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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.59 Belo Horizonte Jan./July 2023  Epub Feb 14, 2025

https://doi.org/10.5935/2175-3482.n59a09 

Artigos

O concern e a liquidez das relações humanas: uma leitura winnicottiana

Concern and the liquidity of human relations: a winnicottian reading

Luan Sampaio Silva1 

Janari da Silva Pedroso2 

1Psicanalista. Formação em psicanálise pelo Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA), filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) e à International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS). Filiado ao Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana (IBPW) e à International Winnicott Association (IWA). Psicólogo pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Aperfeiçoamento em psicoterapia psicanalítica de casal pelo Instituto Sedes Sapientiae. Especialista em psicanálise com crianças e adolescentes: teoria e clínica pelo Instituto de Pós-Graduação e Graduação (IPOG). Mestre em psicologia na linha de psicanálise, teoria e clínica pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutorando em psicologia pela UFPA. Professor do curso de Graduação em Psicologia do Centro Universitário Metropolitano da Amazônia (UNIFAMAZ) e do cursos de especialização em psicanálise com crianças e adolescentes; Psicanálise e clínica contemporânea; e Psicopatologia e Psicanálise, do Instituto de Pós-Graduação e Graduação (IPOG). Supervisor clínico de psicanálise. E-mail: psi_luansampaio@hotmail.com

2Psicólogo pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Mestre e doutor em desenvolvimento sustentável do trópico úmido pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Pós-doutor em psicologia pela Universidade Católica de Brasília (UCB/DF). Professor Associado IV da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA. Coordenador do Laboratório de Desenvolvimento e Saúde (LADS/UFPA). Participa da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), no Grupo de Trabalho “Família, Processos de Desenvolvimento e Promoção da Saúde” Participa da diretoria da Associação Brasileira de Psicologia da Saúde (ABPSA). Membro associado do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP). E-mail: pedrosoufpa@gmail.com


Resumo

O artigo discute o fenômeno da modernidade líquida sob a ótica da teoria do amadurecimento humano, de Winnicott. Para isso, analisou-se fragmentos do livro e cenas do filme homônimos Precisamos falar sobre o Kevin, com foco na relação de Kevin e seu ambiente, para sustentar a proposição de que a liquidez e a fragilidade dos laços sociais humanos são um fenômeno macrossocial, composto por vários fenômenos microssociais, que apontam para “falhas ambientais” em diversas esferas, mas que, de forma microssocial, têm sua origem na qualidade da relação entre o ambiente-cuidador e o bebê, em um período primitivo específico do desenvolvimento emocional - estágio de concern -, que compromete a aquisição da capacidade de se preocupar com o outro.

Palavras-chave Winnicott; Bauman; Modernidade líquida; Concern

Abstract

The article discusses the phenomenon of liquid modernity from the perspective of Winnicotfs theory of human maturation. For this, literary fragments and scenes from the homonymous film were analyzed: “We need to talk about Kevin”, focusing on Kevin’s relationship and his environment, to support the proposition that liquidity and the fragility of human social ties are a macrosocial phenomenon, composed of several microsocial phenomena that point to “environmental failures” in different spheres; but which, in a microsocial way, have their origins in the quality of the relationship between the caregiver-environment and the baby, in a specific primitive period of emotional development - stage of concern -, which compromises the acquisition of the ability to worry about the other.

Keywords Winnicott; Bauman; Liquid modernity; Concern

Introdução

Na contemporaneidade, vive-se um momento no qual as relações intersubjetivas estão cada vez mais fragilizadas e inconsistentes. O ser humano desprovido de empatia não adquire a capacidade de se preocupar genuinamente com os vínculos interpessoais estabelecidos. A esse respeito, Bauman (2004) desenvolve uma teoria que explica, do ponto de vista sociológico, a vulnerabilidade e a flexibilidade das relações humanas, que ocasionam diversos níveis de insegurança potencializados no dia a dia, os quais denominou de “modernidade líquida”.

Nesse cenário, há uma valorização dos relacionamentos e contatos em rede (internet, WhatsApp, e-mail, mensagens de texto etc.), que podem ser diluídos/desconectados a qualquer momento e de forma instantânea. Como consequência desse processo, as pessoas não conseguem se preocupar afetivamente com suas relações interpessoais, e objetifica os indivíduos que fazem parte de seu convívio social.

Em sua obra Modernidade líquida, Zygmunt Bauman (2001) sustenta que a sociedade carece de relações sociais afetivas sólidas. E usa o adjetivo “líquido” para designar o estado transitório com que os líquidos alteram seu estado, sem muito esforço, levando em conta que os líquidos são incapazes de manter seu estado por muito tempo.

Partindo da analogia dos líquidos e das relações, Bauman (2001) defende que, no cenário da modernidade líquida, os líquidos não encontram meios e alternativas para se solidificar. A elevação da temperatura, isto é, o impulso à transgressão, bem como a substituição, a aceleração e a circulação de mercadorias lucrativas não oferecem ao fluxo a oportunidade de abrandamento nem o tempo suficiente para o condensamento e a solidificação em formas estáveis, visando uma expectativa de vida mais ampla.

