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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.59 Belo Horizonte Jan./July 2023  Epub Feb 14, 2025

https://doi.org/10.5935/2175-3482.n59a11 

Artigos

A supervisão na clínica do curso do NEPIA-CPRS

Supervision in clinic at the NEPIA-CPRS training course

Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski1 

1Psicanalista e membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS), filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) e à International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS). Psicopedagoga titular. Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutora e pós-doutora em psicologia social pela Universidad Argentina J. Kennedy. Professora da Faculdade Porto-alegrense (FAPA) de 1996 a 2017. Coordenadora de seminários de formação psicanalítica no CPRS desde 2009. Autora de artigos sobre psicopedagogia e psicanálise e do livro O mutismo seletivo no espaço escolar (Diálogo Freiriano, 2019). E-mail: mwagnerpokorski@gmail.com


Resumo

Este ensaio objetiva caracterizar a demanda da supervisão em grupo do curso complementar em formação psicanalítica na clínica com crianças e adolescentes do Núcleo de Estudos de Psicanálise da Infância e Adolescência (NEPIA) do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS), situando a história da supervisão na formação psicanalítica e examinando seus efeitos no processo formativo. A presente reflexão parte de recortes clínicos fornecidos por analistas ou candidatos do curso. A partir desses fragmentos, procura-se abrir possibilidades de intervenções, analisando algumas das hipóteses diagnósticas com fundamentos teóricos de Freud, Gutfreind, Rassial, Sigal, Volich, entre outros.

Palavras-chave Supervisão; Crianças e adolescentes; Recortes clínicos

Abstract

This essay aims to characterize the demand for group supervision under the scope of the complementary course in psychoanalytic training in children’s and adolescents’ clinic at the Núcleo de Estudos de Psicanálise da Infância e Adolescência (Center for Psychoanalytical Studies of Childhood and Adolescence — NEPIA) of the Círculo Psicoanalítico do Rio Grande do Sul (Psychanalytical Circle of Rio Grande do Sul — CPRS), situating the history of supervision in psychoanalytic training and examining its effects on the training process. This reflection is based on clinical clippings provided by analysts or course candidates. From these fragments, we try to open up possibilities for interventions, analyzing some of the diagnostic hypotheses with theoretical foundations from Freud, Gutfreind, Rassial, Sigal, and Volich, among others.

Keywords Supervision; Children and adolescents; Clinical clippings

Introdução

Escrever sobre a supervisão em grupo do curso do Núcleo de Estudos de Psicanálise da Infância e Adolescência (NEPIA) do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS), que é um espaço de reflexão sobre a clínica, faz com que nos deparemos com algumas interrogações: Qual é a diferença na constituição psíquica do sujeito de hoje em relação aos tempos de Freud? Será que a economia psíquica está se organizando no ser humano de forma diferente, considerando as mudanças nas relações familiares e o maior uso das tecnologias digitais? Se, para Freud (1915/2010), a repressão ou o recalque foram a pedra angular, nas últimas décadas, a renegação ou o desmentido parecem estar em evidência. Ou seja, as defesas de um funcionamento psíquico mais arcaico ou primitivo aparecem, com frequência, com falta de vínculo, de apego, de laço com o outro, ou mesmo em menor intensidade.

Examinar a clínica da criança e do adolescente requer pensarmos, além do seu mundo interno, o seu mundo externo, o ambiente de que esse psiquismo dispõe para se constituir, que, por vezes, pode não oferecer as condições minimamente saudáveis. Assim, este ensaio pretende situar a história da supervisão no tripé da formação psicanalítica (teoria, análise, supervisão), bem como trazer alguns fragmentos de vinhetas clínicas examinados nos encontros de supervisão em grupo no curso do NEPIA-CPRS, abrindo possibilidades de pensar alternativas de intervenção para os casos.

