Considerações iniciais
Nas últimas décadas, a importância assumida no debate público pela noção de violência aumentou expressivamente. Pesquisas nacionais de opinião pública têm situado de modo abrangente a violência como um dos motivos mais recorrentes de preocupação entre os brasileiros (Pino, 2007).1 Em alguma medida, o sistemático noticiamento midiático de casos representativos de certas modalidades de violência reflete essa importância, embora também a retroalimente. Porém, a violência não constitui novidade recente na história nacional. Lima et al. (2020), retomando um estudo de Lima (2018), ressaltaram que a violência constituiu historicamente, e ainda constitui, as relações sociais no Brasil, tendo sido amplamente aceita como modo legítimo de resolução de conflitos em vários âmbitos – a exemplo dos conflitos ocorridos em âmbito doméstico, intensamente condicionados pela estrutura social patriarcal, ou em âmbito social, no qual o Estado acaba exercendo a violência de maneira direta ou indireta.
Por outro lado, a denominada violência veio a constituir objeto de investigação em muitos campos de conhecimento2 (Birman, 2009), sendo assim evidenciada a sua complexidade, correspondente, entre outros aspectos, à multiplicidade de suas modalidades – a violência atuada sendo somente uma delas. Cada sociedade condiciona, mediante mecanismos simbólicos variados, seus integrantes ao direcionamento do ódio a certas categorias identitárias. No entanto, o direcionamento do ódio a essas categorias não implica necessariamente atos violentos contra seus representantes. Existem diferentes modos de concretização da agressividade, e em muitos casos, restritos ao registro discursivo. Por exemplo, algumas modalidades do denominado discurso de ódio têm sido cada vez mais comuns no cenário político brasileiro da última década.
Em outros casos, contudo, a motricidade viria a ser convocada na concretização da agressividade – a qual seria então externalizada em atos. Nesse contexto, Vale (2014) recordou alguns dos modos como um ato veio a ser referido na teoria psicanalítica; e, nesse sentido, evidenciou que Freud comumente se referiu a um ato de modo composto – isto é, utilizando uma expressão constituída por dois termos. Freud se referiu, entre outros, à “ação específica” ([1950/1895] 1996), ao “ato falho” ([1901] 1996), ao “ato compulsivo” ([1911] 2010) e ao “acting out” ([1914] 2010). De outro lado, muitos autores do campo psicanalítico, entre os quais Vale (2014), estudaram a denominada passagem ao ato.
Segundo esse autor, as passagens ao ato se relacionariam estritamente com o mecanismo de compulsão à repetição caracterizado por Freud em Além do princípio do prazer ([1920] 2010). A essa altura, seria relevante a ressalva de que as patologias do agir, relacionadas com a passagem ao ato (e com a compulsão à repetição), já tinham sido abordadas teoricamente por Freud antes de suas revolucionárias contribuições de 1920. O caso clínico O homem dos ratos, por exemplo, impôs a Freud certas interrogações sobre a dimensão do ato. Além disso, o criador da psicanálise discutiu sobre essa questão em Lembrar, repetir, perlaborar ([1914] 2017). A importância do agir como fator de resistência à análise é o ponto que circunscreve a temática da compulsão à repetição na reflexão de Freud, abrindo vias que vieram a ser aprofundadas em 1920.
Vale ressaltar que Sándor Ferenczi também apresentou contribuições valiosas sobre a questão do problema do ato na clínica e na metapsicologia psicanalítica. Em seu Diário clínico, Ferecnzi ([1932] 1990) nos apresenta um valioso testemunho de seus esforços e torna possível a análise dos casos em que a dimensão da convocação do ato é protagonista. Os chamados casos difíceis eram compostos por analisandos que apresentavam um tipo de sofrimento regido prioritariamente pelos mecanismos da compulsão à repetição – e à passagem ao ato. As engenhosas invenções sobre a técnica ativa, sobre a empatia e, especialmente, sobre a importância da regressão em análise, são contribuições que mesmo atualmente inspiram analistas contemporâneos.
