Introdução
A psicanálise tem a sua gênese na fala das mulheres histéricas e no impossível da palavra escrita no corpo. Palavra e escrita que encontraram no médico Sigmund Freud um atento ouvinte e leitor. O significado dessas palavras escritas nos sintomas de suas pacientes permaneceu como enigma para Freud. A quem deseja se aventurar na decifração desse enigma, ele sugere buscar na literatura uma fonte de conhecimento (Freud, 1916/2010).
Como observa Rancière (2009), as figuras literárias e artísticas são testemunho do inconsciente e expressam a relação do pensamento com o não pensamento, do voluntário com o involuntário, da construção consciente com a manifestação inconsciente, que propõe um enigma ao leitor.
Vale lembrar que Freud (1907/2015) considerou os escritores de ficção como aqueles que estão à frente das descobertas científicas no conhecimento da alma (ou da subjetividade) porque utilizam fontes que a ciência desconhece: a fantasia e o desejo inconsciente. Através das obras de ficção, o ser humano pode vivenciar seus conflitos psíquicos de modo prazeroso, sem vergonha ou censura (Freud, 1908/2015).
Contudo, há escritos literários que geram mais interesse no estudo da subjetividade do que outros. Segundo Freitas (2009), a identificação com o herói ou a heroína confere a uma obra o destaque cultural. Quanto maior a ambivalência nos afetos dos personagens, maior a possibilidade de identificação e de perpetuação no tempo da relevância que se atribui ao livro.
Este trabalho é de costura da psicanálise com a literatura, da palavra com o inconsciente, do feminino e do percurso de análise com a escrita como modo de proposição de um caminho para a mulher contemporânea que se depara com o sofrimento irrepresentável de perder o amor do objeto.
A mitologia e a literatura ocidentais perpetuam figuras femininas que expressam afetos ambivalentes e carregam o traço comum de sucumbir perante o abandono, cada uma a seu modo, como é próprio do feminino: Medeia, Ariadne, Dido, a mulher desiludida, de Simone de Beauvoir. Mulheres que amaram, se entregaram ao ser amado e perderam tudo quando a relação terminou por vontade do parceiro. O “tudo” pode se apresentar como a terra natal, a família, a maternidade, a cidade, a força de viver, os bens materiais, a vida. As margens se dissolvem. O final é trágico. Essas personagens são lidas, encenadas, interpretadas e reinterpretadas há séculos e décadas porque com elas o público se identifica, seja pelo horror, seja pela dor de perder o amor. Elas ensinam sobre o feminino, que se depara com o radical da falta na experiência do abandono.
O que essas personagens têm a nos dizer na contemporaneidade, quando as mulheres, ao menos de um determinado contexto socioeconómico privilegiado, ocupam o mercado de trabalho, os espaços públicos, escolhem o casamento ou o modo de viver o arranjo amoroso, se terão filhos ou não? Na tentativa de encontrar uma resposta, este trabalho segue o caminho indicado por Freud: buscar na ficção uma fonte de conhecimento do feminino.
O livro Dias de abandono, da escritora italiana Elena Ferrante, participa da literatura contemporânea que carrega a herança das personagens mencionadas. A hipótese deste trabalho é que Elena Ferrante, por meio das palavras de Olga, personagem principal de Dias de abandono, aponta um caminho para a mulher que perde o amor do objeto, um final outro que escapa ao trágico. Essa via de sobrevivência à devastação é possibilitada pelo encontro com o desejo. No caso de Olga, a realização do desejo de escrever, o que se aproxima do trabalho de reescrita do romance familiar em uma análise.
Dias de abandono: Elena, a autora; Olga, a personagem, e a escrita da ausência
Elena Ferrante é o pseudónimo de uma escritora italiana. Ela insiste em permanecer anónima, mesmo após o sucesso dos seus livros e das adaptações para filmes e séries, sucesso que a psicanalista Fabiane Secches (2020) denomina “febre Ferrante”. Apesar do anonimato, Elena Ferrante concede entrevistas e palestras, todas escritas, pois ela afirma que Elena Ferrante é constituída por suas palavras (Ferrante, 2017), incorporando a afirmação de Freud (1930/2015) de que a escrita é o lugar do ausente.