De acordo com Bauman (2004), em linhas gerais, os relacionamentos interpessoais, são objetivados e adquirem o valor de mercadorias. Caso haja algum defeito em um deles, troca-se por outro, porém nada garante que o indivíduo goste do novo produto ou que receberá seu dinheiro de volta. O fato é que as mercadorias são trocadas em alta velocidade e rotatividade, por exemplo, automóveis, aparelhos telefônicos ou computadores em bom estado são descartados como dejetos quando versões atualizadas eclodem no mercado de consumo.

Assim acontece nos relacionamentos humanos: se não estiver satisfeito, troque por outro e, supostamente, evite o sofrimento. Há também o que Bauman (2004) denomina de “relacionamentos de bolso”: aqueles em que o indivíduo pode usufruir e dispor a qualquer momento de conveniência e depois guardá-lo para ser utilizado em outras ocasiões.

Procure as pessoas apenas quando estiver precisando de algo, depois delete, já que não lhe servirão mais para nada. Caso um suposto amigo faça algo que o desaponte, desco-necte-se dele e procure outro para exercer o papel de ombridade. Isso também serve para frustações geradas por familiares: afaste-se deles sem ao menos entender o contexto da situação vivenciada geradora do conflito. Todos são descartáveis e servem apenas para satisfação das necessidades de quem as utiliza.

A sociedade se pauta em uma nova ética das relações sociais, que estão cada vez mais desumanas e fragilizadas. A confiança no próximo está em ruínas, há uma dificuldade de se confiar no outro. Nesse sentido, os seres humanos estão sendo usados por eles mesmos. Os seres humanos temem o sofrimento e, de acordo com Bauman (2004) imaginam, que, como não mantêm uma relação duradoura e estável, poderão controlar esse sofrimento ou diminuir a dor ao descartar os amigos, se afastar de seus familiares etc. O desgaste emocional e a solidão, sob essa perspectiva, são os principais problemas para a humanidade.

Os seres humanos, na visão desse autor, estão sendo ensinados a não ter apego por nada nem ninguém, para não se sentirem sozinhos. Com isso, na modernidade líquida, não se pensa mais na qualidade e sim na quantidade, isto é, quanto mais houver dinheiro e relacionamentos, melhor será. O consumismo cresce a cada dia, fazendo com que os indivíduos não comprem mais por desejo, e sim por impulsividade, tal qual acontece nas relações humanas.

Apesar de Bauman descrever o fenômeno da modernidade líquida sob o ponto de vista sociológico, carece de uma compreensão do ponto de vista psicológico mais abrangente. Em consequência disso, recorremos a Donald Woods Winnicott para refletir sobre esse fenômeno da liquidez dos laços humanos a partir de seu referencial teórico do amadurecimento humano, com ênfase no conceito de concern.

O estágio de concern em Winnicott

Um dos principais textos em que Winnicott (1954-1955/2021) aborda o conceito de concern é A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal. O termo “posição depressiva”, na verdade, é uma expressão formulada por Melanie Klein, de quem o autor faz uma releitura particular ao apresentar ao leitor uma forma de articular esse conceito com a teoria do amadurecimento humano. A ênfase do artigo recai sobre a posição depressiva como uma conquista do desenvolvimento emocional primitivo do ser humano.

A respeito da nomenclatura “posição depressiva”, Winnicott (1954-1955/2021) considera que o termo não é adequado para descrever um processo normal do desenvolvimento emocional que engloba a totalidade dos fenômenos ocorrentes nesse período. Todavia, é preciso frisar que, até o momento da redação do seu artigo, na década de 1950, ninguém havia lançado uma terminologia mais adequada para essa fase. Diante disso, o autor propõe “estágio de concern”, que foi adotado neste trabalho.

O estágio do concern, de acordo com Winnicott (1954-1955/2021), é uma aquisição pertencente à idade do desmame. Quando há um “ambiente suficientemente bom”, essa posição é alcançada e se estabelece em algum período da segunda metade do primeiro ano de vida. O estágio de concern localiza-se na fase de dependência relativa e aponta para a construção de um espaço intermediário inserido entre o pequeno ser -que se encontra totalmente dependente de seu ambiente cuidador -, mas que já começa a caminhar, a reconhecer seus aspectos instintivos e se preparar para as relações interpessoais.

Nesse sentido, entende-se o concern como a culpa instaurada após o bebê se integrar a uma unidade. Trata-se de uma conquista do amadurecimento na vida desse pequeno ser que aponta para o estabelecimento do círculo benigno, o qual se mantém sem rupturas. Diante dessa conquista, o concern pode ser vivenciado na posição do Eu Sou, momento em que o infans é capaz de adquirir posição mais autônoma, reconhecer seu potencial instintivo e agressivo e responsabilizar-se por seus atos e pensamentos, adquirindo, assim, a capacidade de reparação (Winnicott, 1954-1955/2021).

Para que haja a conquista do concern, são necessárias algumas condições ambientais ofertadas pelo ambiente-cuidador, que facilita esse processo de amadurecimento. A saber: a sobrevivência do ambiente-cuidador aos ataques instintivos do bebê, possibilitando que ele vá em direção ao mundo externo; e a sustentação da situação no tempo - o que favorece a noção de temporização do bebê. A conquista do concern possibilita à criança vir a tornar-se pertencente e relacionar-se com o mundo, além de contribuir para com ele por meio do uso construtivo dos instintos.

