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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.59 Belo Horizonte Jan./July 2023  Epub Feb 14, 2025

https://doi.org/10.5935/2175-3482.n59a08 

Artigos

Os 125 anos da psicanálise e a ética do psicanalista1

125 years of psychoanalysis and the ethics of the psychoanalyst

Eliana Rodrigues Pereira Mendes1 

1Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialização em Psicologia Clínica na PUC/MG. Psicanalista formada pelo Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG), filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) e à International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS). Coordenadora do Seminário Psicanálise e Cultura na formação de psicanalistas no CPMG, presidente do CPMG 1997-1999 e 2011-2014, e vice-presidente de 2017-2021. membro do corpo editorial da Revista Reverso, publicação semestral do CPMG. Delegada do Brasil junto à International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS) desde 1998. Editora Regional para a América do Sul da revista International Forum of Psychoanalysis (IFP) de 1997 a 2020. Artigos publicados em livros e revistas nacionais e estrangeiros. Publicou três números da revista IFP como editora convidada: Psychoanalysis and Social Realities; The Multiple Faces of Perversion; e Psychoanalysis and Work in Contemporary Times. E-mail: elianarpmendes@hotmail.com


Resumo

A autora apresenta um panorama da evolução cultural humana, partindo dos primórdios da humanidade até o aparecimento da psicanálise, no final do século XIX e começo do século XX. Introduz a figura de Sigmund Freud, o criador da psicanálise, e a trajetória desse novo saber, que traz à luz a instância do inconsciente. Fala também das principais obras freudianas, chegando até Jacques Lacan, no século XX, que faz uma releitura de Freud. Discute ainda o conceito de ética, salientando que a psicanálise tem uma ética própria, que é a ética do sujeito do inconsciente, a ética do bem dizer. Por fim, destaca o papel do analista na sociedade e as diversas aberturas que a psicanálise trouxe para o ser humano.

Palavras-chave Evolução cultural; Psicanálise e sua trajetória; Sujeito do inconsciente; Ética da psicanálise

Abstract

The author presents an overview of human cultural evolution, starting from the beginnings of humanity, until the appearance of psychoanalysis, in the late 19th and early 20th centuries. It introduces the figure of Sigmund Freud, the creator of Psychoanalysis, and the trajectory of this new knowledge, which brings to light the instance of the unconscious. She also talks about the main Freudian works, reaching Jacques Lacan, in the 20th century, who rereads Freud. It also discusses the concept of Ethics, emphasizing that Psychoanalysis has its own ethics, which is the ethics of the subject of the unconscious, the ethics of saying this subject’s truth. Finally, she highlights the role of the analyst in society and the various openings that Psychoanalysis has brought to human beings.

Keywords Cultural evolution; Psychoanalysis and its trajectory; Subject of the unconscious; Ethics of psychoanalysis

A psicanálise é um tipo de saber relativamente novo – 125 anos – em relação às origens da humanidade. O ser humano segue um padrão semelhante ao desenvolvimento da humanidade em suas conquistas: a ontogênese repete a filogênese em sua evolução. Nada nos é dado sem que seja conquistado. Embora os seres humanos já existam desde os tempos imemoriais, a psicanálise, como um saber sobre o próprio ser humano, teve também um tempo para seu surgimento.

Cada progresso material foi sendo duramente conseguido. Muitos séculos se passaram para que descobertas simples fossem sendo consumadas. Elas custaram o esforço e o uso do engenho do ser humano. Desde a descoberta do fogo, das vestimentas, da cocção dos alimentos, foi havendo um aumento na qualidade da vida humana. Há 5.000 anos, na Mesopotâmia, nosso devastado Iraque de hoje, foram criados o eixo da roda, a astronomia, a matemática e a escritura.

Esses progressos pareciam tão desconcertantes que Aristóteles, nos anos 300 a.C, no seu primeiro livro de metafísica, afirmava que tudo que se podia imaginar para tornar a vida humana mais confortável já tinha sido inventado. Portanto era hora de se dedicar à elevação dos espíritos (De Masi, 1993, p. 42).

Na Antiguidade, na ânsia de buscar uma explicação para o mundo, o ser humano cria a mitologia, onde vários deuses se encarregavam de ordenar o Universo e responder às perguntas que já se faziam sobre a origem e o destino dos humanos.

