Introdução
A nossa revista Estudos de Psicanálise, com edições semestrais na atualidade, traz artigos das múltiplas federadas pertencentes ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), portanto é um verdadeiro mosaico que representa todas as instituições que são a ele filiadas.
Decidi me debruçar sobre a palavras-chave “corpo” dentro da revista Estudos de Psicanálise, editada pela primeira vez em 1969 pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise.
A minha curiosidade era saber como o corpo era entendido e tratado pelos psicanalistas dessa instituição, considerando os preceitos de Sigmund Freud.
Esta minha proposta abrange 54 anos de edições da nossa revista. O primeiro deles foi escrito em 1989 e, neste período até os dias atuais, foram publicados apenas 15 artigos sobre o tema. A Tabela 1 traz a relação dos títulos, dos autores, e o ano de publicação.
Tabela 1 Artigos e respectivos autores de todas as edições da revista Estudos de Psicanálise (54 anos) que trazem “corpo” como palavra-chave
Título | Autor(es) | Referência |
---|---|---|
O inconsciente e a dimensão corporal na relação analítica (ou o corpo em análise) | Francisco Ramos de Farias | Estudos de Psicanálise, n. 12, p. 4-12, 1989 |
Somatização e simbolização: seus destinos na psicopatologia freudiana | Zeferino Rocha | Estudos de Psicanálise, n. 15, p. 29-56, 1992 |
Transferência na situação dialítica | Marli Piva Monteiro | Estudos de Psicanálise, n. 12, p. 48-53, 1995 |
Desejo insensato | Ana Maria Fabrino Favato | Estudos de Psicanálise, n. 21, p. 51-56, 1998 |
Psiquiatria e psicanálise: interlocução possível? | Marília Brandão Lemos Morais | Estudos de Psicanálise, n. 23, p. 98-106, set. 2000 |
Estados conturbadas do corpo: dor, gozo e glória | Léa Meilman; Flávio José de Lima Neves; Wagner Siqueira Bernardes | Estudos de Psicanálise, n. 30, p. 77-82, ago.2007 |
Fenômeno psicossomático: entre a psicanálise e a medicina | Maria Carolina Bellico Fonseca | Estudos de Psicanálise, n. 30, p. 95-102, ago. 2007 |
O desejo de servidão voluntária e a violência: o corpo do poder, o corpo social e o corpo do gozo | Christian Hoffmann | Estudos de Psicanálise, n. 38, p. 45-52, dez. 2012 |
Ponderações sobre a feminilidade na condição travesti | Júlio Cesar D Hoenisch; Pedro Jose Pacheco; | Estudos de Psicanálise, n. 38, p. 79-88, dez. 2012 |
Mal-estar na tríade profissional de saúde-paisbebê e seus reflexos nos vínculos iniciais | Marisa Amorim Sampaio; Maria do Carmo Camarotti | Estudos de Psicanálise, n. 46, p. 105-114, dez. 2016 |
Corpo e dor nas condutas escarificatórias na adolescência | Marta Rezende Cardoso; Aline Gonçalves Demantova; Gabriela Domingues Caetano Soares Maia | Estudos de Psicanálise, n. 46, p. 115-124, dez. 2016 |
As peles de Almodôvar ou Existe alguém aí dentro? | Isabela Cribari | Estudos de Psicanálise, n. 47, 149-156, jul. 2017 |
A construção do sentido de corpo na psicanálise freudiana e possíveis contribuições para a educação | Jeferson José Moebus Retondar | Estudos de Psicanálise, n. 49, p. 105-114, jul. 2018 |
Harmonização orofacial e covid-19: a experiência estética e o desamparo psíquico na interlocução entre odontologia e psicanálise | Rodrigo Zanon de Melo; Luciana Freitas Bastos; Larissa Aparecida Vaz Oliveira, Cristina Fontes Puppin; Marcelo Daniel Brito Faria | Estudos de Psicanálise, n. 56, p. 113-126, dez.2021 |
Corpos que falam: escutando desamparos indizíveis | Márcia Alves da Rocha | Estudos de Psicanálise, n. 56, p. 127-134, dez. 2021 |
Critérios para seleção dos artigos
Para começar a revisão, definimos a pergunta que orientaria este artigo: Houve mudanças na forma de pensar ou sentir o corpo nestes últimos dez anos?