As condições essenciais para que ocorra esse processo são: (a) que o bebê consiga estar integrado a uma unidade; (b) que os estágios primitivos tenham sido percorridos sem inúmeros entraves e problemas na vida; (c) que o indivíduo tenha uma noção temporal mais estabelecida; e (d) que consiga diferenciar fantasias de fatos (Moraes, 2010).

No estágio de concern, um dos fenômenos mais importantes diz respeito à percepção da criança de que ela e o cuidador são pessoas únicas e totais, seja no estado excitado, seja no estado tranquilo. Além disso, a partir da integração da vida instintual de forma consistente, o bebê se torna uma pessoa inteira, com capacidade para se relacionar com pessoas inteiras e não apenas com pessoas parciais.

Winnicott (1954-1955/2021, p. 440) afirma:

Os estágios anteriores devem ter sido negociados com sucesso, na vida ou na análise, ou em ambas, para que a posição depressiva seja alcançada. A fim de alcançá-la, o bebê deve ter com conseguido estabelecer-se como uma pessoa inteira, e relacionar-se com pessoas inteiras como pessoa inteira.

E é nessa perspectiva que Winnicott (19541955/2021) finaliza ao ressaltar que, caso tudo ocorra bem no desenvolvimento emocional da dupla cuidador-bebê, é possível perceber um bebê inteiro (pessoa inteira) relacionado a um cuidador inteiro (pessoa inteira), no qual foi alcançado o estágio de concern. Do contrário, há outros percalços a serem trilhados, que serão analisados a partir do personagem Kevin e sua relação com seu ambiente/cuidadores: a mãe, o pai e seu contexto de relações, tendo como referência o livro (Shriver, 2012) e o filme homônimos Precisamos falar sobre o Kevin (2011), dirigido por Lynne Ramsay, do qual esses personagens fazem parte.

Kevin e seu ambiente: por uma incapacidade de se preocupar com os outros

Logo na contracapa do livro é possível entrever o resumo da obra. Lionel Shriver narra a história de Kevin Khatchadourian, jovem de 16 anos, responsável por cometer uma chacina no ginásio de uma escola localizada no subúrbio da cidade de Nova Iorque, que vitimou, ao todo, sete colegas, uma professora e um servente. Segundo a autora, não se trata de mais uma ficção de crime, castigo e pesadelos americanos. A obra em questão é, sobremaneira, um romance epistolar em que Eva, mãe de Kevin, redige cartas ao pai do adolescente, Flanklin, já falecido.

Com essas cartas, Eva tenta racionalizar as possíveis razões que levaram Kevin ao ato extremista de extermínio em massa, mediante reflexões e meditações que envolvem as lembranças construídas durante o seu relacionamento com Franklin, ao mesmo tempo em que relembra sua trajetória profissional, na qual, num dado momento, precisou abandonar suas atribuições bem-sucedidas de fundadora de uma empresa de guia de turismo.

Por fim, Eva realiza um reexame global: desde o fato de ter medo de ser mãe e do momento do parto, passando pelo distinto bebê que já causava pânico nas baby-sitters. Expõe os relatos biográficos de um garoto maquiavélico que apresentou desvios de condutas sociais e comportamentos incomuns na adolescência, quando, por exemplo, colecionou vírus de computadores e praticou exercícios de arco e flecha, uma de suas poucas distrações. Eva também revela o sentimento de felicidade interior que encontrou após o nascimento de segunda filha, que, diferentemente da gestação de Kevin, foi desejada e com quem tinha uma relação amável.

A relação cuidador-ambiente e Kevin: os primórdios de sua história

Já nos afirma Winnicott que o bebê por si só não existe, porém existe dentro de uma relação com alguém que dele cuida. Partindo dessa premissa, as nossas discussões em torno da história ficcional começam com o estágio de gestação de Eva Katchadourian, mulher que não nutre o desejo de ser mãe. De imediato,

Eva se questiona:

O que deu em nós? Éramos tão felizes! Então por que motivo retiramos todas as nossas fichas e as pusemos nessa aposta ridícula de ter um filho? (Shriver, 2012, p. 22).

Gradativamente, a vida profissional exitosa e a relação amorosa estável que Eva tinha, cedem espaço à discussão de ter um filho. Nessas discussões, entre ela e o companheiro, Eva admite que

[...] quando o assunto era procriar, um de nós sempre acabava entalado no papel de desmancha-prazeres e, em nossa última contenda, eu havia jogado água fria na fervura da procriação: uma criança significava barulho, sujeira, restrições e ingratidão (Shriver, 2012, p. 33).

É como se Eva não se sentisse confortável com a ideia da maternidade, ainda assim acabou cedendo em prol de que algo maior poderia acontecer na vida do até então casal, em “querer mais alguém para amar” (Shriver, 2012, p. 31). Contudo, a fantasia que vai sendo construída em torno da vinda de um filho é igualada ao sentimento de “uma menina de sete anos de idade à espera de ganhar de Natal uma boneca que fizesse xixi” (Shriver, 2012, p. 23), isto é, um brinquedo, completamente distante de qualquer dimensão real de implicações e responsabilidades que envolvem criar uma criança.