1 A história da supervisão na formação psicanalítica

A história da supervisão remete aos dados de sua fundação. Mendes (2012), no artigo Sobre a supervisão, discute sobre o que ela consiste. Quais as demandas e os efeitos, na prática, de quem a busca? O que está em sua origem? Sabe-se do relato de que a primeira supervisão na história da psicanálise ocorreu entre Freud e Fliess. O termo “supervisão” foi utilizado por Freud em 1919. Mendes (2012, p. 49) assinala que “o nascimento formal da Supervisão aconteceu no primeiro instituto de formação de analistas, fundado por Karl Abraham e Max Eitingon, em 1920, em Berlim”.

O termo “supervisão” pode ter diferentes denominações. Alguns o definem como uma visão a mais, uma covisão, ou uma intervisão clínica, mas todos concordam que seja um dos pilares do tripé da formação psicanalítica. Duvidovich, Goldenberg e Broide (2020, p. 117) destacam que a supervisão é o “espaço intermediário” entre a análise pessoal e os seminários teóricos. Volich (2015, p. 287) menciona que sua função é “a criação de um espaço de continência para as vivências mobilizadas no terapeuta pelo encontro com seu paciente”.

Mas o que tem mudado nas últimas décadas nas pessoas que buscam o espaço analítico? Quais as implicações das relações mais líquidas, conforme Bauman (2007), no processo de subjetivação? Por que tantas crianças ou adolescentes chegam ao consultório com diagnósticos de transtorno do espectro autista ou com outras denominações do DSM-5 (2013)?

Percebemos que alguns paradigmas na clínica precisam receber uma escuta e um olhar diferentes daqueles do século XX. Volich (2022, p. 447-448) refere que o fio do recalcamento, que sempre tem orientado a clínica, depara-se com novas manifestações psicopatológicas:

Atravessados por esse fio, intuído e preconizado por Freud, recordar, repetir e elaborar são operadores fundamentais de uma análise. [...]: Ao longo desse caminho, evidencia-se a importância de outro paradigma clínico, nomear, subverter, organizar (Grifos do autor).

Birman (2004) segue a mesma perspectiva ao examinar o empobrecimento da capacidade de pensar e o reflexo disso na linguagem. Muitos têm apenas a representação da imagem, e não a capacidade de um discurso próprio. Para Kristeva (2002, p. 15), nas novas sintomatologias do mal-estar da atualidade, há “um denominador comum: a dificuldade de representar”. Rassial (2000) aponta a grande dificuldade dos jovens de vencer a etapa da adolescência e de realizar a travessia ao mundo adulto, fenômeno denominado de “estado limite”. Gutfreind (2021), no livro A nova infância em análise, sugere que algo vem mudando na constituição do sujeito ou no processo de subjetivação.

Na mesma direção de mudanças que estão sendo observadas, Forbes (2012) analisa a segunda clínica descrita por Lacan, em que o simbólico, o complexo de Édipo e a verticalidade nas relações perdem lugar para o Real, com novos sintomas, com o mundo das redes, em que as relações são mais horizontais.

Percebemos que esses são temas a serem aprofundados, uma vez que, para Forbes (2012, p. xxix):

Temos hoje uma série de novos sintomas, próprios da horizontalidade do laço social da globalização, que não respondem ao tratamento standard da Psicanálise do século passado.

2 Supervisão em grupo com recortes clínicos

Por ser uma supervisão em grupo, cada analista ou candidato(a) do curso complementar (NEPIA-CPRS) que se dispunha a apresentar um caso clínico fornecia-nos os dados com antecedência. A partir desses recortes, procuramos abrir possibilidades de escuta e de intervenção, examinando hipóteses diag-nósticas, indicando alguns fundamentos da psicanálise.

Assim, vamos abordar oito fragmentos, aqui bastante resumidos, de casos apresentados em quatro encontros, nos módulos 1 e 3 do curso: As entrevistas preliminares na clínica psicanalítica da infância e adolescência; e As histórias contadas, escritas e compartilhadas. Todos os nomes citados são fictícios. As vinhetas não contêm nenhuma identificação; um subtítulo caracteriza o tema do caso. Nossa intenção é examinar as demandas de crianças e adolescentes que chegam à clínica e pensar alguns vieses psicanalíticos para compreender a clínica contemporânea.