Para efeito de corte, detive-me em apenas dois filtros: a palavra-chave “corpo” e o espaço temporal referente aos últimos 10 anos. Destarte, para efeito deste artigo, examinei apenas os últimos oito textos.
Mas sem dúvida, se eu me tivesse atentado apenas sobre os títulos dos trabalhos, a despeito da palavra-chave escolhida, teria descoberto que a palavra “corpo” aparecia mais vezes, a exemplo da última revista Estudos de Psicanálise em circulação, número 58, de dezembro de 2022, onde na p. 73, consta o artigo de Márcia Costa Barbosa intitulado Escutando o corpo, e paradoxalmente, “corpo”, não consta nas palavras-chave.
Nesse trabalho mencionado, a autora (Barbosa, 2022) relata que, na clínica, analisandos apresentam um discurso vazio, evocando sensações e dando origem a uma experiência que vai além do uso e da apreensão da própria palavra, demonstrando como o sujeito-corpo pode dar voz ao sofrimento psíquico não passível de elaboração. Outrossim, o trabalho de Barbosa (2022) não preencheu os critérios de inclusão, aqui estabelecidos, ainda que seu texto fale sobre o corpo. Vale lembrar que as palavras de destaque do título devem constar necessariamente entre as palavras-chave. Isso deve ter acontecido inúmeras vezes e passou despercebido até então.
Aliás, nesta pesquisa descobri outra questão considerada relevante no mundo acadêmico: não podemos inventar palavras-chave sob pena de sermos ignorados e não sermos lidos. Palavras-chave devem, no mundo das publicações, ser reconhecidas em qualquer parte do planeta.
O tesauro multilíngue DeCS/MeSH – Descritores em Ciências da Saúde/Medical Subject Headings foi criado pela BIREME para servir como uma linguagem única na indexação de artigos de revistas científicas, livros, anais de congressos, relatórios técnicos, e outros tipos de materiais, para serem usados na pesquisa e na recuperação de assuntos da literatura científica nas fontes de informação disponíveis no mundo, inclusive na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) como LILACS, MEDLINE e BVS-PSI, esta última, a plataforma onde nossa revista está indexada.
Se fizermos um trabalho mais acurado, diremos que somos, na revista Estudos de Psicanálise, os autores mais criativos do mundo, ou os mais rebeldes com relação às normas acadêmicas, com muitos neologismos, inclusive, como palavras-chave.
Mas voltemos para a pergunta principal, objetivo do nosso trabalho: algo mudou desde o entendimento de Freud até os dias atuais sobre a compreensão do corpo e, em especial, nos últimos 10 anos de publicação da Estudos de Psicanálise?
Referências de maior destaque nos oito artigos analisados
Os artigos juntos produziram 162 referências de autores consagrados da psicanálise incluindo os pioneiros. Esses artigos contemplaram Sigmund Freud 26 vezes, com destaque para os textos O ego e o id, (1923), citado em quatro dos oito artigos, seguido por Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905); Inibição, sintoma e angústia (1826-1929) e O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931), que foram citados por três artigos distintos. Freud ainda teve os trabalhos Além do princípio de prazer (1917-1920), Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros trabalhos; Pulsions et destins des pulsions; Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), usados em dois artigos diferentes.
Jacques Lacan foi citado dez vezes diferentes e três artigos repetiram a mesma obra, qual seja, O Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973).
Joel Birman foi o autor mais citado depois de Lacan. Foram sete referências, e em três artigos distintos a obra Mal-estar na atualidade (2014) teve destaque.
Winnicott foi citado sete vezes com obras distintas.
Ainda merece destaque Joyce Mcdougall, citada quatro vezes, considerando que a obra Teatros do corpo (2013) foi citada em dois artigos.
Entre outros autores que foram citados duas vezes, em dois artigos,, estão: Anzieu com O eu-pele (2000); Fernandes com o título Corpo (2005); Fontes com Psicanálise do sensível: fundamentos e clínica (2010), Roudinesco e Plon, com Dicionário de Psicanálise (1998); e Laplanche e Pontalis, com o Vocabulaire de la psychanalyse (1973).