O problema levantado por Freud e aprofundado por Ferenczi coloca em cena modos de atuação recorrentes nas denominadas patologias do agir3 – nas quais a atuação seria um meio não apenas reiterado, mas também compulsivo, de descarga de excitações não ligadas. Tais patologias, desde as décadas de 1950 e 1960, teriam vindo a ser cada vez mais comuns (Vale, 2014) e, entre os seus casos representantes mais conhecidos, estariam aqueles nos quais a violência atuada e exercida contra um terceiro ocorreria recorrente e compulsivamente. Muitos autores consideraram que a etiologia dessas patologias seria traumática e, nesse contexto, ao menos aparentemente, a noção de trauma serviria à elaboração da problemática concernente às patologias do agir. No entanto, a mobilização exclusiva dessa noção não resolveria tal problemática.
Certamente, um ato violento de um indivíduo não necessariamente implicaria que uma dessas patologias teria se desenvolvido nele. Em certas condições extremas, mesmo um indivíduo no qual não se tenha estabelecido tal patologia recorreria à passagem ao ato de modo a concretizar a sua agressividade em ato – enquanto exerce sua violência sobre um outro ao qual se direciona seu ódio. Entretanto, merecem a investigação acerca de uma etiologia traumática os casos nos quais o exercício da violência sobre terceiros ocorre mediante atos compulsivos e reiterados. Quais seriam os elementos relacionados com a recorrência da violência atuada? Quais seriam as condições necessárias à convocação compulsiva da motricidade nos casos em que vem a ser um meio recorrente de concretização da agressividade sobre terceiros? Quem seriam esses terceiros aos quais o ódio seria direcionado, os quais se intencionaria dominar?
Neste artigo, se investigaram os elementos implicados na violência compulsivamente atuada e exercida recorrentemente sobre um outro não genérico – isto é, sobre uma categoria específica de objetos. Nesse caso, se aventou e se analisou a suposição de que, em certas modalidades de patologias do agir, a compulsividade da convocação da motricidade se relacionaria, simultaneamente, com a tentativa de: (i) descarga de montantes de excitação angustiantes, remetidos de algum modo à etiologia traumática; e (ii) dominação de um objeto externo concebido como ameaçador – analiticamente, um objeto externo na relação com o qual o indivíduo experienciaria uma passividade radical, extremamente angustiante, que ele amenizaria mediante a passagem ao ato.
Para tanto, na seção seguinte – As patologias do agir: trauma, compulsão e domínio – se evidenciaram mais amplamente aspectos da constituição das patologias do agir, analisando a sua etiologia traumática, assim como seu caráter compulsivo e sua relação com modalidades de domínio (interno e externo).
Já na terceira seção, se discutiu sobre o estatuto não genérico do objeto nas patologias do agir, sendo aventadas suposições sobre a eventual recusa da diferença nestas patologias e, após, se intencionou uma compreensão da dimensão violenta de certas patologias do agir. Mais restritamente, se analisou a violência atuada compulsivamente e exercida contra um outro em algumas modalidades dessas patologias.
As patologias do agir: trauma, compulsão e domínio
Nos últimos anos, o diagnóstico dos chamados estados-limite veio a ser ainda mais comum na clínica psicanalítica (Cardoso, [2005] 2011); e o incremento – sobretudo, desde a década de 1970 – do número dos ditos estados veio a se relacionar com o aumento da relevância dos estudos sobre eles (Birman, 2014). Assim, embora autores como Ferenczi já centrassem na primeira metade do século XX algumas de suas análises sobre esses casos, cresceu também o número de estudos nos quais se discutiram alguns de seus aspectos mais recorrentes – ou até mesmo constitutivos – e nos quais vieram a ser categorizados. Nesse contexto, autores como Vale (2014) consideraram que, entre seus casos mais comuns, constam as convencionalmente chamadas patologias do agir.
