A clínica com crianças e adolescentes possibilita pensar num trabalho em que estão implicados muitos recursos materiais que realçam as significações e representações simbólicas. O desenho é uma das ferramentas recorridas com frequência entre os profissionais da área. Trata-se de uma ferramenta importante e necessária para o atendimento à demanda anunciada pelos que buscam compreender e amenizar o sofrimento desses pacientes. Seguindo Winnicott e Antonino Ferro, o propósito de pensar o desenho como recurso na clínica com crianças e adolescentes é fornecer elementos para entrar em contato com o mundo interno de tais pacientes, a fim de perceber os movimentos pulsionais, libidinais e agressivos que estabelecem um vínculo e um diálogo com os conteúdos conscientes e inconscientes. Nesse sentido, não se trata de fornecer elementos para fazer um psicodiagnóstico: esse é objetivo da psicologia.
Na Antiguidade e na Idade Média, não se dava importância à criança, que era vista como um adulto em formação (Ariés, 1986): a criança, logo que caminhasse, era misturada aos adultos, partilhando trabalhos e jogos, transformando-se em um jovem adulto sem passar pelas etapas do desenvolvimento que hoje consideramos essenciais nas sociedades evoluídas. Foi com Rousseau, no fim do século XVIII, com a obra Émile, que a infância adquiriu importância. Por isso, Rousseau é considerado o primeiro filósofo da educação.
Em 1909 Freud escreve a história do Pequeno Hans, criança de cinco anos que era atendida pelo pai sob supervisão dele. Na análise, o menino expressava o medo de ser devorado por um cavalo, que anteriormente ele vira cair. O material da análise dizia respeito ao conflito edípico do Hans com seu pai pela disputa do amor da mãe, deslocando a raiva do pai para o cavalo. Um dia, o pai fez o desenho de um cavalo e o mostrou para Hans, que, muito surpreso, quis um lápis e acrescentou algo que faltava ao animal: um pipi grande! Freud apreciou a iniciativa do pai dizendo que era bem disso que se tratava: o pipi grande do pai e seu medo de castração.

Fonte: Freud, 1909/1966, p. 23.
Figura 1 Alongamento desenhado pelo pequeno Hans (medo de castração)
Em 1926 Sophie Morgen Stern introduz o desenho no tratamento psicanalítico de uma criança com mutismo. Nas décadas seguintes, a sociologia e a pedagogia comparam o desenho infantil com a produção dos mestres, sem ver seu valor de manifestação de conteúdos tanto conscientes quanto inconscientes. Piaget (1978) contribuiu muito com seu estudo sobre o conhecimento, para valorar a expressão gráfica e plástica, gestual e musical. Contribuiu para ver o grafismo infantil como produto original do universo infantil e não mais associado à inabilidade motora.
A aparição do lápis e do papel em escala industrial facilitou a inserção do desenho nas atividades lúdicas e pedagógicas. Antes se escrevia na areia, nos papiros, nas paredes e nos pisos com carvão, tintas e outros materiais. Assim como os homens primitivos deixavam suas marcas registradas nos desenhos rupestres que descreviam seus rituais e comemorações, também a criança tem prazer em deixar uma marca de si nos seus desenhos.
O que desenha uma criança? Primeiro são rabiscos, borrões, aglomerados, círculos, quadrados, triângulos, abóbadas, imagens que geram várias figuras do vocabulário infantil. A criança projeta no desenho seu próprio esquema corporal, em forma narrativa e figurativa. Durante seu desenvolvimento, a criança usa seu traço para se situar no campo espacial: é um espaço existencial aberto, constituído pelo corpo que vai se estruturando progressivamente. Primeiro são linhas e formas, uma mancha, um rabisco, uma superfície que se suja, um território imaginário. O espaço é afetivo, a grandeza das formas é afetiva.
Os desenhos apresentados a seguir ilustram o modo como uma criança de 20 meses (FIG. 2) e uma criança entre 2 e 3 anos (FIG. 3) expressam o que sentem e percebem. O psiquismo vai se revelando de diferentes modos e formas.
A criança gosta de desenhar a casa, árvores, flores, animais e aquilo que faz parte do seu quotidiano, especialmente a sua família. Aqui teríamos muitas observações a fazer a respeito daquilo que é desenhado, aquilo que falta, as cores usadas, a proporção etc. Para Klein (1997) tanto o jogo lúdico quanto a grafia correspondem à associação livre dos adultos, expressando seus temores, suas angústias e seu desenvolvimento afetivo e intelectual. Lembramos também que há semelhanças entre o uso dos mecanismos de deslocamento e condensação no ato de desenhar, bem como na produção de um sonho.
Na ilustração seguinte (FIG. 4), a criança pode falar do seu desenho, enquanto o psicanalista registra o que é verbalizado e auxilia nas associações possíveis diante da história do paciente.
O desenho e a clínica
O desenho é uma entre as diferentes expressões da função simbólica, que envolve a capacidade de empregar símbolos e signos para substituir as coisas. Através do desenho, a criança sustenta as representações daquilo que percebe. Ao mesmo tempo, a expressão gráfica do desenho pode revelar a distância entre o eu e o não eu, o pensamento, a palavra não falados, os conflitos intrapsíquicos provocados pela forma de acolhimento concedido à criança.
Os desenhos representados nas FIG. 5 e 6 revelam como uma criançade 10 anos com dificuldades de aprendizagem se representa. Esse menino expressa, através do seu desenho, como gostaria de ser percebido e como percebe que o outros o veem.

