iago Pimentel publicou um breve resumo das principais ideias de Freud: Sobre a psycho-analyse. Seu objetivo era introduzir a leitura do próprio texto de Freud. E já ao início, Pimentel fala das conferências, mais conhecidas hoje como Cinco lições de psicanálise, pronunciadas em 1909, na Universidade de Clark. Escreve Pimentel:
Sobre a doutrina de Freud ou psycho-analyse, tão divulgada, tão mal conhecida e tão mal interpretada, procuraremos dar aqui, em ligeiros traços, um rápido apanhado, remettendo o leitor, que tiver interesse em melhor conhecel-a, à leitura de uma serie de conferências, feita pelo próprio Freud, em 1909, na Universidade de Clark, nos Estados Unidos, cuja publicação iniciaremos no próximo numero desta revista e onde se acham succintamente expostos todo o histórico e evolução da doutrina (Fundação Biblioteca Nacional, 2022).
No terceiro e último número de A Revista, foi publicada parte da primeira conferência, pouco mais da metade. A tradução de Freud foi diretamente do alemão, o que é confirmado pelo próprio tradutor: ‘Traducção do original pelo Dr. Iago Pimentel’ (A Revista. Acesso em: 20 jun. 2022).
Iago Victoriano Pimentel nascera em São João del-Rei, Minas Gerais, em 1890. Em 1913 doutorou-se em medicina pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Em 1922 foi convidado para ocupar o cargo de psiquiatria no Instituto Neuropsiquiátrico de Belo Horizonte, depois Instituto Raul Soares, onde usava práticas psicológicas para auxiliar no diagnóstico psiquiátrico. Em meados da década de 1920, com a Reforma do Ensino Primário e Normal realizada por Francisco Campos, começou a trabalhar na Escola Normal Modelo de Belo Horizonte, ministrando a cadeira de psicologia educacional. Em 1932, mobilizado pelas preocupações de Helena Antipoff, psicóloga e pedagoga de origem russa, participou do grupo que prestava assistência às crianças excepcionais e prestou serviço no consultório médico-pedagógico instalado pela Sociedade Pestalozzi em 1934. Mudouse para o Rio de Janeiro em 1938, trabalhando como professor de psicologia e lógica na Universidade do Brasil. Em 1943 retornou a Belo Horizonte e às atividades de professor e de psiquiatra no Instituto Raul Soares. De 1945 a fevereiro de 1946, foi Secretário da Educação e Saúde Pública. Nos anos 1950, atuou como professor de psicologia da educação no curso de Administração Escolar e de Psicologia Social e Individual na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Minas Gerais, atual UFMG. Faleceu em 1962.
A biografia de Iago Pimentel merece ser detalhada. Há um grande ecletismo e uma passagem da medicina e psiquiatria para uma maior inclusão em ciências humanas. Passou a considerar,
[...] além dos fatores hereditários, a influência do meio físico e social para a constituição do indivíduo [...] apesar de que incluísse a Psicologia como um ramo das ciências naturais (Campos, 2001, p. 297).
Sua posição de que a psicologia era uma ciência natural não foi obstáculo para que seu nome fosse colocado no Dicionário biográfico da psicologia no Brasil - Pioneiros (Campos, 2001, p. 297).
Também ficam outras dúvidas. Pimentel traduzia direto do alemão. Teria tido contato com Freud por carta? O fundador da psicanálise teria autorizado a tradução? De qualquer modo, ao lado de nomes como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, Freud consta como um dos autores do terceiro e último número de A Revista.
A Revista n. 3: Freud acompanhado de nomes que se tornariam famosos na poesia e na literatura brasileiras: Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e de outros hoje um pouco esquecidos: Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Emilio Moura, Abgar Renault.
Primeiras traduções: Ernst Jones (1930) e Sigmund Freud (1930-1931)
O primeiro livro de um psicanalista do grupo inicial de Freud a ser publicado no Brasil foi Da psico-analise (Breve introdução ao seu estudo), de Ernst Jones, publicado em 1930 pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo, tradução do Prof. Raul Briquet. Seguiu-se a tradução completa das Cinco lições de psicanálise, de Freud, também pela Companhia Editora Nacional, tradução de Durval Marcondes e J. Barbosa Correia, com a data de 1930, mas segundo Mokrejs (1993, p. 301), colocado à venda em 1931. Em 1932, surge uma tradução de Freud em Portugal e, a partir de 1934, várias traduções de livros mais breves de Freud, difíceis de serem identificadas apenas pelos títulos, que diferem dos originais alemães.
