Introdução - da primatologia à psicanálise
Freud teve grande influência da obra de Charles Darwin. A bibliografia das obras completas de Freud cita todos os livros do pai da ideia de seleção natural, inclusive cartas e a autobiografia. Utilizada ao longo de toda a sua obra, Freud classifica o darwinismo como uma das três feridas narcísicas da humanidade, precedida pela copernicana e sucedida pela da psicanálise. Copérnico, Darwin e Freud, os três estão no mesmo plano quanto ao processo de crítica dos pilares judaico-cristãos do ocidente, e é o último da tríade que mais de uma vez veio a afirmar isso. As hipóteses freudianas do processo de antropogênese e das bases da cultura, iniciado em Totem e tabu (1913) e ainda inconclu-so ao tempo de Moisés e monoteísmo (1939), tem sua semente no projeto darwinista.
Ciência muito mais recente, a primatologia – o estudo dos grandes primatas, seus corpos, mas, acima de tudo, sua psicologia e suas sociedades trazem novidades interessantíssimas para uma complementação da linhagem psicanalítica acima mencionada.
Os hominídeos, grandes primatas sem cauda, nossos primos mais próximos, são orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos. Ao contrário da asserção atribuída a Darwin, que tanto ofende os fundamentalistas de várias religiões, não somos parentes próximos e muito menos descendemos dos macacos. Estes têm rabo, os grandes primatas não. Infelizmente não temos em nosso idioma termos específicos, como em inglês, em que monkeys designa aqueles com cauda e apes os sem cauda. A separação das duas linhagens, com ou sem cauda, ocorreu há cerca de 30 milhões de anos.
Classificado como a superfamília hominídea*, o ramo de nossos antepassados surgiu há cerca de 20 milhões de anos. Embora haja alguma divergência, pode-se resumir que os orangotangos tenham sido os primeiros a se separar da linhagem comum, entre 16 e 14 milhões de anos atrás e depois foram os gorilas, entre 9 e 7,5 milhões de anos.
Entre as três espécies seguintes, que se separaram e possuem muitas afinidades biológicas e comportamentais entre si, a primeira foi a dos humanos, que mais tarde se autodenominaram homo sapiens sapiens. Os ancestrais dos seres humanos e os ancestrais dos chimpanzés e bonobos foram viver separados entre 6 e 5,5 milhões de anos. Já chimpanzés e bonobos se separaram entre si por volta de 2 a 1,5 milhões de anos. Em termos evolutivos e na história dos mamíferos, essas distâncias são mínimas. Todos os primos hominídeos compartilham entre si 97% do DNA, sendo que com os de primeiro grau – chimpanzés e bonobos – temos 98,4% de DNA igual.
Há cerca de um século a ciência que estuda os primatas – primatologia – vem fazendo grandes descobertas. Que têm refletido no conhecimento sobre o primo mais complicado da família, que sem qualquer modéstia se autodenominou homo sapiens sapiens. Frans de Waal, de origem holandesa e radicado há décadas nos Estados Unidos, é o mais divulgado de todos primatólogos. Editou nas últimas três décadas mais de dezesseis livros, dos quais seis foram publicados no Brasil desde 2007, ano em que também foi eleito pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. O presente artigo utiliza em sua maior parte seu livro mais recente, publicado em 2022, nos Estados Unidos e este ano no Brasil: Diferentes. O que os primatas nos ensinam sobre gênero (Waal, 2023).
Waal sempre traça paralelos entre os nossos primos mais próximos, chimpanzés e bonobos com os sapiens e, com frequência, também com aqueles um pouco mais afastados. Em quase todos os livros menciona Freud. Mas não o tem em grande simpatia e o conhece pouco. Quanto ao behaviorismo, é crítico feroz e explicitamente lhe nega qualquer valor científico.
Há dez anos publicamos nesta revista, n.º 40 (Lopes, 2013), um artigo com aproximações psicanalíticas com obras de Frans de Waal e Takayoshi Kano, outro renomado primatólogo. A principal é que, nossos primos mais próximos, chimpanzés e bonobos, além levar cerca de 16 anos para se tornarem adultos, incluídos 4 a 6 anos de amamentação, e sempre reconhecem a mãe e os irmãos. Isso significa que, mesmo com corpo adulto, jamais têm relações sexuais com a mãe e irmãs. Isto é, possuem cérebro quase do tamanho do humano, é tanto aprendizado na infância, e é tanta a memória infantil que, diante da mãe biológica ou adotiva, sempre se comportam como filhotes. No referido artigo, propusemos um estágio primeiro na filogênese do complexo de Édipo.
“Os grandes primatas estão entre as poucas espécies que se reconhecem no espelho” (Waal, 2023, p. 197). “Os chimpanzés reconhecem as vozes uns dos outros” (Waal, 2023, p. 261). A morte de um bebê não é fato isolado apenas para sua mãe. Que pode ser a mãe biológica ou não, porque, faltando a mãe biológica, os bebês são adotados, inclusive há relatos de adoção por machos. Uma chimpanzé pariu um filhote natimorto,
[...] a colônia inteira, inclusive indivíduos que não eram próximos, solidarizaram-se beijando e abraçando frequentemente a mãe infeliz. E a mudança foi prolongada. Durante no mínimo um mês, a colônia prodigalizou-lhe mais afeição que o habitual (Waal, 2023, p. 398).
