Introdução
A imagem acima compõe um acervo com cerca de 30 obras criadas a partir da escuta das histórias de vida de jovens moradores da periferia da cidade de Belo Horizonte e se apresenta como o foco reflexivo do presente texto. Essas criações integram a metodologia das narrativas memorialísticas (Guerra; Moreira, 2020), inaugurada ao longo da pesquisa Adolescências e leis, sediada pelo núcleo de pesquisa Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (PSILACS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenada pelas professoras Andréa Máris Campos Guerra (UFMG) e Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC Minas), e construída por diversas mãos. Tal pesquisa tomou como objeto a investigação dos condicionantes subjetivos favoráveis ao enlace e desenlace do jovem ao crime por meio da escuta dos modos de viver “adolescentes”. Participaram dessa investigação 16 jovens (de 16 a 32 anos de idade) moradores de periferia, envolvidos ou não com a criminalidade. O núcleo PSILACS chegou até esses jovens através da indicação feita pelos próprios pesquisadores que possuíam relações próximas com alguns dos jovens, seja por origens comuns, seja por suas experiências de trabalho nesse campo. Contou-se também com indicações feitas pelos diretores e técnicos dos centros socioeducativos e oficineiros do programa Fica Vivo!.1 Estabelecido esse contato, os jovens eram convidados a contar sua história de vida de forma livre, sem restrição de temas ou limite de tempo. O momento de recolhimento das narrativas memorialísticas se configurou como o primeiro tempo interventivo da pesquisa Adolescências e leis, nomeado narrar (Guerra et al., no prelo).
A sistematização das narrativas memorialísticas (Guerra et al., 2017), enquanto metodologia psicanalítica de fenômenos sociais, difere de seu emprego enquanto expressão de um gênero literário e possibilita a introdução de um método psicanalítico de escuta capaz de tomar o saber como não todo apreensível, considerando seus furos e não o atribuindo ao pesquisador. Ao sustentar que a palavra seja tomada pelo jovem, tal metodologia permite a emersão e a escuta dos saberes que se revelam na fala dos entrevistados. Ao pesquisador caberá a função de mediação simbólica (Guerra et al., 2017), uma vez que suas intervenções são feitas como convite para que o jovem continue em seu discurso, sem introduzir novos elementos à sua fala. O elemento introduzido pelo pesquisador é apenas a solicitação disparadora que possibilita a abertura da conversa: “Conte-me sua história de vida”. As narrativas memorialísticas revelam a ficção através da qual vidas são narradas e permitem extrair do discurso dos jovens as “fixões” explicitadoras das repetições pulsionais que os enlaçam a sua história, seu corpo e seu território (Guerra et al., 2017).
Neste ponto, é importante diferenciar os termos “ficção” e “fixão”, com base nas construções desenvolvidas por Jacques Lacan ([1972] 2003) em seu texto O aturdito. “Ficção” diz respeito às construções imaginárias que compõem a história de vida do sujeito e demarcam a realidade por ele experienciada, sua posição enunciativa, seu processo subjetivo de enfrentamento do real e as dimensões inconscientes, traumáticas e políticas que circunscrevem seu discurso. Afinal, para a psicanálise, a verdade tem estrutura de “ficção”, o que relativiza a busca por uma verdade factual ou compartilhada. Já o termo “fixão” ancora o sujeito ao real explicitando seus circuitos de gozo e repetição.
Passemos ao segundo tempo interventivo da pesquisa Adolescências e leis: criar. Neste tempo, as narrativas memorialísticas dos jovens, gravadas em forma de áudio, foram entregues a artistas voluntários, convidados do núcleo PSILACS, que realizaram obras plásticas, literárias, visuais e performativas a partir das histórias de vida narradas. Tratase de um período de suspensão do trabalho interventivo da pesquisa, mas de intenso e vívido trabalho de criação artística e de análise de dados sob a perspectiva teórica.