A Idade Média, período que vai do século V até o século XV, iniciou-se com a desagregação do Império Romano do Ocidente, no século V. Dessa época histórica destacam-se o período de ruralização que a Europa viveu entre os séculos V e X, o fortalecimento da Igreja Católica, a estruturação do sistema feudal, os quais propiciaram que a Europa fosse o centro do mundo não só econômico mas também político e social. A religião, já agora com um só Deus, no cristianismo, era o instrumento regulador das condutas e prometia o inferno para os que transgredissem as normas, mas ainda justificava as desigualdades sociais, ao considerar os escravos inferiores e os reis e nobres como ungidos por Deus. Do século X até o século XV, a chamada Baixa Idade Média, temos o período do auge do feudalismo, no qual a Europa começou a sofrer transformações através da urbanização e do comércio entre os países. Vemos, então, a chegada do Renascimento.

Esse movimento consistiu na revalorização da Antiguidade Clássica, principiado na Itália tendo como principais características o humanismo, o antropocentrismo, o individualismo, o universalismo, o racionalismo, o cientificismo e a valorização da Antiguidade Clássica (greco-romana). Daí o nome de Renascença. Se, na Idade Média, a privacidade era quase inexistente, com as pessoas vivendo muito mais no coletivo, no Renascimento, já se valorizava mais a interioridade e a possibilidade das diferenças.

Nesse final do século XV e princípio do século XVI não posso deixar de citar não um filósofo, mas um escritor e dramaturgo de imensa importância, William Shakespeare (1564-1616), que revolucionou a literatura e o teatro com suas magníficas peças sobre o ser humano. Em toda a obra de Shakespeare, tanto em suas grandes tragédias, quanto nas comédias mais leves, há sempre uma tentativa de descobrir quem somos nós, os humanos. Já libertos de uma ideia religiosa opressiva, os personagens shakespearianos se interrogam sobre as grandes questões da vida e da morte, do poder, do amor, da liberdade. O mundo medieval se desmoronava e começava outro mundo, com a modernidade. Urge ao ser humano a tarefa de trazer à tona um novo mundo interno e levantar o véu que encobre seu cerne. O que é a existência humana? Que atitudes cabem a nós? Já que estamos entregues a nós mesmos, somos os nossos próprios escultores. Temos em nós misturadas a razão e as paixões. E o nosso destino final é o mesmo, reis ou mendigos: o pó. Hamlet, com sua angústia, inaugura o homem moderno com dúvidas existenciais. Somos solitários, temos que arcar com a nossa consciência e a nossa liberdade. Somos responsáveis por nossa condição humana. Shakespeare foi uma grande influência para Freud, que não se cansou de citá-lo e de aprender com ele.

No século XVI aparece o empirismo com o filósofo inglês Francis Bacon, que, invertendo a lógica de Aristóteles, declara que tudo que se podia criar pela elevação do espirito já tinha sido feito pelos gregos (na filosofia e na ética) e os romanos (nas leis e na política). Quando os escravos começaram a rarear, nossos antepassados de então se lembraram das oportunidades oferecidas pelos instrumentos e passaram a se preocupar com as inovações que levariam ao progresso da ciência e à revolução industrial (De Masi, 1993). Iniciava-se, assim, a Economia Moderna, e estava sendo estabelecido o Iluminismo, dos séculos XVII, XVIII e XIX, os chamados de séculos das luzes por seu grande avanço nas ciências e nos ideais de liberdade e do afastamento de mistérios e crenças religiosas rígidas. Seus seguidores queriam impulsionar o ser humano a investigar cientificamente todos os fenômenos e buscar respostas sobre questões que antes somente eram respondidas por meio da fé. Atingiu seu apogeu no século XVIII, mas chegou até o século XIX.

A sociedade dos séculos XVIII e XIX foi marcada pelo Romantismo, movimento cultural e artístico que deixando para trás valores clássicos inaugura a modernidade. Eram seus valores o egocentrismo, com o indivíduo encarado como o centro do mundo, um sentimentalismo exacerbado, o nacionalismo, a idealização do amor romântico, e o tom depressivo de vários autores, achando uma fuga da realidade pela morte, pelo sonho ou pela própria arte (Goethe, Byron, Victor Hugo, este já abordando o romantismo social, representando a miséria do povo, com Os miseráveis, chegando até aos indianistas brasileiros como Gonçalves Dias e José de Alencar).