É quando Eva enumera uma lista de ressalvas sobre a maternidade, que aprendeu ao longo de suas vivências:

  1. Pentelhação;

  2. Menos tempo só para nós dois. (Que tal tempo nenhum só para nós dois?);

  3. Os outros. (Reunião de pais e mestres. Professores de balé. Os amigos insuportáveis das crianças e seus insuportáveis pais);

  4. Virar uma vaca gorda, (Eu era esbelta e preferia ficar como estava. Minha cunhada teve varizes durante a gravidez, aquelas veias enormes nas pernas dela nunca mais desincharam, e a perspectiva de ver minhas panturrilhas se ramificando em radí-culas azuis me torturava mais do que eu poderia admitir. De modo que não admiti nada. Sou vaidosa, ou já fui um dia, e uma de minhas vaidades era fingir que eu não tinha vaidade);

  5. Altruísmo artificial: ser reforçada a tomar decisões segundo o que é melhor para uma outra pessoa. (Eu sou pavorosa);

  6. Redução nas minhas viagens. (Note que eu disse redução. Não fim delas);

  7. Tédio enlouquecedor. (Eu achava criança pequena uma chatice inominável. E, desde o princípio, sempre admiti isso para mim mesma);

  8. Vida social imprestável. (Nunca consegui ter uma conversa decente na presença de crianças de cinco anos na sala);

  9. Rebaixamento social. (Eu era uma empresária respeitada. Assim que aparecesse com uma criança a tiracolo, todos os homens que eu conhecia - e todas as mulheres também, o que é deprimente - deixariam de me levar tão a sério);

  10. Arcar com as consequências. (Procriar é saldar uma dívida. Mas quem quer saldar uma dívida da qual se pode escapar? Tudo indica que as mulheres sem filhos escapam impune e furtivamente. Além do mais, de que adianta pagar uma dívida para o credor errado? Só a mais desalmada das mães poderia se sentir recompensada da trabalheira ao ver a própria filha levando finalmente uma vida tão horrenda quanto a sua) (Shriver, 2012, p. 38-39).

É notório que as inúmeras preocupações de Eva recaem sobre sua própria pessoa, inclusive a vida profissional, social, amorosa. Em nenhum momento cogitase as necessidades naturais de uma criança de receber um olhar especial como se as suas demandas devessem ser sempre prioritárias diante das necessidades do filho. “Qualquer que seja o gatilho, o chamado não penetrou meu sistema e isso me deixou com a sensação de que havia sido enganada” (Shriver, 2012, p. 39).

A qual chamado Eva se refere? À maternidade, enraizada a um sistema social e cultural normativo do patriarcado (modelo de sistema social/cultural que favorece o homem), que, ao instaurá-la como a obrigação prioritária e o destino de toda mulher, acarreta intensos sofrimentos psíquicos a ela, pois não está em questão aqui o instinto biológico materno, mas sim o desejo de maternar. Eva, talvez, sinta-se cobrada em ter o “algo a mais” em seu relacionamento, situação que vem à tona quando argumenta que o filho fará companhia ao marido.

Você tivesse me deixado com um filho na barriga. Com um filho na barriga: há uma ressonância quente e gostosa nessas palavras, um reconhecimento arcaico, mas terno de que, pelos nove meses seguintes, você terá companhia para onde quer que vá (Shriver, 2012, p. 39).

Em contraposição ao termo “grávida”, que Eva considera “pesado, volumoso, que aos meus ouvidos sempre me pareceu uma péssima notícia”, prefere “eu estou grávida”. E complementa:

Instintivamente, já imagino uma garota de dezesseis anos, à mesa do jantar -pálida, doentia, com um namorado canalha - fazendo um esforço danado para desembuchar os piores temores de sua mãe (Shriver, 2012, p. 39).

Trata-se de uma representação da diferença quando o filho é pensado para si, o filho, aqui, irá apenas trazer prejuízos a si mesma. Eva parece não conceber positivamente o desejo de maternar e conseguir cuidar de uma criança, fator que aponta para o não surgimento de uma “preocupação materna primária”, que, futuramente, irá incidir na sua relação com Kevin. Infere-se que suas representações sobre a maternidade e gravidez são sempre atravessadas por sentimentos hostis e confusos.

A preocupação materna primária, é apontada por Winnicott (1956/2021) como uma “doença normal” que possibilita ao cuidador uma adaptação delicada e sensível às necessidades do bebê nos primórdios de sua vida, pela via da identificação, deixando de lado temporariamente seus interesses pessoais, não se materializa na relação de Eva e Kevin. Isso porque o cuidador que desenvolve esse estado de adaptação fornece um contexto para que se manifeste o desenvolvimento da criança, em que tendências ao amadurecimento começam a ser desdobradas e o bebê experimenta movimentos espontâneos e se apropria das sensações equivalentes a essa etapa inicial de vida (Winnicott, 1956/2021).