O terceiro e último tempo – partilhar – se desenvolveu a partir do encontro entre os pesquisadores, os artistas, os jovens e as obras de arte produzidas com base na escuta de suas narrativas memorialísticas. Esse encontro aconteceu no Centro de Referência da Juventude, localizado na região central da cidade de Belo Horizonte (MG), um espaço público de participação, diálogo e trocas voltado à juventude. Como último ponto dessa apresentação metodológica, pontuamos a mudança de nomeação que esse encontro sofreu. Inicialmente ele se intitulava Oficina interativa ou devolutiva. Porém, após o encontro dos pesquisadores com a obra A partilha do sensível, de Jacques Rancière (2005), ele passou a ser chamado de Partilha. Segundo o autor: “Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões” (Rancière, 1995 citado por Rancière, 2005, p. 2). Assim, partilhar o sensível implica a divisão das partes atribuídas a cada um na construção de um trabalho comum, o que não é sem consequências políticas.
Tendo atravessado cada uma dessas etapas, este trabalho pretende inaugurar um quarto momento de investigação. Afinal, cada tempo de pesquisa repercute dialeticamente sobre as próprias etapas já percorridas e sobre cada um dos atores envolvidos em cada etapa, ofertando sucessivamente um novo ponto de trabalho e reflexão. A partilha de uma obra criada a partir de uma narrativa, por sua vez, promove um objeto e uma interrogação inéditos, que exigem do psicanalista um exercício para além da escuta. Buscamos assim um “olho clínico” (Rocha, 2008) capaz de contemplar a obra de arte “menos por algum insondável valor estético ou cultural, e mais pela incidência de marcantes relações subjetivas” (Bispo, 2009, p. 179, grifo nosso).
Exploramos a seguir, algumas dessas diferentes leituras e efeitos da obra de arte a partir da apresentação das múltiplas interpretações dada à obra de arte com base na narrativa memorialística de Blitz, um dos jovens participantes da pesquisa Adolescências e leis. A obra referenciada é a fotografia que inaugura o presente artigo, criada pelo artista João Vitor Couto. A partir desse debate, refletimos sobre o que da arte advém em nosso processo investigativo. Damos sequência a essa exploração em três passos. Para iniciar, apresentamos uma breve discussão acerca das possibilidades múltiplas de recepção e interpretação de uma obra de arte, entre elas, a via psicanalítica.
Obra de arte como pluralidade
Nos estudos do campo das artes, encontramos debates sobre a recepção da obra, que revelam os enlaces entre os múltiplos efeitos de sentido de uma obra e os lugares de pertencimento de seus receptores. Afinal, o objeto da arte está no “espaço-tempo do observador” conforme nos relembra Mendonça (2009, p. 111), a partir dos apontamentos de Eric Landowski (2004). Para Landowski (2004), os efeitos de sentido são coordenados pela localização e circunstâncias a partir das quais o sujeito entra em contato com o objeto da arte. Esse debate se desenvolve na argumentação de Mendonça (2009, p. 3955) que nos adverte: “a arte não fala por si porque não é uma entidade isolada, mas uma ocorrência que deriva de um conjunto de ações humanas articuladas que contribuem para comunicar o seu modo de existência”. A partir da argumentação da autora, podemos pensar que a recepção de uma obra de arte por seu público nunca se dá sem o atravessamento ou a mediação das estruturas e estratificações sociais às quais o sujeito pertence ou se identifica, por exemplo, a raça, a família, a religião, a escolaridade, a classe econômica e o gênero do sujeito.
Desse modo, a infinidade de sentidos que se inaugura a partir do encontro do observador com a obra é impulsionada não somente por seu caráter de furo (Rivera, 2018), mas também pelos lugares de enunciação e pertencimento do observador. Os efeitos de sentido suscitados no encontro do sujeito com a obra revelam as marcas inconscientes inscritas por suas vivências ao longo de sua trajetória de vida. A pluralidade de sentidos da obra diz respeito também à pluralidade das vidas que a recepcionam.