Em meados do século XIX nasce Freud (6 de maio de 1856), em Freiberg, na antiga Morávia, hoje República Tcheca. Emigra com sua família para Viena, na Áustria, que era a capital da Confederação Alemã, congregando vários países da Europa Central e do Leste, sob a batuta do imperador Francisco José I de Habsburgo. Em 1867, ano de sua coroação, se dá o compromisso da Áustria com a Hungria, formando o estado Austro-Húngaro, que seria em sua breve existência o centro do mundo moderno. A emancipação dos judeus foi decretada pelo imperador em 1869, o que possibilitou ao jovem Sigmund o estudo da medicina. No período de sua fundação até seu término em 1919, depois da Primeira Guerra Mundial, o Império Austro-Húngaro testemunhou uma intensa transformação nas ciências, em geral, nas artes (pintura, literatura, música), na arquitetura, na filosofia, na política, engendrando e consolidando a modernidade, numa verdadeira explosão do espírito criativo da época. Nesse cenário novo e aberto, surge a necessidade de se usar também a ciência para se aprofundar no ser humano e em suas idiossincrasias. A psicanálise é inventada, no caudal de todos esses avanços (Schorske, 1979).

Criada no final do século XIX e consolidada na primeira metade do século XX, a psicanálise representa um mergulho no psiquismo humano, dando espaço e relevo à subjetividade. Ao se embrenhar nos enigmas da mente humana, o neurologista de então se depara com a questão dos diferentes, dos que não seguem o rebanho (as histéricas de Freud) e vai se dedicar à descoberta de uma outra instância, até então não reconhecida, que se aloja no mais profundo do psiquismo, mas que pode fazer uma irrupção a qualquer momento, quando menos se espera: o inconsciente.

Ao considerar a normalidade como um conceito econômico e a sexualidade como um contínuo desde o nascimento até a morte do ser humano, Freud não só intrigou e revoltou seus contemporâneos, mas principalmente trouxe luz à constituição do sujeito: o que faz do Homem um ser humano? Apesar da polêmica toda, inaugurou-se com a psicanálise um novo capítulo na história das mentalidades, com a subjetividade devidamente considerada, sob o domínio da ciência e não mais apenas sob o domínio religioso e místico.

Mas trazia uma novidade desconcertante: o ser humano não é o senhor de sua própria morada. Muitos já tinham considerado o inconsciente como uma gradação da consciência. No entanto, Freud trazia agora a consideração de que sua natureza era totalmente diferente e possuía leis particulares de funcionamento como atemporalidade, lógica singular e não dependência da razão, não sendo acessível em termos volitivos ou cognitivos.

Ao constatar seu interesse no psiquismo humano e no estudo dos estados mentais, Freud parte para Paris, a fim de fazer um estágio com Martin Charcot no Hospital La Salpetrière, onde se tratavam as histéricas pela hipnose. Chegando da França, se liga ao médico judeu e amigo Joseph Breuer, que começava a lidar com a histeria através de um novo método catártico, de associação livre. “cura pela fala” ou “limpeza da chaminé”, foi assim chamado esse novo tratamento pela paciente Anna O., pseudônimo de Bertha Pappenheim (Breuer e Freud, 1895/1969). Com a desistência de Breuer de continuar a atender Anna O., por causa dos ciúmes de sua esposa, Freud herda Anna O. e segue com a experimentação desse novo formato de tratamento. Através de Breuer, Freud chega até Wilhelm Fliess, médico judeu como ele, ficam amigos e trocam uma longa correspondência, relatando suas ideias e seus sonhos, casos pessoais e clínicos, o que vai se constituir no que Freud chamou de sua autoanálise.

A princípio confinado apenas entre médicos judeus, Freud deseja abrir sua descoberta ao mundo e tenta uma parceria com Carl Jung, não judeu e muito bem relacionado com o mundo psiquiátrico da época. Mas essa parceria não se sustentou, tendo Jung se dedicado a outros domínios mais místicos do psiquismo, o que Freud queria evitar a qualquer custo, pois almejava que seu conhecimento nascente fosse reconhecido como uma ciência, com toda a credibilidade que ela implica. Freud trabalhou suas descobertas validando-as primeiro em si mesmo e depois em sua prática clínica, mas sem deixar de construir uma teorização concomitante, a metapsicologia. Esses dois polos se influenciam mutuamente: a clínica dá legitimação à teoria e esta dá estrutura à clínica. Como ciência do inconsciente a psicanálise ainda não tinha sido confrontada com nada que a superasse. A ótica freudiana enfocou desde os atos mais corriqueiros da vida cotidiana, como um lapso de memória ou uma troca de palavras, passando pela compreensão dos sonhos como realização de desejos latentes, à sexualidade presente desde o nascimento, à universalidade do complexo de Édipo, até questões mais altamente estimadas, como a sublimação das pulsões sexuais pelo trabalho intelectual e pela arte. As questões ligadas às instituições culturais como a ordem social, a religião, a moral e a ética foram minuciosamente trabalhadas em seus textos sobre a cultura.