É por meio do cuidado ofertado ao bebê que a continuidade de seu ser se manteria. Falha o ambiente/cuidador que não consegue ofertar esses cuidados ao bebê. Tais falhas estão presentes em todas as relações entre cuidador e bebê, mas que aqui dizem respeito a uma falha ambiental que para o bebê é insuportável e persiste no tempo continuamente.

Nesse sentido, o bebê sente-se invadido por algo que Winnicott denominou de intrusão: aquilo que interrompe a continuidade de ser do bebê. E a natureza dessa intrusão provém do ambiente. Quando se trata de uma intrusão persistente no tempo, por demais intensa ou prematura, e o resultado é traumático, cabendo ao bebê apenas reagir a essas intrusões/falhas ambientais, conforme o psicanalista salienta:

[... ] pode-se dizer que uma proteção do ego suficientemente boa pela mãe (em relação a ansiedades inimagináveis) possibilita ao novo ser humano construir uma personalidade que segue o padrão de um continuar a existir. Todas as falhas (passíveis de produzir ansiedade inimaginável) acarretam uma reação do bebê, e essa reação intercepta o continuar a ser do bebê. Se esse tipo de reação persiste e, o continuar a ser do bebê é recorrentemente interrompido, instaura-se um padrão de fragmentação do ser. O bebê cujo padrão é o de fragmentação da continuidade de ser tem uma tarefa de desenvolvimento que fica, praticamente desde o início, sobrecarregada no sentido da psicopatologia (Winnicott, 1962/2022, p. 76).

Essa falha ambiental vivida pelo bebê no início de sua vida provoca uma ameaça de aniquilação, um sentimento de ameaça à existência pessoal. No romance, observamos o descompasso dessa ausência de identificação entre cuidador e bebê, quando Kevin, ainda pequeno, chora frequentemente e desperta em Eva o sentimento da frustação e do incômodo, já que ela não consegue abrandar o filho.

A mãe está tão perdida nessa função de cuidados, que nem sabe o que fazer e quais decisões deveria tomar em relação a Kevin. No filme, este momento é muito nítido na cena em que Eva aparece na rua diante de uma obra de construção, depois de várias tentativas frustradas de apaziguar o choro de Kevin, porém muito satisfeita ao perceber que o filho cessava o choro com o barulho das máquinas.

Outro aspecto importante que cabe ressaltar nas dificuldades de Eva - nesse primeiro momento, quanto ao cuidado de Kevin - reporta aos cuidados da mãe recebidos quando era um bebê. Cumpre esclarecer que não está em discussão aqui a hipótese de culpabilização do ambiente-cuidador que falha no sentido de uma intencionalidade de cuidados não ofertados, mas de uma incapacidade de identificação com um lugar que não pôde ocupar quando também era um bebê e, assim, poder desfrutar de um ambiente facilitador.

Winnicott (1966/2019, p. 20) articula a preocupação materna primária com esse fator:

[... ] penso que é comum a mulher entrar em uma fase, da qual é comum ela se recuperar em algumas semanas ou meses após o nascimento do bebê. Não há nada de místico nisso. Afinal, ela já foi um bebê e tem em si as memórias de já ter sido um bebê; ela também tem a memória de ter sido cuidada, e essas memórias ou ajudam ou atrapalham suas experiências como mãe.

A relação de Eva e sua mãe também é descrita nas cartas endereçadas ao companheiro

Frankin, quando confessa que um de seus esportes favoritos era falar mal de seus pais, que foram, nas palavras de Eva, “pessoas que me deixaram maluca” (Shriver, 2012, p. 34). Em um desses momentos comenta o seu receio de se parecer com a própria mãe e de ter o mesmo destino desta, descrita como alguém ausente, ainda que presente em sua casa. A possível falta de identificação da mãe para com Eva é ainda mais notável no trecho em que afirma que precisava estar sempre disponível para realizar as necessidades e desejos de sua mãe, sem ter as suas próprias necessidades consideradas.

Quando criança, estava sempre indo fazer algo para o qual era pequena demais, e isso, portanto, me apavorava. Ela me fez sair para procurar uma junta de vedação para a pia da cozinha quando eu tinha oito anos de idade. Ao me forçar a ser sua emissária, quando eu ainda era muito nova, minha mãe conseguiu reproduzir em mim a mesma angústia desproporcional diante das pequenas interações com o mundo externo que ela própria sentira aos trinta e dois anos (Shriver, 2012, p. 44).

Com base nessa citação, /Diante disso, podemos depreender que Eva se sentia forçada a ter que atender sempre às demandas de sua mãe, de quem relembrava com pavor. São recordações associadas a um ambiente não facilitador que anulava as necessidades pessoais de Eva, como se ela fosse apenas um brinquedo, expressão utilizada pela personagem para se referir ao filho Kevin.

Desse modo, a ausência de cuidados exercidos continuamente no tempo e no espaço dificulta o processo de internalização de um ambiente suficientemente bom, que possibilitasse a Eva transmitir ao próprio filho uma experiência ambiental satisfatória, pois ela mesma não foi uma criança valorizada e acolhida em seus gestos espontâneos.