2.1 Possíveis entraves ou impactos na constituição psíquica

Maria tem 2 anos e 9 meses de idade. Na entrevista com a psicanalista, os pais referem as crises de choro sistemáticas e prolongadas e a pouca interação. Nas primeiras semanas de vida, ela fora hospitalizada em função de complicações sanguíneas.

A hospitalização e o choro prolongado podem remeter a rupturas abruptas, separações não nomeadas, ansiedades ou angústias. Angústia é o afeto por excelência. Na psicanálise, Freud, ao longo de seus escritos, tem examinado a ansiedade ou a angústia, especificando a da separação, a da castração, a angústia como sinal, e assim por diante. Outros autores, igualmente, analisam o assunto, entre os quais Winnicott (1990), que se centra na angústia de aniquilamento ou nas agonias impensáveis, em etapas pré-edípicas.

Maria, é bem possível, vivenciou angústias marcantes quando hospitalizada. Ao falarmos de bebê, falamos de um psiquismo se constituindo, se organizando e se estruturando, o que remete ao arcaico, ou seja, às primeiras marcas, inscrições, representações-coisa, ainda não simbolizadas ou em processo de simbolização. O bebê precisa da palavra, da nomeação, da narrativa, do toque, do cheiro, do olhar e da escuta da voz do outro. Acreditamos que a menor interação de Maria possa ser um reflexo da pandemia, que afetou a socialização das crianças. Antes de pensarmos em transtorno do espectro autista, no caso de Maria, defendemos ser importante investigar com os pais histórias de doenças transgeracionais na família, suas fantasias sobre possíveis entraves nessa constituição de sujeito, bem como oferecer à criança diferentes espaços de interação, observando, na clínica, na relação transferencial, o que Maria manifesta de mal-estar ainda não nomeado.

2.2 Dificuldades de lidar com frustrações e um possível sentimento de incerteza

No primeiro atendimento, os pais relatam que João (com 6 anos de idade), na escola, apresenta choro, briga com os colegas, agressividade; em casa, quando contrariado, deita no chão e chora como um bebê, brigando muito com o irmão menor.

Como, na psicanálise, podemos entender a agressividade da criança? O que é mais primitivo no ser humano, a violência ou a agressão? Enquanto, na agressividade, há um predomínio da pulsão de vida, na agressão, prevalece a pulsão de morte. Ao examinar a violência na evolução afetiva humana, Bergeret e colaboradores (2006) mostram que a violência é um fenômeno universal, uma tendência instintiva, presente de alguma forma na raça humana. A agressividade é caracterizada como uma atividade mental elaborada, e não como parte do processo primário, como a violência.

Até que ponto o comportamento agressivo de João é um sintoma relacionado ao que não entendeu o suficiente, com a vinda do irmão, a necessidade de dividir um espaço que antes era só dele, uma vez que se encontrava em uma etapa mais narcísica e/ou egocêntrica? Para McDougall (1997, p. 168), “os sintomas são, sem exceção, resultados de esforços infantis no sentido de encontrar soluções para a dor mental e o conflito psíquico”.

João, “quando contrariado, deita-se no chão e chora como um bebê”. Isso nos parece que tem a ver com sua dificuldade em aceitar o NÃO do outro. Kupfer e Bernardino (2022) fazem a diferenciação entre birra e desorganização. A birra é um comportamento da criança para obter reconhecimento; busca chamar a atenção do adulto sobre si mesma. Ela cuida do lugar, ao se jogar no chão. Na desorganização, demonstra uma imagem frágil e pouco constituída; a criança “não percebe o outro, não se cuida em relação às consequências físicas de se jogar no chão, descontrola-se completamente” (Kupfer; Bernardino, 2022, p. 52).

2.3 Um ambiente conturbado, um jeito de agredir o ambiente com dejetos do corpo que não passavam pela palavra

A mãe relatou, na entrevista preliminar, que a encoprese de Pedro iniciou por volta dos 6 anos de idade, no início da pandemia. O que significa a encoprese na psicanálise?

