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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.57 Belo Horizonte jan./jun. 2022  Epub 14-Fev-2025

https://doi.org/10.5935/2175-3482.n57a08 

PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E HISTÓRIA NO BRASIL

NAEP-UERJ: Um novo espaço da psicanálise na Saúde Pública do Estado do Rio de Janeiro Núcleo de Apoio e Estudo em Psicanálise (NAEP) do Núcleo Odontológico de Radiologia e Atendimento a Pacientes com Necessidades Especiais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Policlínica Piquet Carneiro – PPC

NAEP-UERJ: A new space for Psychoanalysis in Public Health in the State of Rio de Janeiro Nucleus of Support and Study in Psychoanalysis (NAEP) of the Dental Nucleus of Radiology and Care of Patients with Special Needs at the State University of Rio de Janeiro (UERJ) Piquet Carneiro Polyclinic - PPC

Bruna Michalski dos Santos1 

Cristiane Marques Seixas2 

Livia Barbosa Corrêa3 

Luciana Freitas Bastos4 

Marcelo Daniel Brito Faria5 

Rodrigo Zanon de Melo6 

1Mestre e doutora em Patologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em estomatologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais pela Faculdade São Leopoldo Mandic (SLM). Staff no Serviço de Pacientes com Necessidades Especiais do Núcleo Radiologia Odontológica e Pacientes Especiais da Policlínica Piquet Carneiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Secretária de Saúde do Governo do Estado do Rio de Janeiro (SES-RJ). Habilitação em sedação inalatória pela Faculdade São Leopoldo Mandic (SLM). Professora convidada da disciplina de radiologia da Faculdade de Odontologia da UERJ. Pós-doutoranda pelo LNCC-MCTI na área de radiologia odontológica e análise computacional. E-mail: brunamichlalski@yahoo.com.br

2Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana. Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora associada do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Docente permanente e coordenadora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PGPSA/ UERJ). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde (PPGANS/UERJ), bolsista do programa Prociência da UERJ. Coordenadora do Núcleo de Apoio e Estudo em Psicanálise (NAEP) vinculado ao Núcleo de Atendimento a Pessoas com Necessidades Especiais da Policlínica Piquet Carneiro da UERJ. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Transtornos Alimentares (NAPTA) da Policlínica Piquet Carneiro da UERJ. E-mail: cris.marques.seixas@gmail.com

3Psicanalista. Participante da Escola Letra Freudiana - Rio de Janeiro. Mestranda em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-graduada em psicologia hospitalar pela Universidade Veiga de Almeida (UVA). Graduada em psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Escritora, autora do livro Chão de dentro (Caravana, 2022). Psicóloga do Núcleo de Apoio e Estudo em Psicanálise (NEAP) vinculado ao Núcleo de Atendimento a Pessoas com Necessidades Especiais da Policlínica Piquet Carneiro - UERJ. Psicóloga Bolsista do Núcleo de Assistência e Pesquisa em Transtornos Alimentares (NAPTA) na Policlínica Piquet Carneiro (UERJ). E-mail: livia.psi@gmail.com

4Mestre em odontologia social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em odontologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutorado pelo Laboratório Nacional Computação Científica (LNCC). Professora titular do Departamento Preventivo e Comunitário (PRECOM) da Faculdade de Odontologia da Universidade do Estado do Rio se Janeiro (FO-UERJ). Coordenadora da Disciplina de Psicologia Aplicada a Odontologia da FO-UERJ. Professora das disciplinas Saúde Bucal Coletiva V e VI FO-UERJ. Coordenadora do setor de odontologia da Policlínica Piquet Carneiro (PPC-UERJ). Coordenadora do projeto de Pacientes com Deficiência realizado no Núcleo Odontológico de Radiologia e atendimento a Pacientes com Necessidades Especiais (PPC-UERJ). E-mail: lucianafreitasbastos@yahoo

5Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro. Mestre e doutor em Ciências da Saúde - Radiologia Odontológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP). Pós-doutor em física médica pelo Conselho Nacional de Energia Nuclear. Coordenador do Núcleo de Pacientes Especiais da Policlínica Piquet Carneiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPC-UERJ) e da Secretaria de Saúde do Governo do Estado do Rio de Janeiro (SES-RJ). Professor titular das disciplinas Psicologia Aplicada à Odontologia e Radiologia Odontológica da Faculdade de Odontologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FO-UERJ). Professor adjunto da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador colaborador da FAPERJ e do Laboratório Nacional de Computação Científica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI- Brasil). E-mail: mdanb@yahoo.com

6Formado em odontologia. Psicólogo e psicanalista. Membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Psicólogo do Núcleo de Pacientes Especiais da Policlínica Piquet Carneiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPC-UERJ). Professor convidado da disciplina Psicologia Aplicada à Odontologia da Faculdade de Odontologia da Universidade do Estado do Rio se Janeiro (FO-UERJ). Subcoordenador do Núcleo de Apoio e Estudo em Psicanalise NAEP da PPC-UERJ. E-mail: rzmelo@hotmail.com


Resumo

Este trabalho aborda a implantação do Núcleo de Apoio e Estudo em Psicanálise (NAEP) tendo como fundamento o atendimento psicanalítico em ambiente ambulatorial. Apresenta a parceria institucional entre a pós-graduação em clínica psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) com o Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Explora a escuta psicanalítica nas universidades públicas e sua importância nos atendimentos clínicos.

Palavras-chave Psicanálise; Saúde pública; Ambulatório; NAEP; Odontologia; UERJ

Abstract

The present work aims to approach the implementation of the Nucleus of Support and Study in Psychoanalysis (NAEP) based on psychoanalytic care in an outpatient setting. Also presenting the institutional partnership between the Postgraduate Program in Clinical Psychoanalysis of the Institute of Psychology of the State University of Rio de Janeiro with the Círculo Brasileiro de Psicanálise - Rio de Janeiro section (CBP-RJ). Aiming to explore psychoanalytic listening in public universities and its importance in clinical care.

Keywords Psychoanalysis; Public Health; Outpatient Clinic; Teaching NAEP; Dentistry; UERJ

Psicanálise e odontologia são campos de saber distintos. A primeira é campo de uma práxis inaugurada por Sigmund Freud, que se dedica a abordar os fenômenos psíquicos a partir da premissa de que há um inconsciente que opera sobre cada um em sua vida cotidiana. A segunda dedica-se ao cuidado da saúde bucal em suas diversas formas, contemplando aspectos que ultrapassam as patologias tradicionais. O presente artigo visa apresentar e relatar a implantação do Núcleo de Apoio e Estudo em Psicanálise (NAEP) com a Gestão do Núcleo Odontológico de Radiologia e Atendimento a Pacientes com Necessidades Especiais da Policlínica Piquet Carneiro da Universidade Estadual do Rio de Janeiro em parceria institucional com a Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e o Círculo Brasileiro de Psicanálise CBP - Seção Rio de Janeiro. Para tanto, fazemos um breve histórico da construção institucional desses espaços.

A trajetória da Policlínica Piquet Carneiro começou a ser traçada em 22 de maio de 1967, com a inauguração do Posto de Assistência Médica São Francisco Xavier, pertencente ao Instituto Nacional de Previdência Social. Em 1995, o Ministério da Saúde realizou uma parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Unidade – que era considerada o maior ambulatório da América Latina – ganhou um novo nome: Policlínica Piquet Carneiro, em homenagem ao médico Américo Piquet Carneiro, criador e fundador do primeiro Centro Biomédico e da Universidade Aberta da Terceira Idade, ambos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo desse convênio era tornar essa unidade um espaço/laboratório de formulação, implementação e avaliação de modelos em saúde, para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), além de favorecer a integração docente-assistencial com a perspectiva de desospitalização, enfatizando práticas de saúde preventivas e resolutivas. Depois de cinco anos de uma bem-sucedida parceria, o Ministério da Saúde concedeu à UERJ o Termo de Cessão de Uso da PPC, transformando-a em nova unidade do Centro Biomédico.