Certamente, mesmo não tendo sido os únicos operadores teóricos articulados em estudos sobre essas patologias, a noção de trauma, de compulsão e de domínio tem contribuído significativamente para a análise de seus casos representativos. De acordo com a perspectiva adotada neste artigo e referenciada em alguma medida na obra freudiana, em cada patologia do agir, se suporia uma etiologia traumática, um caráter compulsivo e um caráter dominatório – aspectos que são discutidos nesta seção. Embora Freud não tenha centrado sua investigação sobre as ditas patologias do agir e não as tenha denominado desse modo, sua obra contém vários elementos teóricos utilizáveis no seu entendimento.
Em Além do princípio do prazer ([1920] 2010), naquilo que se convencionou denominar virada de 1920, Freud elaborou o seu segundo modelo pulsional. Em meio à apresentação desse modelo, o autor retomou de modo expressivo a teorização acerca do trauma – que tinha sido objeto de reflexões teórico-clínicas no início do seu percurso. O modelo anterior, correspondente à teoria da sedução traumática, considerava tal sedução como etiologia da histeria. Embora nessa teoria se considerasse um evento real – de sedução – como elemento etiológico dessa modalidade de neurose, em meio à elaboração da teoria do trauma original, Freud aventou no contexto de seu entendimento elementos importantes que vieram a ser ressignificados em 1920. Por exemplo, nesse caso, seria consistente o apontamento da noção freudiana de que o trauma se relacionaria com um excesso vindo do outro, com a passividade do ego diante do excesso e com a presença de um corpo estranho no interior do aparelho psíquico, o que implicaria a constituição do trauma em dois tempos.
Ainda que certas inconsistências e insuficiências teóricas tenham sido identificadas nesse modelo (Caropreso, 2020), algumas das quais ele próprio indicou, Freud desenvolveu seu conceito de trauma articulando-o a outros importantes conceitos metapsicológicos. Além disso, o modelo freudiano originalmente apresentado em 1920 continha uma concepção que colocaria a dimensão econômica do trauma para o centro de suas teorizações. Com isso, o trauma veio a ser concebido como resultante da
[...] correlação entre o excesso de excitações que o evento traumático comporta, e a fragilidade egoica do sujeito” [...] o ego do sujeito traumatizado passa a ser invadido, a partir de dentro, por um pulsional mortífero, que não pode ser efetivamente interiorizado ou recalcado, encontrando-se sob o domínio da pulsão de morte (Vale, 2014, p. 23).
Adicionalmente, se suporia que o trauma, mesmo tendo ocorrido de algum modo em cada indivíduo – o seu modelo originário sendo o do trauma do nascimento –, assumiria importância aumentada nas denominadas patologias do agir. Em cada um dos casos representativos dessas patologias, independentemente de suas especificidades, um evento traumático experienciado pelo indivíduo resultaria em certa inibição (ou redução) da sua capacidade de representação (Cardoso, [2007] 2011).
Desse modo, seria estabelecida a tendência ao acúmulo de excitações ocasionador de angústia, correspondente à relativa incapacidade de ligação dos montantes de afeto, isto é, de sua vinculação a representações. O montante excessivo de excitações requereria a sua ligação, ocasionando a compulsão à repetição – princípio originador do psiquismo (Caropreso, 2020).
Porém, a mesma capacidade relativamente reduzida de representação condicionaria o indivíduo a uma descarga desse montante excessivo de excitações sobre o corpo mediante a passagem ao ato (Birman, 2009). Assim, implicaria uma compulsão à convocação da motricidade no sentido da descarga desses montantes. Por meio dessa descarga motora, em uma patologia do agir, o indivíduo solucionaria momentaneamente a sua angústia e amenizaria a sua ameaça de dissolução identitária (Vale, 2014). Justamente nesse contexto, a problemática identitária veio a ser abordada teoricamente por René Roussillon ([1991] 1995). Esse autor, que tende a compreender os estados limite como sofrimentos identitários narcísicos, nos oferece importantes contribuições na articulação do que estamos aqui desenvolvendo, justamente por colocar em evidência a relação complexa entre narcisismo, trauma e passagem ao ato.