Barbosa, Silva e Ceccarelli (2020), no artigo A psicanálise e os ‘transtornos da excreção: enurese e encoprese na clínica com crianças, destacam, em relação à encoprese, “que o termo é introduzido por S. Weissenberg, em 1926, para designar qualquer defecação involuntária que ocorra em uma criança que já tenha ultrapassado a idade de 2 anos, e na ausência de lesão evidente do sistema nervoso ou de outra afecção orgânica”. Alvarez (1994) afirma que o passado patogênico da criança pode estar causando danos no momento presente. A confiança e a regularidade nos atendimentos (mesma sala, mesmo horário) são aspectos importantes, “para que a estrutura e a ordem comecem a desenvolver-se na mente da criança” (Alvarez, 1994, p. 14).

Gutfreind (2022), em O livro dos lugares: dos pais na análise da criança, do bebê na análise do adolescente, escreve sobre a importância de um trabalho com os pais, no enquadre da psicanálise da criança, escutando deles as fantasias ou resistências diante da situação apresentada pela criança.

2.4 Os entraves edípicos que podem perturbar o desenvolvimento

Júlia, com 10 anos, frequenta o 4.° ano do ensino fundamental. Na primeira entrevista, os pais se queixaram de que, durante a pandemia, a menina passou a não querer dormir sozinha.

Freud (1926/1996), em Inibições, sintomas e ansiedade, evidenciou sua compreensão acerca da angústia em relação às situações de perigo. As fobias correspondem aos sintomas de angústia e estão associadas a perdas, insatisfações e desamparo. A angústia passa a ocupar um lugar na teoria das neuroses.

No caso de Júlia, será que as fantasias edípicas não estão sendo alimentadas com a cama compartilhada? Quais os ganhos secundários em seguir sentindo medo de dormir após determinado horário? Quais são as tentativas dos pais em tranquilizá-la em seu quarto?

Gutfreind (2021) examinou várias vinhetas de casos que nos ajudam a pensar diferentes maneiras de possibilitar que o outro (re)escreva sua história. O autor menciona: “Imperam sintomas, sobram atos, faltam pensamentos, escondem-se sentimentos, carece interesse por aquilo que as inibe” (Gutfreind, 2021, p. xii). Como entender, na citação de Gutfreind (2021), que “faltam pensamentos”?

Ao examinar a noção de mentalização, nos fundamentos psicanalíticos da clínica psicossomática, na perspectiva do modelo econômico, Volich (2007, p. 19) refere as três vias das excitações e suas descargas. São elas: “a via orgânica, a ação e o pensamento, que representam, nesta ordem, o grau hierárquico progressivo da evolução das respostas do indivíduo”. Essa terceira via, a do pensamento, em alguns casos, encontra-se em uma forma muito empobrecida, em função de menos narrativas, de mais uso de tecnologias e de relações interpessoais mais variadas e menos intensas.

A falta do diálogo em muitas famílias tem repercussões no corpo e na capacidade de simbolizar, ou seja, a capacidade de simbolizar é necessária à capacidade de pensar: “Quando a simbolização falha, algo que deveria ter sido transformado, derivado, reaparece em seu estado arcaico, primitivo, puro” (Sigal, 2009, p. 180).

2.5 O desejo de nascer e o desejo de dar nascimento em meio ao jogo da vida

Felipe, com 10 anos de idade, foi atendido de forma on-line. Em uma das sessões, muito empolgado com seu álbum de figurinhas da Copa do Mundo, diz-se um ótimo jogador. Com o passar dos atendimentos, resolveu fazer o próprio pacotinho de figurinhas, dizendo à analista: “Esse é o meu pacotinho. Vamos abri-lo?”. A analista associou a fala”?brir o pacotinho” ao ato de ele nascer. Nessa interação de Felipe com a analista, esta se interroga sobre qual é o seu lugar. Como defende Sílvia Bleichmar (2005, p. 11), em seu livro Clínica psicanalítica e neogênese: “A psicanálise continua se revelando como a teoria mais fecunda para sustentar e firmar esse caminho, nestes tempos em que a dessubjetivação espreita constantemente”.