Em quase todas as obras ficcionais de Ferrante, a ambivalência na relação mãe e filha tece o conflito central da narrativa. Essa temática é desenvolvida em Dias de abandono, segundo livro da autora, romance publicado na Itália, em 2002 e no Brasil, em 2016 pela editora Biblioteca Azul.
Dias de abandono é narrado em primeira pessoa por Olga, uma mulher de trinta e oito anos, casada com o arquiteto Mário e mãe de duas crianças, Gianni e Ilaria. Ela nasceu num bairro pobre e violento de Nápoles. Mora em Turim. Não trabalha, mas vive confortavelmente com os ganhos do marido. É uma mulher culta, polida, educada, ponderada nas palavras e nos gestos.
A narrativa inicia com o ruir do mundo organizado de Olga. Em uma cena cotidiana, ela e o marido arrumam a cozinha após o almoço quando Mário anuncia que quer se separar. Inicialmente, Olga atribui a decisão do marido a um lapso de sentido da parte dele e relembra um episódio de separação na época do namoro e de traição no casamento, quando Mário se envolveu com Carla, adolescente filha de uma amiga dele. Ambas as situações, relembra Olga, foram resolvidas com longas conversas a portas fechadas, vozes baixas e palavras polidas. Contudo, ao perceber que Mário não retornará para casa, a narradora mergulha num processo de devastação que implica a perda do controle corporal (bate o carro, deixa cair objetos), na perda da noção lógico-temporal e no descontrole das palavras e dos pensamentos, tomados por palavrões, ditos e imagens obscenos. As fantasias que atormentam Olga encenam relações sexuais de Mário com outra. Ela tenta controlar os gestos e as palavras, e evita modificar a vida e os sentidos em razão do fim do casamento. Não quer se parecer com a mulher de um livro que lhe foi sugerido pela professora na escola, no qual a mulher abandonada sucumbe. Olga tenta manter o controle.
Ela é assombrada pelas palavras da mãe, costureira no bairro de Nápoles. Durante a infância, Olga escutava a mãe contar para amigas e clientes a história da “pobre coitada”, mulher que tentou o suicídio após ser abandonada pelo marido infiel e trocada por outra. Olga tentar fugir da imagem da mulher abandonada, mas a incorpora ao longo da narrativa, ao se perceber em uma perda de sentido. Ressente-se em relação ao ex-marido. Enumera tudo o que entregou a ele. Liga para os amigos em comum para relatar o abandono, mas sente que eles protegem Mário e não querem escutar o que ela tem a dizer.
Olga parece (re)viver um sentimento de desamparo que constitui todo ser vivente. O desamparo2 traduz a situação antropológica fundamental do humano que, ao nascer, encontra-se em um estado de total dependência de um outro que lhe forneça ações específicas para garantir a sua sobrevivência. Esse outro que acolhe, alimenta e lhe fornece vida psíquica, pela linguagem e introdução na cultura.
Freud (1930/2016), em O mal-estar na cultura, ressalta que a dinâmica pulsional que configura o desamparo aponta para novas necessidades como o amor, o afeto, o reconhecimento, a palavra, a linguagem, ocasionando dependência psíquica, buscando seus destinos na religião, nas ligações cegas aos mestres, nas ideologias, nas teorias inquestionáveis, nas adicções, e no mais sofrível, que são os relacionamentos interpessoais (Levy; Ceccarelli; Dias, 2017, p. 49).
Não ser mais o objeto do amor do marido esvazia Olga como mulher. Ela vivencia uma experiência sexual com o vizinho desconhecido, o qual despreza, na tentativa de se sentir desejada e valorizada.