No presente artigo desenvolvemos outras semelhanças com o sapiens, principalmente quanto à sexualidade. Ao início do século XX, ainda com grandes lacunas até sua metade, o comportamento dos primatas mais próximos era desconhecido e toda uma espécie – os bonobos – sequer identificada. Hoje, quando há muito mais informações, várias confirmam algumas das descobertas mais radicais de Freud. Escolhemos principalmente aquelas que podem ser diretamente referidas ao primeiro e mais revolucionário texto de Freud (1905/1978): Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
Freud e os Três ensaios - bissexualidade
Desde a época de sua amizade com Fliess, a bissexualidade foi defendida por Freud como categorização básica da sexualidade humana. Princípio sedimentado nos Três ensaios sobre a sexualidade e que Freud manteve ao longo de toda a sua obra. Apesar de certa dubiedade em alguns escritos, ao longo de sua obra e correspondência, também sustentou a despatologização da homossexualidade.
A bissexualidade tornou Freud refém de críticas por ambos os lados. A psiquiatria e o saber médico em geral consideravam a homossexualidade patológica e a bissexualidade apenas um eufemismo para disfarçá-la. Muitos, senão a maioria dos psicanalistas, qual fosse sua formação profissional, explicitamente também viam a homossexualidade como doença e a bissexualidade como um cacoete do mestre a ser piedosamente deixado de lado.
Ao final dos anos 1960, quando se inicia a despatologização das homossexualidades, a obra e a pessoa de Freud passaram também a receber críticas pelo viés oposto. Para muitos do movimento gay, a bissexualidade não existiria, era apenas um eufemismo para homossexualidades não aceitas.
Contudo, as pesquisas com nossos primos hominídeos nas últimas décadas, têm caminhado na direção da bissexualidade. Waal é um dos pesquisadores que retornou à escala Kinsey formulada em 1948. Escala em que uma linha foi subdividida de 0 a 6, desde a heterossexualidade exclusiva até a homossexualidade exclusiva. Embora ao longo das décadas seguintes tenham existido grandes controvérsias e variações estatísticas, a maioria dos humanos está entre 1 e 5.
Durante décadas os bonobos nos zoológicos foram escondidos dos visitantes humanos. Enquanto espécie hominídea independente, os bonobos foram a última a ser identificada. Só ocorreu em 1929. O estudo dos bonobos ficou décadas atrás do dos chimpanzés porque biólogos e estudiosos humanos, até poucas décadas atrás todos do sexo masculino, tinham vergonha de pesquisá-los. Pesquisadores e cientistas deveriam ser observadores neutros. Essa conduta, nada científica, intencional ou inconsciente, aos leigos pode parecer absurda. Mas para muitos psicanalistas, que são especialistas em detectar o recalque sexual, bastante compreensível.
Os bonobos são conhecidos como os hippies do mundo primata. sua diversidade de orientação sexual levou-os a “tornarem-se os favoritos da comunidade LGBTQIAP+” (Waal, 2023, p. 413). Embora não se tenha encontrado um único bonobo que seja exclusivamente homossexual, embora possa ser criticado que categorias humanas não se aplicam a bonobos. Mas, mesmo assim, podemos aplicar Kinsey.
Na famosa escala de zero a seis de Alfred Kinsey – de exclusivamente heterossexual a exclusivamente homossexual –, a maioria dos humanos até pode estar do lado heterossexual, mas cada bonobo é totalmente um bi, um três perfeito na escala Kinsey. Além da cópula de macho com fêmea em grande variedade de posições, o padrão mais característico é o da fricção gênito-genital entre fêmeas (Waal, p. 413). [...] Essa postura frontal – na qual uma fêmea pode ser erguida do chão por outra enquanto se agarra nela como um bebê à mãe – permite que ambas façam rápidos movimentos para os lados. Elas friccionam seus clitóris intumescidos um no outro ao ritmo médio de 2,2 movimentos pélvicos dos machos. Todo estudioso dos bonobos já observou a fricção gênito genital em cativeiro ou na natureza (Waal, 2023, p. 413).
Até quase uma década atrás, os chimpanzés eram tidos como exclusivamente heterossexuais, outra categorização humana erroneamente aplicada a esses primos hominídeos. Mas que para muitos pesquisadores mantinha a honra patriarcal possível da família hominídea como um todo. Pesquisas de campo mais recentes mostram uma crescente direção menos exclusiva, senão até mesmo ao meio, na escala Kinsey. Assim como o comportamento sexual em bonobos possui intensa função socializante, o mesmo ocorreu em alguns estudos mais recentes em chimpanzés. Mas um eufemismo foi criado:
No entanto, quando esses comportamentos nos bonobos são classificados como “socios-sexuais”, enquanto nos chimpanzés são classificados como “tranquilização”, isso impede-nos de comparar e contrastar diretamente os comportamentos entre as duas espécies irmãs (Rodrigues, 2023).
Entretanto, o subterfúgio a eufemismos não mais impede que hoje novos primatólogos leiam relatos passados e mesmo diretamente observem em natureza com mais objetividade. Como a caracterização de primatólogos de gerações passadas de vários comportamentos entre chimpanzés machos, sendo o melhor exemplo o da detalhada descrição do que hoje pode ser facilmente caracterizado como coito anal, foi no passado interpretado lentes culturais defasadas.
Freud e os Três ensaios - sexualidade perverso polimorfa
Freud separou a noção de instinto, com objeto de sua satisfação biologicamente predeterminado, de seu novo conceito de pulsão, cuja satisfação é construída pela história da primeira infância de cada ser humano. Conclui já no primeiro dos Três ensaios sobre a sexualidade que “[...] entre a pulsão sexual e o objeto sexual há apenas uma solda” (Freud, 1905/1978, p. 148, tradução nossa).
Até pouco tempo, a sexualidade dos animais em geral, não apenas de nossos primos mais próximos, quase sempre foi compreendida muito mais pela fantasia humana, em vez de observações neutras. Nessa fantasia a sexualidade era vista como algo puramente funcional e com objetivo apenas reprodutivo, o que pode ocorrer em mamíferos menos complexos. Mas a sexualidade dos primatas também foi, até recentemente, condicionada por estudiosos a um papel meramente reprodutivo: puro instinto à procura de um objeto específico predeterminado. Esse desejo só ocorreria durante limitado período e só para a sobrevivência da espécie. E muitos primatólogos ainda acreditam desse modo que seja a sexualidade dos chimpanzés e bonobos.