Resultados e discussões
O texto de Cristian Hoffmann (2012) adentra nas complexas relações entre o desejo de servidão voluntária, a violência e o corpo humano. Hoffmann argumenta que, em diversas circunstâncias, os indivíduos voluntariamente se submetem a estruturas de poder opressivas. A psicanálise é empregada como uma lente para compreender a psicologia subjacente a esses atos de submissão voluntária. O autor explora como o corpo, tanto em sua dimensão individual quanto como um componente do corpo social, é profundamente influenciado por essas dinâmicas de poder. Em particular, Hoffmann analisa as interações intricadas entre o corpo do sujeito, o corpo social e o corpo do gozo. Este trabalho estabelece uma base teórica sólida para uma investigação mais aprofundada das complexidades inerentes às relações de poder e submissão sob uma perspectiva psicanalítica.
Já Hoenisch e Pacheco (2012) abordam a questão complexa da feminilidade no contexto da experiência travesti. Eles exploram as nuances das identidades de gênero e como a condição travesti desafia as concepções convencionais de feminilidade. Os autores enfatizam a contribuição da psicanálise para a compreensão das experiências das pessoas travestis, especialmente no que diz respeito à relação com seu corpo e à busca por expressão de gênero. Por meio de análise de casos clínicos e teorias psicanalíticas, o texto fornece insights valiosos sobre como a travestilidade é vivenciada, examinando a interseção entre psicologia e identidade de gênero. Seu trabalho enriquece nosso entendimento da diversidade das experiências de gênero e das complexas relações entre corpo, identidade e psicanálise.
Sampaio e Camarotti (2016) exploram o fenômeno do mal-estar na tríade formada por profissionais de saúde, pais e bebês, e como isso afeta os vínculos iniciais entre os membros dessa tríade. Os autores aplicam a perspectiva psicanalítica para examinar os desafios enfrentados por pais e bebês durante os cuidados de saúde iniciais, particularmente em situações de desconforto. Eles destacam como o mal-estar pode surgir nesse contexto e discutem suas implicações para o desenvolvimento dos vínculos iniciais. Este texto fornece uma visão valiosa sobre as dinâmicas psicológicas envolvidas na tríade de profissionais de saúde, pais e bebês, com relevância para a prática clínica e a compreensão do desenvolvimento infantil.
Cardoso, Demantova e Maia (2016) avançam para outra fase da vida do sujeito e abordam a questão da relação entre o corpo e a dor em condutas escarificatórias na adolescência. As autoras nos levam a uma tentativa de compreensão sobre as complexas interações entre corpo e dor na adolescência. O adolescente sofre transformações no próprio corpo, na sua sexualidade e no que tange o seu meio social.
O novo corpo é percebido inicialmente como estranho, exigindo do sujeito um processo de reconstrução subjetiva, a partir das transformações próprias da puberdade. As imensas transformações na puberdade colocam em risco os limites do corpo, podendo fazer com que o sujeito perca o sentimento de continuidade de si, resultante de um desequilíbrio no plano do conflito psíquico (Cardoso; Demantova; Maia, 2016).
Quais seriam as repercussões internas de um corpo transformado, nessa fase tão especial da vida de um sujeito? O que isso significa pensando na relação entre corpo e psiquismo e naquela existente entre o Eu e o outro?
Há uma alta incidência de quadros clínicos cuja principal via de expressão é o corpo. Pode-se, com facilidade, enumerar modalidades que demostram passagens ao ato, com implicação corporal, a exemplo dos casos de anorexia e bulimia, os quadros crônicos álgicos, automutilações, entre outros. Além disso, percebe-se que esses quadros têm em comum a carência de uma elaboração psíquica no que diz respeito à singularidade de seu modo de funcionamento psíquico (Cardoso; Demantova; Maia, 2016).
As autoras nos apontam as motivações e os significados subjacentes a essas condutas autolesivas, que envolvem a autoinfligência de dor no próprio corpo e exploram como o corpo funciona à semelhança de um veículo para expressar o sofrimento psíquico e como a dor física pode ser uma forma de lidar com conflitos internos.
Ao atingir a fase da genitalização, o adolescente será exigido para que realize o distanciamento dos seus objetos edipianos e das imagens parentais que antes interiorizou, a real possibilidade da concretização das suas fantasias incestuosas. Esse distanciamento dos objetos parentais requer investimento em outros objetos fora do meio familiar gerando um estado de desamparo e o seu Eu deverá realizar um imenso trabalho de elaboração psíquica dessa violência interna (Cardoso; Demantova; Maia, 2016).
A adolescência acaba se transformando em uma experiência subjetiva, que pode ser considerada traumática e, às vezes, com caráter desestruturante.