No que diz respeito ao seu pai, Eva relata que faleceu um ano antes de ela nascer e que, por isso, se queixava já que restaram a ela somente “minha mãe e irmão, e isso não dá muita opção de escolha” (Shriver, 2012, p. 35). Após a apresentação de um panorama do ambiente psíquico-familiar em que Eva esteve refém por muito tempo, dedicaremos nossa atenção a partir de agora à relação turbulenta de Eva e Kevin, marcada por uma série de dificuldades de estabelecimentos de vínculos afetivos entre mãe e filho, cujas causas remontam, entre outros fatores, a aspectos transgeracionais, isto é, aqueles que estão envolvidos na transmissão da relação cuidador-bebê.

Um tópico interessante que merece a sus-citação de debates, e que está presente nessa relação, é o holding, na passagem em que Eva não consegue conter e aconchegar Kevin em seu colo. Já no filme, por sua vez, é mostrada a cena da mãe balançando o filho para cima e para baixo, longe de seu próprio corpo, numa tentativa desesperada de acalmá-lo.

Sobre o holding,Winnicott (1967/2019, p. 76) reitera:

[... ] no início, entretanto, é o segurar físico da estrutura física do bebê que fornece uma condição psicológica boa ou ruim. Segurar e manusear bem facilita os processos de amadurecimento, enquanto segurar mal implica interrompê-los repetidamente em decorrência das reações do bebê ante falhas na adaptação.

O fato é que o holding é a base sobre a qual a confiança é estabelecida em um mundo amigável, pois, ao ser bem segurado, o bebê se torna apto a amadurecer emocionalmente. Como pudemos observar, Eva não conseguiu oferecer esse suporte a Kevin. E quanto à figura do pai? Qual a sua função nesse processo?

Winnicott (1966/2019, p. 21) trata desse momento inicial da relação cuidador-bebê:

[... ] penso que, quando o bebê está pronto para o nascimento, a mãe — se amparada adequadamente por seu companheiro, pelo Estado de bem-estar social ou por ambos — está preparada para essa experiência em que ela sabe extremamente bem quais as necessidades do bebê.

É inegável nesse momento o apoio do ambiente, inclusive todas as pessoas envolvidas no processo de amadurecimento do bebê, sejam elas o pai, sejam outras representações significativas ou substitutas de referências, uma vez que compõem o ambiente facilitador. Em relação/Quanto ao ambiente-facilitador, Winnicott (1968/2019, p. 38) pontua:

Do meu ponto de vista, a saúde mental do indivíduo começa a se estabelecer desde o início pela mãe que fornece o que chamei de ambiente-facilitador, em meio ao qual os processos naturais do crescimento do bebê e as interações com o ambiente podem evoluir de acordo com o padrão herdado pelo indivíduo.

De forma mais ampla engloba-se, ao longo do desenvolvimento da criança, a rede de apoio do cuidador de referência, como a escola, o Estado etc. No tocante à rede de apoio de Eva, ela se faz precária, já que ao seu redor não há pessoas que possam ajudá -la nesse processo complexo de maternagem. Em se tratando do pai de Kevin, não houve demonstrações de atenção às necessidades de Eva, a ponto de menosprezá-las taxativamente ou até de achar que estaria inventando coisas sobre Kevin, falhando, assim, em perceber os comportamentos desafiadores e violentos expressos pelo filho.

Já no que diz respeito à percepção de Kevin, vislumbramos que seu pai vivia distante, aparentando estar em uma realidade paralela. Kevin reclama até de que o pai não o conhecia de verdade, como o leitor pode ser perceber na cena em que há o diálogo entre Kevin e Marlin, apresentador de um veículo de comunicação.

Podemos falar um pouco de seus pais, Kevin? Recomeçou Marlin. Mãos atrás da cabeça. “Manda ver”. “O seu pai... vocês se davam bem, ou brigavam?” “O sr. Plástico?”, zombou Kevin. “Seria sorte minha se a gente tivesse uma briga. Não, era tudo alegrinho, na base do cachorro-quente e das pastinhas de queijo. Uma fraude completa, sabe? Era tudo Vamos ao Museu de História Natural, Kev, eles têm umas pedras que são mesmo geniais! Ele era ligado numa espécie de fantasia da Liga Infantil de baisebol, ficou congelado lá nos anos cinquenta. Eu ouvia aquele negócio de Eu te aaaaaaaamo, parceiro! e ficava só olhando pra cara dele, tipo assim, Com quem você tá falando, cara? Que quer dizer esse negócio de o papai ‘amar’ você e não ter uma p[bip] de ideia de quem você é? Então, quem é que ele amava? Algum garoto do Happy Days, não eu (Shriver, 2012, p. 411).

Nesse ponto, o pai de Kevin parece ter falhado também como parte de um ambiente facilitador sob inúmeros aspectos, em razão das dificuldades psíquicas e dos aspectos subjetivos que atravessaram o seu desenvolvimento emocional pessoal. Em outras palavras, Franklin não conseguiu ofertar a sua companheira uma “capa protetora” para que ela pudesse exercer a maternagem adequada nos momentos iniciais da vida de Kevin.

