Considerações iniciais
Em 26 de setembro de 2021, o Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS) e o Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) completaram 65 anos.
Nos dias 24 e 25 de setembro de 2021, foi realizada com muito esmero pelo CPRS uma jornada on-line comemorativa de seus 65 anos em plena pandemia da covid-19, cujo tema central foi A psicanálise através dos tempos e uma programação de conteúdos da atualidade.
O CPRS vem contribuindo há muito tempo com o campo da psicanálise brasileira. É filiado ao CBP e à IFPS (International Federation of Psychoanalytic Societies), tendo uma bela história na transmissão da psicanálise e no desenvolvimento dos ofícios psicanalíticos.
O CBP inclui as filiadas Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ), Círculo Psicanalítico da Bahia (CPB), Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG), Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA), Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS) e Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS).
A IFPS, à qual temos filiação institucional, abrange diferentes instituições psicanalíticas no mundo, diferenciando-se da IPA (Associação Psicanalítica Internacional) e dos grupos lacanianos.
Junto com as amigas Eliana Mendes (CPMG) e Marli Piva (CPB), psicanalistas notáveis, participei como palestrante do painel A ética na diversidade dos caminhos do ser psicanalista, sob a coordenação de Magda Maria Colao (CPRS), que possibilitou com seu conhecimento uma interlocução ímpar à ocasião.
O painel foi muito especial. Eliana Mendes discorreu de forma fulgurante sobre Os 125 anos de psicanálise. Marli Piva, também de forma brilhante, desenvolveu sua temática A ética da psicanálise e/ou a ética do psicanalista. Minha apresentação A sensibilidade do cuidado poético-analítico: coisa versus humano em pandemia trilhou os caminhos da poética, da poesia, e assim falei da po...ética em psicanálise.
Após o lançamento de meu livro de poesia O sol ruivo em pandemia (Barreto, 2021a), que despertou em mim múltiplos significados afetivos e resgates simbólicos, minha fala no evento se desenvolveu com base no meu artigo O cuidado poético-analítico em um mundo pandêmico coisificado (Barreto, 2021b), publicado na revista Estudos de Psicanálise, número 55, em 2021. A capa desse número da revista estampa 65 e 26 de setembro de 1956 em alusão à história do CPRS e do CBP.
O presente artigo tem por objetivo trazer alguns eixos centrais de minha apresentação no evento comemorativo dos 65 anos do CPRS e do CBP em 2021, no contexto da pandemia da covid-19, ministrada após as publicações de meu artigo O cuidado poético-analítico em um mundo pandêmico coisificado (Barreto, 2021b), que embasou minha apresentação, e de meu livro de poesia O sol ruivo em pandemia (Barreto, 2021a) - isto é, quando, frente ao sofrimento da pandemia do novo coronavírus, a poesia era minha aliada, o que fala também de meu vínculo com a literatura poética e as artes desde a tenra infância. Este artigo tem ainda por finalidade contemplar alguns outros elementos teóricos que vêm acompanhando meu pensamento no momento e em algumas de minhas publicações psicanalíticas atuais.
Resgatando a minha participação no evento
Gostaria de cumprimentar os organizadores e os participantes deste belo evento. Agradeço ao Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS), por meio de sua admirada presidente Paola Fachini, e a todos os membros da criativa instituição gaúcha, onde encontro laços fraternos, pelo convite para falar aqui em seu aniversário, assim como na data comemorativa do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), que também completa 65 anos!
Meus cumprimentos às amigas que comigo estão: Eliana Mendes e Marli Piva. Eu as admiro demais! Tantas representações que têm e ações no campo internacional da psicanálise, assim como no cenário brasileiro! Entendo, neste momento, que a psicanálise está se reinventando, e a situação deste evento é histórica!
Amplio meus gratos cumprimentos à coordenadora deste painel, a sensível psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS): Magda Maria Colao. Como mencionei anteriormente, cumprimento a todos os amigos gaúchos.
Cumprimento a todos de nossa federada por meio de nosso presidente do CBP, tão dedicado à causa psicanalítica, Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ).
Gratidão especial ao Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS), instituição à qual pertenço e onde encontro laços afetivos, intelectuais e de admiração significativos. Cumprimento seus membros por meio da fundadora e presidente do CPS Deborah Pimentel.
Posteriormente aos cumprimentos e agradecimentos, expressei-me da seguinte forma:
Estamos em um momento histórico, único, entre outros aspectos, pela situação do planeta Terra pandêmico e on-line de fortalecimento de laços de pertencimento e transferência com nossa instituição, a psicanálise, e os círculos psicanalíticos de nossa federada CBP, o que o ofício psicanalítico tem de inovador diante do mundo contemporâneo esmigalhado.
