Introdução
O pensamento de Freud se caracteriza por um diálogo constante com a produção filosófica e científica de sua época. Não por acaso, sua teoria sofreu constantes modificações, reflexo da inquietação intelectual que sempre o acompanhou (Trotta, 2010).
Adentramos aqui o campo da psicopatologia fundamental, que entende a noção de fundamental
[...] no sentido de uma “fundamentalidade”, uma “intercientificidade” dos objetos conceituais. Trata-se de um projeto de natureza intercientífica onde a comparação epistemológica dos modelos teórico-clínicos e de seus funcionamentos propiciaria a ampliação do limite e da operacionalidade de cada um destes modelos e, consequentemente, uma transformação destes últimos (Ceccarelli, 2005, p. 374).
Trata-se, pois, de uma transdisciplinaridade que reúne em uma rede de significações conhecimentos específicos e singulares de cada modelo em torno de uma concepção ética, possibilitando o surgimento de novos campos discursivos que produzam interações e levem a novas construções metafóricas.
Com essa ideia em mente, procuramos pontos de contato que nos propiciem um diálogo produtivo e nos levem a traçar interconexões entre a teoria dos sistemas de justificação [Justification Systems Theory - JUST] (Henriques, 2022) - e algumas premissas da teoria psicanalítica.
1. A teoria dos sistemas de justificação (JUST)
A JUST é uma metateoria que propõe uma hipótese sobre a transição dos primatas para o homo sapiens. Ela busca compreender como a aquisição da consciência1 e do mundo social ocorreram em resposta à capacidade singular da espécie humana para desenvolver linguagem proposicional.
Parte-se da hipótese segundo a qual um problema adaptativo transformou a evolução da comunicação humana, tornando-a qualitativamente única no reino animal e moldando os caminhos pulsionais responsáveis pela dinâmica da consciência humana. Esse processo levou o ancestral do homem a desenvolver a linguagem em uma fase específica do desenvolvimento da espécie, foram mudanças climáticas de proporções avassaladoras, e esse desenvolvimento faz parte de nossa herança filogenética (Freud, 1915/1987).
A metateoria JUST está inserida no contexto mais amplo da teoria unificada do conhecimento [Unified Theory of Knowledge - UTOK] (Henriques, 2022). A UTOK se configura como uma metapsicologia que viabiliza um alinhamento entre as ciências naturais, a experiência subjetiva e o conhecimento intersubjetivo. Essa teoria encontra seus fundamentos na ciência da psicologia e na prática da psicoterapia, cumprindo a função de estruturar um panorama integrativo na ciência psicológica e nas diversas escolas de pensamento em psicoterapia. Cabe ressaltar que uma descrição completa da UTOK está além do escopo deste artigo e detalhes aprofundados podem ser encontrados em Henriques (2022).
1.1 As três alegações da teoria dos sistemas de justificação
A questão central explorada pela JUST é a seguinte: Quais desafios adaptativos emergiram com o desenvolvimento da linguagem proposicional e quais foram as implicações estruturais e funcionais subsequentes desse processo evolutivo?
Para investigar a interligação entre o uso da linguagem proposicional e a estrutura e a função da mente humana, a JUST adota uma abordagem de “engenharia reversa” (Dennett, 1995; Pinker, 1997; Kaminski; Milkowski, 2013). Essa abordagem baseia-se na observação fundamental de Darwin de que o design funcional dos organismos é resultante da seleção natural. Dessa forma, a metodologia teórica da JUST consiste em associar as características do design da consciência humana e do uso da linguagem aos problemas enfrentados no ambiente ancestral, orientando a formulação de hipóteses sobre a função evoluída da linguagem e a consciência humana. Para um aprofundamento na formulação teórica da JUST, remetemos o leitor interessado a Henriques (2003).
A JUST propõe a possibilidade de que a autoconsciência humana tenha evoluído como resposta a uma nova pressão seletiva enfrentada por nossos ancestrais hominídeos: a necessidade - que surgiu pela primeira vez na história evolutiva - de nossos antepassados justificarem suas ações para si e para os outros. Essa necessidade foi um problema adaptativo: o problema da justificação.
A JUST defende que a natureza da consciência humana apresenta diferenças fundamentais em relação à dos outros animais e que o problema da justificação deu origem à organização estrutural e funcional do eu humano e ao desenvolvimento de sistemas de justificação em larga escala que coordenam grupos de pessoas, de tribos a nações.