Além disso, diante da ausência de alguma figura de referência que ofertasse uma maternagem suficientemente boa, não conseguiu exercer tal função que perpassaria pela figura de um “pai suficientemente simbólico” (Dethiville, 2014), que viria, mais adiante, durante o percurso do desenvolvimento emocional.

Ademais, fica evidente no filme que o pai não reconhecia os comportamentos desafiadores e violentos, expressos pelo filho, minimizando os problemas sob o argumento de que era apenas um menino e que, portanto, era natural os garotos apresentarem esse perfil.

Todas as situações aqui discutidas em torno de Kevin e de seu ambiente/cuidadores nos conduziram a conjecturas acerca de determinados entraves relacionados ao desenvolvimento emocional e ao comprometimento em estabelecer e manter os laços sociais do protagonista, sobretudo quanto à sua incapacidade de reconhecer a alteridade - não importando se os outros são pessoas ou animais.

O estágio de concern em Kevin e suas raízes na relação líquida cuidador-bebê

Sobre a capacidade de concern,Winnicott (1963/2022) afirma que é um aspecto central da vida em sociedade. O concern implica mais integração, mais amadurecimento e se relaciona com o senso de responsabilidade do indivíduo, principalmente no que se refere aos relacionamentos que envolvem os impulsos instintivos. “A consideração é um indício de que o indivíduo se preocupa, ou se importa, e tanto sente como aceita responsabilidade” (Winnicott, 1963/2022, p. 92). Trata-se de uma organização mais complexa do ego, uma conquista do cuidado do bebê, da criança e dos processos internos de crescimento destes.

Em vários momentos do livro e do filme, somos surpreendidos pelo nível de frieza que Kevin demonstra pelas pessoas ao seu redor, revelando incapacidade de se preocupar com os outros e ausência de empatia ou consideração por outrem. Essa falta de benevolência, como já foi discutido em parágrafos anteriores, se traduz pelo estágio de concern, à luz da concepção winnicottiana.

Cumpre esclarecer que o concern surge na vida do pequeno ser como uma experiência de união, na mente do bebê, envolvendo a “mãe-objeto” e a “mãe-ambiente”. Essas expressões de Winnicott (1963/2022) destacam duas faces dos cuidados maternos ofertados pela figura de referência para o bebê.

Nas palavras do teórico, há

[...] a mãe como objeto, ou possuidora do objeto parcial que pode satisfazer as necessidades urgentes do bebê, e a mãe como a pessoa que evita o imprevisto e que ativamente provê o cuidado, por meio do manuseio e do manejo em geral. O que o bebê faz no ápice da tensão do id e o uso que assim faz do objeto me parecem muito diferentes do uso que faz da mãe como parte do ambiente total (Winnicott, 1963/2022, p. 24).

Em circunstâncias ambientais favoráveis ao desenvolvimento emocional, a face de mãe-objeto do cuidador sobrevive aos impulsos instintivos emitidos pelo bebê, assim como na condição de face de mãe-ambiente do cuidador há uma função primordial: estar lá para receber o gesto espontâneo do bebê, ser empática e cuidar desse pequeno ser.

Os impulsos instintivos levam ao uso desmedido dos objetos, fazendo com que surja um sentimento de culpa, que é aplacado pela contribuição à mãe-ambiente que o bebê pode fazer no decorrer temporal. Além do mais, há que considerar

[... ] a oportunidade para doar e fazer reparação - que a mãe-ambiente oferece por sua presença consistente - permite que o bebê se torne cada vez mais ousado ao experimentar seus impulsos instintivos; ou, dito de outro modo, libera a vida instintiva do bebê (Winnicott, 1963/2022, p. 96).

Consoante Winnicott (1963/2022), o fracasso das faces de mãe-objeto em sobreviver ou de mãe-ambiente em fornecer oportunidades sólidas para a reparação coordena não somente a perda da capacidade de concern como também sua substituição por ansiedades e determinados tipos de defesas, a exemplo da cisão e desintegração.

Retomemos alguns dos principais episódios e fatos da vida de Kevin, que nos permitem apresentar exegeses a respeito da maneira/do modo como a capacidade de concern falhou no desenvolvimento emocional do personagem central, cujas consequências, quando levadas ao extremo, revelam, senão, sua incapacidade de consideração pelas pessoas. E aqui estamos aludindo diretamente à cena da famosa quinta-feira, abordada no livro e no filme, na qual Kevin arquiteta, friamente, todos os passos do seu plano de assassinar cada uma das pessoas que foram atraídas até o ginásio da escola. A maneira como Kevin se relacionava com sua irmã, seu pai e sua mãe nesse sentido, revela alguns dos indícios de comprometimento dessa capacidade de concern.

Um dos atos dessa trama que ilustra a incapacidade de Eva de sobreviver aos ataques e não conseguir conter os impulsos instintivos de Kevin é o instante em que o adolescente pintou, com diversas tintas, a sala inteira da mãe, destruindo o trabalho dela. Esse episódio gerou excessiva fúria e reação desmedida por parte de Eva em relação ao filho, que é segurado por ela e arremessado contra a parede, resultando na fratura de um dos braços de Kevin.