A série de estruturas simbólicas que incidem na recepção da obra por parte do espectador incidem também sobre sua criação. Como nos adverte Frade (2004, p. 19), “é necessário que percebamos a natureza transformadora das instituições sociais que dela [obra de arte] se apropriam, metamorfoseando-a. Elas a digerem ao seu modo, fazendo-a, então, arte”. A partir dessas mediações que atravessam e estruturam a produção artística, a obra se abre à polissemia de sentidos, esboçando a pluralidade que envolve seu processo de criação e, assim, a impede de fixar-se a um sentido único. Mendonça (2009, p. 3951) reforça que “os objetos – no nosso caso, obras artísticas – não seriam importantes apenas pelo significado que carregam, mas pelas apropriações que as ‘diversas competências culturais’ os impregnam de sentidos”.
Assim, a imagem é tomada como mediação entre a sociedade e o espectador a partir de seu valor simbólico, conforme proposto por Jacques Aumont (1993). A obra carrega em suas entrelinhas as marcas dos esquemas simbólicos que a estruturam e, então, constituem seu valor simbólico, “definido pragmaticamente pela aceitabilidade social dos símbolos representados” (Aumont, 1993, p. 79). Entendemos que uma imagem ou obra não pode ser tomada enquanto representação, reforçando a articulação entre o dizível e visível que a psicanálise busca desalojar, mas sim enquanto representatividade. A polissemia de sentidos revelados pela imagem-furo e pela pluralidade dos esquemas simbólicos que a constituem comunica diferentes modos de existência e diferentes lugares de enunciação e reconhecimento social a partir dos quais uma obra olha e é olhada por seu receptor.
Muito nos interessa o paradigma dos estudos em artes que enxerga um compartilhamento de responsabilidade e autoridade entre autor e fruidor. Como já sugerimos no tempo de partilha, que compõe o terceiro momento de nossa pesquisa, acreditamos que partilhar, no sentido em que pretendemos desenvolver, é não apenas realizar uma devolutiva dos achados e das conclusões da investigação teórica para aqueles que com ela contribuíram tecendo suas narrativas memorialísticas, mas também um movimento de reinserção autoral do sujeito nos efeitos que sua fala evoca e provoca naqueles que a escutam. Há, portanto, um certo processo de restituição em jogo, que implica o narrador da obra produzida, pelo outro, a partir de sua história de vida, e abre um espaço para que essa restituição seja lida e interpretada de várias maneiras, como veremos a seguir. Nomeamos esse momento de restituição como tempo de colher.
Seguindo o significado fornecido por dicionários de língua portuguesa, “colher” (verbo transitivo direto) significa “separar os frutos”, um procedimento de agrupamento ou recolhimento daquilo que se plantou. Nosso esforço neste quarto momento, a partir do qual o presente trabalho se desenvolve como testemunho, acompanha o significado ofertado a essa palavra. Afinal, trata-se de um tempo de reunião daquilo que foi plantado ao longo do desenvolvimento da pesquisa. Essa colheita, longe de deixar o sólido árido pelo recolhimento de seus frutos, revigora-o constantemente, a cada instante em que um novo olhar é lançado sobre as obras.