Fonte: Chamat, 2004, p. 191.
Figura 5 Menino de 10 anos desenha como gostaria de ser: “Normal, eu mesmo!”?
Como diz Winnicott (1994), um lugar especial precisa ser concedido às primeiras entrevistas, e o desenho pode ser uma técnica para explorar o material dessa entrevista. Um paciente, criança ou adulto, terá, no atendimento clínico, uma certa capacidade de acreditar na obtenção de auxílio e de confiar naquele que o oferece. O que se espera do psicólogo ou do psicanalista é um setting estritamente profissional, no qual a criança ou o adolescente fiquem livres para explorar a oportunidade que a consulta proporciona para a comunicação.
Donald Winnicott denominou o desenho de área transicional, recurso utilizado pela criança a meio caminho entre o subjetivo e o objetivo, vivência da desilusão, que é substituída pela realidade e representação de um espaço ambíguo entre um “dentro” e um “fora”.
Uma criança com 5 anos e 6 meses, abandonada pelo pai, pode revelar o seu estado emocional através do desenho (FIG. 7). Também a concepção de família e das pessoas, bem como os elementos que nela estão incluídos podem ser observados no desenho (FIG. 8).

Fonte: Di Leo, 1985, p. 82.
Figura 7 Criança de 5 anos e 6 meses, abandonada pelo pai, desenha a si mesma com a mãe

Fonte: Di Leo, 1985, p. 72.
Figura 8 Criança com 11 anos e 3 meses desenha todos os componentes da família incluindo os animais de estimação: cachorro e tartaruga
Winnicott propõe que no atendimento clínico às crianças e adolescentes, embora ocorram oportunidades para comentários interpretativos na produção dos desenhos, estes podem ser mantidos em um mínimo ou, em verdade, deliberadamente excluídos. O psicanalista, na consulta terapêutica com uma criança (ou um adulto também), precisa ser capaz de utilizar lucrativamente o tempo limitado e ter técnicas já prontas, por mais flexíveis que possam ser. Em relação a qualquer técnica, inclusive o desenho, é importante que o terapeuta esteja preparado para usar, mas a base de todo o trabalho é o brincar. Presume-se que o terapeuta possa brincar e tenha prazer em brincar.
A rotina proporcionada a uma criança no decorrer do dia pode ser observada através do seu desenho, ilustrando o que prioriza e realiza predominantemente (FIG. 9).

Fonte: Visca, 1995, p. 101.
Figura 9 Menina se desenha assistindo a um programa de TV de que gosta muito
O jogo do rabisco é uma atividade da qual duas pessoas quaisquer podem participar, mas geralmente, na vida social, o jogo rapidamente deixa de ter significado. A razão por que essa atividade pode ter valor para a consulta terapêutica é que o terapeuta utiliza os resultados de acordo com o seu conhecimento sobre o que a criança gostaria de comunicar. O que mantém a criança interessada é a maneira pela qual o material produzido é utilizado no ato de brincar ou jogar.
O desenho, como o jogo do rabisco, pode ser aprendido facilmente e tem a vantagem de facilitar muito a tomada de notas. Se um menino ou uma menina se comunicam pela fala ou pelo relato de sonhos, então a tomada de notas torna-se um problema. O desenho como o jogo do rabisco pode ser um jogo natural que duas pessoas quaisquer podem jogar. Não é um teste, e o psicanalista contribui com sua própria engenhosidade tanto quanto a criança o faz. A contribuição do terapeuta é abandonada por ser a criança e não o psicanalista quem está comunicando aflição.
A forma como a criança representa a sua realidade interna é bastante singular e está relacionada com os aspectos tanto cognitivos quanto afetivos. As crianças que vivenciam o período de intensa fantasia, aproximadamente entre os 3 e 6 anos, fazem os seus desenhos como imaginam e como percebem a realidade, como na FIG. 10.