É interessante que os livros de Jones e Freud tenham sido editados pela Companhia Editora Nacional. Até a Primeira Guerra Mundial, os livros brasileiros eram impressos, em sua maioria, na Europa. A Editora Garnier, utilizada por Machado de Assis e quase todos os acadêmicos, era francesa e tinha suas oficinas na França. Coelho Neto era impresso no Porto, em Portugal, e editado por Lelo & Irmão. As editoras e livrarias brasileiras dedicavam-se mais aos livros didáticos, e pouco se imprimia no Brasil (Wikipedia, 2022).
O escritor Monteiro Lobato, igualmente dedicado a várias causas nacionalistas ao longo de sua vida, resolveu mudar essa situação. Com a compra em 1918 da Revista do Brasil, Lobato inicia a criação de um projeto editorial completamente brasileiro. A partir da compra, criou a Editora Monteiro Lobato & Cia., rebatizada Cia. Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Em 1925 a editora entrou em colapso financeiro e teve de ser fechada. Mas em novembro de 1925, Monteiro Lobato cria a Companhia Editora Nacional. Em 1927 é nomeado adido comercial nos Estados Unidos, de onde só retorna em 1931, já tendo vendido no ano anterior sua participação na editora.
Contudo, há indicações de que, mesmo à distância e sem o controle financeiro da Companhia Editora Nacional, além da publicação de suas próprias obras e traduções, Lobato ainda influía no projeto editorial. Também é possível que o projeto da publicação do livro de Jones tenha sido anterior venda da participação societária de Lobato. De qualquer modo, Lobato era radicalmente contra a ortografia etimológica então vigente no Brasil e usada desde o século XVI. Ortografia que se propunha a imitar as escritas grega e latina, com todos ys e chs. Nas primeira e quarta capas do livro de Ernst Jones, ocorre uma curiosa duplicidade. Na capa, o título está com ortografia diferente daquela ainda utilizada á época - Da Psico-Analise (Breve Introdução ao seu Estudo),3 não mais a antiga ortografia etimológica, então vigente no Brasil, mas a ortografia simplificada defendida por Lobato e que só seria oficializada anos mais tarde. Já a quarta capa anuncia as últimas edições da Editora Nacional: Psychoanalyse pelo Dr. Franco da Rocha e Cinco Licções de Psychoanalyse por S. Freud, ambos em ortografia etimológica. Teria Lobato trabalhado na revisão da tradução de Ernst Jones e, até mesmo, influenciado diretamente na escolha do livro para publicação?
Psicanálise no Brasil – lavagem, branqueamento e revisionismo
Os nomes de Juliano Moreira e Franco da Rocha são sempre evocados em associação com honrarias ao menos duvidosas.
A Colônia Juliano Moreira, instituição criada em Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX, foi ‘destinada a abrigar aqueles classificados como anormais ou indesejáveis, tais quais doentes psiquiátricos, alcoólatras e desviantes das mais diversas espécies’ (Wikipedia, 2022). Teve início com a desapropriação das terras do Engenho de Fubá e Cana-de-açúcar de Nossa Senhora dos Remédios em 1912. Seguiram-se a execução do projeto de Juliano Moreira e a inauguração em 1924, com o nome de Colônia de Psicopatas Homens de Jacarepaguá. Com a morte de seu idealizador, em 1935 passa a se chamar Colônia Juliano Moreira (CJM) para homenageá-lo.
Visitamos pessoalmente a Colônia Juliano Moreira nos anos 1970 e 1980. Suas condições e a de seus internos eram lastimáveis. Tudo poderia fornecer material e ímpeto para o movimento antimanicomial, que em 2001 culminou na Lei da Reforma Psiquiátrica, mais conhecida como Lei ‘Paulo Delgado’.
A instalação do Hospital Psiquiátrico no Juquery, no estado de São Paulo, ocorrera muito antes. Em uma área de 150 hectares, iniciou em 1885 e foi denominada Colônia Agrícola do Juquery. Em 1896, o Doutor Francisco Franco da Rocha, a serviço do Governo do Estado, foi designado para administrar o maior Hospital Psiquiátrico da Brasil e da América Latina. Mais tarde Juquery tornou-se município, e a cidade passou a ser nomeada Franco da Rocha. Ambos os nomes tão negativamente famosos quanto o da Colônia Juliano Moreira.