A JUST é composta por três alegações interligadas: (1) a evolução da linguagem gerou dinâmicas que podem ser enquadradas como problema adaptativo da justificação, tendo moldado a evolução da consciência e da cultura humana, de forma que (2) a natureza da consciência humana pode ser caracterizada pelo modelo tripartido atualizado da JUST, consistente com as noções fundamentais de Freud a respeito da tensão entre as pulsões e os julgamentos do mundo social, e (3) os ancestrais dos seres humanos se tornam sujeitos por meio do processo de socialização em sistemas de justificação. Nas seções subsequentes, exploramos mais essas ideias centrais.
2. O problema adaptativo da justificação: a hipótese da justificação
A primeira ideia que compõe a teoria dos sistemas de justificação (JUST) é delineada pela hipótese da justificação. Essa hipótese se apoia na premissa fundamental de que, em contraste com qualquer outra espécie animal, os seres humanos desenvolveram a capacidade de fornecer explicações para seus pensamentos, seus sentimentos e suas ações. Dessa maneira, a JUST estabelece sua análise a partir da evolução da linguagem proposicional, argumentando que, à medida que a linguagem se desenvolveu para abranger o uso de proposições e a habilidade de questioná-las, os seres humanos se tornaram os primeiros animais a apresentar a necessidade de se justificar para os outros e para si próprios.
Ainda que diversas outras espécies animais exibam sistemas de comunicação complexos, a linguagem humana permanece única dentro do reino animal. Em sua essência, a linguagem humana abrange a habilidade de conferir símbolos a objetos e eventos mantidos na memória de trabalho e organizá-los em uma estrutura semântica e gramatical para compor significados (Henriques, 2022). Ao expressar asserções, os seres humanos empregam proposições, unidades linguísticas que transportam informações de caráter factual ou descritivo e que podem ser avaliadas como verdadeiras ou falsas de acordo com sua correspondência com a realidade. Consequentemente, as proposições se estabelecem como unidades fundamentais de significado que sustentam a comunicação e o pensamento lógico.
Dessa maneira, a linguagem pode ser entendida como um sistema composto por proposições que carregam asserções de verdade, o que as torna sujeitas a questionamento (Henriques, 2022). Tal questionamento dá origem a um ciclo de retroalimentação crucial para a evolução da comunicação humana: a dinâmica de perguntas e respostas.
Aqui, o termo “respostas” refere-se a afirmações ou proposições que conferem significado, enquanto o termo “perguntas” diz respeito a questionamentos com a finalidade de: (1) adquirir conhecimento proposicional sobre o estado das coisas (“o que aconteceu?”), (2) contestar afirmações (“por que isso ocorreu?”) ou (3) destacar a ausência de conhecimento (“como isso se desenrolou?”). Ao considerar a interação dinâmica entre perguntas e respostas, a JUST reconfigura a unidade elementar de significado linguístico, frequentemente identificada como uma proposição, como uma justificação.
A premissa para tal é a seguinte: o papel funcional das proposições no campo social é delineado por justificações empregadas para legitimar algum conhecimento. Qualquer proposição inserida no contexto social é suscetível de questionamentos, seja por parte do indivíduo que a apresenta, seja por parte de terceiros quanto a, pelo menos, (a) seu conteúdo lógico ou empírico; (b) o propósito para enfatizá-la naquele momento específico; e (c) as implicações para o que deveria acontecer, dada a proposição. A partir dessa perspectiva, emerge um aspecto importante da dinâmica da justificação. O problema da justificação envolve um conjunto de questões relacionadas tanto aos aspectos factuais quanto aos aspectos de valor de dada proposição. Uma distinção entre esses dois domínios foi destacada por David Hume, que propôs a divisão entre questões de fatos ou precisão (ou seja, o que é) e questões de valor ou interesse pragmático (ou seja, o que deve ser). Embora esses elementos estejam intimamente entrelaçados na experiência cotidiana, eles podem ser discernidos de forma conceitual.
O aspecto factual da justificação diz respeito à avaliação das proposições quanto à sua veracidade, isto é, se podem ser consideradas como correspondentes à realidade atual. Esse aspecto é prontamente identificado quando questionamos se a informação que estamos obtendo de outra pessoa é verdadeira ou não. O aspecto de valor do problema da justificação se refere às considerações sobre o que deveria ser, ou como as coisas deveriam ser conduzidas, no contexto em que a justificação é empregada. Em sua forma mais pragmática, esse aspecto é representado pela indagação: Por que atenção está sendo direcionada para essa afirmação proposicional neste momento e quais são as implicações disso para os envolvidos caso acreditem nela ou tomem ações com base nela?