Seguindo a lógica do processo de implantação do Sistema Único de Saúde no país, ocorreram transformações nos serviços de saúde que têm nos desafiado para a formação de recursos humanos, o que exige, além da reformulação dos currículos nas escolas de saúde, a adequação aos princípios do SUS. Nesse sentido, a PPC se torna um cenário de prática importante na produção de ações no âmbito da atenção básica e de média complexidade por meio de diversas disciplinas de graduação, pós-graduação, projetos de extensão vinculados à Faculdade de Odontologia da UERJ, do Instituto de Psicologia, além de projetos direcionados a instituições de fomento como FAPERJ e FINER

Como havia um espaço da radiologia odontológica inativo na Policlínica Piquet Carneiro, a equipe de profissionais, inclusive professores da Radiologia e Saúde Bucal Coletiva, conseguiu a reativação do Núcleo de Radiologia Odontológica e a implantação do Serviço de Atendimento a Pacientes com Necessidades Especiais, por meio de projetos FAPERJ (FAPERJ, edital 31/2012, processo E -26/112.147/2012, e FAPERJ edital 31/ FAPERJ - processo E-26/111.806-2013) e FINEP (n. 0109.0477.00). Na radiologia odontológica, foram implantados serviços com equipamentos digitais de última geração, como tomografia computadorizada do tipo cone beam tipo ICAT Next Generation, que permite a aquisição em tempo real do crânio dos pacientes e posterior reconstrução em 3D para planejamento virtual e cirurgia guiada para maior previsibilidade cirúrgica para os casos de anomalias de face, tumores, pacientes fissurados, pacientes com necessidades especiais e pacientes com perda de massa óssea por meio de PAF (projétil de arma de fogo). Também são ofertados exames, como radiografia panorâmica, radiografias da ATM convencionais, radiografias extraorais da face e radiografias intraorals periapicals isoladas e completas.

Nosso núcleo também atua em linhas de pesquisa na área de diagnóstico precoce por imagem, de câncer bucal, em parceria com a faculdade de engenharia e o Laboratório Nacional de Ciência da Computação (LNCC) e na área de dosimetria juntamente com o LCR-UERJ e IRD do MCTI. O sistema de tomografia computadorizada de feixe cónico cone beam permite a realização de cirurgia virtual guiada em 3D com posterior confecção de prototipagem biomédica para realização prévia de cirurgias laboratoriais de pacientes com tumores, alterações morfológicas de face, por exemplo, fissura labiopalatina, síndromes e pacientes com necessidades especiais.

Na sequência, após uma breve investigação, observamos que são poucos os serviços públicos e privados que oferecem atendimento odontológico a pacientes com necessidades especiais. No município do Rio de Janeiro, cuja população é de 6 milhões de habitantes, 828 mil cariocas, ou seja, 14,8% da população, declararam possuir algum tipo de deficiência; portanto, um em cada sete cariocas ou brasileiros era portador de deficiência, fato que justificou nossa iniciativa de pensar um serviço que se dedicasse ao atendimento dessas pessoas. No município do Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro e no Brasil existe uma demanda reprimida de indivíduos com necessidades especiais, que precisam de tratamento odontológico nos três níveis de complexidade (atenção primária, atenção secundária e atenção terciária).

Um projeto que tem o propósito de assistir essa camada da população que historicamente esteve à margem das políticas sociais e de saúde, se traduz em oportunidade vanguardista e inovadora tanto em favor dessas pessoas, quanto na busca pela integralidade e universalidade das ações nesse setor e na formação de profissionais de saúde aptos a enfrentar o imenso desafio que tais problemáticas colocam.