A experiência traumática do indivíduo – correspondente a uma situação de desamparo e, assim, de passividade radical – se relacionaria, em última análise, com a sua reiterada convocação da motricidade. De outro lado, segundo Jeammet (2005), a violência atuada exercida contra o objeto externo estabeleceria uma separação e uma diferenciação em relação ao outro, correlativamente à concepção de uma identidade – e contrariamente ao sentimento de expropriação de si mesmo. No mesmo sentido, segundo Barros e Rocha (2013), os afetos de ódio de um indivíduo contribuem à manutenção da sua “integridade narcísica”. Em outros termos, estariam implicadas duas modalidades de domínio nas patologias do agir, ambas contributivas à manutenção da integridade narcísica e à evitação da submissão de si a uma passividade radical: (i) a modalidade interna, sobre o excesso de excitações; e (ii) a modalidade externa, sobre um objeto externo.
Freud elaborou em sua metapsicologia um modelo de entendimento do desenvolvimento individual dito “normal” ao qual diversos autores do campo psicanalítico recorreram na análise de patologias do agir. Cardoso ([2002] 2011) recordou, nesse contexto, que em Além do princípio do prazer (1920), o modelo do Fort-Da representa esse movimento de passagem a ativo:
A criança, passiva até ali, não podendo senão sofrer o acontecimento, torna-se ativa, repetindo-o. Trata-se, aqui, de uma modalidade de funcionamento psíquico na qual estão em jogo, ao mesmo tempo, o objeto externo e o objeto interno (Cardoso, ([2002] 2002, p. 165).
É importante destacar que a passagem de passivo a ativo também foi trabalhada por Freud ([1915] 2010) em outros momentos de sua obra. Pensamos que o artigo Os instintos e seus destinos é uma referência importante nesta questão. Temos a ideia de que, em 1920, Freud parece retomar as questões que ele deixou em aberto em 1915, aprofundando o seu entendimento da inversão do passivo em ativo como um modo de domínio do pulsional excessivo e desligado.
Contudo, em alguns desses casos, mais restritamente, a experiência traumática do indivíduo implicaria a compulsão sádica de passivação de um outro que tenha evocado nele a situação de desamparo, de passivação radical, a qual seria insuportável. Nesses casos, a passivação do outro mediante a convocação da motricidade serviria como meio de descarga das excitações desligadas. Acreditamos que tais excitações podem ser motor de angústias de caráter muito precoce, situadas em um registro outro da angústia de castração. O objeto externo ao qual o ódio seria direcionado, sobre o qual a agressividade seria concretizada, seria dominado enquanto se dominaria em alguma medida esse montante de excitações. Coordenadamente, então, seriam descarregadas em um registro sensório-motor excitações não investidas em objeto (isto é, não mediatizadas), e investido um montante libidinal no objeto externo dominado mediante o ato.
Ainda que se tenha evidenciado anteriormente a menor capacidade de representação inerente às patologias do agir, seria ostensivamente inconsistente a suposição de que a capacidade relativamente reduzida de representação nestas patologias implicaria a inexistência – ou a aleatoriedade – de investimentos objetais. As excitações angustiantes descarregadas motoramente nessas patologias seriam não somente direcionadas a objetos, mas a objetos muito específicos, variando conforme ao caso. Na seção seguinte, se discutiu sobre o estatuto não genérico do objeto nessas patologias.