Essas posições da JUST guardam ressonâncias com uma das questões centrais da psicanálise, a saber, a da realidade psíquica. Para Freud (1914/1996), uma modificação psíquica só pode ser compreendida, e talvez alterada, quando se alcança a verdade do sujeito. Contudo, só podemos falar de verdade em psicanálise se evidenciarmos a realidade que sustenta: a histórica ou a material? E, mais ainda: como essas verdades são construídas e de que elementos dispomos para diferenciá-las (Ceccarelli, 2019).
2.1 Três elementos do problema adaptativo da justificação
Além das dimensões factuais e dos valores presentes na dinâmica da justificação, três componentes adicionais do problema adaptativo podem ser identificados: (1) o problema analítico; (2) o problema social; e (3) o problema pessoal.
O problema analítico se alinha com a dimensão factual da justificação e abrange uma ampla gama de questões. Em sua forma mais básica, o problema analítico permeia nossas interações cotidianas, manifestando-se sempre que a veracidade de uma justificação é questionada. A partir do momento em que os sistemas de justificação evoluíram e se refinaram na era moderna, o problema analítico tornou-se um elemento central para o empreendimento filosófico e científico. Por exemplo, a questão do comportamento dos objetos físicos na mecânica clássica é um problema analítico de justificação.
Os elementos pessoal e social podem ser entendidos através do processo de “filtragem” que emerge à medida que a nossa capacidade de justificar evolui. Primeiramente, a linguagem humana pode ser concebida como uma rodovia intersubjetiva de informações que flui entre os sujeitos sem perder sua forma informativa. Em outras palavras, o nosso uso da linguagem estabelece uma conexão mental direta entre sujeitos, dando origem a uma forma de intersubjetividade explícita única na comunicação humana (Henriques, 2022). Esse desenvolvimento representa tanto vantagens quanto desafios. Quando um grupo apresenta coesão em seus valores, seus interesses e seus objetivos, a via de intersubjetividade explícita facilita o compartilhamento de informações e a coordenação em empreendimentos conjuntos, como caças organizadas ou decisões políticas. Entretanto, quando há divergências nos interesses, nos valores e nos objetivos de um grupo, surgem questões, como:
(1) Quais informações você planeja compartilhar? Quando e como deseja fazê-lo? e (2) Como você pode determinar se as informações compartilhadas por outros são verdadeiras, válidas e úteis?
É plausível considerar a existência de um processo de filtragem dessas informações, uma vez que é provável que certos dados sejam preferencialmente mantidos em sigilo. Dessa forma, mesmo com a presença de uma via explícita de compartilhamento de informações por meio da linguagem, supomos que os seres humanos ainda teriam que enfrentar a demanda de avaliar e controlar tanto as informações que compartilham com os outros quanto as que recebem. Essa análise nos permite começar a diferenciar os aspectos pessoal e social do problema da justificação. A relação entre esses dois aspectos diz respeito aos interesses pessoais e como essas/suas explicações influenciam as relações sociais.
A referência aos processos de filtragem entre o campo privado e o social no problema adaptativo da justificação traz à tona como a formulação teórica de JUST se alinha com as considerações freudianas sobre a dinâmica do aparelho psíquico e talvez sobre as posições freudianas em relação ao narcisismo e seus desdobramentos (Freud, 1914/1996). Mais especificamente, essa perspectiva esclarece por que o eu deve adestrar as moções pulsionais (Freud, 1914/1996) do isso para se adaptar às demandas do trabalho de cultura [Kulturarbeit]. Há interesses pessoais que devem ser resguardados dos olhares críticos da sociedade e dos interesses sociais promovidos e protegidos por ela. A partir dessas conclusões, podemos explorar como o problema adaptativo da justificação deu origem ao modelo de consciência humana proposto na metateoria JUST: o modelo tripartido atualizado.
3. A evolução da consciência humana: o modelo tripartido atualizado
O modelo tripartido atualizado (Henriques, 2011) constitui uma revisão contemporânea das observações de Freud sobre o isso, o eu e o supereu (FIG. 1) Esse modelo é composto por: (1) um eu experiencial, que engloba a vivência e a experiência de estar no mundo, combinado a um modelo relacional do eu que reside em nosso núcleo emocional; (2) um eu privado ou ego, que ocupa uma posição de autorreflexão e narração interna sobre o que ocorre e por quê; e (3) o eu público ou persona, que administra os papéis sociais e as impressões externas.