Ao considerar a psicanálise primordialmente como uma ciência do inconsciente, deixando em outro plano os procedimentos terapêuticos, Freud quis evitar que ela se transformasse apenas num capítulo a mais da psicopatologia e que fosse colocada como tal nos manuais de psiquiatria. Não quis também que a psicanálise fosse ligada à religião ou à ideologia. Tampouco quis considerá-la como uma visão de mundo ou um sistema filosófico, porque a psicanálise nunca se encarrega de preencher os furos do edifício universal. Ao contrário, ela fala do que há de inconsciente na cultura, daquilo que se manifesta no discurso da cultura. Embora a ciência não se preocupe com o sujeito que trabalha como produtor dela mesma, a psicanálise parte do que a ciência deixa de lado, que é justamente o sujeito do inconsciente e o mal-estar nas relações com a civilização. Apesar disso, Freud usou o referencial da ciência para construir as ficções teóricas com as quais o discurso analítico opera, o que fez também Lacan, ao usar da linguística e da topologia nas suas teorizações. A psicanálise não é aplicável como a ciência, nem é passível de verificações imediatas. Ela é um discurso que se constitui como um efeito da interdiscursividade, ou seja, ela possibilita que diferentes discursos da cultura se relacionem.

Desdenhado a princípio pelo mundo científico de sua época, que considerou suas teorizações um “conto de fadas científico” nas palavras pejorativas de Krafft Ebing (Freud apudMasson, 1986) Freud não desistiu de seus achados e foi em frente como pôde.

Formou, depois da separação de Jung, seu pequeno comitê, com colegas de sua confiança (Karl Abraham, Sandor Ferenczi, Otto Rank, Max Eitington, Hans Sachs e Ernest Jones, o único não judeu), para garantir a sobrevivência da psicanálise. É dessa época a criação da IPA (International Psychoanalytic Association) e o desenvolvimento dessa ciência em Berlim como sua sede principal, e com desdobramentos, como as clínicas sociais criadas então.

A Primeira Guerra Mundial trouxe uma validação para a psicanálise, pois consolidou uma ruptura com a razão, trazendo uma visão pulsional dos processos históricos coletivos. Na guerra a pulsão é superdimensionada e pode-se ver que a tradição é extremamente precária e a cultura tem limitações. Além disso, tudo que é produzido pelo ser humano é relativo e nessa circunstância de um conflito armado há uma quebra de padrões de normalidade.

No pós-guerra Freud se dedicou à sustentação teórica de sua clínica e produziu muitos textos importantes: Além do princípio do prazer, O ego e o id, Inibição, sintoma e angústia, Análise leiga, entre outros. Mais no final de sua vida, escreveu, os grandes textos culturais, como O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização, A questão de uma weltanshauung, O homem Moisés e a religião monoteísta, O esboço da psicanálise, que iriam se juntar aos já publicados Totem e tabu e Psicologia das massas e análise do ego.

A década de 1930 vai encontrá-lo doente, com um câncer na mandíbula e confrontado à ascensão dos nazistas. Com a anexação da Áustria ao Terceiro Reich de Berlim (1938), as obras de Freud foram destruídas, o que lhe valeu o seguinte comentário: “Fizemos progresso. Na Idade Média teriam queimado o autor, hoje se contentam em queimar os livros” (vídeo A invenção da psicanálise, de Roudinesco e Kapnist). Mal sabia ele que os campos de concentração se encarregariam de exterminar também os homens. Essa fúria destrutiva e sua decepção com a cultura alemã culminaram com sua aceitação do exílio na Inglaterra, patrocinado por sua amiga, a princesa da Grécia Marie Bonaparte, que pagou à Gestapo por sua liberação. O regime de Hitler devastou a psicanálise de língua alemã. A psicanálise nunca pode sobreviver em governos autoritários, pois é libertária em sua essência. A submissão e a repressão são incompatíveis com os princípios psicanalíticos.