E uma das possibilidades de defesa é o mecanismo da passagem ao ato, tão frequente nessa fase (Cardoso; Demantova; Maia, 2016). As passagens ao ato são verdadeiras descargas de uma quantidade excessiva de energia pulsional em uma ação extrema que leva a uma ruptura e uma alienação radicais com o desmoronamento de qualquer mediação simbólica (Cardoso; Demantova; Maia, 2016).
A automutilação favorece a projeção ao espaço corporal de uma luta travada no mundo interno onde o Eu se encontra transbordado pela força pulsional (Cardoso; Demantova; Maia, 2016). A dor diante da escarificação da pele constitui um recurso defensivo como uma tentativa do ego de se apropriar do próprio corpo (Cardoso; Demantova; Maia, 2016).
Ou seja, a passagem ao ato é uma resposta defensiva precária a uma invasão de um pulsional desligado que adentra o Eu. O apelo ao ato violento seria uma tentativa para a contenção dessa invasão e, na ausência de recursos para uma elaboração, há um risco à integridade narcísica e ao sentimento de continuidade de si, frente a uma passividade egoica e de desamparo (Cardoso; Demantova; Maia, 2016).
O adolescente tenta recuperar o controle de sua existência, fazendo uso do seu masoquismo erógeno, se machucando e, assim, materializa no corpo esse sofrimento de existir (Cardoso; Demantova; Maia, 2016).
Infligir-se dor coloca o sofrimento psíquico na superfície do corpo, local onde ela é visível e controlada, como se possibilitasse a restauração das fronteiras entre corpo e psiquismo e o controle do objeto, uma espécie de erotização do corpo por meio da dor.
A repetição do ato de automutilação, em seu aspecto compulsivo, mostra experiências subjetivas que não foram simbolizadas. A passagem ao ato específico “busca dominar a irrupção das marcas do traumático, circuns-crevendo-as pela via da dor física” (Cardoso; Demantova; Maia, 2016, p. 117).
A precariedade da elaboração psíquica se revela através da ausência de associações, do vazio de linguagem, da falta de produção fantasística, e os registros sensoriais são invocados. O corpo, por conseguinte, é um corpo apresentado em lugar de representado, situado aquém do processo de simbolização (Cardoso; Demantova; Maia, 2016). O artigo também examina as implicações clínicas e terapêuticas dessas condutas autolesivas e destaca a importância de abordagens sensíveis para lidar com adolescentes que as praticam.
Já Isabela Cribari, no ano seguinte (2017), explora a relação entre cinema, psicanálise e o conceito de identidade. Ela analisa filmes do diretor espanhol Pedro Almodôvar, examinando como as representações cinematográficas do corpo e da identidade refletem questões psicanalíticas.
Cribari investiga como o cinema pode servir como um espaço para a exploração da subjetividade e da corporeidade, especialmente em relação à identidade de gênero e à sexualidade. Ela oferece uma análise detalhada das obras de Almodóvar, destacando como esses filmes desafiam as normas sociais e psicológicas, além de abrir espaço para a reflexão sobre o “Eu” e o corpo na psicanálise e na cultura contemporânea.
Em 2018, Retondar investiga a construção do sentido de corpo na teoria psicanalítica de Sigmund Freud e as suas implicações para a educação. Retondar explora como Freud abordou o corpo humano em sua obra, destacando a importância da sexualidade na formação do sentido de corpo.
O corpo, com Freud, aparece a partir dos Estudos sobre a histeria (1893), quando ele contrapõe o corpo biológico das histéricas ao corpo como lugar de inscrição de significados, marcado com desejos inconscientes e sexuais (Retondar, 2018).
Ao estudar as histéricas e seus sofrimentos, Freud percebeu que a fisiologia era insuficiente para justificar tais sintomas que não eram orgânicos. Para Freud, a histeria, sempre inconsciente, estava ligada a algum evento vivido ou imaginado e produzia uma imensa excitação em sua estrutura psíquica, diante de algum desejo não satisfeito. O corpo é o lugar dos desejos reprimidos (Retondar, 2018).
O corpo histérico ignora a anatomia ou fisiologia, pois o que importa é um corpo fantasmático, uma vez que o corpo expressa as representações recalcadas, diz Freud em As neuropsicoses de defesa (1894). Os desejos querem se manifestar e por estarem bloqueados, o caminho psíquico viável é o corpo (Retondar, 2018).