O escopo para essa escolha deriva da Constituição Federal de 1988, quando prevê definitivamente a assistência para pessoas com deficiência na agenda de políticas públicas e no marco legal, de forma abrangente e transversal. De acordo com os critérios de Cotta (1998), não podemos avaliar um projeto sem considerar sua articulação com uma iniciativa mais abrangente. Nesse sentido, seguimos o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Viver sem Limite e a Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) - Programa Brasil Sorridente, implantada pelo Ministério da Saúde em 2004 (Brasil, 2008).

A especialidade da odontologia para pacientes com necessidades especiais tem por objetivo o diagnóstico, a preservação, o tratamento e o controle dos problemas de saúde bucal dos pacientes que apresentam uma complexidade no seu sistema biológico e/ou psíquico e/ou social, bem como percepção e atuação dentro de uma estrutura transdisciplinar com outros profissionais de saúde e áreas correlatas com o paciente.

No Núcleo em questão, temos disponíveis cinco consultórios odontológicos equipados, um dos quais é especial para atendimento aos pacientes indicados ao tratamento com anestesia geral. Realizamos atendimento para pacientes com deficiência mental, deficiência física e anomalias congênitas (deformações, síndromes), distúrbios comportamentais (transtorno do espectro autista), transtornos psiquiátricos, distúrbios sensoriais e de comunicação, doenças sistêmicas crônicas (diabetes, cardiopatias, doenças hematológicas, insuficiência renal crônica, doenças autoimunes, doenças vesículo-bolhosas, etc.), doenças infectocontagiosas (hepatites, HIV, tuberculose), condições sistêmicas (irradiados, transplantados, oncológicos, gestantes, imunocomprometidos), em ambiente ambulatorial e hospitalar.

O Núcleo foi inaugurado no final de 2016 e iniciou suas atividades em janeiro de 2017. Para sua operacionalização, foi realizada uma parceria com a Secretaria Estadual de Saúde por meio de uma resolução conjunta, que permitiu a contratação de mão de obra especializada não disponível no corpo de profissionais da Secretaria nem da UERJ, além da aquisição de insumos e manutenção de equipamentos para o devido funcionamento e manutenção.

Nossa porta de entrada para pacientes com necessidades especiais se dá através do Sistema Estadual de Regulação (SER), o que resultou no tratamento iniciado e concluído para 232 novos pacientes regulados e mais de 3.000 consultas odontológicas durante o ano 2021 e início de 2022. Em relação à radiologia odontológica, à porta de entrada além do SER, temos o Sistema Nacional de Regulação (SISREG) do município do Rio de Janeiro, em que realizamos em torno de 1.100 tomografias computadorizadas de face, cerca de 700 exames extraorais, além de 600 exames de RX periapicals.

NAEP – Núcleo de Apoio e Estudo em Psicanálise – UERJ e CBP-RJ

A ideia de estudar a psicanálise e a odontologia nasceu junto com a coordenação da disciplina de psicologia aplicada à odontologia. Com a abordagem do novo currículo da Faculdade de Odontologia da UERJ, a disciplina Psicologia, que era ministrada no currículo básico, passou a integrar a formação do futuro profissional de Odontologia, e professores das disciplinas de Saúde Bucal Coletiva e Radiologia assumiram esse desafio. Como se tratava de um conteúdo novo, os professores envolvidos buscaram a capacitação da equipe junto ao Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ para encontrar a melhor forma possível de ensinar a interlocução da psicanálise com a odontologia.