Ela não inclui amor, diversão, gratificação e só pode ocorrer entre um macho maduro e uma fêmea fértil. Talvez projetemos nos animais o tipo de vida sexual que pensamos que deveríamos ter. [...] Deixamos para lá o fato de que em algumas espécies, como os bonobos, três quartos da atividade sexual não têm relação alguma com a reprodução (Waal, 2023, p. 412).
Mesmo sem ser adepto da psicanálise, Waal acertou em cheio o uso do termo “projeção”. A sexualidade animal sempre foi vista de uma perspectiva meramente funcional, tendo como único objetivo a reprodução. Hoje é tida como mera projeção, racionalizando a suposta superioridade do sexo masculino, que em realidade só ocorre quando predomina o patriarcado. Por essa visão o sexo masculino deve concentrar em si todo poder econômico e militar. Um dos objetivos principais é tentar garantir que sua herança irá para seus filhos biológicos. E para tal garantia, a liberdade das mulheres deve ser completamente cerceada.
Só podemos especular o que veio primeiro: o patriarcado exclusivo ou o monoteísmo. A base das religiões monoteístas originais é legitimar a figura de um deus masculino. E chega ao paroxismo de que o sexo só deve ocorrer quando autorizado pela instituição religiosa, apenas para reprodução e sem concupiscência. Deste modo, partir de Santo Agostinho temos uma das mais exatas e radicais definições do patriarcado sacramentado pelas religiões monoteístas.
A candidata perfeita a esposa não deve ter tido nenhuma experiência sexual anterior ao matrimônio. Crença consciente ou inconscientemente hipócrita, porque os homens não lhe obedecem, e a maioria sabe que, para eles, desde o início que não será obedecida. Além domais, previamente ao matrimônio, os homens já tiveram várias experiências sexuais. Contudo, impõem toda forma de restrição às mulheres.
Apesar de sua prescrição milenar, todo esse sistema parece ter frequentemente funcionado pior do que se supõe. Freud discorre sobre a repressão sexual do sexo das mulheres na adolescência e início da idade adulta, acarretando um descompasso que, quando ocorre o casamento legal, religiosa e socialmente reconhecido, leva ao fracasso a sexualidade do casal. O domínio do patriarcado permite que todo poder e lucro do trabalho feminino (acima de todos o trabalho doméstico) aumente muito o capital exclusivamente utilizado por homens. Mas conduz ao fracasso da parceria, da felicidade e explode em neuroses e transtornos psicossomáticos de todos os tipos. O mundo em que viveu e sobre o qual escreveu Freud.
Mas, igual a muitas outras áreas do conhecimento, e em países mais democráticos, onde também obrigatoriamente também se separa o estado da religião, o sexo feminino também penetrou na primatologia. Comenta Waal (2023, p. 325):
[...] acho bom que a antropologia moderna tenha deixado para trás seu enfoque androcêntrico. Como na primatologia, tem havido tem havido nessa disciplina um afluxo de mulheres e uma consequente mudança de perspectiva.
Mas a atividade sexual amplamente ultrapassando a quantidade de relações necessárias para a reprodução não é exclusiva dos humanos, chimpanzés e bonobos. No entanto, o primeiro dos dois itens mais importantes recentemente reforçados ou descobertos, é que em todos – chimpanzés, bonobos e humanos – as fêmeas copulam muito mais do que seria de esperar caso a concepção fosse o único objetivo.
Segundo estimativas, na natureza uma fêmea chimpanzé participará, ao longo da vida, de 6 mil cópulas com mais de uma dúzia de machos. No entanto, ela terá no total apenas cinco ou seis crias sobreviventes (Waal, 2023, p. 241).
O segundo item foi confirmado em todos os hominídeos. Apesar de todo o cerceamento do comportamento feminino, também nos sapiens as fêmeas têm relações sexuais com muito mais machos do que se supunha. E o mesmo ocorre na espécie humana. Testes genéticos em nossos primos chimpanzés e nas fêmeas humanas, nestas complementados com entrevistas em sigilo absoluto e até detector de mentiras, revelaram que a multiplicidade de parceiros sexuais ao longo da vida é muito maior do que supunham os antropólogos e primatólogos mais antigos. E bem mais do que acreditam seus parceiros humanos do sexo masculino.
De um modo geral, é hora de abandonar o mito de que os machos têm desejo sexual mais intenso e são mais promíscuos que as fêmeas. Deixamos que esse mito se introduzisse na biologia na era vitoriana, quando ele foi adotado com entusiasmo como normal e natural (Waal, 2023, p. 245).
Ou, como rotulou Freud em 1905, uma sexualidade perverso polimorfa, mantendo as diversas características da sexualidade da primeira infância. Algumas condutas mais comuns: fricção gênito-genital entre fêmeas, masturbação de um macho em outro, sexo anal, beijo de língua e, possivelmente, outras práticas. Que a cegueira e o pudor humano rejeitaram ver na observação dos de sua espécie e extrapolaram para outros hominídeos. O relato foi reprimido, porque a observação foi negada. Usando conceito psicanalítico: puro recalque.
Freud e os Três ensaios - início da diferença entre sexo e gênero
Em seu mais recente livro – Diferentes. O que os primatas nos ensinam sobre gênero (Waal, 2023) – são abordados temas que tem provocado polemica crescente em todas as áreas, inclusive a psicanálise: identidade de gênero e transexualidades. O primatólogo retorna ao conceito que nos dois hominídeos que nos são mais próximos, os chimpanzés e os bonobos, “[...] indivíduos adquirem hábitos com aqueles que se sentem mais próximos. O aprendizado observacional é guiado pela vinculação e identificação” (Waal, 2023, p. 71).