Freud (1930/2016, p. 75) afirma que o valor quantitativo do desamparo, sua intensidade, está diretamente ligado à maneira como foi elaborada a total dependência (de uma ajuda externa) no início da vida. Ou seja. a maneira como cada sujeito vivenciará uma (nova) situação de perda, sua capacidade de ressignificá-la, de recuperar-se dela, dependerá de como ele lidou, que recursos teve, para enfrentar a situação de desamparo inerente ao humano: “jamais nos tornamos tão desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou o seu amor”.
Sem saber como lidar com a ausência de margens de si, Olga começa a escrever. Primeiro, escreve cartas para Mário, na esperança de que ele a ajude a compreender os fios da história partilhada. Depois, escreve como expressão de um desejo antigo. Olga queria ser escritora. Mário a convenceu de largar o emprego em uma editora para cultivar a escrita, mas ela não conseguiu escrever e se dedicou às necessidades do marido e dos filhos.
Ao longo da narrativa, Olga descobre que o marido entrou na casa quando não havia ninguém e levou embora uma joia de família. Ela encontra Mário com a nova namorada, Carla, que usa os brincos. Olga os agride verbal e fisicamente. O episódio do sumiço dos brincos aumenta a sensação de insegurança que Olga sente em sua casa: invadida por animais, como o cachorro, um lagarto, muitas formigas e por Mário. A insegurança também é sentida pelos filhos, que lhe lembram constantemente que ela é insuficiente e que o pai faria melhor. Na tentativa de se proteger, Olga instala uma porta mais resistente, mas não consegue girar a chave e fica presa em casa.
A ‘virada de chave’ da narrativa ocorre quando Olga se encontra aprisionada no apartamento com o filho doente, com a filha que a espeta constantemente para que ela não perca o vínculo com o que acontece ao seu redor, com formigas por toda parte e com Otto, o cachorro que está em convalescência por ingerir veneno. O cachorro é mais um habitante da casa que lembra Olga de sua insuficiência e da ausência de Mário, pois era o cachorro do ex-marido. Com a morte de Otto, ela abre mão do controle e se depara com o absurdo do abismo no qual se encontra. Aos poucos, Olga constrói uma nova rotina. Inicia um emprego, desmonta a idealização da figura de Mário, percebe no vizinho um homem interessante, com quem se relaciona amorosamente. Olga consegue retomar as margens e criar nexos para a sua narrativa:
[...] cada movimento era narrável em todas as suas razões, boas ou más, que em suma chegara o momento de voltar à força dos nexos que enlaçam juntos os espaços e os temposOlga (Ferrante, 2016, p. 182).
Perda do amor e a experiência de devastação
Quando o casamento de Olga chega ao fim por decisão do marido, ela não quer agir como as mulheres abandonadas das histórias que escutou em sua infância. Essas histórias eram contadas por sua mãe. Ela sentia as palavras da mãe. Ao tentar fugir dessas palavras, Olga é tomada por um vocabulário que escapa à polidez que ela costurou para si na vida adulta. A costura rompe, e ela emite palavras obscenas. Essas palavras remetem ao mundo infantil, no qual a violência do bairro napolitano era parte do cotidiano e no qual uma mulher abandonada pelo marido tentou o suicídio. O tom da narrativa evoca o desespero e a perda de si nos quais a personagem mergulha. Em seu mergulho, ela vislumbra a mulher que se matou depois de entregar tudo ao marido.
Em Frantumaglia,Ferrante (2017) descreve Olga como uma mulher culta, preparada, cheia de defesas, que é tomada por uma desestruturação, um vazio de sentido. A autora explica que Medeia, Ariadne, Dido, Anna Karenina e a mulher abandonada pelo marido na obra A mulher desiludida, de Simone de Beauvoir são referências e imagens dessa “pobre coitada”, cuja herança chega a Olga misturadas à fala da mãe. Contudo, Elena Ferrante almejou um final diferente para a sua personagem.