3.1 O eu privado ou ego
Na JUST, o eu privado, também conhecido como ego, pode ser considerado como o “órgão mental da justificação” (Henriques, 2022). Isso significa que a dinâmica de interpretação e a explicação de sentimentos, pensamentos e ações, que está envolvida na criação de justificações, ocorre principalmente no âmbito privado do ego. Na JUST, o eu privado ou ego é definido como o núcleo da autoconsciência reflexiva, composto pelo diálogo interno que constrói narrativas sobre o que está acontecendo e por quê. É um sistema de consciência que traduz eventos e sentimentos em linguagem, além de reintroduzir esses pensamentos no sistema experiencial. Embora outros animais possam ter elementos rudimentares de autoconsciência, esse domínio de consciência autorreflexiva mediado pela linguagem é qualitativamente diferente em seres humanos, devido à nossa capacidade de formar justificações e à nossa socialização em um contexto cultural composto por sistemas de justificação. Freud (1938/2020) sustenta que nos animais superiores há que supor um esquema geral de um aparelho psíquico semelhante ao do homem: “é de se presumir um supereu onde quer que, assim como entre os humanos, tenha existido uma dependência infantil de longa duração” (Freud, 1938/2020, p. 21).
3.2 O eu experencial
O eu experencial pode ser compreendido a partir de dois domínios distintos. Um deles abrange a consciência sensorial e perceptual do mundo exterior, estando mais relacionado ao aspecto “experencial” dessa parte da consciência. Esse é o assento da experiência de estar ciente do mundo, a função de testemunhar o mundo ao abrir os olhos e percebê-lo conforme se apresenta, antes de qualquer interpretação ou afeto em relação a ele (Wright, 2018). O segundo domínio diz respeito à maneira como reagimos a essas percepções, ou seja, as motivações que levam o indivíduo a prestar atenção aos estímulos do ambiente que são relevantes para si e reagir a eles com uma valência emocional e desejo de se aproximar ou se afastar desses estímulos.
De acordo com a JUST, essa camada da consciência é compartilhada com outros animais que também experenciam o mundo através de sua consciência sensorial e perceptual, suas motivações e suas emoções. Em referência à hierarquia de necessidades de Maslow (1954), os dois primeiros níveis referentes às necessidades fisiológicas e de segurança de alinhariam com esse aspecto da consciência, abrangendo coisas como prazer e dor, fome e sede, e as sensações de segurança ou perigo, confiança ou ameaça. Podemos também identificar uma camada do eu experencial alinhada com nossa experiência como primatas inseridos no contexto social, com redes relacionais complexas. Na hierarquia de Maslow, essa camada é enquadrada em termos de pertencimento e estima, associada às necessidades de amor, poder ou influência social, além da necessidade de ser visto, conhecido e valorizado por pessoas importantes.
3.3 O eu público ou persona
O eu público, ou persona, se refere à articulação explícita e pública das justificações antes reservadas ao âmbito privado. Tal domínio da consciência ganha esse nome com referência ao trabalho de Carl Jung (2008), especificamente à ideia da “máscara” que os seres humanos usam em suas interações sociais. Além disso, esse aspecto da consciência se relaciona com a noção de que os seres humanos se tornam pessoas a partir do aprendizado da dinâmica de troca de relatos sociais que envolvem justificações e alocação de papéis sociais. Em alinhamento com esse pensamento, Dan McAdams (2013) aponta para a primeira fase do desenvolvimento da autoconsciência como a fase do “ator social”, abrangendo dos 2 aos 10 anos de idade, faixa etária correspondente à socialização das crianças sobre regras e papéis sociais que desempenham, e se serão aplaudidas ou disciplinadas por suas ações.
No modelo de McAdams, a fase subsequente é a do agente, em que o eu se estabiliza com o desenvolvimento do autoconceito e da capacidade de refletir e tomar decisões. Finalmente, McAdams identifica a fase adulta plena, em que a criança é capaz de narrar os acontecimentos e interpretá-los em uma linha contínua para contextualizar o “eu” em uma trajetória de desenvolvimento. Esse mapeamento do desenvolvimento do narrador interno é consistente com os domínios do ego e persona no modelo tripartido atualizado.