O termo “gênero” há décadas tem originado diferentes conceitos. Utilizemos o mais comum: uma gama de características não biológicas pertencentes e diferenciadas entre a masculinidade e a feminilidade. “Expressão de gênero” denomina as características não biológicas, mas o que é cultural e socialmente tido como masculino ou feminino. Podendo mesmo designar algo mais amplo: “identidade de gênero”, alguém considerar-se homem ou mulher, geralmente desde quando se lembre na infância, que em algumas pessoas diverge do sexo biológico. Waal também segue essas distinções, igualmente utilizadas pela psicanálise contemporânea. Repete em seu mais recente livro a máxima “toda espécie tem sexo, só os humanos têm gênero” (Waal, 2023, p. 73). O sexo biológico é binário, mas o gênero um contínuo entre dois polos.
Quando falamos em gênero, os termos apropriados não são “fêmea” e “macho”, e sim “masculino” e “feminino” [...] O gênero resiste à divisão em duas categorias nitidamente distintas, e o melhor é vê-lo ao longo de um espectro que vai suavemente do feminino ao masculino, com todos os tipos de misturas de permeio (Waal, 2023, p. 79).
Gênero é um termo das últimas décadas do século XX. Mas as discrepâncias entre sexo biológico, escolha objetal e gênero foram indiretamente intuídas no primeiro dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Freud fala das escolhas objetais pelo sexo oposto ou pelo mesmo sexo, ou ambas. Mas que a bissexualidade ou a homossexualidade várias vezes não são acompanhadas por
[...] alterações paralelas tanto em qualidades mentais, pulsões e traços de caráter que caracterizam o sexo oposto. [...] Nos homens a mais completa masculinidade mental pode estar combinada com a inversão (Freud, 1905/1978, p. 142, tradução nossa).
Waal acrescenta também o mesmo contínuo, há tempos observado nos humanos, para caracterizar comportamentos de nossos primos primatas mais próximos. Conclui que não apenas os humanos têm gênero, mas também chimpanzés e bonobos.
Nas minhas décadas de trabalho com grandes primatas, conheci vários deles que era difícil classificar como feminino ou masculino. Embora minoritários, parecem estar presentes em todos os grupos. [...] Infelizmente não temos ideia de quanto são comuns indivíduos de gênero inconforme, pois os cientistas procuram comportamentos típicos (Waal, 2023, p. 82-83).
Além da separação entre sexo e gênero não ser exclusiva dos sapiens, mas também exposta por chimpanzés e bonobos, pois neles há uma diversidade de gênero ao longo de um contínuo. E nela também Waal observou um comportamento até recentemente pouco aceito ou compreendido entre os sapiens: algo semelhante à transexualidade. O primatólogo relata suas observações de uma chimpanzé apelidada de Donna.
Selecionamos algumas de suas observações sobre Donna:
[...] uma fêmea robusta de atitudes mais masculinas do que as outras fêmeas. [...] Os machos não mostravam interesse e não co-pulavam com ela. [...] Sabia sentar-se aprumada como um macho. [...] Quando eriçava os pelos [...] ela era bem intimidante, graças aos ombros largos. [...] Como Donna também nunca se masturbava, provavelmente não tinha um forte impulso sexual. Ela nunca foi mãe. [...] Quando os machos começavam suas exibições de força [...] Donna se juntava ao coro e arremetia ao lado deles. [...] Os gritos de Donna eram mais agudos que os dos machos, mas só o fato de ela os emitir já era atípico para uma fêmea. Agindo como camarada dos machos adultos, ela podia adquirir uma dominância temporária. Donna ocupava uma posição intermediária na hierarquia, mas até as fêmeas superiores saíam do caminho [...]. (Waal, 2023. p. 77-80).
Além da questão de que o conceito de gênero, diferenciado de sexo, também pode ser aplicado a chimpanzés e bonobos, há várias semelhanças entre algumas das características de Donna e as transexualidades humanas. São paralelos entre o sapiens e os primatas parentes mais próximos que seguramente precisam de mais pesquisa. Mesmo assim destrói o mito moralista, de que o que é contrário à natureza (contranatura) e apenas ocorre nos seres humanos seria perverso.
Freud e os Três ensaios – da sublimação à cola social
Uma vez que a sexualidade dos primos hominídeos em muito ultrapassa a necessária para a reprodução, também ocorre aquém e além de práticas genitais. A sexualidade dos bonobos, em menor grau à dos chimpanzés, possui a função de que o sexo é “sua cola social” (Waal, 2023, p. 415).
Mas o conceito da sexualidade enquanto “cola social” é aplicável também aos humanos. Desde a libido que une grupos e interesses comuns, até sua transformação em objetos e comportamentos que aparentemente não possuiriam origem sexual, mas sem os quais não se vive. Práticas cuja origem é denominada genericamente por Freud de “sublimação”. Descoberta freudiana descrita pela primeira vez em dois artigos de 1908 que são a continuação direta dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: Caráter e erotismo anal e Moral sexual “cultural” e doença nervosa. Da “cola social” dos primos hominídeos, a aumentamos e complicamos tanto que produzimos arte, cultura, tecnologia, talvez a linguagem humana como o primeiro de todos os produtos.
A sublimação, além de constituir um dos pilares da descoberta freudiana, neutraliza todas as proposições de uma “energia” cultural e/ou espiritual específica dos humanos. Força mística de origem sobrenatural que também seria desprovida de qualquer elo com a sexualidade. A existência comum entre todos os hominídeos da “cola social” fornece o embasamento para as ideias de Darwin, o evolucionismo e parentesco de toda vida na Terra.