Notas sobre a fotografia: o jovem, o artista e o pesquisador
Entramos agora mais detidamente na multiplicidade de interpretações que giram em torno da fotografia que inaugura este trabalho. Roland Barthes (1984), em sua obra A câmara clara: notas sobre a fotografia, argumenta que um dos aspectos mais característicos da fotografia é que ela possui uma “força constatativa, e que o constatativo da fotografia incide, não sobre o objeto, mas sobre o tempo” (Barthes, 1984, p. 132). Um registro fotográfico diz, decididamente, que “isso foi” (Barthes, 1984, p. 168). Há, portanto, um “certificado de presença” (Barthes, 1984, p. 129) que diferencia a foto de outros tipos de registros, como o discurso, o texto ou a pintura uma vez que podem ser mera imitação e não apresentar o caráter da dupla conjunção entre realidade e passado que encontra expressão no processo químico que a revela. Ao permitir esse ato histórico recente de ter acesso à imagem de si mesmo sem o recurso ao espelho, mas pela imobilização na forma de objeto (um retrato), a fotografia se apresenta como “o advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da consciência de identidade” (Barthes, 1984, p. 25). Tal dissociação, em que me encontro como objeto capturado na imagem, exige, por sua vez, um movimento do sujeito enquanto tal:
Uma excelente fotógrafa, certo dia, fotografou-me; julguei 1er nessa imagem o pesar de um luto recente: por uma vez a fotografia me devolvia a mim mesmo; um pouco mais tarde, porém, eu encontrava essa mesma foto na capa de um panfleto; em virtude do artifício de uma tiragem, eu tinha apenas uma horrível face desinteriorizada, sinistra e rebarbativa, como a imagem de minha linguagem que os autores do livro queriam transmitir. (A ‘vida privada’ não é nada mais que essa zona de espaço, de tempo, em que não sou uma imagem, um objeto. O que preciso defender é meu direito político de ser um sujeito.) (Barthes, 1984, p. 29).
Para além da importante observação acerca do advento de mim mesmo, e da defesa do status de sujeito que o registro fotográfico provoca ao tender a mortificar uma imagem, Barthes (1984) oferece também algumas ferramentas teóricas para pensarmos a fotografia. Em primeiro lugar, o autor nomeia sua atração por fotos de forma original, ao afirmar que “a palavra mais adequada para designar (provisoriamente) a atração que sobre mim exercem certas fotos era ‘aventura’. Tal foto me ‘advém’, tal outra não” (Barthes, 1984, p. 36). Incitado pela animação que a aventura da fotografia produz, o autor propõe a descrição de dois elementos que fundam seu interesse pelo estudo fotográfico. O primeiro Barthes (1984, 45) chama de studium, “uma espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas sem acuidade particular”. O segundo elemento, o autor afirma, é o que promove uma espécie de quebra, escansão ao studium. É o que atravessa, marca, pontua a experiência da foto e que recebe o nome de punctum. Esse algo que punge consiste em “uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver” (Barthes, 1984, p. 89). Embora Barthes (1984) trate especificamente de fotos-retratos, fotografias de pessoas, suas observações não deixam de ser de interesse para a análise de nossa fotografia em questão, e do que ‘advém’ e se oferece como punctum aos olhos de cada um dos atores da pesquisa. Antes de passarmos finalmente às respectivas visões sobre a fotografia, apresentamos brevemente a narrativa de Blitz, que serve de base à produção da obra.2
O jovem
Blitz inicia sua narrativa a partir da mudança para um bairro de Belo Horizonte, época em que se diz envolvido com a pixação. A chegada ao novo local o apresenta a um contexto, a amizades e a atividades que eventualmente o levam ao tráfico de drogas. Segundo ele, não havia desejo de “mandar na favela”, ou, ao que parece, nenhum deslumbre quanto ao mundo do crime. Sua meta era ganhar dinheiro e escapar das condições de trabalho que havia encontrado até então.
Eu era um jovem que não tinha nenhuma perspectiva política, social”. “Eu me envolvi com o tráfico de drogas, comecei a me envolver junto com a galera”. “A gente tava fazendo um trabalho, o serviço tava duro, o sol rachando na moleira. Em certo momento em falei com os caras: ‘minha mão tá cheia de calo, bolha, sangue, tudo mais, tá difícil ganhar essa mixaria aí (Blitz, 2017).
Ao perceber, no entanto, que a atividade no tráfico logo o afastou do lazer da capoeira e de uma menina que lá havia conhecido e começado a namorar, o jovem reconsidera seu lugar no crime, se afasta do bairro onde morava, e passa a se reaproximar gradualmente desses dois vetores de desejo dos quais não abria mão. Nesse processo de reaproximação, ele encontra o rap e uma nova forma de inserção na comunidade a partir da arte.