Para Freud, todas as representações têm uma base erógena e a atividade sexual perpassa a vida humana, inaugurada no nascimento, quando existe uma primeira tensão entre prazer e desprazer no ato da amamentação vivido pela criança. Desse encontro fica o primeiro registro inconsciente de prazer que o sujeito perseguirá por toda a vida (Retondar, 2018).
O corpo e sua imagem inconsciente formam um conjunto das primeiras impressões gravadas no psiquismo infantil pelas sensações infantis até cerca de 5 a 6 anos de idade. Tais impressões tornam-se o cerne estrutural do sujeito que leva a uma subjetivação e singularidade em relação ao diálogo com a cultura e o social.
Quando um sujeito, um aluno, por exemplo, lança mão de estratégias-limite como anorexia, bulimia, vigorexia, violência e hostilidade gratuita com o outro, é necessário o professor acolher e provocar que o sujeito fale de si e de sua vida. E isso funcionará melhor do que orientações moralistas que aquele jovem está cansado de ouvir, afinal trata-se de um sujeito de desejo e que por seu sintoma, se reconhece como tal.
O professor tem que ouvir mais e falar menos. Quando um aluno fala de si para o professor é porque há um nível de confiança e, falando, ele pode aprender sobre si mesmo e sobre o seu corpo. Falando sobre sua vida, o aluno aprende consigo mesmo, desde que não haja receios de julgamentos (Retondar, 2018).
O professor deve compreender que, mesmo quando não há um sentido imediato a ser visto no comportamento do aluno, não significa ausência de sentido. Certamente o aluno sentir-se-á acolhido e mobilizado pela escuta do professor gerando dúvidas, provocando reflexões, exigindo que pense e repense suas ações, enquanto se sente valorizado e com garantias de espaço para comunicação e expressão, e jamais qualquer palavra sobre a imagem corporal do aluno (Retondar, 2018).
Anorexia e bulimia não são distúrbios alimentares de um corpo que tem de voltar a funcionar como antes desse desajuste orgânico. Na verdade, são sofrimentos psíquicos de negação obstinada e dolorosa e que, ao negar alimento, talvez deseje negar alguma outra coisa e firmando para si uma nova imagem desse corpo (Retondar, 2018).
O que se supõe é que a cadaverização do corpo, o suplicio da dor por carência alimentar traga um elogio como compensação psíquica que justifiquem o sofrimento mesmo que esteja na contramão do padrão saúde e do que se diz ser normal. Assim, não podemos tratar, considerando a psicanálise, como pessoas doentes, mas as que apresentam sintomas por se tratar de manifestações de uma tensão intrapsíquica de desejos que só conseguem se manifestar sob a forma de sofrimento e dor (Retondar, 2018).
Retondar (2018) revela como as ideias freudianas podem ser aplicadas à educação, fornecendo insights sobre o desenvolvimento emocional e psicológico das crianças. O autor argumenta ainda que compreender a relação entre psicanálise e corpo pode ser valioso para educadores ao lidar com questões de desenvolvimento infantil, identidade e sexualidade. O seu artigo oferece uma ponte entre a teoria psicanalítica e a prática educacional.
Enquanto isso, Melo et al. (2021) destacam a importância da interdisciplinaridade entre odontologia e psicanálise na abordagem de questões relacionadas à imagem corporal e saúde mental em tempos desafiadores.
Os autores exploram a interseção entre odontologia e psicanálise em um contexto específico: a harmonização orofacial durante a pandemia de covid-19. Eles investigam como a busca pela estética facial pode estar relacionada a questões psíquicas, especialmente em tempos de crise como a pandemia. Os autores analisam as dinâmicas de desejo e desamparo psíquico envolvidas na busca por intervenções estéticas no rosto e como a psicanálise pode contribuir para uma compreensão mais profunda dessas motivações.
É claro que, muito além da demanda de harmonização facial, as mudanças desejadas de cunho corporal são fachada para anseios de transformações, quer pessoais, amorosas e familiares, quer profissionais. Muitas vezes esses procedimentos representariam o reencontro com o seu amor-próprio, com sua imagem rejuvenescida e com a sua vaidade (Melo et al., 2021).
O corpo é um reflexo dos modelos ideais que são vendidos nas plataformas digitais como Instagram, Facebook, Tik-Tok, onde celebridades e influenciadores colaboram na formação de uma sociedade narcísica que também revela a indiferença e a precariedade das relações (Melo et al., 2021).