Mas se os grupos humanos hoje numericamente reúnem-se até a casa de dezenas de milhões, os intensos e perenes conflitos ainda deixam muito a desejar. Principalmente quando comparados com os bonobos. A “cola social” ainda tem muito a ser melhorada em sua função original.
A ideia de “cola social” dos três hominídeos de parentesco mais próximo – chimpanzés, bonobos e sapiens – pode ser mais bem teorizada e explicada. Podem ser feitos alguns acréscimos. Propomos um deles.
Pulsão e neotenia
É inquestionável a proximidade do cérebro humano com o dos nossos primos hominídeos. Quando comparados em tamanho e estrutura, compõem-se de um número gigantesco de neurônios e sinapses, pouco diferindo do humano. Além desses números, ou mesmo por causa deles, chimpanzés e bonobos partilham conosco a neotenia, que é a propriedade da retenção, durante toda a idade adulta, de características típicas da sua infância e adolescência.
Considerando o quanto temos em comum com os bonobos, inclusive nossa célebre neotenia, a ideia de que descendemos de um grande primata parecido com um bonobos não é absurda (Waal, 2023, p. 163).
A neotenia tanto possibilita a permanência durante toda a vida de uma característica encontrada em muitos outros seres vivos apenas na infância: a curiosidade e a plasticidade para a descoberta e o uso de novos conhecimentos, o que justifica a comparação com as descobertas de Freud sobre a sexualidade da primeira infância. Para Freud, essa curiosidade permanece a vida toda em adultos. E dela deriva o dom de adquirir durante toda a vida novos conhecimentos e comportamentos. Em outras palavras, o excesso da pulsão sexual infantil, sempre insatisfeita, é a origem da pulsão epistemofílica.
Já Melanie Klein acreditava que a pulsão epistemofílica era distinta da sexual. Contudo, poderia ser potencializada ou inibida pela pulsão sexual da infância. A neotenia também embasa muitas ideias de Winnicott. Possibilita que o brincar, mesmo quando transmutado e disfarçado nas mais sofisticadas técnicas ou conhecimentos adultos, dure pela vida inteira.
Nossos primos, embora de modo muito reduzido em comparação aos sapiens, também aproveitam objetos da natureza como artefatos, os quais passam à geração seguinte, embora não possam fabricar eles mesmos novos objetos. Mesmo assim, diante de novos desafios, criam novas soluções. Waal critica tanto quanto Freud a noção de instinto. Isto é, a forma como as pessoas ou animais reagiriam ou se comportariam mecanicamente, sem ter que pensar, aprender e passar às gerações seguintes. Crítica extensiva também ao comportamento de nossos primos, com os quais, para o primatólogo, mesmo existindo tendências inatas, necessitam interagir e aperfeiçoar com o aprendizado no meio ambiente.
Sintetiza Waal (2023, p. 54):
[...] No entanto vejo com ceticismo esse tipo de interpretação, pois a palavra “instinto” implica comportamento estereotípico. Comportamento “instintivo” soa inflexível, não merecedor de atenção porque sem dúvida dispensa inteligência. O termo “instinto” agora não é bem-visto no estudo do comportamento animal. Embora todos os animais, assim como os humanos, possuam tendências inatas, elas são suplementadas por muita experiência. [...] Pouquíssimos comportamentos são instintivos no sentido de não exigirem prática.
Hominídeas fêmeas, das três espécies mais próximas, são criadas com outras, desde suas mães (biológicas ou adotivas) até outras das mais diversas idades. Justifica-se que o comportamento maternal seja compartilhado e incentivado desde a tenra idade, o que não quer dizer que nasçam com instintos maternais. Na perda da mãe biológica, outras fêmeas adotam órfãos. O quanto não é fruto de um instinto biológico e sim de afeto e aprendizado?
Descreve Waal (2023, p. 56):
Um recém-nascido pode buscar automaticamente um mamilo, mas a mãe ainda precisa aprender a amamentar. Isso vale para humanos e outros grandes primatas. Muitos primatas em zoológicos não têm êxito em cuidar de suas crias por falta de experiência e exemplos. Frequentemente precisam de modelos humanos para preencher a lacuna de conhecimento. Zoológicos que têm uma primata grávida costumam convidar mulheres voluntárias para demonstrarem como alimentar o bebê. A maternidade e a similaridade dos corpos aproximam naturalmente humanas e grandes primatas. Estas observam a humana nutriz e copiam cada movimento quando seu próprio bebê nasce.
Desde a publicação do livro Um amor conquistado – o mito do amor materno, de Elizabeth Badinter (1985), temos o embasamento por um estudo sério, de que na espécie humana um instinto materno é inexistente. Na prática, além dos casos policiais de mães que intencionalmente matam fisicamente um ou mais filhos, também há a possibilidade de mortes psíquicas. A carência materna, levando em conta que pode ser suprida pelo pai, que também pode faltar, é a causa mais que provável de quadros psicóticos e depressivos muito graves, e mesmo de muitos suicídios. Não faltam relatos na clínica, além de observações pessoais corroboradas a partir de supervisão, seja na clínica particular, seja na clínica social do CBP-RJ.
Outro questionamento contra a noção de instinto é a capacidade dos outros primatas machos nossos primos para cuidar filhotes. Algo ainda mais difícil de compreender pela noção biológica de instinto, que no caso dos humanos. No caso do homo sapiens sapiens, pode-se apelar como justificativa para a noção de paternidade ou parentesco. Mas tanto quanto se saiba, são noções desconhecidas por chimpanzés ou bonobos. Voltemos aos relatos sobre adoções.
Na natureza, já foram observados chimpanzés machos adultos que adotaram um bebê e cuidaram dele amorosamente, às vezes durante anos. O macho desacelera seus deslocamentos para que o pequeno adotado consiga acompanhá-lo, procura-o quando ele se perde e tem um comportamento tão protetor quanto o de uma mãe (Waal, 2023, p. 18).