Com sua morte em Londres, em 23 de setembro de 1939, e a subida macabra dos nazistas na Alemanha, a Inglaterra passa a ser o centro da psicanálise, com a rivalidade entre as psicanalistas Melanie Klein (que trouxe grandes contribuições principalmente à psicanálise da criança e ao papel da mãe) e Anna Freud, que não aderiu à teoria kleiniana, favorecendo aspectos mais pedagógicos da terapia. Um pouco mais tarde aparece Winnicott, também dedicado ao desenvolvimento infantil, trazendo novos aportes à clínica psicanalítica.

Nos anos 1940 e 1950, a psicanálise é levada aos Estados Unidos da América pelos psicanalistas judeus exilados que escaparam do Holocausto. Mas com a morte desses o American way of life, com sua hegemonia adaptativa, vai propiciar uma psicanálise rala, diferente da psicanálise subversiva proposta por Freud. Nesse meio tempo, entre os anos 1950 e 1960, surge o psiquiatra francês Jacques Lacan, que vai reler Freud. Suas contribuições mantêm e fazem evoluir o ideário freudiano, com uma leitura da sociedade pós-moderna, inaugurada na década de 1960, atualizada para os contemporâneos. Freud, um homem marcado pelo iluminismo e o romantismo de sua época, rompeu com a moral vitoriana do século XIX, batalhou pela desrepressão do sexo e deu voz às histéricas. Lacan, por sua vez vai trazer o conceito de gozo, muito pertinente à época atual, em que a radicalidade e a busca do prazer aparecem em primeiro plano. Sintomas tais como a adição à droga, ao álcool, ao jogo, à comida, bem como a anorexia e a bulimia são comuns nesses novos tempos, além dos comportamentos radicais que envolvem o corpo em perigo mortal como a prática de alguns esportes, a variação intensa de parceiros sexuais, com a exposição a doenças letais e altamente lesivas à saúde, como Aids, hepatite e outras. Lacan é bem recebido na América Latina, sendo que sua teoria baseada na constituição do inconsciente como uma linguagem é favorecida pelas línguas de origem latina como o francês, além de representar uma abertura maior ao novo e à pós-modernidade. As traduções editoradas na Argentina contribuíram muito para a divulgação da sua obra nos países latinos.

A psicanálise está tão imbricada na cultura atual que já não podemos entender o mundo sem seus conceitos básicos e seu jargão peculiar. A influência claramente assumida dos conceitos psicanalíticos por movimentos artísticos como o surrealismo nas artes plásticas, no cinema, e no teatro se fez logo notar. Salvador Dali, André Breton, Luis Buñuel, entre outros, com seu arrojo criativo e a desconstrução das convenções desconcertaram o próprio Freud, ele mesmo um burguês comportado em sua vida particular, embora tivesse revolucionado o mundo com sua ciência nascente, a psicanálise. O terreno da ética, como não podia deixar de ser, é também muito caro à psicanálise, também chamada de a ética do bem dizer.

A ética através dos tempos

A palavra ética tem origem do grego ethos que significa costume, caráter ou modo ser. Ela é um ramo da filosofia que estuda os princípios que regem a ação dos humanos. Ou seja, ela analisa os valores por trás das ações humanas. A moral, por sua vez, é o conjunto de regras que determinam os comportamentos. A ética é uma reflexão sobre a moral. É importante frisar que a ética e a moral variam de sociedade para sociedade; além disso, são sujeitas à variação das mentalidades de cada tempo. A ética e a moralidade pressupõem que o comportamento humano deve buscar o bem-estar de todos que integram o grupo. Para isso, é imprescindível que haja consciência de si (o eu que constitui a própria identidade) e consciência do outro (saber os limites dessa identidade).

A ética surge na Grécia Antiga, no século V a.C. Na Antiguidade compreendia o estudo das formas de alcançar a felicidade. Os gregos entendiam que os princípios morais eram resultado de convenções sociais e não de uma moral religiosa. Na Idade Média, porém, houve uma mudança e a ética passa a ser regida pela interpretação dos mandamentos e preceitos religiosos (do cristianismo e do islamismo). Com o fim da idade Média são retomados os temas éticos da Antiguidade. A ética deixa as tradições religiosas e volta a ser entendida como um meio de se alcançar a felicidade e o bom convívio social. Há diversos tipos de ética segundo as escolas de filosofia grega (ética helenística, ética epicurista, ética estoica, ética cínica, ética cética, ética utilitarista, ética deontológica). Aí também se inclui o imperativo categórico de Kant, que é uma forma de ética cujo conceito é desenvolvido a partir da necessidade de tomar decisões como um ato moral, sem afetar ou agredir outras pessoas. Desde o Renascimento o ser humano é o princípio que norteia a organização social e a produção do conhecimento. Com a revolução científica e o Iluminismo a razão impulsiona o desenvolvimento tecnológico. Novos ramos da ética se desenvolvem, como a bioética, que faz uma intercessão entre a filosofia e as ciências da saúde, se ocupando dos limites que se devem impor ao avanço tecnológico e à ciência, para balizar as transformações que se fazem no ser humano: eutanásia, aborto, clonagem, transplante de órgãos, fertilização in vitro, suicídio, alimentos transgênicos e outros.