Penso que nossa instituição é marcada pela pluralidade fundante, pelas humanidades que a constituem, pela psicanálise em interfaces com muitos saberes e não saberes, por sócios sensíveis que labutam em investimentos pulsionais diante dos desafios diários em busca da dignidade do viver.
Nossa instituição psicanalítica é um lugar simbólico, paterno, materno, fraterno, psíquico, social e democrático transformador com vetores potentes da psicanálise. E “falo” da psicanálise em várias dimensões: do Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS), através de minha amiga-irmã Déborah Pimentel; do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), representado por Anchyses Jobim Lopes; do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul, representado por Paola Fachini. E podemos pensar na International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Nossos laços de pertencimento estão sendo pensados aqui! O que significa a psicanálise no Brasil, no mundo e quais são seus efeitos analíticos. Como são os pertencimentos em um mundo tão coisificado e despatriotado!
O “falo” circula. Somos falantes e castrados. Supostamente maduros, temos uma relação com o pai, Sigmund Freud, que não é de submissão, mas de filiação, pertencimento, respeito e autonomia de continuidade da história da psicanálise.
A função paterna não é efetiva quando a relação com o pai se constitui em servidão ou “ética servil”?
Fala-se muito de ética em psicanálise.
Já foram mencionados muitos aspectos. Não vou me repetir, apenas retomar alguns. A ética como ramo da filosofia, que ajuda a refletir sobre a ação humana, o modo de viver, e diferente da moral, da obediência a costumes socioculturais! A ética também pode ser pensada em suas ramificações. Temos a bioética. Em Freud, há uma polifonia sobre o que se relaciona com a ética. O discurso ético é polifônico. Não há algo linear. Podemos pensar no superego, no conflito neurótico, na relação entre o pulsional e a cultura, a civilização [...]. Podemos levar em conta os textos sociais e técnicos de Freud [...].
Podemos, a partir do artigo de Di Matteo (2006) na revista Estudos de Psicanálise, pensar em moral e ética em psicanálise, passando por vários textos freudianos e o amor que Freud coloca [...]. E, com base em muitos autores, essa relação do sujeito com a cultura, essa ética do desejo tão falada, que não é o desejo do psicanalista. O desejo do psicanalista precisa silenciar para o analisando encontrar-se como sujeito desejante. Podemos passar por Lacan. Também a questão da falta [...].
Podemos levar em conta vários autores. Em Sergipe, Déborah Pimentel estuda a ética voltada para a saúde dos médicos [...] inclusive valores e princípios na relação dos profissionais com os pacientes. Podemos também pensar em vários outros aspectos neste discurso polifônico e polissêmico da ética.
Como o “falo” circula - e estamos “falando” de círculos de psicanálise - caminharei pela po...ética, pois, na poesia, existem muitas possibilidades de sobrevivência, potencialidades fecundas de reinvenção de sujeitos, das linguagens, da psicanálise e do mundo com as múltiplas reflexões éticas na diversidade dos caminhos do ser psicanalista.
Por isso, compreendo que a poética acolhe a ética no que existe de possibilidades de construção de um mundo melhor para si, para os outros, para a Terra. E a psicanálise se encontra nas marcações, nas pausas e nas rimas da poesia da ética da escuta.
A poesia não liga significante a significados de maneira fixa. Ela é “uma brincalhona”. Na brincadeira, “falo” muitas “coisas” sérias. E como é sério viver com ética em um mundo de coisas! Pois é!
Neste momento, fui, em minha palestra, a meu artigo O cuidado poético-analítico em um mundo pandêmico coisificado (Barreto, 2021b), do qual, por esta ocasião, enfatizarei algumas falas e eixos:
Há muito tenho visto o mundo contemporâneo como uma “pandemia” de coisas ou objetos, sendo a humanização uma das perspectivas preciosas para o reencantamento do que tem sido coisificado ao longo dos tempos.
Não estou falando de coisa ou objeto nos sentidos habituais da psicanálise, mas como aquilo que não tem vida e é destituído de humanidade (Barreto, 2021b, p. 135).
Continuei a “falar” do que destaco aqui:
[...] o termo “pandemia” deslizará neste discurso do sentido comum de uma doença que se alastra no globo terrestre, em que há o caso pandêmico exemplar e tenebroso da atualidade - da covid-19 - para o significado plural daquilo que se espalha intensamente na Terra.
[...] meu trabalho psicanalítico tem sido crivado por minha análise psicossocial da coisificação das subjetividades, pois percebo um duelo na contemporaneidade: “Pandemizar” as coisas ou o humano, o sensível? (Barreto, 2021b, p. 135).
Atualmente, e há algum tempo, quando falo de coisificação do humano e de ameaças à coisificação da psicanálise, tenho feito recortes e costuras com autores como Ritzer (1993), que aborda a a mcdonaldização da sociedade, e Bryman (2004), que apresenta a concepção de a disneyzação da sociedade.