Fonte: Mèredieu, 2003, p. 21.
Figura 10 Fenômeno de transparência: o gato engoliu a velha e o papagaio
Um aspecto que nos chama a atenção no trabalho de Winnicott com as crianças é a disponibilidade para brincar e para ser flexível. O jogo, o desenho, a história falada e contada fazem parte de uma importante comunicação. O desenho é indissociado do amadurecimento da criança e do adolescente.
Um aspecto importante na utilização do desenho como recurso clínico é a verbalização que a criança emite sobre o seu desenho. Na FIG. 11, a criança inclui os irmãos na família, mas eles se encontram dentro de casa.

Fonte: Mèredieu, 2003, p. 71.
Figura 11 Desenho da família, incluindo os irmãos dentro de casa e o bebê no carrinho
Somos povoados de medo e de angústia. A criança precisa consolidar a angústia e o seu esquema, que é de natureza cognitiva e afetiva, pois ela está elaborando através da representação simbólica o que lhe falta. O psicanalista precisa se identificar com o desenho e com a técnica para acompanhar o que a criança ou o adolescente expressam.
Os desenhos ilustram também a dinâmica familiar, como na FIG. 12. A criança com 11 anos se desenha junto com a mãe exercendo as atividades da casa, enquanto o pai lê o jornal. Esse desenho poderá responder a muitas angústias e desigualdades vivenciadas pela criança.

Fonte: Di Leo, 1985, p. 74.
Figura 12 Criança de 11 anos desenha ela e a mãe trabalhando enquanto o pai se queixa ao ler o jornal
A criança escuta a história, rabisca o desenho e se diverte. As representações podem ocorrer através do desenho, do teatro e do jogo. O trabalho com o desenho não pode atropelar a narrativa. A criança joga com os personagens ou expressa o seu grafismo e tem autoria sobre o que produz. Como na FIG. 13, o menino com 12 anos reproduz através do desenho a violência experimentada no seu cotidiano, na sua cultura.

Fonte: Mèredieu, 2003, p. 114.
Figura 13 Menino de 12 anos, palestino: “um soldado matando uma criança”?
Ao se referir ao desenho como técnica no atendimento às crianças, Winnicott (1994, p. 232) nos diz:
Isso é tudo o que existe a título de técnica, e tem-se de enfatizar que sou totalmente flexível mesmo neste estágio muito inicial, de maneira que, se a criança quer desenhar, ou conversar, ou brincar com brinquedos, ou fazer música ou traquinagens, fico livre para adaptar-me aos desejos dela. Com frequência um menino quererá jogar o que chama de “jogo de pontos”, isto é, algo que pode ser ganho ou perdido. Apesar disso, em uma alta proporção de casos de primeira entrevista, a criança aceita por tempo suficiente longo os meus desejos e o que gosto de jogar para que algum progresso seja alcançado. Cedo as recompensas começam a aparecer, de maneira que o jogo continua. Amiúde, no decorrer de uma hora, fizemos juntos 20 a 30 desenhos e, gradualmente, a significância destes desenhos conjuntos tornou-se cada vez mais profunda e é sentida pela criança como fazendo parte de uma comunicação de importância.
Nesse sentido, o desenho é uma atividade livre ou com alguma indicação de um tema. Além disso, pode ser considerado um jogo sem regras. Na clínica com crianças e adolescentes, o jogo do rabisco (Winnicott, 1994, p. 243) é importante pelo “uso que se faz do material que o jogo pode produzir, especialmente no trabalho de uma só sessão que é chamada de “consulta (diagnóstica) terapêutica”.
A descrição de um caso pode ilustrar o desenho produzido pela criança ou adolescente. Não existem dois casos iguais e um só exemplo. Portanto, cada desenho é produzido pelo paciente numa circunstância específica, portanto deve-se considerar o que é verbalizado também no momento de sua produção. O que se considera importante nesta técnica é que ela possibilita um diálogo e uma “aproximação com o paciente”.