Como elaborar as questões do corpo, saber de si, via imagem e nela se reconhecer, e ao mesmo tempo se reconhecer e se diferenciar do outro que é seu semelhante? Como eu me relaciono com a diversidade de outros que também sou eu? (Melo et al., 2021).
A pandemia, a quarentena, o distanciamento familiar e o exponencial crescimento de experiências virtuais com o home office, fizeram com que as pessoas passassem a se preocupar mais com a própria imagem, uma vez que estavam mais tempo nas redes sociais, assim houve uma crescente demanda por procedimentos estéticos, haja vista o rosto ser a imagem de referência de cada sujeito (Melo et al., 2021).
Entretanto, os procedimentos estéticos de harmonização facial ou qualquer outro convocam o registro corporal, de sorte que o sujeito em situação de sofrimento psíquico aproprie-se sintomaticamente do procedimento como solução para os sintomas próprios da sua subjetividade e, assim, simbolizar o seu sofrimento (Melo et al., 2021).
Já o último artigo, o de Rocha (2021), explora a comunicação não verbal e a linguagem corporal na psicanálise. Ela investiga como os corpos dos pacientes “falam” e como os analistas podem aprender a escutar essas mensagens não verbais. Rocha argumenta que, muitas vezes, as emoções e os desamparos indizíveis podem ser expressos através do corpo e da postura. Ela discute a importância de desenvolver sensibilidade para a linguagem corporal na prática clínica e como isso pode enriquecer a compreensão dos processos psicológicos dos pacientes. Esse texto destaca a relevância da comunicação não verbal na psicanálise e sua capacidade de revelar aspectos profundos da experiência humana.
Semelhanças e temas recorrentes entre estes autores
Todos exploram as questões do corpo vinculadas à identidade, ao desejo e à subjetividade sob a perspectiva da psicanálise, destacando a importância dessa teoria na compreensão das experiências humanas.
Vários artigos discutem a relação entre o corpo e a identidade. Isso pode ser visto na análise da travestilidade, da busca pela estética facial, da expressão de gênero, da sexualidade e da linguagem corporal. Todos esses aspectos estão ligados à forma como os indivíduos constroem e percebem sua identidade em relação ao corpo.
Alguns artigos exploram a intersecção entre a psicanálise e outras disciplinas, como odontologia, educação e cinema. Eles destacam como a psicanálise pode fornecer insights úteis para abordar questões específicas em diferentes campos e compreender o corpo do ponto de visto psicanalítico.
Muitos ressaltam a importância da comunicação não verbal, incluindo a linguagem corporal, expressão facial e gestos, como meios de expressar emoções, desejos e conflitos que podem não ser verbalizados diretamente.
Alguns autores fazem referência a eventos ou contextos contemporâneos, a exemplo da pandemia de covid-19, e exploram como esses eventos impactam a experiência psicológica e a relação com o corpo.
Birman (2012) nos diz que nos sentimos sempre faltosos e que sempre queremos fazer algo para melhorar a performance corpórea que sempre estará aquém do desejado, principalmente em um período em que existem múltiplas possibilidades e ofertas no que tange ao cuidado com o corpo.
Considerando a beleza uma questão subjetiva, que pode ser moldada pelos valores sociais e culturais, mobilizando questões que afetam a aceitação e a autoestima dos indivíduos, o desamparo torna-se uma marca da subjetivação contemporânea e das novas formas de sofrimento psíquico levando a uma precarização da relação entre corpo e imagem.
Considere-se que a transformação do desamparo em onipotência narcísica gera um aprisionamento a um ideal especular de beleza e dentro de um padrão que, quando não reconhecido, torna-se potencialmente ameaçador, porquanto a uma sensação de completude, características das vivências primárias do narcisismo. Isso transformaria a busca por um corpo ou rosto harmónico na tentativa de evitar a frustração, a falta e a insatisfação do desejo (Melo et al., 2021).
E por fim, alguns autores incluíram análises de casos clínicos para ilustrar conceitos e aplicar a teoria psicanalítica.
Diferenças entre os artigos
Cada texto aborda tópicos específicos e únicos. Por exemplo, Sampaio e Camarotti (2016) lidam com o mal-estar na tríade de profissionais de saúde-pais-bebê, enquanto Melo et al. (2021) abordam a harmonização orofacial em relação à pandemia de covid-19. Cada um desses tópicos apresenta uma perspectiva única sobre a relação entre corpo e psicanálise.