No desfecho de sua narrativa, o jovem sublinha sua nova posição enquanto arte-educador e seu protagonismo comunitário a partir da fundação de um espaço cultural. Nele visava potencializar e dar visibilidade a uma outra forma de inserção social para ele e para os outros e, assim, segundo seus dizeres, oferecer uma oportunidade de
[...] interromper o ciclo da vida de geração em geração que leva sempre a sociedade a entender que jovem não sabe de nada, não tem suas próprias escolhas, não sabe direito o que quer, é indeciso e tudo mais. Que não tem protagonismo, que não tem formação política, que não tem opinião, que não consegue desenvolver algo (Blitz, 2017).
A partir da apresentação dessa narrativa, vejamos quais foram as leituras que Blitz atribui à fotografia de autoria de João Vitor Couto, realizada a partir da escuta de sua narrativa memorialística.
A leitura do jovem sobre a obra de arte recebida
As impressões do jovem entrevistado a respeito da obra que lhe foi presenteada são recolhidas em dois momentos. O primeiro ocorreu por ocasião da entrega da fotografia, ocorrida durante a partilha, encontro que reuniu artistas, pesquisadores e entrevistados. Ao abrir o embrulho com a foto, Blitz afirma:
A vida é um jogo né, gente? E a gente tem que saber jogar. E quando a gente joga, a gente envolve outras pessoas no jogo, a gente encaçapa a bola, já fazendo um trocadilho com meu presente (Blitz, 2018).
O segundo momento faz parte de uma entrevista realizada com o intuito de depreender os efeitos da pesquisa a partir da reflexão dos entrevistados. Na oportunidade, aparecem novas reflexões acerca da obra de arte recebida:
Eu achei bastante criativa a forma como o fotógrafo interpretou a história. A minha história, como eu contei, ela foi muito... ela teve vários caminhos e ao mesmo tempo ela teve entradas e saída que representam a caçapa e eu achei que eu seria a bola. Eu achei muito doido, porque até então nunca tinha acontecido comigo, deu ter recebido algo nesse sentido a partir de um trabalho, de uma colaboração minha. Foi muito legal para mim essa resposta. Para mim soou como uma homenagem, uma homenagem mesmo (Blitz, 2019).
Ao ser questionado sobre o que representava essa bola e os destinos que ela ganha, seja triunfar, seja entrar no buraco, ele responde:
Ah! no buraco eu não entrei não. Eu to permanecendo aí até hoje. Eu achei outros caminhos que me levaram a situações diferentes que gerou outras repercussões que no geral, o trabalho que a Casa desenvolve, as coisas que eu venho fazendo no dia a dia na comunidade, eventos, as revelações aqui da comunidade (Blitz, 2019).
Se nos recordarmos de nossa referência a Barthes (1984), dois pontos chamam a atenção, os quais nos remontam à questão do “advento de mim mesmo como outro” (Barthes, 1984, p. 25) provocado pela foto. Em primeiro lugar, a identificação à bola branca não se dá sem um posicionamento importante. O entrevistado aponta que:
[...] se ela entope, entala no buraco, o jogo acaba. Como eu ainda não cai no buraco, o jogo não terminou. [...] Para eu cair no buraco tem que ser um buracão (Blitz, 2019).
É valioso aqui apontar, com Barthes (1984), que:
No fundo, uma foto parece com qualquer um, salvo com aquele que ela representa. Pois a semelhança remete à identidade do sujeito, coisa derrisória, puramente civil, até mesmo penal; ela o dá enquanto ele mesmo’, ao passo que eu quero um sujeito ‘tal que em si mesmo’ (Barthes, 1984, p. 152).
A identificação com a bola branca não é exclusividade do jovem. Se ela o retrata “enquanto ele mesmo” (Barthes, 1984, p. 152), é de fato apenas sua própria leitura acerca da sua posição no jogo que o apresenta como “um sujeito ‘tal que em si mesmo”‘ (Barthes, 1984, p. 152). O autor continua:
Mais eis algo insidioso, mais penetrante que a semelhança: a Fotografia, às vezes, faz aparecer o que jamais percebemos de um rosto real (ou refletido em um espelho): um traço genético, o pedaço de si mesmo ou de um parente que vem de um ascendente. [...] A Fotografia dá um pouco de verdade, com a condição de retalhar o corpo. Mas essa verdade não é a do indivíduo, que permanece irredutível; é a da linguagem (Barthes, 1984, p. 153).