O ambiente de convívio de Felipe parece bastante saudável, por ele conseguir pensar, representar, criar novos jogos durante os atendimentos, o que nos parece não ser a realidade de muitos brasileiros. Hoje, inúmeros caminhos são possíveis, tão possíveis que algumas crianças podem estar se sentindo diante de uma encruzilhada, muitas vezes desamparadas da palavra de um adulto de referência. Os vínculos iniciais de amor adubam o psiquismo para aí seguirem brotando sentimentos amorosos na relação com o (O) outro.

2.6 A arte surrealista como resgate das memórias escondidas no pátio da infância

Aline, uma adolescente, começou a pintar no período pandêmico mundial. Na ausência de um quadro, utilizou a parede lateral de seu guarda-roupa como espaço possível para externar suas emoções.

Para Aberastury (1983), todo adolescente leva, além do selo individual, o selo do meio cultural, social e histórico. Aline nos lembra do caso Anne Frank: Aberastury (1983, p. 242) justifica que Anne teve pais saudáveis em seu mundo interno, “quis falar de sua adolescência e da de todos e despertar em todos o impulso para lutar pela conservação da liberdade e do amor”.

Aline, além de seu gosto pela pintura, enviou três músicas à analista, nas quais foi observado algo em comum: uma referência ao tempo. Qual é a importância do tempo para os adolescentes? Algumas respostas à pergunta encontramos no texto de Knobel (1983)O pensamento e a temporalidade na psicanálise da adolescência, no qual comenta a elaboração dos lutos de seu paciente, que sai da indiscriminação temporal e passa para a temporalidade conceitual.

2.7 Falhas no suporte ambiental na constituição psíquica

A mãe de Bárbara relata, na entrevista, que o casal está separado e que a adolescente tem vivido um período de lutos e mudanças significativas na capacidade de pensar, sentir e agir. A adolescente comenta sua dificuldade de relacionamento com a mãe, motivo de ter ido morar com o pai.

Parece-nos que Bárbara, quando bebê, não experimentou um ambiente seguro, de confiança no outro, o que sugere que pode ter sido difícil para ela realizar a diferenciação entre o eu e o não eu.

Para Sigal (2009, p. 180),

[... ] o pânico se apresenta como produto de uma patologia do arcaico, ou seja, produz-se um desamparo do eu diante de uma invasão pulsional causadora de momentos de falência do aparelho psíquico.

Anne Brun (2018, p. 39) menciona que, nas últimas décadas, está sendo percebido um “retraimento da subjetivação”? “Passa-se de uma psicanálise concebida como tomada de consciência do inconsciente para uma psicanálise centrada nos processos de subjetivação”. Rassial (2000, p. 27) defende que o estado limite afeta o sujeito, o laço social e o próprio pensamento, requerendo que a psicanálise aprofunde esse tema. Em suas palavras: “O estado limite é, em primeiro lugar, uma resposta adequada a uma incerteza das referências que caracteriza o laço social contemporâneo”.

2.8 Uma adolescente confusa em relação ao seu corpo, à sexualidade, ao trabalho e com marcas de “ausência” das funções materna e paterna

Sofia buscou a clínica por causa de sua ansiedade, por não conseguir finalizar as coisas, trazendo a hipótese diagnóstica de transtorno de ansiedade.

Como demonstra dificuldades de concluir as coisas, é possível inferir que o transtorno de ansiedade esteja acompanhado de algumas características de depressão. Kehl (2009), em O tempo e o cão: a atualidade das depressões, faz uma retomada histórica do conceito de depressão e justifica o título do livro, fazendo a analogia de um cão atravessando uma estrada com automóveis e a velocidade dessa travessia. Uma das características do depressivo é não dar conta do que tem por fazer.