Há outros momentos turbulentos nos quais Eva não sabe lidar com a agressividade de Kevin e, ao mesmo tempo, não consegue se identificar com as necessidades do primogênito, no sentido de oferecer a ele atenção e cuidados necessários enquanto mãe-ambiente, o que nos possibilita usar o argumento da dificuldade de Kevin em integrar essas duas facetas da mãe.

Kevin, por causa disso, não poderia desenvolver nenhum tipo de sentimento de culpa que, hipoteticamente, o fizesse ter consideração pelo outro e isso pressupõe naturalmente tentativas de reparação/aniquilação dos seus impulsos agressivos direcionados ao mesmo objeto, caso conseguisse integrá-los psiquicamente.

Os seus laços sociais, destituídos da não aquisição da capacidade de concern, são extremamente frágeis, como se a ele não fosse concedido o exercício de reconhecer a alteridade, ou ainda mesmo que ela existisse, materializa-se precariamente. Sob esse prisma, o reconhecimento do outro não é ponderado como pessoa total, isto é, Kevin se relaciona com objetos parciais mediante mecanismos primitivos como a cisão.

Outras cenas que evidenciam a ausência do sentimento de culpa de Kevin são aquelas protagonizadas entre ele e Célia, sua irmã. No filme fica subentendido que o adolescente matou o ratinho de estimação de sua irmã, além de ter sido o responsável direto pelo acidente que fez a irmã perder um dos olhos. Frente a esses atos condenáveis socialmente, Kevin não manifesta nenhum tipo de sentimento de culpa ou remorso. Na verdade, mostra-se apático diante dos sentimentos da irmã, que sofre duplamente, tanto pela perda de seu animal quanto pelo trauma de ter um dos olhos lesionados permanentemente.

Por tudo que foi problematizado até aqui, julgamos a análise de Kevin e seu ambiente como um tipo de relação revoltosa, marcada fundamentalmente por sentimentos ambivalentes e inúmeras dificuldades de investimento emocional, quando se trata do ambiente e da manifestação da fragilidade de estabelecimento de vínculos afetivos.

Esses tipos de vínculo podem ser lidos, diante das passagens retomadas do livro e do filme ao longo do trabalho, como entraves ao estágio de concern, ainda que não tenhamos desprezado outras abordagens teóricas complementares em torno dessa categoria psicanalítica, principalmente aquelas que estão situadas no campo das psicopatologias, as quais também podem ser apropriadas, para fins de análise, com base no caso de Kevin. Eis uma pequena amostra de um contexto mais amplo de modernidade líquida, em que os laços sociais são efêmeros e precários.

Considerações finais

O caso de Kevin ilustra as fragilidades e precariedades dos laços humanos desprovidos de empatia. É na direção desse quadro de fragilidade que Bauman (2001) descreveu suas observações em torno do conceito de modernidade líquida - os laços sociais efêmeros, atravessados por uma lógica neoliberal consumista, nos quais as pessoas são reduzidas a mercadorias. Ao realizar leituras, de caráter sociológico, o estudioso apontou para a ausência de solidificação nas relações humanas e capacidade de se preocupar com o outro.

Tendo como parâmetro o caso Kevin, propusemos examinar a modernidade líquida com base na teoria do amadurecimento, de Winnicott, enquanto fenômeno macrossocial permeado por incontáveis ambientes microssociais que falharam e não foram capazes de facilitar o desenvolvimento da capacidade de concern nesses seres humanos. A respeito desse ambiente microssocial, denominamos de “relação cuidador-bebê líquida”, como forma de analogia aos preceitos de Bauman (2001) em torno da liquidez primeira na relação primordial entre o bebê o ambiente que dele cuida — e que aqui foi representado pela família e por pessoas significativas.

A modernidade líquida é, à vista disso, a soma desses seres humanos que tiveram percalços durante o estágio de desenvolvimento emocional primitivo, o qual, ao se transfigurar substancialmente, nos estimula a refletir em torno de algumas das principais falhas, em termos ambientais, mais macrossociais: seria o ambiente de políticas públicas voltadas à facilitação dos cuidados ofertados pelos ambientes microssociais ou o investimento em escolas e educação como elementos pertencentes a esse mesmo ambiente? Há várias questões a serem consideradas nesses debates, em que determinadas questões originais são inevitavelmente desencadeadas e certamente poderão ser desdobradas em futuras pesquisas.

Em suma, ao longo do trabalho, após análises, procuramos sustentar a proposição de que o fenômeno da modernidade líquida e a origem da fragilidade dos laços humanos minuciados por Bauman (que argumenta com base numa linha de pensamento sociológico da sociedade de consumo), podem ser localizadas coerentemente em um período primitivo particular do desenvolvimento emocional do ser humano, que foi apontado por Winnicott como o estágio de concern.

Essa designação nos possibilitou compreender a qualidade dos vínculos estabelecidos na infância seguidos de suas repercussões psíquicas na criança e no adulto. E é nesse estágio, em verdade, que ocorre a construção da capacidade de se preocupar com o outro, fator que demanda mais integração e amadurecimento no que se refere ao senso de responsabilidade do indivíduo frente aos seus vínculos afetivos.

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Recebido: 10 de Maio de 2023; Aceito: 20 de Junho de 2023

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