A partir do recurso fotográfico, apontase, para a possibilidade de ver e registrar algo novo em nós mesmos. Tal citação é convidativa para associarmos ao seguinte relato do jovem ao dizer do que sentiu ao receber a obra:
Alegria! Eu fiquei muito feliz em receber a obra. Como foi inédito, nunca tinha recebido uma obra de arte construída de acordo com a minha história de vida e com o olhar de uma outra pessoa que nem me conhecia, nunca tinha me visto, que nunca conviveu comigo para saber no dia a dia como é meu trabalho. Seria muito fácil um artista ficar comigo aqui um mês, dois meses, vendo o meu corre aqui e tal e fazer um trabalho neste sentido. Mas uma pessoa que nunca teve esse contato, nem com o meu trabalho, nem com isso pessoalmente, conseguir me representar daquela forma, eu achei muito criativo, com uma imaginação muito aguçada e com um olhar muito diferenciado também (Blitz, 2019).
Ao final, destaca-se o caráter material da obra, que perpetua um momento e abre espaço para uma forma de transmissão:
É sólido ne? É sólido. Dinheiro você gasta ele, se você não adquire algo que vai te trazer essa recordação: ‘isso aqui eu conquistei devido ao trabalho que eu fiz ali’, ele desaparece e daqui uns anos você nem lembra que você fez aquele trabalho e que recebeu por ele. Mas o quadro não. ‘Eu lembro que foi um trabalho que eu fiz e que eu fui recompensado por ele, com aquele objeto que está ali’ (Blitz, 2019).
Poderíamos aqui provocar, tensionar e extrapolar o relato ao retomarmos, por uma última vez, Barthes (1984, p. 123). O autor argumenta:
A fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano em uma foto). O efeito que ela produz em mim não é o de restituir o que é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de atestar que o que vejo de fato existiu. Ora, esse é um efeito verdadeiramente escandaloso. A Fotografia sempre me espanta, com um espanto que dura e se renova, inesgotavelmente.
Para além da reconstituição memorialística, muito importante e garantida pelo momento de narrar, o que a fotografia confere é o dado inegável da existência (houve vida, houve narrativa, houve encontro, houve devolução) acompanhado da inesgotável possibilidade de ser reafetado pelo registro. Pensando essa afetação, na próxima seção apresentaremos como se desenvolveu o processo criativo da fotografia criada por meio da escuta da história de vida de Blitz. Faremos a exposição desse processo seguindo três breves divisões: uma exposição sobre o contexto de criação da obra, a função do elemento escolhido para compor a cena, e a intenção do artista.
A leitura do artista
Segundo João Vitor Couto, autor da fotografia em debate, inspirada na narrativa memorialística de Blitz, a oportunidade de registro da foto lhe ocorreu em um momento fortuito:
Eu estava jogando sinuca num sítio, e não lembro se eu caí numa sinuca de bico, ou alguma coisa assim, mas isso me veio na cabeça. [...] E aí eu fiquei pensando nessa questão da sinuca de bico, porque você não vê, você não sabe se ele está em uma sinuca de bico, essa é a questão. Pode ser que sim, pode ser que não. Você não vê o jogo, você não vê o resto, sacou? E aí eu gostei da ideia de colocar ela ali na beira da caçapa (Couto, 2020).