Não levei essas contribuições à palestra, todavia me acompanham em algumas conferências e publicações minhas, nas interlocuções que faço, pois a racionalização do trabalho e do mundo nos atravessa de modo sistêmico. O que se faz nos fast-foods passa a fazer parte da vida social. Eficiência, cálculo, previsibilidade e controle, entre outros aspectos, nos tocam, como nos ensina Ritzer (1993) ao falar de a mcdonaldização da sociedade (Thorpe, 2016).
Fazer interface com essas ideias sociológicas para pensar sobre os ofícios da psicanálise e a clínica em sua singularidade me parece importante.
Enfatizo a singularidade do ofício psicanalítico em um mundo mcdonaldizado e disneyzado em meu artigo sobre o assunto (Barreto, 2022), publicado na revista Estudos de Psicanálise n.° 58. A disneyzação é vista por por Bryman (2004) como no âmago da sociedade de consumo de modo que os princípios dos parques temáticos da Disney alcançariam distintos âmbitos da sociedade.
Ressalto que a psicanálise promove, entre outras dimensões, o contato com o mal-estar de forma singular, a autenticidade, e não o espetacular, o sensacional (Barreto, 2022).
Alguns pontos centrais de meu artigo que embasou minha exposição no evento de 2021 serão resgatados aqui:
Problematiza a pandemia ou da coisificação ou do humano.
O humano se coisifica quando esquece sua história.
A psicanálise em sua ética é pensada como um tensionamento para marcar sua posição periférica ou extraterritorial no mundo coisificado do século XXI.
Acena para a importância da “pandemização” do paradigma da humanização para a psicanálise ganhar sustentação no futuro em sua pluralidade teórico-técnica nos mais diversos contextos e quanto a seu ofício poético, sensível e sagrado.
A escuta balizada pela sensibilidade do cuidado poético-analítico é enfatizada.
Fiz ainda algumas teorizações, como núcleos e dinâmicas de coisificação em antagonismo a núcleos e dinâmicas de humanização, campo de “pandemização” (ou espalhamento) versus campo de “reclusão” e ressaltei a importância do trabalho com as feridas abertas ou não, assim como com o tecido cicatricial em análise.
Atualmente, observando essa trajetória, percebo marcas de minha história pessoal e profissional; experiências de vida antes, durante e depois da pandemia da covid-19 atravessando meu pensar psicanalítico, assim como o trabalho em vários campos: consultório, hospital geral e na docência universitária, entre outros exemplos.
O tempo passa! O CBP e o CPRS têm avançado na idade. No segundo semestre de 2023, teremos mais um congresso do CBP, e em Belo Horizonte, organizado pelo CPMG. Irei falar mais uma vez! Tenho, entre outros aspectos, percebido a importância da clínica psicanalítica ampliada para o futuro de nosso ofício singular como psicanalistas.
Também tenho me preocupado com a toxicidade dos relacionamentos humanos na contemporaneidade como gritos de socorro. O século XXI precisa ser considerado ainda com a Quarta Revolução Industrial, descrita por Schwab (2017), transformadora do modo de viver, estabelecer relacionamentos e trabalhar na confluência de tecnologias digitais, biológicas e físicas.
Nessas digressões entre passado, presente e futuro, a olhar a minha participação na jornada do CPRS em 2021, e para além, volto a “falar”, em contato com tantas mortes, perdas e lutos que assolam nossos tempos em 2023, retomando, em meus sentimentos e elaborações, o que fora pronunciado com ênfase na jornada, entre outras dimensões:
O caminho da abordagem psicanalítica adiante será de po...eira ou ética? Que o mundo e a psicanálise não se transformem em pó com a destruição e a morte do humano e da vida!
A poética da psicanálise e de seu cuidado sensível com os sujeitos, as coletividades, o mundo e o universo permaneça hoje e seja lançada no amanhã! (Barreto, 2021b, p. 143).
Considerações finais
Não adentrarei outros pontos aqui de minha palestra no painel memorável de 2021 junto com Eliana Mendes (CPMG) e Marli Piva (CPB), baluartes do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), sob a coordenação da sensível Magda Maria Colao (CPRS), numa jornada de celebração da bela história do CPRS e do CBP. Indico aos que me acompanham que complementem a leitura deste artigo (Barreto, 2023) com a de O cuidado poético-analítico em um mundo pandêmico coisificado (Barreto, 2021b).
Sa/lientogrouptão, que, ao término de minha palestra de 2021, em um momento histórico da pandemia da covid-19, das tecnologias on -line em alta, dos 65 anos do CPRS e do CBP, bem como do florescer das sensibilidades humanas e “inconclusões”, fui às estrofes de minha poesia Caminhos de sol que se encontra em meu livro O sol ruivo em pandemia (Barreto, 2021a, p. 49):