O estatuto não genérico do objeto e a recusa da diferença nas patologias do agir: o outro como para-raio do ódio
Factualmente, a tendência de um indivíduo à passagem ao ato estabelecida na patologia do agir, em alguma medida, independe da configuração específica de sua fantasia. A capacidade de descarga de excitações via resposta motora – modalidade de resposta que Cardoso ([2002] 2011) considerou como extrema e arcaica tende a ser muito expressiva. Nesse sentido, em uma situação de invasão reiterada pelos excessos de excitações, relacionados com uma capacidade de simbolização relativamente insuficiente, a resposta motora mais comumente vem a ser compulsiva.
Autores tais como Jeammet (2005) sustentaram que a passagem ao ato pelo indivíduo comumente consiste em uma resposta à sua sensação de invasão relacionada com as emoções sentidas na relação com um objeto externo. Já nesse caso, entretanto, considerando-se o reconhecimento de um objeto externo, se entenderia implicitamente a passagem ao ato como direcionada a um objeto não genérico – embora não se evidencie imediatamente a sua especificidade, nem os motivantes do investimento objetal. Em qualquer caso representante dessas patologias, será consistente a suposição de que um objeto não aleatório terá sido investido libidinalmente. Nesse contexto, Cardoso ([2002] 2011) ressaltou que, na análise da relação de domínio – e do exercício da violência – do indivíduo sobre um objeto externo, vem a ser importante a consideração dos aspectos fantasísticos nela implicados.
A análise minuciosa de casos considerados como representativos de patologias do agir evidencia certa especificidade do objeto externo sobre o qual o indivíduo exerce domínio, seja esse objeto (i) uma região do próprio corpo, (ii) seja um objeto inanimado, a exemplo de um alimento ou de uma substância psicoativa; (iii) seja um objeto animado tal como outro indivíduo ou animal.
Assim, se considerará que, nessas patologias, o ato compulsivo mediante o qual se exerce violência contra um terceiro vem a ser determinado, simultaneamente, pelas descargas mediatas e, imediatas, de excitações. A atuação, então, se relacionará não somente com a expressiva capacidade do ato em si de descarga de excitações (aspecto imediato da atuação), mas também à capacidade de satisfação pulsional, de realização de desejo, de encenação da fantasia.
Anteriormente, se indicou que a experiência traumática de alguns indivíduos se implicaria na sua compulsão sádica de passivação de outros que tenham evocado neles a situação de desamparo, de passivação radical. Mas, seguramente, nem todo objeto externo assumiria a função de outro ameaçador, evocador dessa situação. Na configuração de uma patologia do agir, os atributos específicos assumidos por esse outro variariam de acordo com a história – traumática – individual, mas não necessariamente se restringiriam ao eixo ativo-passivo.
Muito comumente, o narcisismo das pequenas diferenças assumiria certa centralidade. Assim, algum elemento socialmente repudiado sustentaria uma idealização negativa do outro. Por exemplo, os supostos indícios da homossexualidade – isto é, as marcas da orientação homossexual do desejo – seriam repudiados coletivamente, se reiterando a concepção – ilusória – da essencialidade da identidade de indivíduos não identificados como homossexuais. O ato de violência se relacionaria com a tendência individual de autoafirmação narcísica.
Adicionalmente, em alguns casos, se suporia que o caráter ameaçador do outro remeteria adicionalmente à sua não renúncia a um desejo ao qual o sujeito se viu compelido a renunciar. Nesse sentido, seriam entendidos alguns casos extremos de indivíduos que assassinaram sistematicamente terceiros identificados como homossexuais, transexuais, entre outros gêneros.
Há diferentes modalidades de violência – a violência atuada sendo somente uma delas – e um ato de violência extrema não necessariamente se relacionaria com uma dita “patologia do agir”. Em certas condições, mesmo um indivíduo no qual não se tenha estabelecido a mencionada patologia recorreria à passagem ao ato e, inclusive, ao direcionamento de sua agressividade a um outro.