Segundo McDougall (1997, p. 169): “É importante aqui discernir em que medida os problemas inconscientes dos pais tornaram mais difícil do que já é a tarefa de crescer, da infância à vida adulta”. Percebe-se que, em diferentes momentos, a adolescente não pôde contar com a mãe e o pai como amparo.

Para Winnicott (1982, p. 257), a criança, nas primeiras fases do desenvolvimento emocional, tem uma personalidade e um ego ainda não integrados, e o “amor primitivo tem uma finalidade destrutiva”. A criança, desde cedo, precisa aprender a tolerar frustrações, a conhecer a realidade interna e a externa e a estabelecer vínculos de continuidade.

As frequentes mudanças de emprego podem sugerir um comportamento de sempre estar à procura, achando que o melhor se encontra em outro lugar. Para Rassial (2000), o estado limite é instável, mas suscetível de mudança.

3 Tecendo considerações

Descrever algumas vinhetas clínicas da supervisão de grupo leva-nos a pensar que a clínica da criança e do adolescente convoca ao diálogo com a psicanálise sobre a constituição psíquica do sujeito. Para que o bebê possa sair do inconstituído ou inorganizado e realizar a travessia para o mundo das relações, do laço social, dos vínculos, precisa contar com o (O)outro para poder se inscrever no circuito pulsional. A supervisão em grupo, diferentemente da supervisão individual, favorece uma troca, ampliando, a partir das diferentes contribuições, o entendimento sobre o caso e as possibilidades de intervenção na clínica com crianças, adolescentes, família e escola.

Cabe mencionar que as vinhetas descritas são de filhos e filhas de mães e pais que reconheceram a necessidade de consultar um profissional da saúde mental, certamente percebendo que algo poderia estar perturbando o desenvolvimento psicomotor, afetivo, psíquico ou relacional. Sabe-se que o atendimento clínico atinge um percentual bastante reduzido de pessoas, uma vez que muitas crianças e adolescentes não conseguem esse tipo de atenção, mesmo que muitas instituições ofereçam atendimento por meio da clínica social.

A partir das vinhetas citadas e de casos atendidos no consultório, constata-se que muitos deles apresentam prejuízos no que diz respeito à etapa narcísica, ou seja, evidenciam-se perturbações na etapa pré-edípica. Possivelmente, por vezes, o ambiente não consegue ser continente às angústias de desamparo em que o bebê se encontra, nesse novo mundo fora da placenta materna. Acreditamos que as mudanças nas relações, mais líquidas, horizontais e variáveis, estão trazendo mais incertezas sobre o processo resultante da presença ou ausência da função materna. Em contrapartida, a função paterna, há algumas décadas, tem se mostrado, em muitos casos, mais ausente. Isso não favoreceria um espaço de maior permanência na etapa perverso polimorfa descrita por Freud (1905/1996)?

Entendemos que as primeiras inscrições ou marcas no psiquismo abrem caminho para as representações-coisa ou representações-palavras, conforme Freud (1915/2010). Mas o que significa cada uma dessas representações e quais são os reflexos na clínica contemporânea? As representações-coisa são as marcas e sensações corporais, são inconscientes e precisam ser nomeadas. Por exemplo, quando o bebê chora de fome, isso precisa ser-lhe dito, assim como as demais sensações que ainda lhe são inomináveis e ainda não são pensamentos. A representação-palavra tem acesso ao pré-consciente e ao consciente, manifestando-se em palavras simbolizadoras.

Finalizando, sabemos que o mundo sempre está em movimento, mudança e transformação. Interrogamo-nos sobre os reflexos do excesso de telas utilizadas por crianças e adolescentes e a influência das tecnologias digitais no convívio familiar. Qual é o espaço da narrativa e do diálogo com o outro fora das redes sociais? Como a inteligência artificial, que vem contribuindo com as ciências, vai influenciar na constituição psíquica do sujeito?

Referências

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Recebido: 25 de Maio de 2023; Aceito: 19 de Junho de 2023

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