Em conclusão, de acordo com o modelo tripartido atualizado da teoria dos sistemas de justificação (JUST), o sistema de consciência humana é um aparato mental evolutivamente novo, que funciona para construir narrativas de justificação que legitimam ações e proposições. Em outras palavras, a autoconsciência humana é a parte da mente baseada na linguagem que narra o que está acontecendo, por que está acontecendo e por que alguém está agindo de determinada forma nesse contexto.
O que se depreende sobre a constituição do aparelho psíquico na perspectiva da JUST é a sua proximidade da constituição do sujeito na psicanálise, embora as palavras e os autores citados não façam parte do arsenal teórico da psicanálise. No Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950 [1895]/1996), as concepções da neurologia refletem a evolução da consciência humana tal como entendida pela JUST. Mais tarde, o eu é uma instância psíquica a ser compreendida entre as outras (isso e supereu) e as exigências da realidade. No narcisismo, o Eu se opõe ao objeto e pode ocupar seu lugar oferecendo-se ao amor do isso. Em O ego e o id,Freud (1923/1996, p. 41) atribui ao ego um precipitado de identificações; uma instância psíquica e, mais tarde, uma “projeção mental da superfície do corpo”: um “eu corporal” derivado de sensações.
Falar que nos tornamos sujeitos “a partir do aprendizado da dinâmica de troca de relatos sociais que envolvem justificações e alocação de papéis sociais” é dizer que somos constituídos pelo desejo do Outro, instância fundamental para a inserção da criança na linguagem e na cultura (Lacan, (19571958/1999).
Piera Aulagnier (1975), em sua obra de referência A violência da interpretação apresenta uma teoria inovadora na psicanálise ao falar do eu como instância, algo ligado à consciência e a um projeto identificatório.
Ainda utilizando a noção lacaniana de Outro, Aulagnier modifica o conteúdo do Eu ao historicizá-lo, ao redefini-lo nas circunstâncias de seu surgimento. O que faz a particularidade da teoria de Aulagnier é que se refere ao lugar que ela atribui à noção de encontro e à de complementaridade. Seu pensamento inova no que diz respeito àquilo que precede a chegada da criança no mundo.
Nessa perspectiva, a questão em relação ao Outro começa, para o sujeito, em um tempo outro. O Outro lhe é preexistente e constitui, como sustenta Aulagnier, o espaço onde o eu pode aparecer. Enfatizando a temporalidade, Aulagnier dá nova dimensão à relação mãe-bebê, em uma dinâmica profundamente psicanalítica, redimensionando a noção de a posteriori [Nachträglich] para pensar tanto o traumatismo quanto o sexual no humano.
4. Os filtros entre os domínios da consciência no modelo tripartido atualizado
Um aspecto importante do modelo de consciência humana proposto pela JUST é a presença de três filtros que operam entre os domínios da consciência para regular a interface de informações, a fim de manter o equilíbrio psíquico. Os filtros são: (1) o filtro de atenção, (2) o filtro freudiano e (3) o filtro rogeriano.
O filtro de atenção se refere ao processo de filtragem neurocognitiva em relação ao que entra no domínio subjetivo da consciência. Ele envolve processos de atenção direcionada e de percepção, que medeiam a correspondência entre informações sensoriais e a construção cognitiva de sentido para identificar estímulos relevantes e prever mudanças no ambiente.
O filtro freudiano opera entre o eu experencial e o eu privado e se refere à visão fundamental de Freud de que existe uma relação dinâmica e um processo de filtragem entre as percepções e impulsos e o processo narrativo autoconsciente. Esse filtro desempenha a função de inibir, evitar ou reprimir sentimentos, imagens e impulsos disruptivos, perturbadores ou problemáticos, enquanto emprega estratégias de racionalização para redução de dissonância cognitiva, visando manter um senso de equilíbrio psíquico. O triângulo do conflito proposto por David Malan (Malan; Osimo, 2014) é congruente com a concepção do filtro freudiano.
A relação entre o filtro de atenção e o freudiano pode ser descrita da seguinte maneira: quando uma imagem mental, pulsão ou sentimento emerge na atenção do domínio do eu experencial, o sistema de filtragem detecta as suas possíveis associações ou implicações e, em seguida, determina se a imagem deve ser trazida à consciência. Se as implicações forem identificadas como problemáticas, emerge a experiência de ansiedade, que por sua vez ativa um deslocamento de atenção que visa inibir ou afastar a imagem ou pulsão emergente da atenção do indivíduo. Esse deslocamento de atenção é inconsciente e tem a função de afastar o estímulo que representa ameaça e gera ansiedade, mantendo-o fora da consciência do eu privado. Esse mecanismo é clássico na teoria psicanalítica: o recalque. As formulações freudianas expostas em Inibição, sintoma e medo (Freud, 1926/2016), sobretudo no que diz respeito à teoria sobre a angústia como sinal de perigo, vão no mesmo sentido.