Associado a esse fato e nesse mesmo período, observamos que o Núcleo Odontológico de Radiologia e Atendimento a Pacientes com Necessidades Especiais precisava de um espaço para atendimento psicanalítico, haja vista as diversas intercorrências vivenciadas na oferta do tratamento odontológico. Nós, coordenadores e equipe, experenciamos inicialmente uma demanda interna e espontânea de atendimento aos familiares dos pacientes especiais que, devido a uma grande ferida narcísica causada pela chegada de uma criança com deficiência (Freud, [1914] 1974) acabavam retardando ou dificultando o tratamento de seus filhos, diante de um excesso ou falta de interferência junto à equipe. Além disso, com a pandemia, começamos a observar uma piora na saúde mental dos estudantes da UERJ que, de modo geral, passaram a apresentar quadros de angústia, síndrome do pânico e ideações suicidas. Na Faculdade de Odontologia, em especial, a direção identificou a necessidade de acolhimento desses estudantes e, assim, solicitou a criação desse espaço para uma escuta psicanalítica em apoio a essas duas demandas importantes.

Finalmente, após reunião junto à Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro essa instituição demandou a ampliação de nossas ações junto a nossos pacientes autistas e, de imediato, oferecemos também a possibilidade de abordagem psicanalítica aos nossos pacientes. Vimos que o transtorno do espectro autista (TEA) traz uma ampla gama de possibilidades sintomatológicas, e cada indivíduo terá suas particularidades relacionadas às necessidades e potencialidades, o que deve nortear os planos individuais de tratamento. Os dados mais atuais que temos vêm de um estudo divulgado em março de 2020 pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgão ligado ao governo dos Estados Unidos, em que se observou uma prevalência de 1:54, segundo análise dos dados de 2016. Esses dados são superiores à estimativa anterior, de 2014 (publicado pelo CDC em 2018), que encontrou uma prevalência de 1:59 entre as crianças de 8 anos, revelando um aumento de aproximadamente 10%.

Na Policlínica Piquet Carneiro-UERJ há também dois grandes programas de assistência que têm muita sinergia com nosso novo NAEP. Um deles é o Centro de Anomalias Crânio Facial (CETAC), que atende uma grande demanda de pacientes fissurados (fendas lábios leporinas) e seria de muita valia a observação desses bebês e a escuta psicanalítica desses pacientes antes, durante e após sua reabilitação. O outro centro de sinergia é o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da UERJ, que atende uma demanda de pacientes psicóticos graves, já tem trabalhos em parceria com nosso núcleo, e o NAEP poderá singularizar esse atendimento aos pacientes psicóticos.

Para que tudo isso pudesse ser viabilizado, foi preciso buscar parcerias interdisciplinares dentro da Universidade, o que nos levou a entrar em contato com a Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ e solicitar uma parceria de trabalho. O colegiado do programa respondeu de forma exemplar, aprovando por unanimidade a implementação do NAEP, entendendo a importância da proposta de trabalho, bem como o desafio por ela colocada.

Foi aprovada também a implementação do NAEP nos Conselhos Departamentais do Instituto de Psicologia e da Faculdade de Odontologia e pela Direção da Policlínica Piquet Carneiro, pertencentes à Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

No dia 23 de setembro de 2022, inauguramos o referido NAEP com a presença do excelentíssimo Reitor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Prof. Mário Sérgio Alves Carneiro, que falou da importância dessas ações amplas e irrestritas para a sociedade. Estavam à mesa de cerimônia a Vice-Diretora da PPC-UERJ Elisabeth Bittencourt, a Profa. Titular da FO-UERJ Maria Isabel de Castro e Souza representando a Direção da Faculdade de Odontologia, a Profa. Associada do Instituto de Nutrição Cristiane Seixas como Coordenadora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ e psicanalista da Escola Letra Freudiana e o Prof. Titular da FO -UERJ Marcelo Faria como Coordenador do Núcleo de Radiologia Oral e Atendimento a Pacientes Especiais e psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ. Na plateia estavam presentes a Profa. Titular da FO-UERJ Luciana Freitas Bastos que coordena a Odontologia da PPC -UERJ e a Disciplina de Psicologia aplicada a Odontologia, nossa equipe que trabalhará no NAEP, o psicólogo Rafael de Abreu e nossos psicanalistas Rodrigo Zanon e Livia Barbosa Corrêa, a equipe de staffs dentistas do Núcleo de Radiologia e pacientes com necessidades especiais, a Dra. Larissa Oliveira e a Dra. Bruna Michalski. Estavam presentes também representantes da Psicologia do CETAC, da Psicologia da PPC-UERJ, Psicologia e Psiquiatria do CAP - PPCUERJ e amigos psicanalistas e alunos da Liga de Pacientes Especiais da FO de nossa Universidade e representantes acadêmicos da Psicologia da PUC-RJ.