Instinto implica uma reação impensada e mecânica, disparada por algum tipo de forma externa que a desperte, um estímulo ou forma previamente determinado. Trata-se de comportamento automático e estereotipado, muito defendido por teorias como o behaviorismo. Waal defende que, embora todos os animais, assim como os humanos, possuam tendências inatas, elas são suplementadas por muita experiência. “Pouquíssimos comportamentos são instintivos no sentido de não exigirem prática” (Waal, 2023, p. 54).
Na última década, direta ou indiretamente, surgiu toda uma gama de supostos saberes e teorias que procuram justificar comportamentos e quadros clínicos em seres humanos com um “neuro” antes: neuropsicologia, neuropediatria, neuropsiquiatria, neuropsi-copedagogia e outras “neuros”. A busca de todas é reduzir o psíquico ao cerebral, isto é, ao instinto. O que é surpreendente, quando biólogos e primatólogos, que não se dedicam aos seres humanos, contestam o uso reducionista implícito no termo “instinto”.
Contudo, há muitos interesses políticos e econômicos nesse reducionismo de retorno ao “instinto”. Valida que se neguem várias condições – sociais, familiares, econômicas – tenham qualquer importância. Qualquer comportamento pode ser patologizado e passível ao uso de medicações. Além do reducionismo em aplicar essa lógica para além de transtornos facilmente reconhecíveis como fruto de lesões orgânicas, mesmo que existam alterações físicas em comportamentos sutis, “como diz o mantra científico, correlação não é causa” (Waal, 2023, p. 88). Qual é o efeito e qual a causa? Como estas “neuros” explicariam mães humanas que abandonam seu(s) filho(s)? Ou chimpanzés machos que adotam bebês de sua espécie?
Entretanto, sempre existem exceções. Embora em inglês seja designada como ‘neurobióloga’ e na edição brasileira como ‘neurocientista cognitiva’, também há Gina Rippon, Professora Emérita da Aston Brain Centre, Aston University, Birmingham. Defensora de A nova neurociência que destrói o mito do cérebro feminino, tradução do título original de um extenso livro, embasado pelos relatos de muitos anos de inúmeras pesquisas. Obra que também foi publicada há dois anos no Brasil: Gênero e os nossos cérebros – como a neurociência acabou om o mito de um cérebro masculino ou feminino (2021). Livro citado por Waal em Diferentes. que nele dedica mais de duas páginas para refutar Rippon.
A neurobióloga defende que o cérebro humano começa neutro no que diz respeito ao gênero. Waal discorda, defendendo que nos hominídeos o sexo simultaneamente possui uma parte inata, embora também seja necessária a outra parte, a do aprendizado. E o aprendizado pode superpor-se ao inato. Talvez a divergência entre o primatólogo e a neurobióloga se deva à crença de que todo aprendizado é consciente. Aqui retornamos a Freud. Há aprendizado que pode ir direto ao pré-consciente ou ao inconsciente. O inconsciente da primeira tópica e o eu inconsciente e o isso da segunda tópica configuram-se no sapiens como gigantescos celeiros de conhecimentos adquiridos, mas hoje recalcados. Se não usado o referencial psicanalítico, o que já ao final da infância ou na adolescência é inconsciente pode parecer inato. Debates sobre conceitos e clínica psicanalítica muitas vezes também são complicados, entre eles, a distinção feita por Freud entre instinto e pulsão.
A pulsão pode ser confundida com instinto enquanto produtora do sintoma. Em muitos casos a resposta da pulsão, aparentemente mera reação, além de inadequada à realidade externa, é automática. Isto ocorre porque um conjunto de processos inconscientes recalcados associaram a situação externa com antigos conflitos internos. E a resposta predominantemente se dirige a esses conflitos hoje inconscientes, e não aos que hoje vêm do mudo externo.
Contudo, na maioria das vezes, a pulsão, por não possuir objeto predeterminado, pode aos poucos moldar-se aos objetos externos. Simultânea e gradualmente ajustar-se ao objeto e aperfeiçoá-lo, provocando um crescimento do eu e do objeto. E domesticando o lado agressivo de ambos. Como sempre há uma sobra, e um excedente de pulsão, predominando o lado amoroso, ocorre um aperfeiçoamento incessante do eu e do outro. Tanta sobra, que no homo sapiens sapiens, dela nasceram a linguagem e a arte. Ocorrendo a predominância de experiências boas, a neotenia se mantém, pois nunca cessa a capacidade de criação.
Embora possua raízes bem mais antigas, em sua acepção freudiana o termo novo também nasceu ao início do primeiro dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Mais especificamente, na primeira frase: “pulsão sexual [Geschlechtstriebes]” (Freud, 2023). Surge o contraponto ao “instinto”, no qual o objeto de satisfação está biologicamente predeterminado. Já “[...] há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda” (Freud, 1905/1996, p. 148, tradução nossa). Na maioria das vezes, a origem da soldadura tornou-se inconsciente. Mas foi adquirida e não inata.
Entre outras qualidades, e através de uma leitura contemporânea, o termo “pulsão” completa o conceito de neotenia. Porque instinto é biologicamente hereditário e específico. Encontrando a forma externa que o satisfaça, pode ser completamente saciado. Ao menos por algum tempo. Ou por ser organicamente predeterminado, pode de tempos em tempos desaparecer.
Já para a pulsão, que preexiste ao objeto que a satisfaça, o encaixe de ambos permite muito mais incompletude. O objeto nunca satisfaz de modo absoluto ou permanente. E ao oposto do instinto, que pode desaparecer por longos períodos, a pulsão, exceto por breves momentos de satisfação, se tanto, é permanente. E esse excesso coloca a pulsão como manancial para a criação, através de todas as formas de cultura e arte, talvez da própria linguagem, que é a única e radical distinção entre nós e nossos primos mais próximos: bonobos e chimpanzés.