Coloca-se, assim, o contexto de criação da obra. A intenção do artista esboça-se no plano fechado da foto, que não permite a leitura do jogo como um todo pelo espectador e o convoca a elocubração do sentido. Montado o arranjo do registro, João Vitor nos fala sobre o elemento que agencia o interior do cenário retratado:
A minha dúvida era se eu colocava uma bola preta ou uma bola branca. Mas o jogo é jogado com a bola branca, né. O jogo acaba quando a bola branca cai, não é? Então eu botei ela na boca ali, entre a vida e a morte, sacou, e qualquer tentativa de saída é muito arriscado a vida. É muito difícil você sair dali com vida. É isso que eu estou falando. Ela vive nessa berlinda, nessa fronteira entre vida e morte o tempo todo, nessa corda bamba, e tal (Couto, 2020).
Tendo, assim, definido o contexto e suas engrenagens, produz-se o efeito pretendido:
A ideia é essa. Não tem horizonte. Não tem o que você ver. Vai ficar ali. A maioria deles vai ficar ali mesmo. É muito arriscado. Acho que a ideia é essa. Ficar entre a vida e a morte e não ter horizonte. O horizonte é muito, muito, uma passagem muito estreita, cheia de obstáculos, cheia de... Enfim. Foda (Couto, 2020).
A descrição da constituição da fotografia dada por João Vitor, como vimos acima, não é posta de início nem ao jovem, nem ao pesquisador, que a princípio recebem a obra sem explicação alguma. Vejamos agora como os pesquisadores apreenderam a obra à primeira vista.
A leitura das pesquisadoras e pesquisadores
Logo de saída, vale ressaltar que a experiência de trabalho com a arte a partir das narrativas memorialísticas foi inédito para os pesquisadores envolvidos. O convite para que artistas trabalhassem sobre o registro de áudio das entrevistas foi feito com total liberdade para que fossem produzidas obras em qualquer formato, e a partir de qualquer ponto que lhes interessasse. Não havia, portanto, indício do que surgiria nem preparação possível para lidar com as obras entregues. A obra fotográfica produzida a partir da escuta da narrativa não pretende capturar um gesto ou uma cena de vida. No interior do frutífero encontro entre vidas, pesquisa, psicanálise e arte, a foto pretende fixar e ficcionar uma vida narrada a partir da escuta do intangível. Dentro desse contexto, a foto em questão suscita diferentes reações entre os pesquisadores e sabemos que Freud ([1900-1901] 2016) utilizou em A interpretação dos sonhos a metáfora do aparelho fotográfico para explicar o funcionamento do aparelho psíquico, ao se permitir
[...] imaginar o instrumento que serve às produções psíquicas mais ou menos como um microscópio composto, uma máquina fotográfica etc. O lugar psíquico corresponde então a um lugar no interior de um aparelho em que se forma um dos estágios prévios da imagem (Freud, [1900-1901] 2016, p. 564).
A fotografia ganha, então, um lugar interessante para se pensar os processos psíquicos com base num dos textos fundamentais da psicanálise, influenciando nossa forma de apreensão do aparato subjetivo. Seguindo Souza (2015, p. 112), acreditamos que “fotografar é interpretar, em seu sentido amplo, escrever sobre fotografia é fazer uma interpretação, pessoal e limitada, sobre esse amplo campo de conhecimento”. A fotografia opera um corte no tempo e fixa um momento, e, de outro lado, a imagem fotográfica convida para uma espécie de aventura, para rupturas no tempo e para construção de ficções.
Na primeira aventura interpretativa, pensamos a foto a partir da ideia da representação de uma “sinuca de bico”. Apesar do plano fechado, intencional, segundo o artista, para que não desse condições de revelar a situação do jogo, essa é uma das impressões que marcam a tentativa de interpretação da foto e do enquadramento escolhido pelo fotógrafo. A sinuca de bico é uma situação em que a bola branca se encontra numa posição que deixa o jogador sem ângulo para realizar a jogada subsequente pretendida, uma impossibilidade de movimentos, que possivelmente anuncia a derrota para o jogador. Enquanto metáfora para a vida, ela indica circunstâncias em que o sujeito se encontra também sem condições de movimentação, uma situação difícil, mas a partir da qual o sujeito precisa escolher e se movimentar, continuar o jogo. Jogar é apostar, dimensão sempre presente na vida dos jovens entrevistados. Afinal, não seria também a partir de “apostas psíquicas inconscientes” (Guerra; Moreira, 2020) que os jovens se orientariam no jogo que se estabelece entre perdas e ganhos, riscos e benefícios que a vida lhes coloca?