Nossas ações serão realizadas em conjunto com a equipe de psicanalistas do NAEP, coordenada por pelo menos um docente da pós-graduação em psicanálise e um docente da Faculdade de Odontologia, e formada pelos alunos de pós-graduação em psicanálise da UERJ, membros efetivos e candidatos do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ que se candidatem ao projeto. Os integrantes da equipe de atendimento terão que estar preferencialmente em análise pessoal, participar das supervisões em grupo que acontecerão semanalmente no NAEP e estar em formação contínua com a teoria psicanalítica basicamente fundamentada em Freud e autores pós-freudianos como Jacques Lacan, Ferenczi, Melaine Klein, Winnicott e demais autores que possam contribuir na construção de formas de abordagem para pacientes com necessidades especiais.

Entre as metas gerais e especificas do NAEP, se destacam:

  1. Apresentar os resultados do trabalho em revistas nacionais e internacionais de psicanálise e demais áreas da saúde, assim como participação em congressos, jornadas e fórum de psicanálise de relevância.

  2. Consolidar parceria com o Centro de Anomalia Crânio Facial do Governo do Estado do Rio de Janeiro (CETAC) realizando observação de bebês fissurados e oferecendo atendimento psicanalítico aos pacientes nos moldes acima com autorização prévia do coordenador geral do CETAC/SES-RJ.

  3. Consolidar parceria com o Centro de Apoio Psicanalítico CAP do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ com a prévia autorização em assembleia dos membros efetivos do CBP-RJ.

  4. Consolidar parceria com o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da PPC oferecendo atendimento psicanalítico aos pacientes nos moldes acima com autorização prévia do coordenador geral do CAPS da PPC-UERJ;.

  5. Oferecer atendimento psicanalítico aos alunos do complexo de saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro que demandem atendimento em sessões semanais com custo social.

  6. Oferecer atendimento psicanalítico aos familiares e cuidadores dos pacientes com necessidades especiais em sessões semanais com custo social.

  7. Oferecer atendimento psicanalítico aos pacientes com autismo do Núcleo de Pacientes especiais da PPC-UERJ.

  8. Oferecer um espaço de iniciação na clínica psicanalítica para atendimento voluntário pelos candidatos do Círculo Brasileiro de Psicanálise - CBP-RJ.

  9. Oferecer um espaço para atendimento psicanalítico pelos alunos de pós-graduação em psicanálise da UERJ com a coordenação de pelo menos um membro do colegiado do curso de pós-graduação em psicanálise da UERJ na coordenação do NAEP.

  10. Oferecer uma escuta psicanalítica à equipe do Núcleo de Pacientes Especiais, servidores e funcionários lotados na PPC-UERJ em sessões semanais com custo social.

  11. Promover um espaço de ampla interlocução da psicanálise com as demais áreas da saúde da universidade.

Conclusão

Sabemos que, enquanto instituição de ensino, a UERJ tem um papel fundamental no fomento de ações que promovam a garantia de acesso a saúde e do adequado tratamento no seu interior, seguindo normas técnicas e padrões apropriados. Nesse sentido, o Núcleo Odontológico de Radiologia e Atendimento a Pacientes com Necessidades Especiais ampliou a rede de atendimento multidisciplinar aos pacientes com deficiência, além de exames de imagem em odontologia, o que diminuiu os focos de infecção por meio do tratamento odontológico realizado ambulatorialmente, minimizou os custos e otimizou o atendimento. Em relação ao ensino, buscamos oportunizar o aprendizado para mais alunos interessados nesse tipo de prática por meio dos projetos de extensão e de cursos de pós-graduação.