O mito do patriarcado – desde os Três ensaios até Moisés e o monoteísmo
O patriarcado baseia-se na discriminação do sexo feminino como inferior ao masculino. Os homens mantêm o poder, predominam em funções de liderança política, religiosa, autoridade moral, privilégio social, controle das propriedades e exercem autoridade sobre as mulheres e as crianças.
O sistema social do patriarcado só pode ser mantido se fundamentado num rígido binarismo sexual, superposto na crença de que o sexo masculino é superior ao feminino. Uma das justificativas mais populares é que os animais na natureza assim se comportam. Vimos como os bonobos, uma das duas espécies mais próximas do sapiens, senão a mais próxima, é exatamente o oposto: as fêmeas são as dominantes. E além da dualidade biológica e reprodutiva sexual – macho e fêmea – os comportamentos são complexos e variam em uma escala contínua, com todas as combinações e percentagens entre masculino e feminino.
O mais próximo possível aos homens de qualquer grupo cultural ou étnico são as mulheres desse mesmo grupo. Se podem ser consideradas seres inferiores, é fácil estender a inferioridade para todos de ambos os sexos de outros grupos étnicos e culturais inteiros. Uma vez que o princípio da superioridade masculina é aceito, pode-se justificar quaisquer outras formas de discriminação. E para compreender o que inconscientemente subjaz a origem de quaisquer discriminações, podemos referir a Freud, utilizando sua própria interpretação.
Em O tabu da virgindade (Contribuições para a psicologia da vida amorosa III), afirma
[...] que justamente as pequenas diferenças, em meio à semelhança em todo o resto, fundamentam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria convidativo perseguir essa ideia e propor derivar desse “narcisismo das pequenas diferenças” a hostilidade que vemos em todas as relações humanas lutar com sucesso contra os sentimentos de união e vencer o mandamento do amor generalizado aos seres humanos. Sobre o fundamento dessa rejeição narcísica da mulher pelo homem, bastante deslocada para o menosprezo, a psicanálise acredita ter descoberto uma parte crucial, ao remetê-la ao complexo de castração e sua influência no julgamento sobre a mulher (Freud, 1918/2018, p. 164).
O termo “narcisismo” surge a primeira vez em uma nota de rodapé acrescentada por Freud em 1910 ao primeiro dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Para horror dos defensores mais radicais do patriarcado, que rejeitam em si mesmos quaisquer características do sexo oposto, e ainda mais a homossexualidade, a nota de rodapé refere-se aos invertidos (termo utilizado por Freud) “buscarem como objeto sexual um homem jovem que lembre eles mesmos, o qual também possam amar, como suas mães amaram a eles mesmos” (Freud, 1905/1978, p. 145).
O investimento narcísico no pênis e o medo da castração e também foram descritos por Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e posteriormente fundamentados no caso clínico por ele ilustrado: A análise de uma fobia num menino de cinco anos, mais conhecido como O pequeno Hans (1909).
Usando o tipo de interpretação um tanto selvagem de antigos psicanalistas, os defensores fanáticos do patriarcado negam em si mesmos qualquer acesso ao muito humano e universal medo que os homens têm de serem concretamente privados de seu pênis. Assim como recalcam e refutam qualquer traço de homo ou bissexualidade.
Mas o medo inconsciente ou não da castração pode ter construído algo muito além de quadros psicopatológicos individuais. Podemos acreditar ou não na postulação freudiana de uma pulsão de morte. Mas as crenças discricionárias do patriarcado justificam e potencializam todas as formas agressão contra os inferiores e “diferentes”. Passa-se da agressividade necessária para a sobrevivência e a defesa, para outro nível, ao qual se pode associar palavras como: violência, aniquilação, extermínio, apagamento, selvageria, entre outras, alcançando mesmo a autodestruição. O que infelizmente lembra nossos primos chimpanzés, capazes de tantas condutas amorosas individuais e grupais – fortes vínculos afetivos com os de sua espécie e até de outras, adotar órfãos, consolar quem sofre a perda de uma cria – mas também capazes de surtos de agressividade assassina contra outros grupos de sua própria espécie.
O perigo da crença na pulsão de morte freudiana é ser cooptada por alguma explicação biologizante ou, como está na moda, ‘neurocientífica’. Contudo, toda obra de Waal tende a colocar o adquirido como tão ou mais importante que o inato. E sem qualquer conexão com o postulado freudiano da pulsão de morte, comenta Waal (2003, p. 286) em seu livro mais recente:
A ciência ainda vê a violência e a guerra como indissociáveis da herança da nossa espécie, apesar da escassez de evidências desse tipo de comportamento durante a nossa pré-história. O registro arqueológico, por exemplo, não contém evidência alguma de matança em grande escala antes de 12 mil anos atrás. Isso torna altamente especulativos os cenários que pressupõem que a guerra está em nosso DNA.
Em vários de seus livros, artigos e cartas, Freud escreveu de modo extremamente crítico contra as religiões. Mas de todos escritos, o que mais se aprofundou foram os três ensaios que compõem um de seus dois últimos e inacabados livros: Moisés e o monoteísmo (1939). Herdeiro final do primeiro livro sobre o tema Totem e tabu, Moisés e o monoteísmo possui uma de suas ênfases em um termo, tanto quanto tenhamos conhecimento, não usado antes na obra de Freud: “imperialismo”.
Citando diretamente Freud (1939/1978, p. 21, 59, 65):
Este imperialismo refletiu-se na religião como universalismo e imperialismo. [...] Como resultado das conquistas da décima oitava dinastia, o Egito tornou-se um império mundial. O novo imperialismo refletiu-se no desenvolvimento das ideias religiosas, senão de todo povo, pelo menos na camada dirigente e intelectualmente mais elevada. [...] No Egito, tanto quanto podemos compreender, o monoteísmo cresceu como um subproduto do imperialismo.