A psicanálise, como ciência do inconsciente e da subjetividade, não poderia ficar de fora dessas formulações. Freud (1930), n’O mal-estar da civilização, vai dizer que a ética trata das relações dos seres humanos uns com os outros. Dentro das três causas de maior sofrimento humano estão a falta de domínio da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a inadequação das regras que procuram ajustar relacionamentos mútuos entre os seres humanos na família, no estado e na sociedade. Este último item é um assunto que pode facilmente ser identificado como sendo “o ponto mais doloroso de toda a civilização” (Freud, 1930/1969, p. 95).

Para Freud, o mandamento máximo das religiões “Amar ao próximo como a si mesmo” é mais fácil de ser dito do que ser vivido. Só a ética é capaz de fazer face a isso. “Ela deve, portanto, ser considerada como uma tentativa terapêutica como um esforço por alcançar, através de uma ordem do superego, algo até agora não conseguido por meio de quaisquer outras atividades culturais” (Freud, 1930/1969, p. 167). Com a nova ciência vai existir uma ética do sujeito do inconsciente, mais próxima à verdade de cada um.

Segundo Lacan, o desejo do homem é sempre o desejo do Outro. Isso nada mais é do que o desejo de desejar. Entre suas muitas elaborações teóricas sobre esse tema, é essencial a questão do desejo do analista, que se encontra na base da ética da psicanálise, pois o desejo é correlato à ação do analista em sua clínica. Ele não se encontra do lado do analista, e sim do analisando, mas vai depender do analista e do desejo dele que todo o processo ocorra ou não. O analista tem desejo, mas não é o desejo singular dele que está em causa. Mesmo após uma longa análise o analista não fica desprovido de desejo nem de inconsciente. Os desejos são sempre infantis, inconscientes e indestrutíveis. O analista, pela própria experiência de análise, adquire não só uma nova forma de saber reconhecer o que é o desejo; essa é uma das vertentes do seu ‘saber fazer’ no processo analítico. O desejo do analista é o de que a análise ocorra, que o analisando vá/compareça à sessão para falar. O analista não pode ceder de sua posição, caso contrário acabará demonstrando autoritariamente seu saber sobre o outro. É ele quem guia a análise, mas isso não quer dizer que ele guia a vida de quem ele escuta. O analisando vai ao tratamento procurando o suposto saber do analista, mas este deve reendereçar essa suposição de saber ao inconsciente do analisando. O analista não pode dar consistência ao lugar que ocupa, porque não pode se colocar como o grande Outro e repetir a condição do analisando de assujeitamento ao desejo do Outro, ao desejo dos pais. Como analista ele é apenas uma função operadora. Essa é a ética lacaniana para o par analista-analisando.

Para concluir, temos de dizer que estes 125 anos de história psicanalítica transformam Freud talvez no principal pensador do século XX, alguém que realmente arejou o conhecimento sobre o mundo e o incidiu na vida das pessoas. Como ganhos para a humanidade, a psicanálise legou todo um empenho que assistimos em relação à pedagogia e à educação infantil, assim como aos movimentos que foram fortificados pela sua ótica como: maior paridade entre os sexos, o acatamento às diversidades sexuais, a luta pela aceitação das minorias étnicas, a compreensão do sofrimento psíquico e a escuta incondicional dos seus portadores, o enriquecimento das artes, em geral, a busca de maior igualdade social (hoje vemos atendimentos em praça pública), até uma abertura às descobertas da neurociência, que Freud previu para o futuro. Enfim, todo um caudal de procedimentos e da criação de uma mentalidade que valoriza o ser humano em si mesmo, pelo que ele é. Sigamos, pois, adiante. Ainda há muito caminho a palmilhar.

1Texto apresentado no evento on-line comemorativo dos 65 anos do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS), na jornada intitulada A psicanálise através dos tempos, realizada em 24 e 25 set. 2021.

Referências

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Recebido: 16 de Abril de 2023; Aceito: 20 de Maio de 2023

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