Juquery/Franco da Rocha e Juliano Moreira, assim como o Hospital Colônia de Barbacena, seguiram a sina do primeiro hospício brasileiro, o Hospício Pedro II, fundado no Rio de Janeiro, em 1841. Instituição tida como pioneira, trouxe o mais moderno da medicina francesa para a capital do Brasil. Foi criada por médicos formados na França, que também criaram no Rio e na Bahia as primeiras faculdades de medicina brasileiras. Para abrigar o Hospício Pedro II, foi construído um suntuoso prédio, inaugurado em 1852, até hoje existente na Av. Pasteur, no bairro da Urca, prédio que mais tarde abrigou a reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas já poucas décadas após sua inauguração na Praia Vermelha (hoje parte da Urca), os relatos eram de que o Hospício Pedro II decaíra em condições mais do que lastimáveis. Com a Proclamação da República, o Hospício de Pedro II passou ao controle direto do Governo Federal, adotando o nome de Hospício Nacional de Alienados.
O organicismo da psiquiatria, surgido como especialidade médica no século XIX, já trazia desde o início a ideia de degeneração. Mesmo que pessoalmente muitos médicos, como Juliano Moreira (negro de origem pobre cujo mérito é indiscutível) ou Franco da Rocha, buscassem condutas humanitárias, seus sucessores mal disfarçavam suas práticas segregacionistas, racistas e punitivas.
Iniciar a história da psicanálise no Brasil com Durval Marcondes que, apesar de médico e psiquiatra, passou ao largo de tais práticas, é bastante conveniente. Inquestionáveis são a persistência e a seriedade da devoção de Durval a Freud e a psicanálise. Sabedor da necessidade de análise pessoal para a formação de um psicanalista, tornou-se um dos primeiros pacientes de Adelheid Koch. Mas também deixa à parte que Juliano Moreira era negro e que Mário de Andrade mulato e, por mais que a elite intelectual passasse décadas escondendo e negando, homossexual. E que Genserico Pinto era um simples formando em medicina e Medeiros e Albuquerque sequer era médico, mas leigo.
Ainda mais porque as gerações de médicos posteriores a Juliano Moreira e Franco da Rocha descambaram, em graus variados, para o discurso e a prática que também veio a embasar o nazismo. O movimento de higiene mental surgiu com a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada no Rio de Janeiro, em 1923, pelo psiquiatra Gustavo Riedel.
O discurso higiênico mental e eugênico centrava-se na afirmação de que não apenas os fatores hereditários, mas também os ambientais produziam degeneração. Contudo, uma vez que a população dos manicômios e das colônias apresentava grande frequência de pessoas mais pobres e de negros e pardos, a questão étnica muitas vezes descambou para um racismo nada disfarçado.
Mas uma das grandes preocupações desses médicos também se focava na vida das cidades, que, segundo eles, causava danos irreversíveis à moral e aos bons costumes das famílias brasileiras, preocupação que englobava vários discursos, entre eles, o papel da mulher e a educação infantil. Preocupações que podiam ser exemplificadas em artigo publicado nos Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, periódico publicado pela Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), no qual
[...] o Dr. Júlio Porto-Carrero alertava para comportamentos que desembocava no que ele chamava de “dissolução dos costumes sociais”, como “a emancipação da mulher, a cooperação desta no trabalho fora do lar, o divórcio, a vida cada vez mais externa” (Porto-Carrero, Arquivos, 1933, VI, 2, p. 90). O psiquiatra se posicionava fortemente contra a atuação feminina em trabalhos fora do ambiente doméstico, pois os considerava contrários à natureza feminina. Outro problema derivado da emancipação da mulher era a necessidade de colocar as crianças em “educandários, desde as curvas idades do jardim de infância” (Porto-Carrero, Arquivos, 1933, VI, 2, p. 90), o que ocasionava a “perda do sentido do lar”, pois, de acordo com Porto-Carrero, a família se tornava “um conceito cada vez mais abstrato”, assim como o “casamento, cada vez mais fácil de contrair e de se desfazer” (Porto-Carrero, Arquivos, 1933, VI, 2, p. 90). (Cupello, 2013, p. 50-51).