O monoteísmo judaico, que embasa o cristão e o islâmico, configura-se na adoração de um deus único que quase sempre é descrito em termos masculinos nas fontes bíblicas. E assim representado quando há autorização para fazê-lo por uma imagem. Como na criação de Adão por Michelangelo na capela Sistina. Mas em seguida a queda pela pecado original cuja culpada parece ter sido exclusivamente Eva.
Embora também haja o termo “shekhinah”, uma palavra feminina em hebraico, referindo-se a uma outra manifestação divina da presença de Deus, com base especialmente nas leituras do Talmud. O conceito de shekhinah também está associado ao conceito do Espírito Santo no judaísmo e, eventualmente, no cristianismo. Poderia ser interpretado como o lado feminino de Deus. Mas constitui uma interpretação ou esquecida, ou muito pouco comentada.
Em Moisés e o monoteísmo,Freud (1939/1978) defende a hipótese de que o deus do velho testamento foi herdeiro direto do primeiro monoteísmo, criado no Egito e posteriormente adotado pelos judeus. Deixaremos de lado discussões sobre um lado feminino de deus ou a polêmica sobre origem dos três monoteísmos.
Com a questão de Eva ter sido a causadora do pecado original, o feminino pode ser estigmatizado de todas as formas possíveis. Na igreja católica, até hoje, nenhuma mulher pode ministrar sacramentos ou ter qualquer papel relevante na hierarquia eclesiástica. Na ausência de um sacerdote do sexo masculino, mesmo que haja uma religiosa do mais alto escalão, um laico homem é quem pode ministrar sacramentos. O mesmo quase sempre ocorre nos demais monoteísmos.
Do monoteísmo ao patriarcado, parece imperar o narcisismo das pequenas diferenças postulado em 1918. Gigantescas guerras religiosas, que se tornaram até internas. Destruições maciças e imensos massacres, por interpretações e variações de comportamento supostamente embasadas nos mesmos textos. Exemplo mais próximo a nós, as guerras europeias entre católicos e protestantes, que se estenderam por três séculos. Haja narcisismo das pequenas diferenças para negar a castração! Nos anos seguintes, Freud chegará a um ponto de inflexão em sua obra que irá além da neurose.
Bem antes de Moisés e o monoteísmo,Freud (1939/1978) já assinalava em O futuro de uma ilusão (1927/1978) sua crítica à religião. Nesse texto tenta salvar as aparências diagnosticando a religião como ilusão, até perpetrar uma “escrita falha” em que confessa: “[...] minhas ilusões não são, como as ilusões religiosas, incapazes de serem corrigidas [...] não tem o caráter de delírios” (The future of an illusion,Freud, 1927/1978; p. 53, tradução nossa). Mas em O mal-estar na civilização,Freud (1930/1978, p. 82) abre o jogo:
As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa [...] desnecessário dizer que quem compartilha de um delírio, nunca o reconhece como tal (tradução nossa).
O que nossos primos primatas podem nos ensinar
A pesquisa sobre os hominídeos mais próximos – chimpanzés e bonobos – e sua difusão pelo primatólogo mais difundido – Frans de Waal – nos fez retornar a vários conceitos e descobertas de Freud, que durante décadas foram pouco aceitas. Tivemos especial apreço pelas ideias de neotenia e da sexualidade como “cola social” entre chimpanzés e bonobos. Da qual fizemos o paralelismo com uma das origens do excesso pulsional dos sapiens, sublimado para a sua cultura e pulsão epistemofílica. Mas tendo em contrapartida também o excesso agressivo dos chimpanzés.
Quem sabe, os ancestrais do sapiens, há quantas centenas de milhares de anos ou mais, sendo mais fracos e mal adaptados, precisaram desses excessos para sobreviver cada vez mais longe de seu local de origem e em novos ambientes ainda mais hostis? Será que esta aposta evolutiva será válida em longo prazo?
Uma lista incompleta, baseada nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: a primeira infância e sua sexualidade perverso polimorfa, a bissexualidade como condição humana universal, a pulsão que em muito difere do instinto. E mesmo que existam pre-disposições inatas de comportamento nos três hominídeos mais próximos – chimpanzés, bonobos e sapiens – há grandes variedades devidas à interação com outros do grupo e com o meio ambiente.
É como se os Três ensaios, descritos a partir da clínica e da observação humana de Freud, terminasse por confluir com as pesquisas dos primatólogos. As divisões criadas pelas principais sociedades humanas, e muito acentuadas pelo patriarcado, não possuem justificativas biológicas. Como defendeu Waal (2023, p. 286) em seu mais recente livro.
Muitas das principais descobertas de Freud explicam os maiores mitos que o próprio sapiens criou sobre si: a negação das três feridas narcísicas da humanidade. A crença da superioridade do sapiens em relação a todos os outros seres vivos. Negando qualquer continuidade com a natureza e atacando qualquer racionalidade que lhe fira a vaidade narcísica. A crença da superioridade do sapiens masculino sobre a sapiens feminina. A negação do fato do quão pouco sabemos da mente humana, principalmente sobre a psique humana e suas pulsões. E as guerras, o imperialismo fundamentado em superioridades religiosas e ambições compensatórias ideologicamente disfarçadas, ameaçando toda vida na terra.
Esse patriarcado, em que predominam comportamentos violentos e restrições à sexualidade feminina, recusa qualquer continuidade com a natureza e ataca qualquer racionalidade. A fraqueza em tolerar a dor imposta pelas três feridas narcísicas leva ao absurdo de negar a astronomia e as ciências correlatas (a terra é plana), a origem e o parentesco dos seres humanos com toda a natureza (o evolucionismo não foi comprovado) e o inconsciente (psicanálise é uma pseudociência).