Os textos de Freud sobre a feminilidade e a relação pré-edípica da menina com a sua mãe podem ajudar a compreender a experiência de “vazio de sentido” ou de desestruturação na qual Olga se encontra ao ser deixada pelo marido e trocada por uma mulher mais nova. Freud considerou importante o estudo da fase pré-edípica da menina no que diz respeito à relação com a mãe para a compreensão da feminilidade. A mãe é o primeiro objeto amoroso da menina. O investimento libidinal da garota em relação à mãe altera de acordo com a fase, apresentando desejos orais, sádico-anais (ambivalência e hostilidade manifesta em momentos de profunda angústia) e fálicos (vontade de fazer um filho na mãe ou dar um filho à mãe). Após um acúmulo de hostilidades, o ódio marca o fim dessa relação. A filha tem diversas acusações contra a mãe.
Segundo Freud ([1916], 2010), a filha acusa a mãe de não amamentar o suficiente, de estimular a descoberta sexual e depois a proibir, de dedicar amor a outros irmãos ou ao pai, o que gera ciúmes. A relação pré-e-dípica com a mãe apresenta reflexos nas demais relações que uma mulher desenvolve ao longo da vida, em especial com o pai e com o primeiro marido (Freud, 1917/2013).
Para Lacan (1972/2003), a relação mãe e filha é marcada pela devastação, pois a menina espera receber de sua mãe o que esta não tem: a transmissão da feminilidade. Contudo, como não há um significante que se refira à mulher de modo universal, cada uma deve inventar o seu caminho para a construção da feminilidade e se deparar com o vazio no campo do feminino: um gozo suplementar que não cessa de não se escrever (Lacan, 1972-1973/2008). A devastação que se apresenta na relação da mãe com a sua filha pode comparecer nas relações amorosas de uma mulher, que sente tudo entregar e que se ressente ao ser abandonada, pois perde a imagem da feminilidade forjada no olhar do outro.
Em Dias de abandono, Olga busca no desejo masculino um modo de mascarar a sua falta e se ressente diante da perda do amor, quando se depara com o abismo do que não tem representação. Ela experiencia a devastação como perda de sentido, de desmarginação, de descontrole das palavras e do corpo, de encarceramento. Contudo, Olga se encontra com o seu desejo ao perder o amor do objeto. O desejo de Olga é o desejo de escrita.
A escrita do feminino: outras possibilidades em análise
No ensaio O riso da Medusa,Hélène Cixous (2022) dialoga com Freud e com Lacan no que se refere ao feminino. Ela convoca as mulheres à escrita do feminino como modo de afirmar a diferença sexual e criar uma nova sintaxe, na qual as sensações, a felicidade, os segredos e os sofrimentos ganhem corpo nas palavras: negra e bela. É possível costurar o convite à escrita feminina de Cixous com a proposição de Freud de que é na literatura que se encontra a fonte de aprendizado sobre o feminino. Nessa costura, a relação do feminino com a literatura, para além de um lugar de aprendizado para os psicanalistas, possibilita a experiência de escrita, na qual as mulheres façam contorno ao vazio devastador no fim de uma relação amorosa.
Olga reescreve a sua história. Ela é a narradora de Dias de abandono, roteirista das imagens e diretora do olhar que o leitor lança sobre Mário, sobre Carla, sobre os filhos e sobre o fim da relação. Ela inventa um léxico e uma sintaxe para dar margem ao vazio. O livro encerra com o retorno de Olga à vida cotidiana, ao amor e à possibilidade de narrar e construir nexos para os movimentos da vida.
Ferrante (2022) define a escrita como um processo de permanecer às margens, permitindo a abertura para que o obscuro se torne visível. Olga encontra as margens, o fio da narrativa, mas sabe que o vazio de sentido pode irromper a qualquer momento (Ferrante, 2017). A mulher contemporânea pode buscar o léxico para a perda do amor, de modo a transformar o negativo da falta em experiência de desejo.
O mesmo processo ocorre na travessia de uma análise, na qual a falta se coloca como espaço para a palavra e para o silêncio. O desejo do analisante se encontra com o desejo do analista na aposta de que o romance familiar se transforme em poesia na reinvenção do feminino.