Porto-Carrero já fora citado acima como um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, da qual se tornou secretário, e Juliano Moreira, presidente.
O médico pernambucano Júlio Pires Porto-Carrero (1887-1937) iniciou seus estudos de Medicina na Bahia e os completou no Rio de Janeiro. Em 1918 tornou-se livre-docente e, em 1929, passou a catedrático de Medicina Legal na Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro (Mokrejs, 1989). A partir de 1925, Porto-Carrero passa a publicar inúmeros artigos sobre psicanálise e sobre psicanálise e educação. Em 1932 surge seu primeiro livro: A psicologia profunda ou psicanálise (Porto-Carrero, 1932).4 Até o final de sua vida continuará publicando artigos e livros sobre psicanálise, educação e medicina legal e, em 1934, uma tradução do livro de Freud O futuro de uma ilusão (Mokrejs, 1993, p. 304), mas não cita a editora e local da publicação).
A leitura do primeiro livro de Porto-Carrero causa boa impressão. A exposição das ideias de Freud é correta. Os acréscimos e as opiniões do autor geralmente são pertinentes e sensatas. As aplicações à realidade brasileira quase sempre pertinentes.
Mas assim como na citação acima sobre o papel da mulher, num dos artigos anteriores ao seu primeiro livro, Porto-Carrero surgira com algo bem típico de um devotado adepto da Liga Brasileira de Higiene e Saúde Mental:
[...] As três raças que constituem a nossa gente contribuíram fartamente com preconceitos tais. E notadamente as duas raças coloridas deixaram-nos herança pesada e fértil de tabus, na mítica lendária e religiosa (Porto-Carrero, citado por Mokrejs, 1993, p. 158).
A herança pesada não se refere aos séculos de degredo e brutal escravatura dos africanos, muito menos ao sistemático roubo das terras e extermínio das culturas e físico dos povos indígenas originários, ambos pela raça ‘não colorida’, mas deduz-se que pelo primitivismo dos tabus, mítica lendária e religiosa das duas raças coloridas.
Conclusão
Os relatos mais comuns, iniciando com Durval Marcondes a história da psicanálise no Brasil, desconhecem ou apagam relatos e artigos sobre algumas ideias de Freud no Brasil desde finais do século XIX. Bem como a primeira exposição sistemática da obra de Freud, em tese por escrita, que data de 1914. Da importância da difusão da psicanálise no meio leigo e por poetas e escritores, bastante já foi dito acima. Qual a conveniência em se apagar, ou colocar em segundo plano da história o nome desses outros médicos, escritores e leigos? Contudo, voltamos a assinalar a importância da Semana de Arte Moderna de 22, evento não oficial, mas que se tornou um marco do aniversário do primeiro século da independência do Brasil, que neste ano comemora seu segundo século de existência, para a difusão da psicanálise em nosso país.
Os nomes de Franco da Rocha como primeiro presidente, em São Paulo, da primeira sociedade psicanalítica do Brasil e de Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, da segunda sociedade psicanalítica brasileira, indissoluvelmente, ligam a história oficial da psicanálise no Brasil duas instituições de triste memória: o Asilo de Alienados do Juquery, mais tarde Franco da Rocha e a Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Mas da fundação da primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo só é lembrado seu primeiro secretário: Durval Marcondes, que, entre outros méritos, passou ao largo dos grandes hospícios e colônias de alienados e das Ligas de Higiene e Saúde Mental. Marcondes de fato foi o principal fundador quando a sociedade de São Paulo foi reestabelecida em 1951. Já a primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro teve curtíssima duração, poucos ficaram sabendo de sua existência e parece não ter tido atividade. Quando da fundação de sua homônima em 1959, o vínculo aparenta ser inexistente.
Durval Marcondes é figura de integridade, de capacidade de organização e de dedicação à psicanálise. Além de que seu contato pessoal com Freud, e seu empenho para a vinda da primeira analista ao Brasil, sejam muito mais adequados para se iniciar a história oficial da psicanálise em nosso país.
Mas a história real, com suas leituras errôneas ou parciais de Freud, o vínculo de vários dos difusores com as Ligas de Higiene e Saúde Mental, o interesse de poetas e escritores, aos quais faltou dinheiro para completar a primeira publicação de uma obra de Freud, é tudo muito mais humano e com cheiro de Brasil.