Considerações finais
Perpassadas as impressões do jovem, do artista e dos pesquisadores a respeito do que a fotografia lhes provocou, registramos acima a multiplicidade de interpretações evocadas e as respectivas modalidades de ‘coautoria’ que a obra de arte inaugurou para que cada ator da pesquisa colocasse nela algo de seu. A leitura que cada um ofereceu direciona, por fim, os próprios rumos de nossas investigações, uma vez que cada constatação colhida dá testemunho de um novo efeito produzido pelo processo de pesquisa, o que é sempre um indicador importante à medida que nos propomos a estudar trajetórias de vida e as apostas inconscientes nelas envolvidas.
Assim, se num primeiro momento a intenção do artista nos aponta a interpretação da obra como uma ‘sinuca de bico’, as brechas do enquadramento da fotografia nos permitem a abertura a uma infinidade de sentidos. Em consonância com a intenção do artista, o primeiro contato dos pesquisadores com a obra levou parte deles a interpretá-la como uma ‘sinuca de bico’, expressão da divisão subjetiva do sujeito, do limiar entre vida e morte a partir do qual o jovem joga seu jogo e faz suas apostas ao longo de sua trajetória de vida.
Pois bem, o jogo continuou e no momento da partilha, o encontro de Blitz com a fotografia subverteu o sentido atribuído a esta. A ‘sinuca de boca’ transformou-se num acerto, uma bola encaçapada pela força de um trabalho incansável de articulação comunitária pelas vias da arte, do hip hop, segundo o jovem. Na entrevista realizada com ele um ano depois da partilha, a bola encaçapada transformou-se naquela que “não caí no buraco” (Blitz, 2019) e desta vez o jovem é a bola, é aquele que sabe jogar o jogo e, ao confiar em seu próprio taco, não cai. Na interpretação dos amigos de Blitz, a bola transforma-se lua ou num buraco negro. Juntos eles “desembolam” (Blitz, 2019) as diversas interpretações possíveis atribuídas à obra.
A cada novo encontro evidencia-se o efeito de abertura ad infinitum que o encontro do sujeito com a obra de arte suscita. A metodologia das narrativas memorialísticas sustenta sua potência criativa sobre o logro constitutivo do registro do Real – fugaz a qualquer elaboração simbólica ou imaginária – e a partir do convite a um posicionamento diante de uma produção artística.
No campo de estudos da estética, autores como Mendonça (2009) e Landowski (2004), entre outros, nos apontaram que o encontro do observador com a obra é impulsionado não somente por seu caráter de furo mas também pelos lugares de enunciação e pertencimento do receptor. A produção da obra, por sua vez, também carrega as marcas políticas e históricas de seu tempo, revelando em suas entrelinhas os esquemas simbólicos que a estruturam e, assim, constituem seu valor simbólico.
Conforme ressaltado, no frutífero encontro entre vidas, pesquisa, psicanálise e arte, a fotografia fixa e ficciona uma vida narrada a partir da escuta do intangível. A arte evidencia as relações de alteridade e autoridade, ao colocar a autoria em uma trama compartilhada de responsabilidade diante dos efeitos do que é produzido. As movimentações desta pesquisa, para além de impulsionar um constante intercâmbio de debates e produções científicas entre os campos da arte e da psicanálise, nos convidam constantemente a interrogar os significados sustentados no discurso de cada um dos autores que a compõem: jovens, artistas e pesquisadores. Há um trabalho contínuo de reelaboração ao redor daquilo que toca a todos os envolvidos a partir de suas participações em todos ou em algum dos tempos interventivos da metodologia das narrativas memorialísticas, a partir dos quais uma nova colheita se torna sempre possível.