Por outro lado, se suporia que o indivíduo que exerce de modo compulsivo e reiterado a violência atuada contra certas categorias objetais, mais comumente se situa na categoria chamada patologia do agir. Daí, a relevância da discussão mais detida acerca dos elementos implicados na violência atuada e exercida – compulsiva e reiteradamente – sobre terceiros.
Em alguns desses casos, a experiência traumática do indivíduo – correspondente a uma situação de passividade radical – implica a compulsão sádica de passivação de terceiros os quais tenham evocado naquele a sua própria situação de passividade radical, a qual seria insuportável. Nesses casos, a passivação de um outro mediante a convocação da motricidade serviria como meio de descarga das excitações angustiantes. Então, o objeto externo ao qual o ódio seria direcionado e sobre o qual a agressividade seria concretizada, seria dominado enquanto se dominaria em alguma medida esse montante de excitações. Coordenadamente, então, seriam descarregadas em um registro sensório-motor excitações não investidas em objeto (isto é, não mediatizadas), e seria investido um montante libidinal no objeto dominado mediante o ato.
Mas, seguramente, nem todo objeto externo assumiria a função de outro ameaçador, evocador dessa situação. Ao menos, seria consistente a suposição de que os objetos não a evocariam todos com a mesma frequência. Mesmo nos casos mais extremos, compulsivos e reiterados de atuação violenta contra terceiros, não se estabeleceria a aleatoriedade dos investimentos objetais.
Os afetos de ódio de um indivíduo contra aqueles outros reconhecidos como diferentes estão a serviço da manutenção da sua “integridade narcísica” (Barros; Rocha, 2013). Desse modo, certos outros, não genéricos, viriam a ser para-raios do ódio. O narcisismo das pequenas diferenças se relacionaria com certa tendência individual ao direcionamento do ódio a esses outros, e à concretização da agressividade contra estes últimos, embora a maioria dos indivíduos tenda a concretizar a agressividade em discursos – e somente em condições ditas “extremas” a concretize diretamente em ato.
Assim, a violência atuada e exercida de modo compulsivo e reiterado sobre terceiros resulta de aspectos mais ou menos mediatizados simbolicamente. Os níveis de determinação dessa modalidade de violência são muitos. Primeiramente, a insuficiente capacidade de simbolização condicionaria a certa tendência à convocação da motricidade. Então, o aspecto traumático correspondente ao eixo “passivo-ativo” condicionaria ao domínio de um objeto externo. Em um terceiro nível, adicional, a recusa da diferença se implicaria na especificidade do outro ameaçador o qual seria compulsivamente dominado.
Considerações finais
Neste artigo, em meio à revisitação de questões relativas às ditas patologias do agir, indicamos a sua etiologia traumática, o seu caráter compulsivo e o seu caráter dominatório, para além de sua dimensão violenta. Certamente, mesmo não tendo sido os únicos operadores teóricos articulados em estudos sobre essas patologias, as noções de trauma, de compulsão e de domínio têm contribuído significativamente à análise de seus casos representativos. Além disso, a articulação de tais operadores não ocorreria exclusivamente na análise dessas patologias, mas tal articulação orientaria um entendimento consistente de algumas de suas nuances não diretamente observáveis.
Nesse contexto, argumentamos contra a suposição de que a capacidade relativamente reduzida de representação nessas patologias implicaria a inexistência – ou a aleatoriedade – de investimentos objetais. As excitações angustiantes descarregadas motoramente nessas patologias seriam não somente direcionadas a objetos, mas a objetos muito específicos, variando conforme ao caso. A violência atuada e exercida de modo compulsivo e reiterado sobre terceiros, assim, resulta de aspectos mais ou menos mediatizados simbolicamente. Nessas patologias, a atuação se relaciona não somente com a expressiva capacidade do ato em si de descarga de excitações (aspecto imediato da atuação), mas à capacidade de satisfação pulsional, de realização de desejo, de encenação da fantasia.