Os artigos abrangem um período significativo desde 2012 até 2021. Isso significa que refletem mudanças nas preocupações e nas perspectivas ao longo dos anos. Por exemplo, Melo et al. (2021) exploram as implicações da pandemia na autoimagem do sujeito, uma questão que não estava presente nos anos anteriores.
Os procedimentos estéticos, em meio à pandemia, tinham como finalidade aumentar a autoestima, corrigindo as assimetrias, realçar e melhorar expressões faciais em desequilíbrio, reduzindo também os efeitos do envelhecimento. É inquestionável que a lógica mercantil e consumista faz um esforço para tornar o corpo desse sujeito em espelho dos modelos vendidos como idealizados e, por conseguinte, perfeitos, enquanto a psique fica à deriva e, por isso mesmo, os psicofármacos ganham espaço anestesiando emoções, negando o sofrimento na busca da tal felicidade (Melo et al., 2021).
Já outros autores trouxeram uma abordagem mais teórica e exploratória, Cardoso, Demantova e Maia (2016) nos enriqueceram com uma ênfase maior nos aspectos clínicos, trazendo as condutas autolesivas na adolescência.
Implicações práticas para futuras pesquisas e artigos
As implicações práticas e as sugestões para futuras pesquisas variam de acordo com os temas específicos abordados em cada texto, mas há oportunidades para avançar na compreensão das complexas interações entre corpo e psicanálise e aplicar esses insights em contextos clínicos, educacionais e interdisciplinares.
Senão vejamos:
Intervenções terapêuticas. Os artigos que abordam questões clínicas, como autolesões (Cardoso; Demantova; Maia, 2016) e mal-estar na tríade de saúde-pais-bebê (Sampaio; Camarotti, 2016), têm implicações práticas para a psicoterapia e as intervenções terapêuticas. Pesquisas futuras podem se concentrar no desenvolvimento de abordagens que enfatizem as questões transferenciais eficazes para lidar com esses desafios.
Educação e psicanálise. Destaca a aplicação da psicanálise na educação. Pesquisas futuras podem explorar como as teorias psicanalíticas podem ser integradas ao currículo educacional para promover o desenvolvimento emocional saudável em criança (Retondar, 2018).
Interdisciplinaridade. Artigos que abordam a interdisciplinaridade, como o de Melo et al. (2021) sugerem a importância de colaborações entre diferentes campos, como odontologia e psicanálise. Futuras pesquisas podem explorar mais a fundo como essas colaborações podem beneficiar a prática clínica.
Identidade de gênero e sexualidade. Os artigos que exploram as questões de identidade de gênero e sexualidade, como os de Cribari (2017) e de Hoenisch e Pacheco (2012) indicam a necessidade de pesquisas adicionais sobre como as normas de gênero são desafiadas e representadas na cultura contemporâneas.
Comunicação não verbal.Rocha (2021) enfatiza a importância da comunicação não verbal na psicanálise. Pesquisas futuras podem aprofundar nossa compreensão do modo como a linguagem corporal e a expressão não verbal podem ser melhor percebidas e trabalhadas pelo psicanalista no setting.
Conclusão
Embora haja uma base comum na perspectiva psicanalítica e na exploração das complexas relações entre corpo, identidade, desejo e subjetividade, as diferenças entre os artigos surgem dos tópicos específicos, do contexto temporal, da interdisciplinaridade e da inconteste relevância contemporânea percebida nas ênfases individuais dos autores e dos meios de expressão utilizados. Cada texto oferece uma contribuição única para o entendimento das questões que envolvem o corpo.
O corpo é objeto de troca em uma sociedade capitalista, marcada pelo consumo que exige a perfeição idealizada pela cultura e nesse tipo de sofrimento há uma tentativa de existir psiquicamente através da convocação do registro do corpo, da passagem ao ato e das doenças psicossomáticas
Retomando a pergunta objetivo deste artigo, conclui-se que com as novas formas de subjetivação na contemporaneidade, os sofrimentos não mais seguem a lógica do conflito psíquico, do recalque e da representação, pois se caracterizam pela impossibilidade de representação e nomeação.
Os textos aqui analisados, em última instância, demonstram que a psicanálise pode ter aplicações práticas, podendo inclusive estar nas escolas e nas ruas, em diversos contextos, além do clínico. A velha e centenária dona psicanálise continua viva e cada vez mais atual na análise das respostas humanas a eventos da contemporaneidade e aos desafios sociais.