Além disso, criamos o Núcleo de Apoio e Estudo em Psicanálise, pois é fundamental valorizarmos a compreensão das relações dos profissionais e alunos para com seus pacientes, acompanhantes e familiares. Observamos a importância de promover uma formação que permita ao profissional de saúde olhar para seu paciente como um sujeito singular, uma vez que, durante muitos anos, a odontologia e a medicina perpetuaram uma forma de trabalhar tecnicista e biologicista, consolidando, a despeito dos avanços no campo da clínica psicanalítica, uma abordagem do corpo que o fragmenta em órgãos e sistemas, sem considerar a dimensão psíquica do corpo próprio que ultrapassa a reunião desses fragmentos.

Para compreender a importância da criação do NAEP dentro de uma universidade pública brasileira como a UERJ, devemos ter em mente as considerações de Freud ([1919] 2010) no texto Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades?, publicado em uma revista Húngara. Nesse texto, ele relata que, ao investigar os processos psíquicos e as funções intelectuais, a psicanálise segue um método próprio, cuja aplicação não se limita ao âmbito dos distúrbios psíquicos, mas se estende igualmente à resolução de problemas na arte, na filosofia e na religião. Para Freud, a psicanálise forneceu novos pontos de vista e trouxe importantes esclarecimentos em questões de história da literatura, mitologia, história das civilizações e filosofia da religião, não se restringindo, portanto, a uma aplicação prática de um saber teórico. Freud ressalta ainda que, por sua natureza, a psicanálise também é aberta aos estudantes de outras áreas da ciência, cuja fecundação pela psicanálise certamente contribuiria para formar um vínculo mais sólido entre a medicina e outras áreas do saber.

Nesse sentido, podemos dizer que Freud (1919) aponta que uma universidade só teria a ganhar com a inclusão do ensino da psicanálise em seu curriculum, salvo se a forma de transmissão e formação não acompanhar os modelos acadêmicos. A formação do psicanalista é leiga, não se configura pela aquisição de um diploma universitário, ainda que não prescinda dele nem do estudo rigoroso da teoria psicanalítica, associada à análise pessoal e supervisão (Freud, [1926] 1974). A psicanálise fica na condição de uma formação contínua que se apoia necessariamente na prática clínica da qual advém seu saber teórico.

Ainda que nesse texto Freud ([1919] 2010) afirme que, para atender à finalidade de formação do psicanalista na universidade, seria necessário fazê-lo de forma dogmática em aulas teóricas, vimos assistindo a uma importante construção dessa formação teórica dentro da universidade que não se distancia da clínica. Mesmo que essa construção dentro da universidade não seja suficiente para formar um psicanalista, ela passa, contrariando as expectativas freudianas, necessariamente pela oportunidade da experimentação prática em espaços que têm por finalidade a assistência e a promoção à saúde como se configuram hoje os centros de saúde de muitas universidades públicas brasileiras.

É nessa direção que o NAEP oferece gentilmente a possibilidade de sustentar um lugar para a psicanálise na universidade, bem como um espaço de interlocução entre saberes diversos que podem (e devem) ter como principal interessado o paciente que nos procura com todos os tons de seu sofrimento e de sua dor. Em resposta ao fundador da psicanálise, o NAEP oportuniza uma experiência única na universidade pública que deverá, ao longo do tempo, fomentar a consolidação de um conhecimento sobre essa experiência que considera que a escuta psicanalítica é o que temos de melhor para lidar com esse mal-estar de sermos humanos que se apresenta nas angústia de nossos pacientes, familiares, alunos e servidores.

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Recebido: 20 de Maio de 2022; Aceito: 18 de Junho de 2022

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