Finalmente, o modelo tripartido atualizado da JUST também inclui um filtro entre os domínios do eu privado e o eu público (ou persona). Esse filtro é denominado filtro rogeriano, uma alusão direta às ideias de Carl Rogers (1995) sobre a relação entre o eu e o mundo social. Rogers observou que parte do sofrimento humano está ligada ao impacto do julgamento dos outros em suas ações e na sua autopercepção. Esse processo de filtragem é ilustrado por situações em que omitimos ou ajustamos informações ao mover da esfera privada para a esfera pública, a fim de proteger essa informação e controlar sua influência no contexto social. Temos aqui, em linguagem diferente, as diferenciações psicanalíticas entre o Eu-ideal, e o Ideal do Eu.
5. Os sistemas de justificação que compõem a cultura humana
O esforço metateórico da JUST pode ser resumido como a construção de um fundamento teórico que explique a singularidade da consciência e a comunicação humana. Nesse empenho, a terceira e última alegação da JUST envolve considerações sobre a formação cultural humana, tendo por base o conceito de justificação como elemento fundamental na comunicação linguística.
Embora o termo “cultura” seja desafiador de definir, pode-se apontar para um consenso entre os teóricos de que o termo não abarca a totalidade da experiência humana e da sociedade (Henriques, 2022). Em vez disso, podemos nos referir mais especificamente aos padrões nas esferas de crenças, valores, símbolos e discursos que são compartilhados por um grupo de indivíduos (Smith, 2001). Alinhada à essa percepção, a JUST oferece uma nova perspectiva sobre a interrelação entre linguagem, autoconsciência humana e a evolução da cultura, interpretando tanto a autoconsciência humana quanto à cultura como sistemas de justificação. Nesse contexto, os sistemas de justificação são tidos como redes interconectadas de crenças e valores fundamentados na linguagem, que operam para legitimar uma determinada interpretação da realidade ou visão de mundo específica (Henriques, 2011).
A ideia é que os sistemas de justificação emergem em contextos sócio-históricos com o propósito de atuar como referências de pensamento e comportamento, coordenando as ações das pessoas. Por exemplo, a legislação pode ser considerada um conjunto formalizado de justificações respaldadas por poder institucional, com o intuito de legitimar o controle social sobre condutas consideradas impróprias. A ciência, a governança e a religião também podem ser compreendidas como sistemas coletivos de justificação. Em um nível mais abstrato da cultura humana, encontra-se uma organização desses sistemas de justificação composta por visões de mundo, narrativas, conceitos, valores e declarações centrais que atuam para estruturar e organizar os processos de construção coletiva de significado. Dito de outra forma, os sistemas de pensamento, assim como os laços sociais em suas mais variadas expressões, nos dão a impressão de sermos protegidos em nosso desamparo, condição antropológica fundamental do ser humano (Ceccarelli, 2009).
Considerações finais
A influência do pensamento seminal de Freud na teoria dos sistemas de justificação (JUST) é indiscutível. O modelo tripartido atualizado é nomeado explicitamente em referência ao trabalho de Freud, uma vez que os domínios do eu experencial, eu privado (ego) e eu público (persona) apresentam paralelos com o modelo tripartido do isso, eu e supereu.
Em consonância com a ideia de que os seres humanos são “animais culturais” (Baumeister, 2005), ou de horda (Freud, 1921/1996) o eu humano desempenha um papel central na dinâmica da cultura, uma vez que permite aos indivíduos aprender os padrões de linguagem e comportamento dos contextos em que nascem, possibilitando, assim, a sua socialização como membros da sociedade. Essa conexão entre o eu privado e o domínio cultural público nos permite estabelecer um paralelo com o conceito de supereu em Freud, que reflete os padrões sociais internalizados e idealizados. O conceito de supereu se sobrepõe significativamente ao eu público, ou persona, na teoria dos sistemas de justificação, podendo ser compreendido como a imagem que o indivíduo procura projetar e regular para administrar a forma como é percebido pelos outros.